GT 06. CONSUMOS E CONSUMIDORAS: PESSOAS QUE USAM E PRODUZEM CONHECIMENTO SOBRE DROGAS
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- Daniel Assunção da Fonseca
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1 VI CONGRESSO INTERNACIONAL ABRAMD DROGAS E AUTONOMIA: CIÊNCIA, DIVERSIDADE, POLÍTICA E CUIDADOS 7 A 10 DE NOVEMBRO DE 2017 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS (PUC-MINAS GERAIS) BELO HORIZONTE GT 06. CONSUMOS E CONSUMIDORAS: PESSOAS QUE USAM E PRODUZEM CONHECIMENTO SOBRE DROGAS AYAHUASCA E SETTING TERAPÊUTICO: A EXPERIÊNCIA DE ESTAR ENTRE A PSICOTERAPIA E O USO RITUAL DO CHÁ ANA CAROLINA SIMÃO DE OLIVEIRA UNICAMP
2 O presente trabalho tem por objetivo descrever como os usuários rituais de ayahuasca que bebem o chá e fazem concomitantemente psicoterapia compreendem o uso de ayahuasca em relação à psicoterapia, investigar o potencial terapêutico da ayahuasca através do discurso dos participantes sobre suas vivências relacionadas entre a psicoterapia e os contextos rituais e contribuir para o desenvolvimento sobre práticas psicoterapêuticas dentro destes contextos. Para isso, foram recrutados participantes por contato direto ou divulgação em redes sociais virtuais. Foram excluídos participantes que não fizessem uso regular da ayahuasca ou que já tivessem encerrado o processo de psicoterapia. As entrevistas foram marcadas e realizadas via skype ou presencialmente, conforme a disponibilidade de cada participante. Os resultados preliminares aqui apresentados compõem seis entrevistados que participaram da entrevista semiestruturada com as perguntas: a) como você enxerga os campos da psicoterapia e do uso do chá? ; b) você leva as questões que surgem nos rituais pra psicoterapia e há rituais em que surgem questões que você trabalha na psicoterapia? ; c) como você pensa que seria um possível uso terapêutico do chá?. As entrevistas foram submetidas ao processo de análise de conteúdo para identificação dos elementos das amostras do material recolhido, escolha de frases que representassem o objetivo da pesquisa, incluídas na unidade de análise, e unidade de contexto, com limites contextuais para posterior categorização. Dessa forma, o material produziu seis categorias, sendo estas: a psicoterapia e o uso do chá como complementares, auxiliadora e revelador do processo; a psicoterapia como local de controle das questões; a divisão entre psicoterapia e ritual em campos científico e religioso; o trânsito de conteúdos do ritual e da psicoterapia; o ritual como espaço terapêutico e cuidados terapêuticos pós-ritual. Palavras-chave: ayahuasca, psicoterapia, psicodélicos
3 Apresentação Este trabalho possui em seu núcleo resultados preliminares da pesquisa de Mestrado em Ciências Médicas da UNICAMP O chá e o setting terapêutico: a experiência de estar entre a psicoterapia e o uso ritual da ayahuasca. Durante esta fase, foram entrevistadas seis pessoas que se encaixaram nos critérios de inclusão do estudo, entre eles, era prerrogativa para participar estar em processo de psicoterapia e fazer uso recorrente do chá da ayahuasca em contextos rituais. Com o objetivo de descrever como estes atores compreendem o uso de ayahuasca em relação à psicoterapia, investigar o potencial terapêutico da ayahuasca através de seus discursos e contribuir para o desenvolvimento sobre práticas psicoterapêuticas dentro destes contextos, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com o roteiro: a) como você enxerga os campos da psicoterapia e do uso do chá? ; b) você leva as questões que surgem nos rituais pra psicoterapia e há rituais em que surgem questões que você trabalha na psicoterapia? ; c) como você pensa que seria um possível uso terapêutico do chá?. Com a finalidade de produzir maior variabilidade entre as respostas, este estudo tem como objetivo entrevistar participantes de diversas instituições que utilizam a ayahuasca, como o Santo Daime, a Barquinha, a União do Vegetal e os espaços que se denominam xamânicos, ou de abordagens em psicoterapia. 1.O chá e seus contextos de uso 1 A ayahuasca é utilizada há tempo indeterminado em rituais por grupos indígenas da América do Sul e disseminou-se para o uso entre seringueiros da floresta Amazônica em rituais de cura vegetalista e, pouco depois, em contextos urbanos no Brasil e no mundo. Apesar de uma tradição de consumo do chá da ayahuasca pela população indígena e curandeiros mestiços ribeirinhos, é somente no Brasil que houve o desenvolvimento de religiões que fazem uso da bebida como sacramento. (LABATE, 2004). Preparado por folhas do arbusto Psychotria viridis e caules do cipó Banisteriopsis 1 A ayahuasca não é rigorosamente um chá (infusão) e sim uma decocção (líquido produzido após longo cozimento de seus ingredientes). Entretanto, ela é conhecida popularmente como um chá, inclusive por muitos de seus consumidores rituais. Optamos, portanto, por usar o termo chá como sinônimo da ayahuasca.
4 caapi, o chá contém em sua folha o psicoativo DMT. Para que a enzima monoaminooxidase (MAO), presente em nosso trato gastroinstestinal e no sistema nervoso central, não degrade o DMT, é necessário a inibição desta enzima, o que é feita pelas substâncias presente no cipó Banisteriopsis Caapi conhecidas como betacarbolinas ou alcaloides de harmala. Dessa forma, o DMT age na corrente sanguínea e no sistema nervoso central levando de 35 a 40 minutos para surgir os primeiros efeitos (MCKENNA et al., 1984). A primeira pesquisa biomédica realizada com ayahuasca aconteceu na cidade de Manaus (1993), sendo denominada Projeto Hoasca, e teve como objetivo seu exame bioquímico, farmacológico e psiquiátrico. Nos resultados obtidos através de entrevistas pessoais emergiram relatos pessoais de mudanças significativas em problemas psicológicos e no uso abusivo de substâncias psicoativas. Os dados apontavam que 73% dos participantes faziam uso abusivo de álcool antes de começar a frequentar a instituição, 27% apresentavam abuso de estimulantes, 33% relatavam uso de álcool associado com comportamentos violentos e 53% haviam sido dependentes de tabaco. Após a iniciação e atendimento regular nas cerimônias, as pessoas relataram uma intensificação da memória e da concentração, persistência da positividade no estado emocional, plenitude nas interações cotidianas, além de um novo sentido e coerência em suas vidas (METZNER, 2002). Em um dos estudos mais recentes sobre a farmacologia, neurociência e mecanismos psicológicos, foram discutidos resultados de pesquisas recentes sobre o aumento de concentração relativo à aceitação e a habilidade de conseguir uma visão dos próprios pensamentos e emoções, concluindo que a ayahuasca é uma potencial ferramenta terapêutica no tratamento de distúrbios de personalidade e no uso abusivo de substâncias. (DOMINGUEZ-CLAVÉ, E. 2016) A flexibilidade psicológica, aumento de criatividade e efeitos potenciais da ayahuasca em casos de luto também faz parte das temáticas estudadas até o momento. Tais estudos revelaram melhoras em escalas de pontuação como a Present Feelings Scale, no que diz respeito às dimensões psicológicas e interpessoais e levantou-se a hipótese do chá facilitar intervenções psicológicas. (GONZÁLEZ et al. 2017, KUYPERS et al. 2016) Embora um considerável número de trabalhos com a ayahuasca sugerir o potencial terapêutico deste psicoativo (LABATE, 2004), ainda há uma carência de estudos neste campo que avaliem tal potencial. (SANTOS, 2004). A regulamentação da bebida em contextos rituais considera grupos representantes da ayahuasca e teve influência em decisões judiciais e administrativas nos últimos vinte anos em congregações na América Latina, Estados Unidos da América, Canadá, Europa e
5 Japão, países que enfrentaram dificuldades em defender as minorias religiosas que utilizam o chá frente à guerra ás drogas. (LABATE; FEENEY, 2012) O uso da ayahuasca de forma terapêutica necessita de estudos que perpassem a ação farmacológica do chá devido aos diversos aspectos do contexto e as características que estão envolvidos na experiência, agindo de forma conjunta. O processo terapêutico, imbuído de diversas interpretações, deve compreender todos os aspectos de uso da ayahuasca já que visa um processo de busca e construção de sentido por quem passa pela experiência (GOMES, 2013). As três principais linhas de tradição brasileira que utlizam o chá possuem apropriações em comum como as influências do cristianismo, kardecismo espírita, das religiões afro brasileiras e criam estruturas singulares que perpassam alguma norma, produzindo variações entre si (LABATE, 2004). Embora o escopo do estudo seja mais amplo, nestes resultados preliminares somente houve entrevistados que frequentavam centros da União do Vegetal e do assim denominado xamanismo. Portanto iremos nos ater à uma breve contextualização destes dois núcleos. 1.1 A União do Vegetal Dentre os nordestinos que migram para a Amazônia no segundo ciclo da borracha está o fundador da União do Vegetal, José Gabriel da Costa o Mestre Gabriel. Seu primeiro contato com a ayahuasca se deu quando começa a trabalhar como seringueiro em Rondônia, onde bebe o chá com sua família em um seringal próximo à fronteira com a Bolívia (BRISSAC, 1999). Ainda segundo Brissac (1999), Mestre Gabriel, após contato com o chá, é motivado a criar a União do Vegetal em 1961, considerada como uma obra milenar originada no Rei Salomão, nomeando-se, então, como recriador deste grupo religioso. Composta por departamentos como de Memória e Documentação, criado para preservar as origens e a história da religião, Médico, dedicado à cuidar da saúde de todos os associados e Científico, voltado à colaboração com pesquisas com instituições nacionais e internacionais, a UDV expandiu-se na década de 80. Mesmo com um processo de urbanização, há uma certa preservação em sua origem cabocla, onde dá importância à ligação do ser humano com a parte espiritual e com a natureza. Com o tempo, a UDV agregou em diferentes centros pessoas de classes sociais, profissões e culturas diferentes, estabelecendo uma liturgia através do uso do chá. O fundamento do Centro Espírita Beneficiente União do Vegetal (CEBUDV) é o uso ritual da ayahuasca, denominado Hoasca ou Vegetal. Segundo esta doutrina, o chá é utilizado para fim de concentração mental e evolução espiritual. O cristianismo, a
6 cultura africana, indígenas e alguns conceitos espíritas como da reencarnação estão no corpo da doutrina, porém difere-se de outras doutrinas espíritas por não se utilizar do trabalho de psicografia, passes ou incorporação. (LABATE, 2004) A União do Vegetal também possui, entre outros componentes, a presença da doutrina falada e de um calendário fixo, além de um sistema hierárquico dividido entre Quadro de Mestres, Corpo do Conselho, Corpo Instrutivo e Quadro de Sócios. A organização também se estende para as sessões, onde os primeiros e terceiros sábados do mês é reservado para todos os sócios, nomeadas sessões de escala, além de sessões com escalas anuais em datas festivas e sessões instrutivas. (BRISSAC, 1999) Uma característica marcante da UDV são ensinamentos passados nas sessões de acordo com o grau de memória ou grau espiritual em que a compreensão, a capacidade de ouvir e memorizar as mensagens transmitidas durante o efeito do chá ou na burracheira estariam dentro da capacidade de compreensão e aplicação dos códigos do grupo e sua doutrina. O respeito e a liberdade individual também fazem parte dos preceitos deixados por Mestre Gabriel quando deixou escrito para não acreditarem no que disesse, mas sim que examinassem. (LABATE, 2004) 1.2 O xamanismo 2 Os grupos xamânicos também devem ser citados brevemente neste trabalho devido à sua expansão e alcance que construiu no cenário do uso urbano da ayahuasca. Em sua acepção original, entende-se que o xamanismo é um complexo sociocultural, um sistema simbólico onde o xamã é a figura principal, mas não a única. (ELIADE, 1972) A palavra chama deriva da língua tungue siberiana e significa mediador entre mundo dos humanos e mundo dos espíritos. Relatos de pesquisadores naturalistas e viajantes definem a figura do xamã como exótica, histérica e marginal aos olhos da sociedade (LANGDON, 1979). Também são caracterizados como conhecedores das propriedades das plantas que utilizam para entrar em contato com o mundo espiritual e especialmente para fins de cura. Alguns autores preocupam-se mais com o xamã como indivíduo, colocando um pouco à margem seu contexto sociocultural, já outros o consideram como fenômeno globalizante e dinâ (ELÍADE, 1964) 2 Os autodenominados grupos xamânicos ou neo-xamânicos não devem ser compreendidos como o xamanismo original dos grupos indígenas, e sim com um conjunto de práticas ligadas à ayahuasca que estes grupos vêem como identificados ao consumo indígena ou tradicional do chá.
7 No contexto da ayahuasca, participantes de grupos denominados xamânicos e neoxamânicos se identificam mais com o que entendem ser o consumo mais tradicional da ayahuasca. Em última análise, o termo se tornou bastante amplo e praticamente engloba qualquer tipo de bebedor de ayahuasca que não faz parte das religiões tradicionais ayahuasqueiras e suas dissidências. Trata-se de um fenômeno ocidental e, apesar do nome soar como bastante indígena, engloba frequentes sincretismos com tradições de diversas fontes como religiões orientais, a umbanda e diversas doutrinas esotéricas. É portanto, um grupo bastante heteogêneo e difícil de ser definido em termo de suas práticas. 2. Organização do trabalho Este trabalho possui em seu núcleo resultados preliminares da pesquisa de Mestrado em Ciências Médicas da UNICAMP O chá e o setting terapêutico: a experiência de estar entre a psicoterapia e o uso ritual da ayahuasca. Durante esta fase, foram entrevistadas seis pessoas que se encaixaram nos critérios de inclusão do estudo, entre eles, era prerrogativa para participar estar em processo de psicoterapia e fazer uso recorrente do chá da ayahuasca em contextos rituais. Com os objetivos de descrever como estes atores compreendem o uso da ayahuasca em relação à psicoterapia; investigar o potencial terapêutico da ayahuasca através de seus discursos; e contribuir para o desenvolvimento sobre práticas psicoterapêuticas dentro destes contextos, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com o seguinte roteiro: a) como você enxerga os campos da psicoterapia e do uso do chá? ; b) você leva as questões que surgem nos rituais pra psicoterapia e há rituais em que surgem questões que você trabalha na psicoterapia? ; c) como você pensa que seria um possível uso terapêutico do chá?. Indo de encontro ao objetivo proposto, optamos por uma amostra em que não houve um recorte obrigatório de abordagens de psicoterapia e perfil de contextos rituais, assim, seria possível também uma maior variabilidade de discurso entre as entrevistas. Dando seguimento a esta proposta, o procedimento denominado bola de neve ou snowball foi utilizado para a criação da rede de contatos necessária para a busca de voluntários. Segundo Velasco e Díaz de Rada, 1977, a técnica é aplicada em pesquisas realizadas em ambientes comunitários como forma de investigação sociocultural. Não sendo probabilística, os primeiros interessados em participar do estudo, contactados através de alguma indicação, também indicam outros participantes e assim sucessivamente para posterior recrutamento.
8 Para construir uma rede de contatos que indicassem outros possíveis interessados para o estudo, foi também realizada uma divulgação online através da rede social da pesquisadora, do orientador e do grupo de pesquisa de ambos. Nesta divulgação haviam informações sobre o local em que a pesquisa estava sendo realizada além da explicação sobre o perfil que estavamos buscando: Pessoas que fazem uso ritual do chá e estão em psicoterapia, favor entrarem em contato para pesquisa de Mestrado que está sendo realizada na UNICAMP. Os participantes interessados em participar da pesquisa entraram em contato via com a pesquisadora do projeto e agendaram um horário para realizar a entrevista via skype. Os participantes que não estavam em processo de psicoterapia ou que não participavam de rituais de maneira regular não foram recrutados para o processo de entrevista. As seis entrevistas desta pesquisa foram realizadas por Skype devido à dificuldade de lomoção da pesquisadora e dos participantes. A média de duração destas foi de 40 minutos e resultaram em uma perfil de três homens e três mulheres na faixa etária de 23 a 43 anos. A região em que encontravam os participantes variou entre a cidade de São Paulo, cidades do interior como Campinas, Franca e a cidade do Rio de Janeiro. Em relação aos contextos rituais em que vivenciam, quatro dois seis entrevistados frequentam rituais xamânicos e dois participam de rituais da União do Vegetal (UDV). Para realizar uma possível leitura sobre o material produzido, escolhemos fazer um recorte teórico a partir da psicologia Analítica de Jung, baseando-se em duas principais obras, A natureza da psique (1998) e A vida simbólica (2000). Tal análise, baseabdo-se no funcionamento da psique e de suas funções, consciente e inconsciente, pôde ser proposta devido ao discurdo vigente nas entrevistas sobre os campos ritual e de psicoterapia. Apontamentos para reflexão Os campos narrados aqui, ritual e de setting terapêutico, são vias de interação, reflexão e produção de significados sobre como as pessoas vivem, pensam, e simbolizam os fenômenos e crenças que compartilham. O material gerado pelos participantes apontou para o caminho de tratamento de dados que segue o método de Análise de Conteúdo em que é realizada uma redução dos dados da comunicação para formação de categorias. Seguindo as fases de exploração do material e tratamento dos dados, a validação das categorias foi realizada através dos significados atribuídos ao tema de encontro com o objetivo deste trabalho (MORAES, 1999).
9 Após uma leitura mais profunda das entrevistas, foram produzidas unidades de contexto e de registro para cada categoria proposta, sendo elas: 1) a psicoterapia e o uso do chá como complementares, auxiliadora e revelador do processo; 2) a psicoterapia como local de controle das questões; 3) a divisão entre psicoterapia e ritual em campos científico e religioso; 4) o trânsito de conteúdos do ritual e da psicoterapia; 5) o ritual como espaço terapêutico e 6) cuidados terapêuticos pós-ritual. A primeira categoria, a psicoterapia e o uso do chá como complementares, auxiliadora e revelador do processo, expõe uma compreensão dos participantes que vivenciam os dois campos, ritual e da psicoterapia de maneira dinâmica com interação entre a prática ritual e terapêutica. Muitas vezes fica confuso o que a ayahuasca quis mostrar pra gente...se eu não tivesse começado a terapia eu não teria entendido esses meus trabalhos porque a terapia traz um autoconhecimento muito profundo ao longo da vida né, a ayahuasca traz essas coisas todas também só que de uma forma muito mística, é diferente, são diferentes as perspectivas, muita coisa vem em forma de metáfora, e com a terapia ficou muito mais fácil fazer essa associação (A) Eu entendo como dois processos complementares mesmo, mesmo porque, quando a gente está falando do uso desse chá em termos do que ele provoca, é justamente um olhar pra si e o grande objetivo da terapia é esse também, então o efeito dele e a proposta da terapia caminham lado a lado, são a mesma coisa assim, o que acontece de diferente é a intensidade, dentro dos efeitos do chá e por conta disso o volume de informações que você consegue por si só, né, você acaba se tornando muito autônomo no processo de autoconhecimento, enquanto o terapeuta é um mediador que vai te levar pra um processo o chá faz com que você seja seu próprio mediador...ai a terapia vem pra fazer esse processo de digestão de tudo aquilo que você acessou, acho que é isso (C) Seria o ideal né, se todo mundo que fizesse psicoterapia pudesse tomar o chá, eu acho que é um trabalho muito complementar, eu acho que um ritual sem um acompanhamento a pessoa tem que estar num estado de bastante maturidade, de bastante evolução no seu processo...então acho muito difícil uma pessoa que não esteja em acompanhamento psicoterápico ir pro ritual, eu acho que tem um aproveitamento a mais, a psicoterapia potencializa (F)
10 É, ta muito interligado, inclusive eu acho muito difícil uma pessoa que bebe esse chá e faz psicoterapia não interligar, acho que pode ser que aconteça isso caso o terapeuta tenha preconceito né, porque as vezes pode acontecer isso também, eu acho importante essas pesquisas por isso também, muita gente tem essa questão do preconceito, e é importante pros próprios terapeutas pensarem de outra forma, mas penso que é difícil não ligar uma coisa a outra, porque as duas são terapêuticas, estão mostrando o que tem dentro da gente, o inconsciente né, então isso é fundamental (E) Ao responderem a primeira questão sobre a percepção dos campos, os entrevistados já relatam como é o fluxo de conteúdos e a relação dentro da sua psicoterapia com o que aparece quando está na experiência do ritual. Assim, podemos mencionar a quarta categoria produzida, a qual fala sobre o trânsito de conteúdos do ritual e da psicoterapia demonstrando como é o fluxo das informações entre os dois campos que os participantes vivenciam. Os trechos abaixo exemplificam como esse movimento forma algo que está interligado pra essas pessoas....geralmente acontece esse movimento, eu to trabalhando alguma questão e isso aparece na ayahuasca de uma maneira muito reveladora, e ai assim, eu fico muito impactada porque as vezes é muito violento, não violento, mas violento no sentido emocional, é muita informação sabe, mas é informação que eu já to trabalhando, não é uma coisa completamente diferente ou que não tenha nada a ver com meu contexto naquele momento...todas as vezes que eu tenho as mirações com a ayahuasca elas estão dentro do contexto que esta sendo trabalhado na terapia (B)...o que eu trabalho em terapia surge nos rituais e o que eu vivo nos rituais surge na terapia porque é um ciclo, então um alimenta o outro, assim, sempre, é cíclico, não é linha reta não, é bem cíclico, um complementa o outro de uma maneira muito positiva assim, muito forte (C) Nos trechos abaixo, podemos pensar sobre o lugar que cada campo ocupa em quem está entre estas experiências. Ao exprimirem a importância das duas práticas em conjunto, diferenciam a função que o ritual e a psicoterapia representam quando narram algum episódio sobre estes lugares. O chá ocupa o lugar, em alguns discursos, de acesso profundo ao inconsciente enquanto a psicoterapia vêm para elaborar toda a informação que é exposta em outras linguagens em um ritual. Dessa maneira, foi produzida a segunda categoria, psicoterapia como local de controle das questões
11 É que eu acho que a psicoterapia aborda uma parte do que o ché faz né, não sei se a psicoterapia pode chegar até onde o chá pode chegar, assim...a psicoterapia ajuda a gente a saber fazer o que fazer com isso (E) Na terapia eu tenho acesso fácil a determinadas situações né, e é um processo mais, é como se eu pudesse escolher, tem um certo limite assim, quando eu to na terapia as vezes, se eu não quero tocar em determinado assunto eu não falo, isso vai ficar ruminando, e se eu tiver num momento difícil eu consigo escolher não falar sobre aquilo, mas na ayahuasca eu não tenho escolha sabe, eu tenho um mergulho no meu inconsciente que eu não escolho, eu não sei o que vai vir sabe (B) Aqui, temos um dos exemplos da categoria a divisão entre psicoterapia e ritual em campos científico e religioso. Ao contar como enxerga os campos, o participante os simboliza de maneira diferente, porém, interliga a psicoterapia e o uso do chá quando relata a relação entre os campos quando houve a escolha em fazer parte destes....na verdade o fato de buscar a psicoterapia tem muito a ver com a questão do chá, né, uma coisa que acontece comigo, eu sou ateu, e quando eu tomei o chá, sobretudo naquelas que tem um cunho mais religioso, cristão inclusive, era uma questão pra mim, que me deixava desconfortável...então pra mim assim, essa minha busca de cuidar da minha saúde mental pelo viés acadêmico, e ai a psicoterapia foi intrínseca a ayahuasca, foi aí que eu fui lidar com a minha religiosidade, com meu ceticismo (D) As categorias que dizem respeito ao ritual como espaço terapêutico geram uma reflexão sobre a temática de estudos dentro de pesquisas com ayahuasca que investigam o uso terpêutico do chá e a não regulamentação deste fora de contexto ritual. Como é relatado em algumas das entrevistas que produziu essa categoria, o sentido de terapêutico é atribuído ao ritual....mesmo que seja só um ritual já é terapêutico, então acho que eu não consigo diferenciar muito essas coisas, porque eu acho muito importante o contexto ritualístico...eu acho que falta muito preparo nas pessoas que trabalham nos institutos, que são os fiscais desses trabalhos, porque eu vejo muita falta de preparo no acolhimento pós-ayahuasca, sabe?..e é no pós
12 que a gente precisa, sabe? Eu acho essa falta de suporte depois é um grande problema (A) Eu só consigo entender a ayahuasca a partir do processo religioso, e eu não sou uma pessoa tão religiosa, mas eu só consigo entender a ayahuasca a partir do processo cerimonial...porque é assim que acontece pra mim, eu sem o estímulo musical, sem o mestre, as vezes não acontece muita coisa, eu acredito que no meu organismo esteja tendo os benefícios do mesmo jeito, mas a questão da miração eu entendo a partir do processo ritualístico (B)...então, eu acredito que da maneira que acontece já está muito bem estruturado, já é bem legal assim, nos lugares que eu conheci e que eu já ouvi dizer, porque querendo ou não, o terapêutico da coisa vem depois, no momento em que você está sob efeito do chá é você com você mesmo, você não tem muita condição, não tem muita condição de falar, de conversar muito, você é conduzido, principalmente por música, mas é muito você com você mesmo, mas o valor terapêutico vem no pós, quando você traz tudo aquilo pra consciência e começa a dar nome aos bois, quando você começa a significar, então eu acredito que esse acompanhamento depois seria o mais interessante mesmo (C) Os participantes A e C citados nos excertos acima, bem como o parágrafo abaixo, são exemplos da categoria cuidados terapêuticos pós ritual. Relatando sobre como imaginam ser um possível uso terapêutico da ayahuasca, contribuem para a produção dessa categoria ao dizerem que sentem falta de um suporte e acompanhamento terapêutico após as sessões com o chá. Eu levo porque a minha psicóloga também frequenta e foi até através disso que eu conheci ela...eu não consigo me imaginar falando sobre os meus trabalhos que são tão importantes pra mim com alguém que não tivesse ido...quando eu vou eu compartilho todas as minhas experiências com ela porque ela já tem um outro olhar né, outra perspectiva de tudo assim, ela já entende o que eu falo, então muda muito a forma da terapia, ajuda muito na verdade (A) A categoria que revela o trânisto de conteúdos do ritual e da psicoterapia demonstra como é o fluxo das informações entre os dois campos que os participantes vivenciam. O trecho abaixo exemplifica como esse movimento forma algo que está interligado pra essas pessoas.
13 ...geralmente acontece esse movimento, eu to trabalhando alguma questão e isso aparece na ayahuasca de uma maneira muito reveladora, e ai assim, eu fico muito impactada porque as vezes é muito violento, não violento, mas violento no sentido emocional, é muita informação sabe, mas é informação que eu já to trabalhando, não é uma coisa completamente diferente ou que não tenha nada a ver com meu contexto naquele momento...todas as vezes que eu tenho as mirações com a ayahuasca elas estão dentro do contexto que esta sendo trabalhado na terapia (B) Leituras possíveis sobre os resultados preliminares Diante de alguns excertos das entrevistas sobre as categorias que foram criadas, podemos pensar que a relação destas pessoas com os rituais e o uso do chá da ayahuasca abre um caminho para a compreensão de questões que estão associadas em algum ponto com o que é trabalhado no processo da psicoterapia. Partindo do recorte teórico da Psicologia Analítica sobre o funcionamento da psique, a qual é definida como um sistema auto-regulador que desenvolve em seu inconscinete a contrareação reguladora enquanto que o conscinte têm a função de regular os conteúdos (JUNG, 2000). A função da psique como sistema compensador entre consciência e inconsciente pode compreender o movimento ritual-psicoterapia enquanto local de acesso e significações de informações. O fato das categorias produzidas exprimirem questões referentes ao uso ritual da ayahuasca e à psicoterapia, relatando as diferenças e, ao mesmo tempo, criando uma intersecção entre estes campos quando contam as experiências que circulam entre estes locais, nos permite ser levados para este raciocínio que trabalha o funcionamento da psique como um eixo vivo que norteia o consciente e o inconsciente Seguindo nesta linha de pensamento sobre as funções da psique que compõem o consciente e o inconsciente, há uma terceira função que se cria a partir da junção destas, a denominada função transcendente. Neste sistema, o inconsciente se comporta de maneira compensatória ou complementar em relação ao consciente, podendo também ocorrer o caminho inverso. (JUNG, 2000) A consciência na função transcendente funciona como um mecanismo momentâneo de adaptação enquanto o inconsciente guarda todas as combinações que
14 não ultrapassaram um nível que poderá, em situações favoráveis, chegar com mais clareza através da consciência. (JUNG, 2000) O acesso à certas informações com mais força, intensidade e de outras maneiras dentro de um ritual, como relataram os participantes, para depois ser elaborado e auxiliado em psicoterapia, gera questões sobre o funcionamento das funções relatadas acima. Uma delas caminha para a compensação e o ciclo do sistema ritual-psicoterapia e o dinamismo da função transcendente que abarca consciente-inconsciente. Assim, esse recorte de interpretacão, sempre limitado à uma leitura do que o consciente consegue captar, abre-se para a possibilidade de levantamento de tantas outras questões sobre as experiências relatadas nesse trabalho e como a Psicologia consegue hoje trabalhar com outras vias de acesso aos conteúdos da psique. Como ciência, ela se relaciona em primeira mão com o consciente e em seguida com o inconsciente, não explorando sua totalidade dada a limitação humana em apenas conceber uma representação consciente advinda de algum material inconsciente, como ocorre nos sonhos. (JUNG, 1998) Atribuindo locais diferentes aos processos de uso ritual e de psicoterapia, os participantes contribuem para o entendimento sobre como o uso da ayahuasca em rituais pode ser uma via de acesso às questões que dentro de um setting terapêutico não são alcançadas pela linguagem mas de alguma maneira, elaboradas. O ritual, assim como o setting, configuram espaços de proteção e criam uma comunicação entre si que nas categorias produzidas foi nomeada como terapêutica. A descrição do que representa o ritual e a psicoterapia, cria um terceiro campo, advindo da relação destes e nos nos dá material para refletir, a partir da leitura de uma junção de funções que são trazidas pelos participantes, consciente-inconsciente, sobre questões que vão de encontro com o papel da Psicologia dentro destes contextos e o quanto há a necessidade de, enquanto ciência, abrir caminhos de comunicação para práticas que utilizam um psicodélico como o chá da ayahuasca em um contexto ritual. REFERÊNCIAS BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Edição revista e ampliada BRISSAC, Sérgio Góes Telles. A estrela do norte iluminando até o sul: uma etnografia da União do Vegetal em um contexto urbano. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Museu Nacional. Dissertação de Mestrado, 1999
15 DOMINGUÉZ-CLAVÉ, Elisabét. Ayahuasca: Pharmacology, neuroscience and therapeutic potential. Brain Research Bulettin, 2017 ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Editora Pespectiva. São Paulo, 1972 FEENEY,Kevin; LABATE, Beatriz C. Ayahuasca and the process of regulation in Brazil and internationally: Implications and challenges, 2012, p GOMES, Bruno Ramos. Ayahuasca e a recuperação de pessoas em situação de rua. Revista Saúde & Transformação Social. Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, 2013 GONZÁLEZ, D. et al. Potential use of ayahuasca in a grief therapy. OMEGA- Journal of death and dying, JUNG, Carl Gustav. A nateza da psique. Obras Completas. Editora Vozes, 2000 JUNG, Carl Gustav. A vida simbólica. Obras Completas. Editora Vozes, 1998 KUYPERS, K. P. C. Ayahuasca enhances creative divergent thinking while drecreasing conventional convergent thinking. Psychopharmacology, n. 18, set LABATE, Beatriz C.; ARAÚJO, Wladimir S. (orgs.) O uso ritual da ayahuasca. Campinas, SP: FAPESP/Mercado das Letras. 686 pp. LANGDON, E. J. Novas Perspectivas sobre xamanismo no Brasil. Programa de Pós- Graduação em Antropologia, Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, 1979 MCKENNA, D. J., TOWERS, G. H., & Abbott, F. (1984). Monoamine oxidase inhibitors in South American hallucinogenic plants: tryptamine and beta-carboline constituents of ayahuasca. Journal of Ethnopharmacology, 10(2), METZNER, Raphael. (2002). Ayahuasca: Alucinógenos, Consciência e Espírito da Natureza. Versão brasileira: tradução de Marcia Frazão. Rio de Janeiro, 2002, p MORAES, Roque. Análise de conteúdo. Revista Educação, Porto Alegre, v. 22, n. 37, p. 7-32, 1999.
16 SANTOS, R. G. Ayahuasca: chá de uso religioso. Esthin microbiológico, observações comportamentais e estudo histomorfológico de cérebro em Murídeos (Rattus norvegicus da linhagem Wistar). Monografia, UniCEUB, Brasília-DF, 2004 VELASCO, Honório; DÍAZ DE RADA, Ángel. La lógica investigacíon etnográfica. Um modelo de trabajo para etnógrafos de escuela Coleccíon Estructuras y procesos, 1977
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