ANÁLISE DA OBRA MENINO DO MATO.8 O AUTOR.8 BIBLIOGRAFIA.9 ESTILO DO AUTOR E CARACTERÍSTICAS CENTRAIS DO LIVRO.9 A POÉTICA DO INÚTIL.

Tamanho: px
Começar a partir da página:

Download "ANÁLISE DA OBRA MENINO DO MATO.8 O AUTOR.8 BIBLIOGRAFIA.9 ESTILO DO AUTOR E CARACTERÍSTICAS CENTRAIS DO LIVRO.9 A POÉTICA DO INÚTIL."

Transcrição

1

2 SUMÁRIO ANÁLISE DA OBRA MENINO DO MATO...8 O AUTOR...8 BIBLIOGRAFIA...9 ESTILO DO AUTOR E CARACTERÍSTICAS CENTRAIS DO LIVRO...9 A POÉTICA DO INÚTIL...9 A LINGUAGEM ( MANOELÊS CASTIÇO )...10 O PANTANAL...10 NA ESTEIRA DA MODERNIDADE BERNARDO SÓ SEI ESCREVER SOBRE A INFÂNCIA I- PRIMEIRA PARTE: MENINO DO MATO II - SEGUNDA PARTE: CADERNO DE APRENDIZ UM ROMANCE EM PRETO E BRANCO CLARA DOS ANJOS LIMA BARRETO COMPREENSÃO DO TÍTULO DO LIVRO: O CONTEXTO DA OBRA (PRÉ - MODERNISMO) ENREDO...22 SUBÚRBIO...22 O MALANDRO...23 ANIVERSÁRIO...25 APROFUNDAMENTO...33 POBRE, MULATA E MULHER: A ESTIGMATIZAÇÃO DE CLARA DOS ANJOS...33 UMA LEITURA DA OBRA FELICIDADE CLANDESTINA APRESENTAÇÃO LEITURA E INTERPRETAÇÃO DE ALGUNS CONTOS DO LIVRO...40 CONTO: FELICIDADE CLANDESTINA...40 CONTO: UMA AMIZADE SINCERA CONTO: MIOPIA PROGRESSIVA CONTO: RESTOS DO CARNAVAL CONTO: O GRANDE PASSEIO CONTO: COME, MEU FILHO CONTO: PERDOANDO DEUS CONTO: TENTAÇÃO CONTO: O OVO E A GALINHA CONTO: CEM ANOS DE PERDÃO ANÁLISE DA OBRA A METAMORFOSE, DE FRANZ KAFKA,...52 DADOS BIOGRÁFICOS DO AUTOR...52 GÊNEROS LITERÁRIOS...52

3 SUMÁRIO O GÊNERO NARRATIVO...53 ENREDO...53 CAPÍTULO I...53 CAPÍTULO II CAPÍTULO III ALEGORIA...67 ANÁLISE DA OBRA O SANTO E A PORCA, DE ARIANO SUASSUNA, ARIANO SUASSUNA: O CAVALEIRO DO SERTÃO O GÊNERO DRAMÁTICO (COMÉDIA) A CONSTRUÇÃO DA PEÇA: ENREDO PRIMEIRO ATO SEGUNDO ATO...75 TERCEIRO ATO...78 ANÁLISE DA OBRA TERRA SONÂMBULA, DE MIA COUTO, BIOGRAFIA AS EPÍGRAFES:...83 EPÍGRAFE I EPÍGRAFE II EPÍGRAFE III A NARRATIVA FANTÁSTICA AS VOZES NARRATIVAS DO ROMANCE O TÍTULO DO ROMANCE NARRATIVA I (VISÃO DE FORA) MACHIMBOMBO MANTAKASSA SIQUELETO...87 NHAMATACA/FAZEDOR DE RIO...87 VELHAS PROFANADORAS TUAHIR É O PAI BARCO DE TAÍMO NARRATIVA II (VISÃO DE DENTRO)...90 GUERRA: A LEI DA MORTE...90 HOMENS ÍNDICOS NAPARAMA MATIMATI PÉROLA-MULHER FAROL

4 SUMÁRIO MATIMATI JUNHITO DEFUNTO LUSO TIA EUZINHA NO FUNDO DO POÇO...97 LOUCURA PENSADA...97 MATO SONHO...97 SEM FAROL FOGO FEITICEIRO NARRATIVAS CRUZADAS ANÁLISE DA OBRA DESTINO: POESIA, ORGANIZADO POR ÍTALO MORICONI, POESIA MARGINAL/GERAÇÃO MIMEÓGRAFO ANA CRISTINA CESAR TRILHA SONORA AO FUNDO: PIANO NO BORDEL, VOZES BARGANHANDO SAMBA-CANÇÃO CONVERSA DE SENHORAS VACILO DA VOCAÇÃO CACASO PAULO LEMINSKI TORQUATO NETO WALY SALOMÃO HOJE BRUTALMENTE AUTOBIOGRÁFICO ANÁLISE DA OBRA O FILHO ETERNO, DE CRISTOVÃO TEZZA,..117 O FILHO ETERNO O TÍTULO DO ROMANCE AS EPÍGRAFES AUTOBIOGRAFIA FICCIONALIZADA ENREDO PHÍLIPPOS TRISSOMIA SÍSIFO DE BOI CABECEANDO ESTÍMULO PRECOCE PLANO HABITACIONAL FUSCA AMARELO CRECHE SEGREGAÇÃO

5 SUMÁRIO LUZES VERDADEIRAS MÁSCARA CÊNICA DESEJO E SEDUÇÃO COMO NOSSOS PAIS ATLÉTICO PARANAENSE MEDO DO NOVO GUERREIROS DE BRINCADEIRA O PASSADO REMOTO/A DÉCADA DE 1970:

6 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS ANÁLISE DA OBRA MENINO DO MATO por Henrique Landim 1 O AUTOR O poema é antes de tudo um inutensílio. Manoel de Barros Manoel Wenceslau Leite de Barros nasceu em Cuiabá no dia 19 de dezembro de Morou com a família até seus oito anos em uma fazenda na cidade de Corumbá. Em seguida, foi para um colégio interno em Campo Grande, onde permaneceu por 10 anos. Depois disso, mudou para o Rio de Janeiro para completar seus estudos e formou-se bacharel em Direito em Ainda na cidade maravilhosa, Manoel de Barros conheceu pessoas engajadas na política e afiliou-se ao Partido Comunista. Aos 18 anos, escreveu a sua primeira obra, que, infelizmente, não foi publicada, mas o livrou da prisão. No auge de sua paixão pelo comunismo, pichou, em uma estátua, a seguinte frase: Viva o comunismo!. Quando a polícia foi buscar o jovem comunista na pensão em que morava, a dona da pensão interveio e pediu que o menino não fosse preso, disse ao policial que era um bom rapaz e que até havia escrito um livro, com o título Nossa Senhora de minha escuridão. Comovido com o título da obra, o policial livrou o rapaz da cadeia, mas levou consigo o único exemplar da obra. Logo após Luiz Carlos Prestes ser solto, Manoel foi ouvir o discurso de seu ídolo político, estava ansioso para ouvir um discurso inflamado contra o governo Vargas. Ao invés disso, ouviu o discurso de apoio ao governo assassino de Getúlio Vargas. Barros rompe definitivamente com o Partido Comunista e volta para o Pantanal. Mas sua alma de poeta, livre e faminta por coisas novas, não se prendeu às terras do pai, resolveu viajar para a Bolívia e, em seguida, passou um ano estudando cinema e arte no Museu de Arte Moderna em Nova York. Esse período foi muito importante na construção intelectual do poeta, pois ele conheceu novas veredas (concepções) da arte moderna, o que influencia significativamente a obra de Barros. 1 Mestre teoria literária pela Universidade Federal de Uberlândia e mestre em Teoria Literária pela mesma instituição. Ainda no Rio de Janeiro, o contato com a experimentação poética deu-se ainda enquanto estudava no Colégio São José dos Irmãos Maristas, nele Barros teve seu primeiro contato com o poder da criação plástica que a escrita pode ter. Essa experiência aconteceu quando o jovem estudante descobriu os livros do Padre Antônio Vieira. Assim comenta o autor: A frase para ele era mais importante que a verdade, mais importante que a sua própria fé. O que importava era a estética, o alcance plástico. Foi quando percebi que o poeta não tem compromisso com a verdade, mas com a verossimilhança. Nesse sentido, no documentário a respeito da desbiografia de Manoel de Barros, Só dez por cento é mentira, Pedro Cezar (2009) afirma que o poeta, em Padre Antônio Vieira, aprendeu a habilidade do ver e do ouvir e passou a pintar sem lápis, por isso Manoel de Barros diz: desenho verbal é quando você consegue colocar uma imagem na vista do leitor (CÉZAR, 2009). Foi nessa época que Manoel de Barros descobriu qual seria a sua verdadeira vocação: Ter orgasmos com as palavras (CÉZAR, 2009). O poeta estudou dez anos em um internato, momento em que pôde adquirir a disciplina necessária para a escrita e, ao mesmo tempo, a liberdade estética da qual o artista necessita para exercer a sua criatividade. O que mais chama a atenção na escrita deste poeta é a importância da estética, e não da verdade do conteúdo, o que ele quer mostrar é como as palavras podem ter imagem e vida próprias, como ele mesmo afirma: Anoto tropos. Palavras que normalmente se rejeitam, eu caso, eu himeneio. Contigüidades anômalas, seguro com letras marcadas em meu caderno. De repente uma palavra me reconhece, me chama, me oferece. Eu babo nela. [ ] As palavras querem me ser. Dou-lhes à boca o áspero. Tiro-lhes o verniz e os vôos metafísicos. [ ] As palavras compridas se devem cortar como nós de lacraia. O verso balança melhor com palavras curtas. Os ritmos são mais variados se você trabalhar com dissílabos, com monossílabos. Exemplo: Parou bem de frente pra tarde um tordo torto (CAMPOS, 2007, p. 222). Mas foi ao sair do colégio que ele descobriu que poderia misturar sentidos e imagens: após ler Rimbaud (famoso poeta francês e considerado precursor do surrealismo literário), ele descobriu a liberdade em seu sentido mais amplo. Contudo, em sua fase de explorador de territórios, Barros descobriu, no cinema e nas pinturas, uma nova maneira de ver o mundo e de trabalhar a verossimilhança. E, como um verdadeiro poeta das experiências, ele conseguiu, e consegue até hoje, fabricar imagens incríveis em seus poemas. O poeta cuiabano Manoel de Barros começou a ter importância no cenário literário brasileiro a partir dos anos 70, com o apoio de amigos famosos como Millôr Fernandes e Antônio Houaiss, e sua poesia começou a ser publicada em revistas de grande circulação nacional. Manoel de Barros faleceu em novembro de 2014 em virtude de problemas ocasionados por uma prisão de ventre. 6

7 UFU 2017 BIBLIOGRAFIA Poemas concebidos sem pecado (1937); Face imóvel (1942); Poesias (1956); Compêndio para uso dos pássaros (1960); Gramática expositiva do chão (1966); Matéria de poesia (1974); Arranjos para assobio (1980); Livro de pré-coisas (1985); O guardador das águas (1989); Gramática expositiva do chão: Poesia quase toda (1990); Concerto a céu aberto para solos de aves (1993); O livro das ignorãças (1993); Livro sobre nada (1996); Das Buch der Unwissenheiten - Edição da revista alemã Akzente (1996); Retrato do artista quando coisa (1998); Ensaios fotográficos (2000); Exercícios de ser criança (2000); Encantador de palavras - Edição portuguesa (2000); O fazedor de amanhecer (2001); Tratado geral das grandezas do ínfimo (2001); Águas (2001); Para encontrar o azul eu uso pássaros (2003); Cantigas para um passarinho à toa (2003); Les paroles sans limite - Edição francesa (2003); Todo lo que no invento es falso - Antologia na Espanha (2003); Poemas Rupestres (2004); Riba del dessemblat. Antologia poètica Edição catalã (2005); Memórias inventadas I (2005); Memórias inventadas II (2006); Memórias inventadas III (2007); Menino do Mato (2010); Poesias Completas (2010). ESTILO DO AUTOR E CARACTERÍSTICAS CENTRAIS DO LIVRO A POÉTICA DO INÚTIL Como poeta marcante e único que é, Manoel de Barros tem traços bastante peculiares em seus poemas. Dono de um estilo inconfundível, o eterno menino do mato traz, em suas obras, uma carga imagética 2 enorme, transmite ao seu interlocutor uma visão única acerca do mundo, ele acredita na desutilidade das coisas, das palavras e da poesia. Manoel de Barros passou dez anos na fazenda herdada do pai no Pantanal a fim de fazê-la produzir receita, não que o dinheiro trouxesse a completude material, na verdade, deu-lhe a opção de ficar à toa, quer dizer, ficar à disposição da poesia, isto é, como ele mesmo disse numa entrevista, eu comprei o ócio para ser um vagabundo profissional (CÉZAR, 2009). Abílio, irmão do poeta, na mesma entrevista, disse, ele é o único poeta do mundo em tempo integral (CÉZAR, 2009). 2 Sobre a capacidade imagética de sua obra o próprio autor comenta: Desenho verbal é quando você consegue colocar uma imagem na vista do leitor (CÉZAR, 2009), é claro que essa imagem aparece sempre torta, mesmo porque Manoel de Barros não é um poeta decorativo, que procura realizar em seus textos descrições do meio. Na verdade, é preciso transver o mundo, isto é, lançar um novo olhar sobre as pequenas coisas que estão ao nosso redor. Viver em uma sociedade em que tudo é medido por um valor de troca (uso) constrói uma noção pragmática para tudo, assim todas as coisas que nos cercam guardam um valor objetivo, estrutura que moldou a nossa maneira de dar significado à realidade. Essa organização do mundo imperativamente nos faz estabelecer eixos paradigmáticos a fim de demarcar fronteiras entre o falso e o verdadeiro, o útil e o inútil, o certo e o errado, entre tantos outros valores forjados pela noção de troca. Foucault, em seu livro intitulado As palavras e as coisas, debruça-se sobre as relações de representação e nos leva a compreender que o valor é um atributo acidental e que depende unicamente das necessidades do homem como o efeito depende de sua causa (FOUCAULT, 1992, p. 65). Portanto, de acordo com Foucault, o valor dado a tudo que está ao nosso redor depende das necessidades do próprio homem. É num contexto utilitarista que Manoel de Barros compôs a sua produção poética, que ultrapassa a tirania do utilitarismo. Nos poemas do autor, são oferecidos a nós pensamentos imprevisíveis, que possuem um fim em si mesmo, dissociados de qualquer conotação lógica e pragmática. Como se vê, Manoel de Barros dá-nos a liberdade para lançarmos outro olhar sobre a realidade que ultrapassa aquilo que nos é oferecido no cotidiano. Cabe aqui a reflexão de Heidegger para sublinhar que é o pensamento que transforma o mundo (p. 202). Nas palavras de Manoel de Barros, a invenção é a única coisa que serve para aumentar o mundo (CÉZAR, 2009). Assim, como o próprio poeta comentou no documentário citado, sobre a sua infância no Mato Grosso, frente a inúmeras carências de seu lugar de origem, que não possuía nada, era preciso construir com a imaginação o seu próprio mundo. Para tanto, o artista usou das palavras, fertilizando-as, para dar sentido e preencher o vazio da realidade. Manoel de Barros passou a vida inteira com um lápis e bloquinhos, e os últimos eram construídos por ele mesmo. É por meio de um olhar sobre as coisas desimportantes que Manoel de Barros constrói toda a sua riqueza poética, marcada pelo avesso das coisas. Agora o pequeno se torna máximo, infinito, isto é, grandioso em cada poesia do autor. Eis o poder de sua palavra poética: tornar monumental as miudezas do mundo. São inúmeros os desutensílios que aparecem na poesia de Manoel de Barros, isto é, ciscos, restos, lixos, coisas, despropósitos, nascem por meio da palavra poética como uma maneira de transver o mundo, ver além do horizonte, abre a cabeça e faz enxergar além, segundo Marcelo D2, para se pensar o homem e a sociedade. A visão torta de Manoel de Barros é uma afronta a um sistema que condicionou o nosso olhar. A desutilidade nada mais é do que uma (RE)construção do mundo, uma nova maneira de ver as coisas, e, para isso, como dito anteriormente, é preciso transver o mundo, ou seja, aguçar a nossa capacidade de sonhar, transgredir, criar, imaginar, pensar, voar. Raspas, restos, vazio, lixo, a terra, a infância, elementos excluídos pela sociedade, interessam profundamente a Manoel de Barros, que lhes dá fertilidade para nascer perspectivas a partir das quais se possa transver o mundo. Passa a ser matéria de poesia tudo aquilo que escorrega entre as mãos controladoras do poder disciplinador: o que está no campo semântico do imprevisível, do não pragmático, do devaneio (RODRIGUES, 2006, p.95). 7

8 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS A LINGUAGEM ( MANOELÊS CASTIÇO ) Os objetos que aparecem nos textos de Manoel de Barros não o fazem da mesma maneira cotidiana a qual estamos acostumados. Ao contrário, surpreendem a nossa imaginação ao manifestar o imperceptível nunca visto, pois a força do hábito os cobriu com um denso velame. Assim comenta o estudioso: No texto, a força criadora chama à existência aquilo que não existe no mundo social, ao mesmo tempo em que trata os utensílios do cotidiano como se não existissem. Por esse manejo, o poema é batizado de Oficina de desregular a natureza, lugar onde são inventados alguns desutensílios para acionar a diferença nos/dos seres: parafuso de veludo, prego que farfalha, alicate cremoso, peneira de carregar água, fazedor de amanhecer, etc. Aqui, por exemplo, a delicadeza sugerida pelos epítetos veludo e cremoso apontam para qualidades opostas as que realmente apresentam tais objetos (RODRIGUES, 2006, p.19). Os textos são carregados de expressões sinestésicas criadas a partir da quebra do paralelismo sintático e semântico. Normalmente os conectivos são aplicados de maneira subversiva, como também as construções sintáticas, estratégias comumente empregadas pelo autor a fim de provocar descontinuidade e, por conseguinte, proporcionar uma pluralidade de sensações ( Nossas palavras se ajuntavam uma na outra por amor e não por sintaxe [...] A gente gostava bem das vadiações com as palavras do que das prisões gramaticais BARROS, 2010, p ) O livro Menino do mato é composto de poemas curtos que possibilitam um enorme número de leituras. Nas várias interpretações, o leitor é convidado a compreendê-los, impregnar-se de suas sujeiras : (lama, lodo, gosma, cisco...), ler e reler até ficar diferente. A cada contato brotam novas sugestões de leitura, pois a fragmentação da unidade frasal suspende toda relação de causalidade ou direcionamento de sentido. É pelo fluxo do despropósito e do inesperado que segue essa poesia (RODRIGUES, 2006, p.21). É bastante comum certo incômodo por parte do leitor ao ler os poemas de Manoel de Barros, pois sempre falta algo para a nossa inteligência conseguir compreendê-los. Essa escrita de sintaxe líquida parece uma espécie de devaneio, pensamento frouxo e volátil, que nos conduz ao desguarnecimento dos sentidos e, como consequência, nos deixa a sós com o mundo. Quando os olhos saem do papel, por um momento, não é mais o mundo habitual que vemos (RODRIGUES, 2006, p. 22). Os poemas são marcados pela espontaneidade do pensamento, que foge à racionalidade a fim de nos distrair, ou seja, tirar o espírito das ocupações diárias e, a partir disso, notar associações até então improváveis segundo a maneira convencional de ver o mundo. Ao certo, os poemas metaforizam a natureza e hábitos da vida do Pantanal, configurando quadros cuja sensação de leveza nos remete à ambiência onírica (RODRIGUES, 2006, p. 22). É bastante comum, nas entrevistas e nos próprios poemas, o prefixo des (despalavra, desutensílios, desexplicar, desobjeto), que pode apontar para um modo desconfiado de ver, poderia ser lido como quem acredita poder alongar mais a visão sobre as coisas. O trecho abaixo muito bem ilustra essa condição poética do autor: [...] Arte não tem pensar: O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo. Isto seja: Deus deu a forma. Os artistas desformam. É preciso desformar o mundo: Tirar da natureza as naturalidades. [...] (BARROS, 2004, p. 75) A função do poeta é oferecer a nós leitores uma possibilidade de ampliação dos nossos horizontes cósmicos, deixar de lado a natureza que está posta gratuitamente a nossos olhos por meio de imagens soltas e confusas tal como aquela pronunciada pela boca das crianças. Manoel de Barros leva a linguagem ao extremo, expondo os confins da razão, Manoel de Barros deixa exposta a ausência de sentido que torna possível todo sentido, selando uma aliança definitiva entre a palavra e a loucura. Desta forma, em vez de subordinar a fala delirante à racionalidade, a poesia barreana lhe dá voz, desvelando um poder e profundidade que até então eram ignorados (RODRIGUES, 2006, p. 22). A poesia de Manoel de Barros é apresentada como um imenso trabalho da linguagem em que a palavra convertida em imagem (a despalavra) traz a marca de uma sintaxe imaginária. Por isso, ela se inscreve no mesmo materialismo poético de Bachelard (1998), caracterizado assim pela manipulação da matéria, concreta ou abstrata. Eis aqui o ponto de intercessão entre poesia, devaneio, ciência e razão (RO- DRIGUES, 2006, p ). O PANTANAL Manoel de Barros não é um historiador, muito menos um geógrafo que procura retratar em seus textos a realidade de seu estado de maneira tal e qual que é percebida pelo olhar condicionado. A natureza pantaneira expressa pelos poemas parece desconfiar do natural incutido no íntimo dos homens. Há inúmeras menções geográficas e culturais ao Pantanal mato-grossense, embora as produções do artista 8

9 UFU 2017 não revelem qualquer pretensão de retratar a sua terra natal para fazer compilações memoriais. Mais do que qualquer informação regional, a natureza de seu estado é transfigurada em entes constituídos de linguagem. No espaço do Pantanal também surge o inominado, as coisas que ainda não foram nominadas pela inteligência humana. A imaginação criativa do poeta pantaneiro sobrepõe-se à observação com fins explicativos e não permite os elementos da natureza e lembranças de sua infância comporem simples cenário para o desenrolar de histórias. Os traços biográficos são usados para desenhar um quadro de expressão universal, cuja amplitude é percebida com a problematização de valores e conceitos largamente empregados na rotina de toda estrutura social (RODRIGUES, 2006, p ). No primeiro poema da obra Menino do mato, Manoel de Barros lança mão de uma referência ao Pantanal, lugar imenso e com poucas possibilidades para o ócio criativo: Onde a gente morava era um lugar imensamente e sem nomeação / Ali a gente brincava de brincar com palavras [...] Então era preciso desver o mundo para sair daquele lugar imensamente e sem lado (BARROS, 2010, p.09-10). Já que as possibilidades para a satisfação do eu no Pantanal eram mínimas, o artista passa a desvê-lo para fugir do tédio. Desver o mundo é uma maneira de completá-lo com a inventividade, condição que serve para ampliar o mundo. Tudo isso seria uma forma do menino do mato incorporar ao estado de árvore uma nova condição, isto é, o estado de palavra, como diz o próprio artista. NA ESTEIRA DA MODERNIDADE Principalmente Baudelaire, Mallarmé e Rimbaud contribuíram de maneira bastante significativa para mudar o pensamento literário no século XIX ao radicalizar os fundamentos da poética clássica. Até o aparecimento desses três autores, grande parte da tradição artística valorizava o rigor estético apostando na continuidade e coesão das partes de um texto para articular uma mensagem. Na acepção clássica, o texto funciona como um signo linguístico dividido em significante, cuja unidade corpórea se forjava no padrão de ordenação das letras e da seriação de frases, parágrafos, capítulos, volumes... e a outra metade que completaria a totalidade desse signo: o significado depositado e sedimentado pelo rigor gramatical (RODRIGUES, 2006, p. 38). Assim, o sentido moderno da literatura passa a ser formulado graças à criação do conceito de arte criativa, forjada, sobretudo, na insatisfação do pensamento romântico com a consolidação da burguesia enquanto classe dominante dos bens de produção e culturais. Na esteira do pensamento moderno, Rodrigues (2006) afirma: a concepção crítica da linguagem enfoca o seu caráter artificial e assinala a utopia existente entre signo e referente, o que irá favorecer as experiências com o código lingüístico, testando seus limites e expondo as fragilidades. Essas experiências textuais passaram a exigir do leitor novas habilidades de leituras. Consequentemente, a escrita de sintaxe quebrada faz com que o significado perca a posição central no texto, conduzindo o autor para reflexão na própria escrita. O escritor moderno é aquele que reflete sobre o objeto estético, expõe seu fazer, discorre sobre a criação, assume a artificialidade do ato poético (RODRIGUES, 2006, p. 40). Ler a poesia de Manoel de Barros é pensar nas ideias modernas, que rompem com a tradição clássica, visto ser um poeta da atualidade, leitor dessa tradição moderna do poeta-crítico da palavra, para nos ajudar a pensar essa reflexão sobre os papéis do escritor que se desdobram em poeta crítico teórico e as relações entre leitor e texto (RODRIGUES, 2006, p. 41). Os poemas de Manoel de Barros são perpassados por uma agitação de intertextualidades, em que se fazem presentes textos variados cuja autoria varia ou já se perdeu dentro do complexo literário pelo qual foi incentivado e hoje faz parte. Manoel de Barros coloca-se como crítico de si mesmo e dos outros ao apresentar comentários sobre um outro discurso (inclusive o que ele escreve é visto como um texto estranho que não lhe pertence) fazendo ressaltar a relação entre a linguagem do escritor e suas ideologias. Pois, cada produção humana guarda no seu interior as relações mais estreitas com a sociedade e época em que vive (RODRIGUES, 2006, p. 41). A literatura de Manoel de Barros pode parecer assustadora para aqueles que procuram um texto literário guiado pelo ideal mimético, não há uma representação aproximada da realidade. Não se deve perguntar: o que isso quer dizer? Pois a resposta sempre estará mergulhada em um campo movediço de significados. Sem dúvida, o esforço exigido dos leitores é grande, pois há uma radicalização com a linguagem (quebra do paralelismo sintático e semântico), além da (re) invenção de palavras favorece ao surgimento de uma nova concepção de leitura que difere daquela dita clássica, pautada no tripé início-meio-fim (RODRIGUES, 2006, p. 43). Nessa perspectiva moderna do pensamento literário, não é o conteúdo que assinala a diferença entre linguagem da comunicação e linguagem literária. Agora, é a forma que expressa a divergência entre esses dois campos. E se a forma como é escrito o texto aponta para uma percepção de que o objeto anunciado não pertence ao campo da vida prática, o leitor pode usar de toda fantasia e imaginação para conceber tal objeto (RODRIGUES, 2006, p. 49). Todos os artifícios da língua são utilizados para se criar uma linguagem única, portanto, bastante diversa daquela usada em situações cotidianas. Consciente da distinção entre o prosaico e o poético, Manoel de Barros nos diz: A poesia está guardada nas palavras é tudo que eu sei (BARROS, 2004, p. 19). A modernidade literária colocou em segundo plano o caráter conteudista da produção literária, antes se avaliava um texto literário pelo seu conteúdo, agora a consciência sobre a linguagem adquirida na Modernidade redefiniu o modo de ver e produzir arte (RODRIGUES, 2006, p. 50). 9

10 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS Para articular melhor os fundamentos acerca da modernidade no campo literário, citamos Valèry, que discute o exercício poético da seguinte maneira: O poeta, sem saber, movimenta-se em uma ordem de relações e transformações possíveis (VALÈRY, 1999, p. 74). Dessa maneira, o poeta deve saber combinar inúmeras possibilidades dispostas no código linguístico, isto é, explora ao máximo as combinações da língua. Essas combinações são feitas sob a livre associação de ideias, algo similar ao que vemos numa pintura de cunho abstrato. Toda abstração, seja pintura ou poema, ostenta um pode ser ou um como se referente ao movimento oscilante de mostrar e esconder. A quebra do paralelismo sintático e semântico deixa a obra entregue à sorte de infinitas possibilidades interpretativas, guardando sempre um oculto, uma surpresa, como numa brincadeira de lance de dados sugerida por Mallarmè (RODRIGUES, 2006, p. 52). Essa livre associação de ideias, bem aos moldes da poética moderna, é um recurso bastante frequente nos poemas de Menino do mato. BERNARDO Bernardo, antes de aparecer nos livros de Manoel de Barros, trabalhou 3 por vários anos na fazenda do poeta. Analfabeto, sujeito ingênuo que falava pouco, soube transmitir a Manoel de Barros sensações primitivas (sem afetação 4 do meio social) oriundas do contato com o mundo, por isso é constantemente retomado em vários poemas com outras existências: árvore, pedra, animais... Sua estrutura é frágil porque é vulnerável a variações do estado de espírito (RO- DRIGUES, 2006, p. 72). Bernardo povoa com mais constância a primeira parte do livro Menino do mato e restringe-se a uma tímida aparição em um único poema da segunda parte da obra, no texto (poema) de número dezoito. Isso se dá, sobretudo, em função dos temas apresentados nessas duas partes do livro de Manoel de Barros, a primeira está mais intimamente relacionada ao universo originário de Bernardo, isto é, o Pantanal. Já na segunda parte, ocorrem inúmeras reflexões sobre o fazer poético (discussões metapoéticas), e Bernardo, sujeito analfabeto, dá lugar a outro elemento 3 Antes de trabalhar para Manoel de Barros, Bernardo serviu à família a cuidar de uma tia louca. Curiosamente, a tia de Manoel não permitia nenhuma outra pessoa em seu quarto; apenas Bernardo, com a sua maneira infantilizada, conseguia domar o espírito furioso da enferma. Somente após a morte da mulher, Bernardo passou a trabalhar na fazenda herdada por Manoel de Barros e de lá não mais saiu. Comenta-se que o sertanejo tinha a inocência de um animal. Normalmente porcos, galinhas, pássaros gostavam de ficar perto de Bernardo, os bichos sentiam-se muito à vontade perto dele. A figura mais recorrente das produções de Manoel de Barros é Bernardo, espécie de alter-ego do autor, que certa vez declara: Bernardo é o que eu queria ser (BARROS, apud, Menezes, 1998). 4 Falta de naturalidade; melindre. fundamental da obra de Manoel de Barros, a poesia. No passeio sobre os textos de Menino do mato, deparamo-nos com personagens infantilizados (como Bernardo), que assumem comportamentos débeis, numa espécie de investida para redescobrir o homem primitivo, um símbolo do Pantanal, naturalizado e silenciado. A figura de Bernardo aparece por meio de uma idealização ao reverso numa espécie de marginalidade romantizada. O grande luxo desse sertanejo é ser ninguém, aspecto que permite um descompromisso com as regras de uma sociedade marcada por exigências inúmeras. Bernardo está em compasso com outra ordem, a primitiva, do reino natural. Barros, em sua poética, descarta a produtividade e a integração ao mundo da posse, com isso, o marginal é seu símbolo, estandarte, sua bandeira, seu lema, e ficar distante da civilização é, na maneira do poeta, estar mais perto de Deus. Em 2003, Bernardo faleceu no Asilo São João Bosco, localizado em Campo Grande, e foi enterrado embaixo de uma árvore. SÓ SEI ESCREVER SOBRE A INFÂNCIA 5 Nessa obra, como em tantas outras, ele usa das imagens de sua infância para nos mostrar a maneira como uma criança pode dar novas utilidades a objetos e animais, já que um adulto não tem essa capacidade. Novamente retomamos o contraste entre o olhar de Manoel de Barros em contraposição ao racionalismo exacerbado que move a nossa sociedade. O olhar desdobrado sobre o mundo é infantil, pois é livre, mais próximo do que há de mais natural no humano. Aqui o artista busca o olhar da criança, que é perpassado pela liberdade de criação e imaginação e, sem sombra de dúvidas, por um profundo encantamento daqueles que ainda vêem o mundo de maneira contagiante, pois ainda guardam a alegria da descoberta. Temos uma espécie de nascimento de um poeta-menino, que foge à habitualidade e se vê maravilhado também diante das próprias possibilidades de linguagem. Alegoricamente poderíamos ver na obra em questão um profundo desejo de se congelar num estado infantil, pois é a partir das emoções das primeiras descobertas da infância que surgem os rompantes 6 mais inusitados, por isso mais poéticos. Assim, em Menino do mato, o trabalho poético constrói-se no desejo de regresso àquela visão de mundo infantil, como bem expressa Manoel de Barros no posfácio de Memórias: Eu tenho um ermo 7 enorme dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta 8. Agora tenho saudade do que não fui. Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na infância. Faço outro tipo de peraltagem. Quando era criança deveria pular muro do vizinho para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo era um servinho mal resolvido e igual a um filhote de gafanhoto. Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e 5 Sobre a poesia e a infância o autor comenta: Além disso a poesia tem a função de pregar a prática da infância entre os homens. A prática do desnecessário e da cambalhota,desenvolvendo em cada um de nós o senso do lúdico.se a poesia desaparece do mundo, os homens se transformariam em monstros, máquinas, robôs (BARROS, s/d, p.311). 6 Reação impetuosa e/ou violenta. 7 Lugar sem habitantes; deserto. 8 Bras. Diz-se de, ou criança travessa. 10

11 UFU 2017 sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua 9 das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichos. Era o menino e o sol. O menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores (BARROS, 2003, p.13). É a poética da visão oblíqua, isto é, infantil, que remete a um tempo áureo no qual havia um desconhecimento das limitações do universo do adulto. Manoel de Barros retoma/ ressignifica um tempo primordial de descobertas fabulosas que não voltam mais a se repetir, salvo por meio da memória e da criação poética criada pela ótica do menino. Há no livro uma atualização do olhar de descoberta associado ao menino que continua a operar no encantamento do adulto diante das coisas que o rodeiam, especialmente aquelas que não parecem significar nada para os demais. Manoel de Barros, com esse processo único da desutilidade, da construção e da reconstrução das coisas, escreve poemas cheios de imagens e formas que transformam nossa maneira de ver um mundo que julgávamos conhecer. Por meio de seus poemas, ele cria pinturas de um cenário incrível e único, o Pantanal, lugar que, como já dito, tem real importância na vida do menino e do poeta Manoel de Barros: A minha poesia é fertilizada pelo sol, pelas águas, pelo chão, o pantanal. Ela é fertilizada, mas a palavra não me serve para descrever fenômenos, paisagens. A poesia não é um fenômeno de paisagem, é um fenômeno de linguagem. Eu sou nascido no pantanal, sou filho do pantanal, tenho amor pelo pantanal, sou criado pelo pantanal. O que me dá dinheiro, o que me dá o ócio é o pantanal [...] não sou poeta de paisagem, não sou poeta ecológico, sou um poeta da palavra, não quero fazer folclore, não quero expressar costumes, não sou historiador. Eu sou poeta e o poeta é um ser que inventa. Eu invento o meu pantanal (CÉZAR, 2009). A influência que recebeu dos pintores Chagall, Van Gogh e Pablo Picasso revolucionou sua forma de escrever, e isso parece estar enveredado em Menino do mato, produção em que o artista pinta com as palavras as paisagens do grande Pantanal, dá novas dimensões para os bichos que correm pela mata e reafirma a grandeza das águas do Pantanal. Muitos buscam correspondência direta entre o Pantanal de Manoel de Barros e o Pantanal enquanto lugar geográfico, aquele que pode ser fotografado, documentando. Contudo, Manoel de Barros transvê o Pantanal, por meio da palavra, que produz no leitor arrebatamento e encantamento capazes de produzir em nós uma maneira nova de ver o mundo. 9 Torto. Mas não podemos pensar que, por buscar uma destruição de palavras e conceitos, Barros não quer chegar a algum lugar, essa desconstrução visa à volta ao início de tudo, uma busca ao originário da linguagem, das palavras. Vamos ver isso ao longo de nossas leituras dos poemas deste livro. O livro Menino do mato é dividido em duas partes. A primeira é intitulada com o próprio nome do livro, e a segunda recebe o nome de Caderno de aprendiz, ambas se completam de maneira espetacular. Embora usando, muitas vezes, ao longo dos poemas deste livro, imagens infantis, as angústias dos adultos não deixam de aparecer, como a solidão e o tédio, pois, em um lugar que quase só tinha bicho solidão e árvores, era necessário todo o ludismo existente dentro do menino do mato. Esse livro traz uma suposta mitologia pessoal do poeta, mas não podemos confiar e acreditar que todos os fatos narrados sejam verdades, pois o próprio poeta se diz um mentiroso. Mentiroso por criar novos mundos e novas maneiras de expressar suas dores e memórias. À primeira vista, temos a impressão de que o livro trata de apenas um tema, a infância de uma criança solitária no Pantanal cercada de árvores, rios e bichos, mas, ao entendermos a desutilidade da palavra, vemos que o menino faz poesia ao tentar se livrar do tédio daquele «lugar imensamente e sem nomeação» (BARROS, 2010, p ). I- PRIMEIRA PARTE: MENINO DO MATO Esta primeira parte do livro é composta por seis poemas longos. Neles aparecem como temáticas centrais a infância, o ambiente pantaneiro, o processo de aprendizagem infantil e tantos outros aspectos que iremos abordar ao longo de nossa análise. Antes de iniciarmos a leitura dos inutensílios (poesia) é necessário que entendamos o sentido da epígrafe, que antecede os poemas em ambas as partes do livro. Vale recordar qual é o intuito desses elementos textuais, que é o de preparar o leitor para o que vem pela frente. A epígrafe sugere o que será encontrado na obra. Nesta primeira parte, a epígrafe é: O homem seria metafisicamente grande se a criança fosse seu mestre. (Sören Kierkegaard) Para entendermos a epígrafe, primeiramente precisamos conhecer quem a disse. Kierkegaard foi um filósofo e teólogo dinamarquês, que, em suas obras, tratava de questões existenciais, por isso sua corrente filosófica é chamada de Existencialismo. A sua obra explora as emoções dos indivíduos que estão sendo confrontados com as escolhas que a vida lhes oferece. A citação escolhida por Manoel de Barros traduz um dos temas (senão o maior) que é tratado ao longo do livro, o poder de mudança e o olhar que as crianças têm. Segundo a fala de Kierkegaard, se os adultos deixassem que suas vidas fossem envolvidas pelos sentimentos ditos infantis, a vida deles seria mais bela em consequência disso, com menos dores e sofrimentos existenciais. 11

12 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS A proposta de Kierkegaard é que o adulto transforme o seu olhar automatizado por anos de condicionamentos, que o levou a perder a magia e alegria de observar as coisas mínimas que estão a nossa volta e de se admirar com elas, por uma maneira infantil de ver o mundo, condição que traria novamente o encanto perdido. No livro O Mundo de Sofia, de Jostein Gaarder (1991), o interlocutor de Sofia afirma que a única capacidade que devemos ter para sermos bons filósofos é a de nos admirarmos com as coisas que estão ao nosso redor e, para que isso ocorra, não podemos perder o olhar infantil que nasceu conosco: Todo mundo sabe que os bebês possuem essa capacidade. Depois de alguns meses na barriga da mãe, eles são empurrados para uma realidade completamente diferente. Mas depois, quando crescem, parece que esta capacidade vai desaparecendo. Como se explica isto? Será que Sofia Amundsen é capaz de responder a esta pergunta? Vamos ver: se um bebezinho pudesse falar, na certa ele diria alguma coisa sobre o novo e estranho mundo a que chegou. Pois apesar de a criança não saber falar, podemos ver como ela olha ao seu redor e quer tocar com curiosidade todos os objetos que vê. Quando vêm as primeiras palavras, a criança pára e diz Au! Au! toda vez que vê um cachorro. Podemos ver como ela fica agitada dentro do carrinho e movimenta os bracinhos dizendo Au, au, au!. Para nós, que já deixamos para trás alguns anos de nossas vidas, o entusiasmo da criança pode parecer até um tanto exagerado. Sim, sim, é um au-au, dizemos nós, os vividos. Mas agora fique quietinho. Não ficamos muito entusiasmados, pois já vimos outros cachorros antes. Esta cena insólita talvez se repita algumas centenas de vezes, até que a criança passe por um cachorro, ou por um elefante, ou por um hipopótamo sem ficar fora de si. Mas muito antes de a criança aprender a falar corretamente ou muito antes de ela aprender a pensar filosoficamente -, ela já se habituou com o mundo (GAARDER, 1995, p ). Podemos utilizar a mesma discussão proposta pela obra de Gaarder à produção Menino do mato, de Manoel de Barros, pois a primeira condição para sermos bons poetas é não perdermos a nossa sensibilidade de criança. O poeta, no documentário Só dez por cento é mentira (2009), afirma que a melhor fonte da poesia é a infância. Uma particularidade dos poemas da primeira parte do livro é que eles não têm títulos verbais, mas são numerados com algarismos romanos. Outro detalhe da parte intitulada Menino do mato é que nela ocorre o que chamamos de prosa poética, isto é, Manoel de Barros retrata paisagens de seu lugar de origem que formam uma geograficidade em um sentimento de pertencimento. Assim, o autor conduz nós leitores pelas entrâncias do Pantanal, com os seus rios, personagens e cenários, como um contador de histórias. Por meio de sua prosa poética, Manoel de Barros expressa a sua inclinação para uma poesia obliqua, o que faz alargar as produções do autor, aumentando as possibilidades do que é narrado, em detrimento da mera linearidade da prosa. Com isso, da união das duas formas, surge a expressividade máxima, isto é, a união do lírico com o narrativo, abrindo uma via mais larga para a linguagem se desenvolver. Dessa maneira, propomos a leitura e compreensão de alguns poemas da obra Menino do mato, evidentemente que a construção de significados por parte do próprio leitor jamais poderá ser substituída por qualquer análise literária, visto que riqueza que está envolta de um texto literário: I Eu queria usar palavras de ave para escrever. Onde a gente morava era um lugar imensamente e sem nomeação. Ali a gente brincava de brincar com as palavras tipo assim: Hoje eu vi uma formiga ajoelhada na pedra! A Mãe que ouvira a brincadeira falou: Já vem você com as suas visões! Porque formigas nem tem joelhos ajoelháveis e nem há pedras de sacristia por aqui. Isto é traquinagem 10 de sua imaginação. O menino tinha no olhar um silêncio de chão e na sua voz uma candura 11 de Fontes. O Pai achava que a gente queria desver o mundo para encontrar nas palavras novas coisas de ver assim: eu via a manhã pousada sobre as margens do rio do mesmo modo que uma garça aberta na solidão de uma pedra. Eram novidades que os meninos criavam com as suas palavras. Assim Bernardo emendou nova criação: Eu hoje vi um sapo com olhar de árvore. Então era preciso desver o mundo para sair daquele lugar imensamente e sem lado. A gente queria encontrar imagens de aves abençoadas pela inocência. O que a gente aprendia naquele lugar era só ignorâncias para a gente bem entender a voz das águas e dos caracóis. A gente gostava das palavras quando elas perturbavam o sentido normal das ideias. Porque a gente também sabia que só os absurdos enriquecem a poesia. (BARROS, 2010, p ) 10 Travessuras 11 Adjetivo. Alvo, imaculado. 12

13 UFU 2017 COMENTÁRIOS: Desde o poema que abre o livro, fica evidente a temática que nos envolverá ao longo de toda a obra, isto é, o poder que as palavras têm na vida do homem e como elas podem preencher de significado a nossa existência. Logo no primeiro verso, nota-se a nova significação que o poeta dá às palavras. Neste poema, o eu-lírico pinta uma lembrança de sua infância, na qual tinha a vontade de recriar imagens e funções das coisas; no primeiro verso, vemos c omo o sujeito poético troca a palavra que deveria ser dita/ usada: Eu queria usar palavras de ave para escrever (BAR- ROS, 2010, p. 09). Normalmente no lugar de palavra usa-se pena, que era o instrumento utilizado nos séculos passados para se escrever. Mas essa troca não é feita de maneira indiscriminada, já que é a palavra que dá origem às coisas, tal como a pena, que dá origem aos textos. Segundo Chevalier e Gherbrant (2006) em seu importante dicionário de símbolos, a palavra traz em si o poder de germinar, como uma manifestação divina (2006, p. 679) que dá sentido e forma às coisas do mundo. Seguindo a leitura do poema que abre o livro, no segundo verso, o eu-lírico demonstra como o local onde se vive influencia na maneira de ver e sentir o mundo. Viver neste mundo imensamente e sem nomeação (BARROS, 2010, p. 09) dava força e instrumentos para que essa criança brincasse com as palavras. E, nessa brincadeira, dava joelhos às formigas e novas funções às pedras. Mais à frente neste poema, aparecem as figuras do pai e da mãe, grafadas no texto com letra maiúscula, as quais têm forte influência na vida de uma criança, na maneira de ela ver e conhecer o mundo. Neste poema, tem-se a impressão de que a mãe reprime e tenta trazer ao mundo real essa criança que vê o universo com outros olhos, enquanto o pai vê que essa nova maneira de desver o mundo tem uma função maior, a de encontrar nas palavras novas coisas de ver, ou seja, novos mundos, novas possibilidades. Essas novidades que os meninos criavam davam ânimo a eles, era uma maneira de fugir da prisão em que esse lugar tão grande se tornava. Ainda nesse poema, surge a imagem de um personagem que aparece em outras poesias deste mesmo livro e de tantos outros do poeta Manoel de Barros, Bernardo. Aqui Bernardo é companheiro do eu-lírico, ele acompanha o colega nesse mundo de criações e de recriações. Talvez a imagem de Bernardo seja tão frequente e importante, porque, segundo o próprio poeta mato-grossense, ele era totalmente preso à natureza, natureza essa que preenche as linhas de Manoel de Barros. II Nosso conhecimento não era de estudar em livros. Era de pegar de apalpar de ouvir e de outros sentidos. Seria um saber primordial? Nossas palavras se ajuntam uma na outra por amor e não por sintaxe. A gente queria o arpejo. O canto. O gorjeio das palavras. Um dia tentamos até de fazer um cruzamento de árvores com passarinhos para obter gorjeios em nossas palavras. Não obtivemos. Estamos esperando até hoje. Mas bem ficamos sabendo que é também das percepções primárias que nascem arpejos e canções e gorjeios. Porém naquela altura a gente gostava mais das palavras desbocadas. Tipo assim: Eu queria pegar na bunda do vento. O pai disse que vento não tem bunda. Pelo que ficamos frustrados. Mas o pai apoiava a nossa maneira de desver o mundo que era a nossa maneira de sair do enfado 12. A gente não gostava de explicar as imagens porque explicar afasta as falas da imaginação. A gente gostava dos sentidos desarticulados como a conversa dos passarinhos no chão a comer pedaços de moscas. Certas visões não significavam nada mas eram passeios verbais. A gente sempre queria dar brazão às borboletas. A gente gostava bem das vadiações com as palavras do que das prisões gramaticais. Quando o menino disse que queria passar para as palavras suas peraltagens até os caracóis apoiaram. A gente se encostava na tarde como se a tarde fosse um poste. A gente gostava das palavras quando elas perturbavam os sentidos normais da fala. Esses meninos faziam parte do arrebol 13 como os passarinhos. (BARROS, 2010, p ) COMENTÁRIOS: Este poema, como a maioria dos que compõem o livro, traz ao poeta recordações puras de sua infância, matéria primordial da primeira parte da obra. Nele o sujeito lírico narra as desconstruções feitas por ele enquanto criança. Tais desconstruções remontam ao cenário lúdico 14, no qual os elementos da natureza norteavam as descobertas da infância. Logo nos dois primeiros versos, o eu lírico deixa claro o método utilizado por ele próprio para apreender o conheci- 12 Cansaço, aborrecimento. 13 Vermelhidão do nascer ou do pôr do Sol 14 Relativo a jogos, brinquedos e divertimentos. 13

14 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS mento: Nosso conhecimento não era de estudar em livros./ Era de pegar de apalpar de ouvir e de outros sentidos (BAR- ROS, 2010, p. 11). Esse conhecimento é comum à maioria das crianças, que têm como maior instrumento de aprendizagem a imaginação. Quando crianças, aprendemos naturalmente o que são as coisas e devagar vamos dando a cada coisa um sentido único e diferente do usual. Assim como o eu lírico faz, cruzamos árvores com passarinhos, tentamos tocar na bunda do vento, e tantas outras criativas ligações. Mas, acima de tudo, vemos nesse poema que, para se obter um conhecimento, não é necessária a sintaxe ou qualquer outro tipo de regulamentação, pois o sentido primeiro das coisas é o que realmente nos dá a percepção do mundo e de tudo que nele vive. O sentido global deste texto é a pureza da infância, das imagens que vemos e temos do mundo que nos cerca, pois, quando crianças, a única arma que temos para sair do enfado é desver o mundo, é desarticular os sentidos para que descobrirmos a realidade. Mais uma marca recorrente nos poemas de Manoel de Barros é o uso de imagens como caracol, borboleta, vento, passarinho e outros seres que cercam o homem pantaneiro. A maioria desses elementos tem em comum a capacidade de mudança, mobilidade e metamorfose, mas, antes de tudo, o poder de serem livres. Tanto a mudança quanto a liberdade são importantes na vida de um poeta, e, talvez, o uso recorrente de imagens infantis venha sustentar o grande valor do desver e desconstruir as coisas do mundo concreto. Desde o começo do mundo água e chão se amam e se entram amorosamente e se fecundam. VI Nascem peixes para habitar os rios. E nascem pássaros para habitar as árvores. As águas ainda ajudam na formação dos caracóis e das suas lesmas. As águas são a epifania da criação. Agora eu penso nas águas do Pantanal. Penso nos rios infantis que ainda procuram declives para escorrer. Porque as águas deste lugar ainda são espraiadas 15 para a alegria das garças. Estes pequenos corixos 16 ainda precisam de formar barrancos para se comportarem em seus leitos. Penso com humildade que fui convidado para o banquete dessas águas. Porque sou de bugre Espalhar. 16 Braço de um rio. 17 Indivíduo rude, inculto. Porque sou de brejo. Acho agora que estas águas que bem conhecem a inocência de seus pássaros e de suas árvores. Que elas pertencem também de nossas origens. Louvo portanto esta fonte de todos os seres e de todas as plantas. Vez que todos somos devedores destas águas. Louvo ainda as vozes do habitantes deste lugar que trazem para nós, na umidez de suas palavras, a boa inocência de nossas origens. (BARROS, 2010, p ) COMENTÁRIOS: O poema traz mais um traço particular do poeta Manoel de Barros, o uso de imagens eróticas. Ao longo de todo o poema, as temáticas de fecundação, fertilidade, nascimento e perpetuação estarão presentes. Os três versos iniciais explicitam o romance entre água e terra. O elemento (água) tem, em muitas culturas, o significado de fonte de vida e meio de purificação, já a terra tem como simbologia a fertilidade em seu traço feminino. Ou seja, a partir do encontro desses dois elementos fundamentais, acontece a vida. Muitos símbolos são utilizados pelo eu lírico neste poema, tais como peixes, rios, novamente pássaros, árvores, lesmas, entre outros. Cada um, de maneira distinta, ornamenta o cenário, aqui o Pantanal, mas são distintos e complementares, já que, além de romper barreiras em seu caminho, o rio serve como casa para os peixes, que por sua vez simbolizam a renovação da vida nele. Este pode ser um sinal de que o poeta assumiu, no auge de seus 94 anos (idade que tinha quando foi publicado este livro), para si próprio, o que todos os seus leitores já sentiam desde o primeiro contato com a obra do poeta: o Pantanal sempre esteve dentro do poeta. Este poema é a declaração de amor do menino que passou sua infância preso dentro de um mundo imensamente e sem nomeação (BARROS, 2010, p. 09), rico de imagens que ficaram habitando a imaginação deste menino, mesmo depois de ter se afastado quilômetros e quilômetros do Pantanal mato-grossense. Vemos que o Pantanal é o elo do menino com as águas, com a terra e com o céu, como se esse menino fosse uma imensa árvore habitada por pássaros, cercada por caracóis e lesmas e que estivesse alegremente presa às margens de um majestoso rio pantaneiro. A Água surge repetidas vezes ao longo do poema, água que purifica, que dá vida, água que é fonte de todos os seres e de todas as plantas, e que, além de tudo, traz consigo palavras, que são a verdadeira fonte de vida e purificação do menino. II - SEGUNDA PARTE: CADERNO DE APRENDIZ A segunda parte do livro é composta por 36 poemas, os quais, diferente dos que compõem a primeira parte, são concisos e breves, mas isso não tira de maneira nenhuma a complexidade e a genialidade deles. A temática central 14

15 UFU 2017 desses poemas será a descoberta do mundo pelas palavras, o quão significativa e nova pode ser uma experiência pautada na invenção de novos significados para as palavras, fazendo, assim, total relação com o título da segunda parte. A maioria dos poemas - para não dizer todos - são metapoéticos. Chamamos de metapoéticos poemas que tratam do próprio fazer literário, da experiência da escrita, trabalham, mais uma vez, o poder das palavras na vida do poeta. Um detalhe pertinente desta parcela do livro é a numeração dos textos: agora não são apresentados por números romanos, como na primeira parte do livro - os quais sinalizam um ponto de contato com a herança clássica -, usa-se o sistema de numeração associado ao nosso cotidiano. A escolha pela numeração arábica pode indicar uma arte mais prosaica marcada, sobretudo, pela simplicidade poética, visto ser uma parte escrita por um aprendiz. Assim como a primeira parte do livro, a segunda é aberta por uma epígrafe: Poesia é a descoberta das coisas que eu nunca vi. Oswald de Andrade Antes de analisá-la, vamos conhecer um pouco de seu autor. Oswald de Andrade foi um dos muitos artistas que promoveram a Semana de Arte Moderna em Conhecido também pelo seu Manifesto Antopofágico, Oswald revolucionou a estética da literatura brasileira, junto com sua terceira esposa, Tarsila do Amaral, o poeta paulista acreditava que, deglutindo várias influências, a arte ficava mais rica. Oswald de Andrade contribuiu fundamentalmente para a renovação estética da arte brasileira, sobretudo em função dos pontos de contato com as Vanguardas Européias. A frase escolhida por Manoel de Barros retrata o em que a maioria dos poetas acredita, a poesia (Literatura) tem o poder de transportar o indivíduo para mundos novos, e também dá ao menino a possibilidade de conhecer/descobrir inúmeras realidades. A epígrafe da segunda parte do livro de Manoel de Barros tem o poder de expressar de forma simples o que descobrimos com a leitura dos poemas do poeta mato-grossense. Quando usamos a palavras simples, não se deve entender isso como fácil, pois é algo que a poesia de Manoel de Barros não o é. O poeta consegue, de uma maneira deslumbrante, criar todo um mundo de palavras que nos transporta para o lugar onde vive esse menino peralta, que é conseguido com o que de mais singelo a humanidade tem: as palavras. Nesse livro, temos a metáfora do homem como um menino que vive se descobrindo e conhecendo o mundo por meio das palavras, do poder que elas têm sobre o mundo, ou seja, sobre o homem. Palavras que são vistas, nessa segunda parte, muito além da sintaxe, pois a ordem e a disposição delas nos versos não serão apenas parte de uma regra, mas um complemento aos seus múltiplos significados. POEMAS COMENTADOS 2 Invento para me conhecer. (BARROS, 2010, p. 27) COMENTÁRIOS: Neste poema, encontramos um dos papéis fundamentais da Literatura, o poder de nos conceder novas experiências. A primeira leitura possível deste é que, ao escrever novos poemas, o eu lírico tem a possibilidade de conhecer a si e s suas limitações. Ao desenhar um mundo novo, o sujeito pode se posicionar sobre acontecimentos diversos, divagar sobre como ele seria em um lugar diferente. Outra possibilidade é o da poesia como fuga, escape de uma realidade enfadonha. Vemos isso em alguns poemas da primeira parte do livro, quando o menino dá aos animais novas possibilidades de ser, imaginando um Pantanal singular, imaginando-se enquanto criador de um mundo novo. O verbo que abre o poema de somente um verso é a ação que move o poeta. Um dos muitos significados para o verbo inventar é o de criar, mas outros significados pautam a poesia de Manoel de Barros como descobrir, imaginar e mentir. Mentira aqui significa criar novas histórias, como as contadas pelo menino na primeira parte do livro. Mas, acima de tudo, o que o eu lírico descobre de si é o que importa ao inventar com as palavras uma nova poesia. 4 Escrever o que não acontece é tarefa da poesia. (BARROS, 2010, p. 31) COMENTÁRIOS: Mais uma vez, o eu lírico declara o que ele acredita ser a função da poesia. Sempre que pensamos em poesia, ou em qualquer outra forma de fazer literário, imaginamos histórias fantásticas que, no mundo real, não aconteceriam, pelo menos não da maneira narrada. Na poesia encontramos um lirismo exagerado; mas, nas poesias de Manoel de Barros, o que encontramos são inúmeras possibilidades de ser das coisas. O eu lírico, na maioria das vezes, dá a animais, rios, terra e plantas novas formas de ser. Manoel de Barros toma para si uma face de cientista maluco, que cria formas híbridas de seres, com novas funções no mundo. Escrever o que não acontece é expressar o que se sente, o que fica preso dentro de um lugar imensamente e sem nomeação que é o interior, a alma desse poeta, que consegue manifestar e libertar tudo o que o atormenta e o aprisiona dentro de si mesmo. 6 Eu gosto do absurdo divino das imagens. (BARROS, 2010, p. 35) COMENTÁRIOS: Como já afirmado, Manoel de Barros possui fortes pontos de contato com as artes plásticas. Em sua estada em Nova York, conheceu e apaixonou-se por pintores como Picasso, Klee, Chagall e Van Gogh; todos têm em comum o dom de causar desconforto com suas obras, o mesmo dom que Manoel tem ao fazer poemas. Em seus textos, ele cria pinturas de paisagens nunca vistas, dá novas formas aos animais e plantas no Pantanal ma- 15

16 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS to-grossense. Talvez venha daí sua paixão pelo absurdo divino das imagens, é uma quebra da expectativa, pois o que o senso comum acredita já foi dito na frase célebre: Uma imagem vale mais do que mil palavras. Mas, para Manoel de Barros, as palavras estão acima de qualquer outra coisa, a paixão é por criar novas imagens com elas. Insistindo na plurisignificância das palavras, são elas que dão forma ao mundo que o menino vive. E é por meio delas que ele consegue criar e existir nesse imenso mundo. Citamos novamente um trecho do documentário que bem se relaciona ao texto em questão: desenho verbal é quando você consegue colocar uma imagem na vista do leitor (CÉZAR, 2009). 9 Pra meu gosto a palavra não precisa significar é só entoar. (BARROS, 2010, p. 41) COMENTÁRIOS: Neste poema, o eu lírico expressa o sentido primeiro da palavra, que é o logos, o somente ser. Para Manoel de Barros, a palavra não precisa ter um sentido único e estabelecido, basta que ela seja entoada, para que sua ideia seja liberta. Manoel é avesso ao sentido real das palavras, a cada poema ele dá novos sentidos às coisas que o cercam, tanto as físicas como as que transcendem a carne. Como temática recorrente, o poder e significado da palavra é o alvo perseguido por Barros: ao descrever uma paisagem natural, o poeta não quer simplesmente relatar, ele quer criar uma pintura, desenhar todo um mundo novo, e a tinta que ele usa é a palavra. Quando se olha um quadro, admiram-se as formas, as cores e a expressão das imagens, assim também é a poética de Manoel de Barros, com sua forma, cor e expressão únicas, o poeta mato-grossense consegue, ao entoar palavras, transmitir suas mais profundas memórias e ideias. 15 A maneira de dar canto às palavras o menino aprendeu com os passarinhos. (BARROS, 2010, p. 53) COMENTÁRIOS: Mais uma vez, a natureza influencia diretamente a obra de Manoel de Barros. Mas não podemos ter em mente que a natureza representada na poesia de Barros é a pura natureza do Pantanal. A natureza aqui representa a pureza e o significado primário das coisas. Manoel dá novas possibilidades ao que é natural, novas funções, novos papéis. O que é natural no mundo dos leitores, é redundante no menino que vive preso no Pantanal. Quando o eu lírico dá aos pássaros um poder que é dos homens, poder de ensinar o papel da sintaxe e da semântica, ele modifica o papel de cada um no mundo. Mas não podemos nos esquecer de que este mundo é diferente, é lotado de palavras que somente existem, não significam, não têm papel definido. Quando o menino aprende com os passarinhos a dar voz às palavras, pode-se ver um novo significado nelas, essa voz que passa a existir é a quebra da alienação do ser que desconhece o valor das palavras. Ao aprender o real sentido das palavras, o menino cresce e entende seu real valor no mundo. 22 Eu estava parado no meio de uma oração como se eu tivesse desenvolvido a vermes. Veio a minha professora e me ensinou: Tudo o que você tem de fazer é tirar do seu texto as palavras bichadas de seus próprios costumes falou! Poesia é um desenho verbal da inocência! (BARROS, 2010, p. 67) COMENTÁRIOS: Neste poema, como em tantos outros dessa parte, o fazer poético é a temática central. Como já dito no trecho introdutório da segunda parte do livro, essa é uma temática muito recorrente nesta parte da obra. O eu lírico, neste poema, depara-se com um obstáculo no momento da escrita. Pode-se ler esse texto como uma pequena história do início do trajeto do menino como poeta, as dúvidas sobre as palavras escolhidas, a maneira de dispô-las no papel, todas as dúvidas que cercam a consciência dos que se descobrem poetas. Neste poema a solução encontrada é a de ignorar as palavras bichadas, as palavras do dia-a-dia. Fica impossível deixar de se fazer ligação entre esse poema e a escrita de Manoel de Barros, pois ele não se deixa influenciar pelo cotidiano das palavras em suas poesias. O último verso marca o que se entende da poesia dele, sobretudo neste livro, a inocência, a pureza e, acima de tudo, a palavra em seu sentido primeiro é o que forma a bela poesia, pois ela nada mais é do que a expressão do que se sente e as palavras não são capazes de traduzir. 34 Ele sabia que as coisas inúteis e os homens inúteis se guardam no abandono. Os homens no seu próprio abandono. E as coisas inúteis ficam para a poesia. (BARROS, 2010, p. 91) COMENTÁRIOS: No poema 34, ele desconstrói o sentido de inutilidade. Aqui o ser inútil não é algo ruim, pelo contrário, na poesia de Barros a inutilidade tem um significado maior, a inutilidade guarda em si o que os homens escondem. Nos três primeiros versos, somos mergulhados em um sentimento total de abandono: primeiro o abandono das coisas inúteis, segundo do próprio homem. Mas cada um tem seu sentido uno, o primeiro trata da própria poesia, como vemos no último verso, já o segundo expõe as feridas do homem que não consegue se construir, não consegue se conhecer, e é por isso e para isso que existe a poesia, é ela que dá aos homens uma nova maneira de ver o mundo e as coisas que o cercam. 16

17 UFU 2017 Outra peculiaridade encontrada nos poemas de Manoel de Barros é que, quando o mote se direciona para as coisas profundas, para algo que parta para os sentimentos humanos, o eu lírico usa a terceira pessoa, como se ele fosse um espectador das dores e abandonos humanos, como se o menino olhasse, mas não compartilhasse os mesmos sentimentos. 35 Eu queria fazer parte das árvores como os pássaros fazem. Eu queria fazer parte do orvalho como as pedras fazem. Eu só não queria significar. Porque significar limita a imaginação. E com pouca imaginação eu não poderia fazer parte de uma árvore. Como os pássaros fazem. Então a razão me falou: o homem não pode fazer parte do orvalho como as pedras fazem. Porque o homem não se transfigura senão pelas palavras. E isso era mesmo. (BARROS, 2010, p. 93) COMENTÁRIOS: Neste poema, são evidenciados, mais uma vez. o poder e o papel das palavras. Aqui o eu lírico percebe que ele conseguirá ser uma nova criatura usando as palavras como meio para que isso aconteça. Nos quatro primeiros versos, o eu lírico declara sua vontade de fazer parte das árvores e do orvalho; mais uma vez, há a necessidade de mudança, de que aconteça uma metamorfose. Nos próximos versos, ele continua explicando o que ele quer dessa metamorfose: eu só não queria significar./ Porque significar limita a imaginação./ E com pouca imaginação eu não poderia/ fazer parte de uma árvore (BARROS, 2010, p. 93). Novamente o eu lírico fala que significar limita a existência e a vivência das coisas. Mas mesmo com a limitação da significância, ele consegue entender (com a ajuda da razão) que a única maneira que ele tem de se transformar é pelas palavras, pois só elas têm o poder de ser sem significar. É só por meio das palavras que o homem/menino consegue ser o que ele quiser, é só por elas que consegue transcender o sentido da existência. 36 O primeiro poema: O menino foi andando na beira do rio e achou uma voz sem boca. A voz era azul. Difícil foi achar a boca que falasse azul. Tinha um índio terena que diz-que falava azul. Mas ele morava longe. Era na beira de um rio que era longe. Mas o índio só aparecia de tarde. O menino achou o índio e a boca era bem normal. Só que o índio usava um apito de chamar perdiz que dava um canto azul. Era que a perdiz atendia o chamado pela cor e não pelo canto. A perdiz atendia pelo azul. (BARROS, 2010, p. 95) COMENTÁRIOS: Este é o poema que encerra o livro. Contraditoriamente o último poema tem como subtítulo O primeiro poema (BARROS, 2010, p. 93). Nele poema o eu lírico se depara com uma voz de cor azul. Mas essa voz não tinha boca que falasse, havia apenas um índio que dominava essa cor. Segundo o dicionário de símbolos de Chevalier e Gherbrant (2006), a cor azul é a mais profunda, imaterial, fria e pura das cores. Ela tem o poder de transcender as outras cores, o dom da verdade. Podemos entender a cor azul como metáfora de poesia, porque esta é considerada a mais profunda, imaterial e pura das artes. Vimos isso ao longo da leitura dos poemas de Manoel de Barros: o poder de somente existir das palavras, é só assim que a poesia existe, sem significar, somente entoar é suficiente para que uma poesia exista. A poética de Manoel de Barros encontra-se nesse somente existir, entoar, sem significar, pois é por meio dessas simples coisas que a poesia do mais sublime dos mato-grossenses existe. REFERÊNCIAS BARROS, Manoel. Livro sobre nada. 11. ed. Rio de Janeiro: Record, Memórias Inventadas: A infância. São Paulo: Planeta, Menino do mato. São Paulo: Leyla, Gramática expositiva do chão. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira,s/d. BACHELARD, Gaston. Os Pensadores. Bachelard. São Paulo, Nova Cultural, Campos, Maria Cristina de Aguiar. Manoel de Barros: O Demiurgo das Terras Encharcadas Educação pela Vivência do Chão (tese de doutorado). CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 20. ed. Rio: José Olympio, FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas: Uma Arqueologia das Ciências Humanas. São Paulo: Martins Fontes, ed GAARDER, Jostein. O Mundo de Sofia: romance da história da filosofia. Trad. João Azevedo Jr. São Paulo: Companhia das Letras,

18 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS HEIDEGGER, M. Ensaios e Conferências. Petrópolis, RJ: Vozes. MENEZES, Cynara. O artista quando coisa. O Povo. O Jornal do Ceará. Fortaleza-CE, 14 nov Disponível em: < Acesso em: 08/02/2005. RODRIGUES, Alexandre Rodrigues. A Poética da Desutilidade. Um passeio pela poesia de Manoel de Barros (Dissertação de mestrado). Valéry, Paul. Variedades. São Paulo: Iluminuras, FILME CITADO - Site oficial: - Título: Só dez por cento é mentira: a desbiografia poética de Manoel de Barros - Direção e Roteiro: Pedro Cezar. - Produtora: Artezanato Eletrônico. - Produção Executiva: Pedro Cezar, Kátia Adler e Marcio Paes. - Direção de Fotografia: Stefan Hess. - Montagem: Julio Adler e Pedro Cezar. - Direção de Arte: Marcio Paes. - Música: Marcos Kuzca - Ano: 2009 UM ROMANCE EM PRETO E BRANCO CLA- RA DOS ANJOS 18 Por Henrique Landim 19 LIMA BARRETO Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu em 1881, no Rio de Janeiro, no dia 13 de maio, data que, posteriormente, também marcaria o fim, pelo menos na lei, da escravatura no Brasil. É importante dizer que a situação do negro e da 18 Explicar o título: Clara (que não é clara, e sim mulata), dos Anjos (conflita com o desejo/sedução que envolve a personagem). 19 Mestre em teoria literária pela Universidade Federal de Uberlândia e mestre em Teoria Literária pela mesma instituição. escravatura é bastante representada em algumas obras do autor, mesmo no romance Clara dos Anjos conseguimos perceber uma discussão étnica ao longo das páginas. Grande parte da vida do escritor se passou no período da Primeira República ( ), embora o olhar lançado sobre esse momento, às vezes, subverta aquilo que é comumente dito sobre o período, uma vez que quase tudo passa pelo julgo problematizador de Lima Barreto. João Henriques e Amália Augusta, pai e mãe de Lima Barreto, tiveram uma vida bastante difícil para manter a existência dos quatro filhos (Lima Barreto, Evangelina, Carlindo e Eliézer). Mudaram de residência por inúmeras vezes em virtude dos problemas de saúde de Amália e por problemas financeiros. Tudo isso, fez que João Henriques deixasse o seu grande sonho de ser médico de lado. O ano de 1887 é marcado pela tristeza e sofrimento pela morte da mãe de Lima Barreto, vítima da tuberculose. Com a Proclamação da República, em 1889, o patriarca da família acabou sendo perseguido por defender o regime anterior (Monarquia). Em virtude da posição monárquica, o pai de Lima Barreto perderia o seu cargo na Imprensa Nacional, mas antes que ele fosse demitido, desligou-se dessa instituição, indo trabalhar como almoxarife na Colônia dos Alienados da Ilha do Governador. Esse novo cargo trouxe uma série de complicações psicológicas para o pai do escritor que não conseguiu equacionar uma diferença de caixa, abalando-se de forma irreversível. Com o desiquilíbrio psicológico do pai, Lima Barreto teve que assumir a liderança da família e procurar um meio de aposentar o pai enfermo. Nesse momento, o autor de Clara dos Anjos abandona o curso superior de engenharia na Escola Politécnica em É nesse período que Lima Barreto começa a escrever para jornais e ingressa no funcionalismo público. Do ponto de vista profissional, é a partir de 1905 que o escritor ingressa no importante jornal Correio da Manhã. Porém, a sua vida como escritor não lhe facilitou muito a sua existência material. Enquanto as lutas no interior da família de Lima Barreto lhe roubavam a tranquilidade, o Rio de Janeiro se configurava como o espaço fervilhante do processo de regeneração no âmbito político, social, arquitetônico, cultural. Com a Proclamação da República, em 1889, tivemos um novo ideal de país que norteava o imaginário da maioria dos cidadãos. Essa nova ordem se configurava repleta de sonhos e desejos, embora a barreira do atraso social, às vezes, ganhavasse uma dimensão dantesca para certa parcela da população. Os negros se viram libertos, mas a sociedade não estava preparada para recebê-los como mão de obra livre. No final do célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma, o narrador personagem expressa essa oposição entre o desejo da integração social do Brasil na modernidade e os atrasos sociais: A pátria que quisera ter era um mito (BARRETO, 1997, p. 254). O Rio de Janeiro, naquele momento, era o estandarte da modernidade brasileira, por isso essa cidade passou por tantas remodelagens em sua estrutura urbana. Algumas ruas foram alargadas, portos emergiram no mar a fim de receber navios maiores, cortiços foram extintos, entre outras medidas que procuravam alinhar a cidade à modernidade. Nas palavras de Nicolau Sevcenko (2003) sobre a reestruturação do país 18

19 UFU 2017 preciso, pois, findar com a imagem da cidade insalubre e insegura, com uma enorme população de gente rude plantada bem no seu âmago, vivendo no maior desconforto, imundície e promiscuidade, pronta para armar em barricadas as vielas estreitas do Centro ao som do primeiro motim. Somente oferecendo ao mundo uma imagem de plena credibilidade era possível drenar para o Brasil uma parcela proporcional da fartura, conforto e prosperidade em que já chafurdava o mundo civilizado (2003, p. 41). Enquanto as operações modernizadoras ocorriam, parte da população humilde (os mestiços, negros) sofria. Lima Barreto, em algumas obras, se colocam contrariamente a esse progresso que legitimava uma elite branca no poder. Em 1914 e 1919, Lima Barreto esteve internado por causa de seu envolvimento com o álcool. Mesmo diante desses problemas com a bebida, o escritor se candidatou por três vezes à Academia Brasileira de Letras, não sendo eleito como membro dessa instituição. Por fim, Lima Barreto morre aos 41 anos, em 1922, vítima de problema cardíaco. COMPREENSÃO DO TÍTULO DO LIVRO: O romance de Lima Barreto, Clara dos Anjos, possui em seu interior a personagem central cujo nome é Clara dos Anjos. A expressão dos Anjos é herdada pela moça em virtude do nome de seu pai, Joaquim dos Anjos. Porém, vale dizer que tanto o pai quanto a filha não são brancos (claros) como o sobrenome poderia sinalizar. Assim, o primeiro nome da moça contradiz a sua etnia, o que é reforçado pela acepção de pureza do segundo termo ( dos Anjos ). A filha de Joaquim é uma mulata, portanto é de ascendência negra. Ela vive em um país cuja maior parte da elite faz questão de considerá-lo branco. Sobre isso comenta a estudiosa: Uma mestiça com o nome de Clara já é um indicativo de um desejo de uma outra etnia, uma etnia aceita na sociedade e, logicamente, uma insatisfação com a própria condição racial. Os pais ao batizarem a filha com esse nome revelam uma ideologia em relação ao contraste étnico existente em nosso país internalizada em seu pensamento, assim como o nome inglesado Cassi Jones diz muito dele e de D. Salustiana. Ambas as personagens, Cassi e Clara, apresentam em seus respectivos nomes uma posição em relação ao meio social: ela, um movimento de inserção e de aceitação do esquema social: ele, a busca de um diferencial de superioridade para exercer sua cidadania malandra. Em relação aos nomes analisados, vale lembrar que o signo é ideológico, como afirma Bakhtin. Nesse detalhe da filha de D. Engrácia está a ponta de um fio que se puxado cuidadosamente revela todo o movimento e pensamento da família dos Anjos de tentativa de inserção em um sistema branco e, logicamente, se há uma tentativa de inclusão é porque se está excluído. Uma filha mulata, mas que no nome a família deseja clara. Além de a palavra estar relacionada com a etnia, sua carga semântica também apresenta a significação de pureza, inocência. Era exatamente essa inocência a que o casal aspira para a filha. Uma moça de boa família, pura de alma e de corpo, uma moça refinadamente educada, de acordo com tudo aquilo que os rigorosos modelos marais de educação branca propõem. A pureza angelical da moça Clara nada mais é, para o narrador, do que cegueira e despreparo para ver o mundo e lutar contra as suas estruturas iníquas 20. Clara dos Anjos não conseguia perceber que moças de sua condição étnica, social e econômica serviam de instrumento para o prazer masculino e, automaticamente, como um meio de sistema para preservar a pureza e, de acordo com o pensamento vigente, a dignidade das moças brancas e burguesas. São conhecidas e populares as aventuras sexuais de rapazes favorecidos economicamente com jovens mestiças, negras e empregadas domésticas ao passo que o casamento deles se dá com uma moça branca de boa família (GUEDES, 2005, p ). A protagonista do romance, Clara, ao longo de sua vida, viveu num sistema familiar que não permitia que ela percebesse com criticidade o seu lugar diante da sociedade republicana marcada por hábitos escravocratas. Sendo assim, era caracterizada pela pureza e ingenuidade, que talvez mascarem a ânsia pela inserção em um mundo diverso do seu. Clara é vítima fácil do jovem branco Cassi Jones. O CONTEXTO DA OBRA (PRÉ - MODERNISMO) O romance Clara dos Anjos nasceu num período em que, na Europa, os movimentos vanguardistas estavam em plena atividade cultural propondo novas perspectivas artísticas. De outro lado, na literatura brasileira, ainda se via resquícios de manifestações como, por exemplo, Parnasianismo, Simbolismo, Realismo e Naturalismo. Escritores como Graça Aranha, Euclides da Cunha, Augusto dos Anjos, Monteiro Lobato e Lima Barreto, nas suas produções literárias, sinalizavam o rompimento com essas quatro tendências, contudo, demonstravam a coexistência de traços conservadores herdados dessas manifestações em seus textos. A esse conturbado período transitório marcado pela concomitância de diversas vozes culturais, convencionou-se dar o nome de Pré-Modernismo. Lima Barreto, do ponto de vista das inovações que o aproximam do Modernismo, inovou, por exemplo, a linguagem. Segundo Nolasco-Freire (2005), o escritor promove uma aproximação entre a linguagem equivalente ao público leitor ao qual a obra literária é destinada. Os críticos da época, acostumados com o modelo rigorosamente formal, observavam na obra de Lima Barreto um desleixo e uma falta de conhecimento da norma culta, contudo não perceberam que essas eram as marcas de um processo de ruptura com os modelos vigentes. Apesar do aspecto inovador da linguagem de Lima Barreto no romance Clara dos Anjos, podemos notar certos pontos de contato com a estética Realismo-Naturalismo, visto que o livro possui um olhar cientificista e determinista sobre as ações humanas, considerando que a conduta do sujeito é produto de leis naturais (fatores deterministas: meio, momento e genética). Os naturalistas procuravam explicar a conduta humana por meio do rigor científico, por isso, as 20 adj. Que se opõe à equidade; injusto: julgamento iníquo. Característica do que é perverso; mau. (Etm. do latim: iniquus.a.um) 19

20 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS ações de Clara são justificadas, em grande parte das vezes, pela deficiente educação recebida em seu meio familiar. O pai e a mãe da protagonista eram indivíduos incapazes de transmitir qualquer noção de autonomia feminina à filha, uma vez que ambos também são seres frágeis do ponto de vista de suas condutas. O momento também é um fator determinante do comportamento da jovem que vivia os efeitos da febre das modinhas, estilo musical que também moldou o caráter da jovem. Do Determinismo, o escritor adota um olhar para o qual as deliberações morais são determinadas ou são resultado direto das condições psicológicas e outras de natureza física. O homem nada é senão uma máquina guiada por fatores sociais, físicos e hereditários (COUTINHO 1997, p. 12/13). A questão do preconceito étnico vivido pelos negros e mulatos como em obras O Mulato e O cortiço, denunciada na obra do naturalista Aluísio de Azevedo, traço marcante do Naturalismo e também do Modernismo, aparece bem demarcado nos livros de Lima Barreto, mesmo porque o autor viveu pessoalmente preconceitos de ordem étnica, problema da nossa identidade cultural retratado com tintas críticas na obra do escritor. Para Sérgio Buarque de Holanda (1978) a obra Clara dos Anjos bem expressa essa temática na produção de Lima Barreto: Em Clara dos Anjos relata-se a estória de uma pobre mulata, filha de um carteiro de subúrbio, que apesar das cautelas excessivas da família, é iludida, seduzida e, como tantas outras, desprezada, enfim, por um rapaz de condição social menos humilde do que a sua. É uma estória onde se tenta pintar em cores ásperas o drama de tantas outras raparigas da mesma cor e do mesmo ambiente. O romancista procurou fazer de sua personagem uma figura apagada, de natureza amorfa e pastosa, como se nela quisesse resumir a fatalidade que persegue tantas criaturas de sua casta: A priori, diz Lima, estão condenadas, e tudo e todos parecem condenar os seus esforços e os dos seus para elevar a sua condição moral e social. É claro que os traços singulares, capazes de formar um verdadeiro caráter romanesco, dando-lhe relevo próprio e nitidez hão de esbater-se aqui para melhor se ajustarem à regra genérica. E Clara dos Anjos torna-se, assim, menos uma personagem do que um argumento vivo e um elemento para a denúncia (1995, p.42) Essa denúncia das mazelas étnicas e sociais nos permite associar a produção de Lima Barreto ao Naturalismo, vertente literária que sempre preferiu realizar a sua crítica associada ao universo dos mais pobres, diferentemente do Realismo que se ateve às classes mais abastadas. ENREDO SUBÚRBIO Antes de residir nos subúrbios cariocas, Joaquim dos Anjos tivera a sua origem e experiências iniciais de vida nos arredores de Diamantina, em cujas festas de igreja a sua flauta brilhava, e sob o comentário de muitos era tido como o primeiro flautista do lugar. O personagem chegou a criar adiante, na sua vida, valsas, tangos e acompanhamentos de modinhas. Aos vinte e dois anos, desgostoso com a existência em sua cidade natal, aceitara o convite de um engenheiro inglês explorador dos terrenos diamantíferos do lugar, partindo para o Rio de Janeiro. Joaquim dos Anjos, em Minas Gerais, serviu ao inglês como seu pajem, guia, encaixotador e servente. Terminadas certas pesquisas no solo mineiro, o inglês John Hebert Brown, da Real Sociedade de Londres, resolveu não voltar mais para Diamantina, indo com Joaquim ao Rio de Janeiro, de onde partiu para Londres. O inglês partiu, enquanto Joaquim permaneceu sem nenhuma ocupação formal no Rio de Janeiro, até que o seu dinheiro acabou. Foi então obrigado a prestar serviço como empregado de um escritório de advocacia. A função lhe retribuía com um pequeno ordenado, assim, Joaquim sonhava com um cargo público que lhe desse direito à aposentadoria e a montepio 21 para a família que fundaria adiante. Passados dois anos junto ao escritório de advocacia, Joaquim ascendeu ao ofício de carteiro, vaga ocupada até o final do romance Clara dos Anjos. Depois de nomeado no cargo público, Joaquim dos Anjos casou-se, herdando em seguida uma casa e umas poucas terras, em Inhaí, de sua falecida mãe. Todos os bens foram vendidos, em seguida tratou de adquirir uma humilde casa no subúrbio carioca, nas proximidades da estrada de ferro Central do Brasil: Agora, porém, e mesmo há vários anos, estava em plena posse do seu buraco como ele chamava a sua humilde casucha. Era simples. Tinha dois quartos; um que dava para a sala de visitas e outro para a sala de jantar, aquele ficava à direita e este à esquerda de quem entrava nela. À de visitas, seguia-se imediatamente a sala de jantar. Correspondendo a pouco mais de um terço da largura total da casa, havia, nos fundos, um puxadito, onde estavam a cozinha e uma despensa minúscula. Comunicava-se esse puxadito com a sala de jantar por uma porta; e a despensa, à esquerda, apertava o puxado, a jeito de um curto corredor, até à cozinha, que se alargava em toda a largura dele. A porta que o ligava à sala de jantar ficava bem junto daquela, por onde se ia dessa sala para o quintal. Era assim o plano da propriedade de Joaquim dos Anjos (BARRETO, 1997, p. 23). Lima Barreto, em suas obras, é um observador astuto do subúrbio do Rio de Janeiro. Como se nota, a residência de Joaquim dos Anjos dá vida a essa zona periférica carioca. A casa não possui planejamento, na verdade, ela é toda remendada de inúmeros puxadinhos que avançam diante da necessidade da família. A precariedade da casa de Joaquim dos Anjos parece o reflexo daquilo que é vivido lá fora, na rua: A rua em que estava situada a sua casa desenvolvia-se no plano e, quando chovia, encharcava e ficava que nem um pântano; entretanto, era povoada e se fazia caminho obrigado das margens da Central para a longínqua e habitada freguesia de Inhaúma. Carroções, carros, autocaminhões que, quase diariamente, andam por aquelas bandas a suprir os retalhistas de gêneros que os atacadistas lhes fornecem, percorriam-na do começo ao fim, indicando que tal via pública devia merecer mais atenção da edilidade (BARRETO, 1997, p. 24). Clara dos Anjos é um romance que realiza longas descrições do subúrbio, quase todas expressam o abandono do poder público que parece ignorar a condição precária de 21 Pensão destinada a prover o sustento de um beneficiário. 20

21 UFU 2017 vida dos moradores. Na rua onde Joaquim mora, quando há chuva, o cenário é desolador, embora a movimentação diária no lugar peça maior atenção do estado. É com olhar ácido que o subúrbio carioca, em alguns momentos do romance Clara dos Anjos, é descrito. Mesmo o gosto religioso dos moradores, perpassado por uma espécie de sincretismo, passa pela sua verve crítica. Adiante no livro temos a caracterização de um religioso estrangeiro que ergueu uma chácara a fim de realizar as suas atividades ecumênicas: O povo não os via com hostilidade, mesmo alguns humildes homens e pobres raparigas dos arredores frequentavam- -nos, já por encontrar nisso um sinal de superioridade intelectual sobre os seus iguais, [grifo meu] já por procurarem, em outra casa religiosa que não a tradicional, lenitivo para suas pobres almas alanceadas, além das dores que seguem toda e qualquer existência humana (BARRETO, 1997, p. 24). Os frequentadores da chácara de Quick Shays se colocavam numa condição superior à dos habitantes do subúrbio, o que deixa transparecer um fio do discurso da suposta superioridade racial dos brancos protestantes. Soma-se a esse pensamento, a nossa condição simbiótica do ponto de vista religioso, uma vez que nas páginas iniciais do romance temos registrados o catolicismo e o protestantismo: Joaquim dos Anjos não frequentava Mr Shays nem o reverendo padre Sodré, do Santuário de Nossa Senhora de Lourdes, pois, apesar de ter nascido numa cidade embalsamada de incenso e plena de ecos sonoros de litanias e o continuo repicar de sinos festivos, não era animado de grande fervor religioso. Sua mulher, Dona Engrácia, porém, o era em extremo, embora fosse pouco à igreja, devido às suas obrigações caseiras. Ambos, porém, estavam de acordo num ponto religioso católico-romano: batizar quanto antes os filhos, na Igreja Católica Apostólica Romana. Foi assim que procederam, não só com a Clara, o único filho sobrevivente, como com os demais, que haviam morrido (BARRETO, 1997, p. 27). O subúrbio parece ser terreno fértil para inúmeras manifestações religiosas, o casal dos Anjos dava uma preferência especial ao catolicismo, religião em que a filha acabou sendo batizada. Esse ritual católico oferecido à Clara também é um elemento formador da personalidade frágil da menina, ele também faz parte de um conjunto de elementos que condicionam a jovem a valorizar uma típica conduta feminina estereótipo da mulher no início do século XX no Brasil. O catolicismo, cujos adeptos são os membros da família dos Anjos, tem no subúrbio o seu representante mais ilustre por meio da figura do padre Sodré e, de outro lado, a figura do protestantismo metaforizada na imagem de Mr Shays. O carteiro Joaquim dos Anjos casou-se com dona Engrácia há quase vinte anos, o casal teve dois filhos, sendo a Clara dos Anjos a primeira, orçava dezessete anos, possuía uma educação exclusivamente voltada para os afazeres domésticos, no entanto, raras vezes, dirigia-se ao cinema do Méier ou do Engenho de Dentro. Essa alusão feita ao cinema sinaliza para um contexto de transformações, marcado pela melhoria dos meios de comunicação, novos meios de transporte (como os caminhões citados num fragmento anterior), o telefone, o cinema, novos objetos e bens de consumo, além de arranha-céus, elevadores e outros símbolos que indicam uma inserção do Rio de Janeiro numa condição moderna. Entre o rol de amizades de Joaquim dos Anjos, estão dois importantes personagens, Marramaque e Lafões, os quais, todos os domingos, pelas nove horas, estavam na residência do carteiro. Os amigos logo se dirigiam aos fundos da casa onde estava localizada a mesa com tentos para os semanais jogos: Horas e horas, esperando o ajantarado, que quase sempre ia para a mesa à hora do jantar habitual, deixavam-se ficar jogando, bebericando aguardente, sem dar uma vista d olhos sobre as montanhas circundantes, nuas e pedroucentas, que recortavam o alto horizonte (BARRETO, 1997, p. 28). No último domingo, na residência de Joaquim dos Anjos, Lafões pediu autorização ao dono da casa para convidar um mestre de violão e da modinha para tocar no aniversário de Clara. Nesse momento, temos a primeira aparição do personagem central do texto, Cassi Jones. Marramaque, padrinho da aniversariante, frente ao pedido de Lafões, exaltou-se de maneira negativa contra a presença do músico. Ao longo da narrativa, o padrinho de Clara se posiciona veementemente contra o violeiro. A postura contrária do amigo de Joaquim confere a Cassi Jones um tom de mistério. O MALANDRO A caracterização do malandro na história aparece mais bem demarcada adiante no texto, o escritor não poupa sua ironia para iniciar a descrição de Cassi Jones: O Jones é que ninguém sabia onde ele fora buscar, mas usava-o, desde os vinte e um anos, talvez, conforme explicavam alguns, por achar bonito o apelido inglês. O certo, porém, não era isso. A mãe, nas suas crises de vaidade, dizia-se descendente de um fantástico Lord Jones, que fora cônsul da Inglaterra, em Santa Catarina; e o filho julgou de bom gosto britanizar a firma com o nome do seu problemático e fidalgo avô (BARRETO, 1997, p ). A origem nada precisa do nome de Cassi Jones sinaliza para a condição malandra desse sujeito que faz parte de um núcleo de classe média mais abastada carioca. Ele possui pouco mais de trinta anos, é branco, sardento, insignificante, de rosto e de corpo (BARRETO, 1997, p. 33), contudo, mesmo assim, é considerado um elegante dos subúrbios (1997, p. 33). O violeiro Cassi é um conquistador de virgens ingênuas e mulheres casadas, não tinha melenas de virtuose do violão, nem outro qualquer traço de capadócio (1997, p. 33). A sua tez branca e o nome de origem ao certo inglesa confere ao malandro uma visualidade étnica singular no subúrbio, o que adiante no romance contrastará com a mulata Clara dos Anjos, a quem ele seduz. O narrador, ao descrever Cassi como o deflorador da jovem mulata, expõe o código de conduta dos brancos daquele tempo, antecipando a epígrafe do texto: Alguns as desposavam (as índias); outros, quase todos, abusavam da inocência delas, como ainda hoje das 21

22 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS mestiças, reduzindo-as por igual a concubinas e escravas (BARRETO, 1997, p. 20). Esse fragmento, inserido nas primeiras páginas do livro de Lima Barreto, bem expressa a relação dos brancos para com as minorias (índios, negros e mestiços). As mestiças / mulatas como Clara dos Anjos, naquele contexto de publicação do livro, tinham o papel de servir aos caprichos sexuais dos homens brancos que, quando desejavam casar, procuravam brancas. Isto é, sexo com as negras e casamento com as brancas. Cassi Jones sabe encantar e seduzir as damas com o seu irresistível violão (1997, p. 33). Cassi Jones, mesmo com tão pouca idade, contava perto de dez defloramentos e a sedução de muito maior número de senhoras casadas (BARRETO, 1997, p. 33). Os crimes cometidos pelo jovem Cassi permaneciam impunes e, usando de sua relativa posição social, quase sempre conseguia se livrar das ordens judiciais. Essa liberdade diante da lei que o personagem possui nos leva a refletir sobre a questão da justiça na sociedade carioca. Lima Barreto nos convida a pensar nas falhas do sistema judiciário e, em decorrência delas, nas possibilidades das ações malandras de mesma ordem. Sobre essa condição jurídica, comenta Amadeu da Silva Guedes (2005) Suas ações tinham o efeito desejado, mas ações daqueles desfavorecidos, que tentavam seguir uma linha moral dominante, acabavam passando por um processo de nulidade diante da justiça. A partir desta circunstância de Cassi Jones e os códigos legais, poderia se dizer em uma breve paródia: somos todos desiguais perante a lei (2005, p. 140). Essa desigualdade expressada pelo livro tem as suas raízes, sobretudo, nas questões de ordem étnica e social. Ao certo, poderíamos vincular essa situação de beneficiamento à vida de Lima Barreto, que em virtude de sua origem social e étnica, vivenciava inúmeros processos de segregação, condição análoga de inúmeros negros e mulatos no início da República Brasileira. Dentro de casa, Cassi possuía o respaldo e conforto da figura da mãe que se recusava ver o filho como malandro. Dona Salustiana se desesperava ao pensar que o seu filho pudesse se casar com uma negra, preferível seria tê-lo na delegacia. A condição de detido seria mais positiva do que um casamento com uma negra para a mãe de Cassi. Na delegacia, pelo menos, o filho poderia se livrar com facilidade usando o benefício da cor, de outro lado, na concepção de Dona Salustiana, a vergonha de casar-se com uma mulata seria uma nódoa incurável. A mãe vencia os seus preconceitos de fidalguia e alta estirpe e não relutava a ir com o marido livrar o filho da cadeia ou de algum casamento. A mulher, ironicamente segundo o narrador, tinha fumaça de grande dama, de ser muito superior às pessoas de seu meio (BAR- RETO, 1997, p. 35). Essa maneira pretenciosa provinha de duas fontes: a primeira, por ter um irmão médico do Exército, com o posto de capitão; e a segunda, por ter andado no Colégio das Irmãs de Caridade (1997, p. 35). Diferentemente da mãe, o pai de Cassi, Manuel Borges, é um homem sério, tinha a capacidade de julgar lucidamente e punir as ações do filho. As irmãs de Cassi possuíam um verdadeiro desprezo pela baixeza da conduta moral do irmão e também pela sua ignorância cavalar e absoluta falta de maneiras e modos educados (BARRETO, 1997, p. 36). No início da carreira de pícaro de Cassi, o pai ainda aceitou que o jovem permanecesse na mesa com o restante da família, porém apenas a mãe lhe dirigia a palavra, as irmãs se esquivavam de qualquer relação com o irmão. Um dos primeiros casos mais incômodos de Cassi se dera com uma amiga de Catarina (irmã do malandro), Nair, moça órfã de pai que, pelo despreparo psicológico, sem ter ninguém para orientá-la, caiu nas garras do violeiro. Nair frequentava a casa de Cassi a fim de aprofundar os seus estudos musicais com Catarina. Os encontros entre os amantes se davam às escondidas de todos, uma vez que o rapaz temia algum tipo de retaliação por parte de seu pai. Para concretizar o seu plano, Cassi enviou uma carta copiada, o que expõe a desqualificação do malandro para com o uso da escrita, à moça inexperiente, que em plena crise de sentimentos deu um passo errado cedendo ao inimigo. Pouco tempo depois, Nair via o seu ventre crescido, tinha ali um filho do violeiro. A mãe da moça tentou inutilmente conversar com Dona Salustiana, em seguida fora à polícia, mas a boa condição financeira da mulher eliminava qualquer ação da justiça no caso. No dia seguinte, a mãe de Nair suicidava-se com lisol 22. Os jornais expuseram o caso nos mínimos detalhes para o desespero e raiva de Manuel de Azevedo, pai do malandro, que expulsou o filho de casa. Cassi, a pedido da mãe, exilou-se na casa do tio doutor (Baeta Picanço) que logo tratou de mandá-lo embora, visto que o sobrinho já estava se aventurando ao arredor do sítio. De volta à casa da família, a mãe reservou um lugar às escondidas no porão da casa, lugar onde o Manuel não poderia vê-lo. Incapaz para o trabalho, Cassi vivia de pequenas apostas em rinhas de briga de galo: galos de briga eram a força de suas indústrias e do seu comércio equívocos (BAR- RETO, 1997, p. 40). Sobre a conduta ergofóbica de Cassi comenta o narrador: Nunca suportara um emprego, e a deficiência de sua instrução impedia-o que obtivesse um de acordo com as pretensões de muita coisa que herdara da mãe; além disso, devido à sua educação solta, era incapaz para o trabalho assíduo, seguido, incapacidade que, agora, roçava pela moléstia. A mórbida ternura da mãe por ele, a que não eram estranhas as suas vaidades pessoais, junto à indiferença desdenhosa do pai, com o tempo, fizeram de Cassi o tipo mais completo de vagabundo doméstico que se pode imaginar. É um tipo bem brasileiro (BARRETO, 1997, p. 41). Com isso, Cassi se coloca numa condição similar a outro importante malandro da nossa literatura, Leonardinho, personagem do livro Memórias de um sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida. A roupa, o violão e a modinha são os companheiros inseparáveis do malandro Cassi em sua jornada em busca do prazer. Ele é um sujeito de sexualidade diversa dos padrões morais dominantes de sua época. Segundo o narrador, os relacionamentos do personagem atendem exclusivamente os seus prazeres sexuais, se relacionados a mulheres; quando relacionados a pessoas do mesmo sexo, visam a suas ações sórdidas e criminosas: 22 Espécie de desinfetante. 22

23 UFU 2017 Se já era egoísta, triplicou de egoísmo. Na vida, ele só via o seu prazer, se esse prazer era o mais imediato possível. Nenhuma consideração de amizade, de respeito pela dor dos outros, pela desgraça dos semelhantes, de ditame moral o detinha, quando procurava uma satisfação qualquer. Só se detinha diante da força, da decisão de um revólver empunhado com decisão. Então sim... (BARRETO, 1997, p. 41). Quase sempre fora difícil dominar a personalidade transgressiva de Cassi, a família bem que tentou inseri-lo em alguma instituição que pudesse, quem sabe, incutir algum princípio moral no jovem: O pai, então, voltou à ideia de pô-lo em uma oficina, a ver se o trabalho manual, já pelo cansaço, já pela convivência com pessoas honestas e de trabalho, desviava-o do mau caminho que ele estava iniciando (BARRETO, 1997, p. 47). Mesmo diante do esforço insistente do pai, Cassi preferia guiar-se pelo caminho da desordem. O dinheiro exercia sobre ele um fascínio absoluto, embora para tê-lo quase sempre fazia uso de operações ilícitas. Cassi Jones é cercado por um núcleo de malandros formado de quatro indivíduos: Ataliba do Timbó é um mulato claro, faceiro, bem apessoado (BARRETO, 1997, p. 43), sendo morador do horrível subúrbio de Dona Clara (1997, p. 43), onde vive com a mulher com quem tivera que se casar em virtude da gravidez. Os filhos e a mulher sofriam infinitas privações, enquanto ele andava muito suburbanamente elegante (1997, p. 43) pelas ruas, na companhia de Cassi. Ataliba tira seus proventos do jogo do bicho e do football por ser considerado um bom jogador. Entre seus companheiros, consta também Zezé Mateus, um imbecil, que bebia e se dizia valente, vivendo de serviços braçais, como capineiro e ajudante de pedreiro. É branco, com rugas precoces no rosto, sem dentes e com cabeça de mamão-macho (1997, p. 45); na definição do narrador, um ex-homem e mais nada (1997, p. 45). Franco Sousa, por sua vez, é malandro apurado, fingindo-se de advogado para atrair presas ingênuas como roceiro e viúvas simplórias. E, por fim, Arnaldo, o último dos asseclas de Cassi, ladrão de pequenas coisas, chegou a roubar dinheiro de crianças. De pequenos furtos conseguia se manter vivo, pode ser considerado, segundo um narrador, uma espécie de ladrão barato. O malandro Cassi possui inúmeras pessoas que acompanham semanalmente as suas ações veiculadas no jornal, uma delas é o padrinho de Clara dos Anjos, o contínuo do ministério da Agricultura, ocupação indicada a ele devido ao estado de invalidez (paralisia do lado esquerdo do corpo), chamado de Marramaque. Além de Marramaque, Joaquim dos Anjos também era cercado por um grupo de amigos. Outro importante é Edurdo Lafões, português de origem, é uma espécie de guarda público. Desde cedo conseguiu uma vaga na repartição de água da cidade e, devido ao rigor de sua conduta, fizeram-no chegar a seu generalato de guarda de encanamentos e de torneiras que vazassem nos tanques de lavagem das casas particulares (BARRETO, 1997, p. 30). Vivia, na condição de chefe de um serviço público, muito contente com a sua posição (1997, p. 30), algo constatado na importância ingênua do campônio que se faz qualquer coisa do Estado, e a solenidade de maneiras com que ele atravessava aquelas ruas do subúrbio (1997, p. 30). Esses indivíduos eram o braço direito de Joaquim dos Anjos, que aos domingos se reuniam para inevitáveis partidas de solo regadas a taças de parati. Após ter ganhado uma centena no jogo do bicho, Lafões resolveu ir a um bar a fim de comemorar o prêmio, mas acabou sendo preso em virtude do distúrbio provocado no botequim. Na prisão, Lafões conheceu Cassi Jones, os dois logo iniciaram um diálogo amistoso. O violeiro estava preso em virtude de mais um caso amoroso. Ele se envolvera com a esposa de um oficial da Marinha que, ao descobrir o caso, tirou a vida da mulher e foi preso em seguida. Na delegacia, o assassino relatou todo o caso ao delegado, que efetuou a prisão de Cassi. Este, por meio de uma inusitada sorte, conseguiu se aproximar de Lafões dizendo que conseguiria livrá-lo da prisão: Estas aqui, estás na rua. Mandei o soldado falar ao meu chefe político: e ele vai interessar para ser solto (BARRETO, 1997, p. 55). Tempo depois o companheiro de cela de Cassi estava solto. Talvez por saber da amizade entre Lafões e Joaquim dos Anjos, Cassi usara dessa estratégia para se aproximar de Eduardo Lafões. Como se percebe, Lafões é o grande responsável por trazer Cassi para dentro da casa de Joaquim dos Anjos. ANIVERSÁRIO Muito diferente de Marramaque, que bem conhecia a ficha criminal de Cassi, Lafões ingenuamente resolveu convidar o malandro para tocar no aniversário de Clara dos Anjos. Dessa maneira: Joaquim dos Anjos, afinal, tendo o assentimento da mulher e também curioso de conhecer as habilidades de Cassi, no violão e na trova popular, consentiu que Lafões o trouxesse em sua casa, no dia do aniversário de Clara. Viria aquela vez e não viria mais... (BARRETO, 1997, p. 55). Como de costume, no dia da festa, Joaquim convidou alguns vizinhos e amigos. A grande atração da noite seria Cassi Jones. Naquele dia, Clara estava bem vestida, procurou disfarçar a sua grande emoção para receber o violeiro que ainda não tinha chegado. Finalmente o trovador apareceu: Entrou. Houve um estremecimento que percorreu os convivas, como um choque elétrico. Todas as moças, das mais diferentes cores, que, ali, a pobreza e a humildade de condição esbatiam e harmonizavam, logo o admiraram na sua insignificância geral, tão poderosa é a fascinação da perversidade nas cabeças femininas. Nem César Bórgia, entrando mascarado, num baile à fantasia, dado por seu pai, Alexandre VI, no Vaticano, causaria tanta emoção. Se não disseram: É César! É César! codilharam: É ele! É ele! (BARRETO, 1997, p. 62). 23

24 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS O primeiro olhar de Cassi lançado sobre a aniversariante fora em direção aos seios da jovem. O baile se animou. O violeiro juntou-se ao terno de cavaquinho, flauta e violão. Pediram que o convidado cantasse, porém ele insistia não ser possível. Vendo que o pai tentava convencer o sujeito a cantar e não obtendo nenhum resultado positivo, Clara lançou o seu pedido: Por que não canta, Seu Cassi? Dizem que o senhor canta tão bem... (BARRETO, 1997, p. 64). Diante do pedido da aniversariante, Cassi resolveu ceder e cantou. A música cantada, sob o título de Na Roça, vincula-se à temática do livro: Mostraram-me um dia Na roça dançando Mestiça formosa De olhar azougado [...] Sorria a mulata Por quem o feitor Diziam que andava Perdido de amor (BARRETO, 1997, p ). A música cantada por Cassi Jones é uma composição de Gonçalves Crespo (jurista e poeta de influência parnasiana). A canção tem como elemento central a mestiça, mulher que deixou o seu feitor perdido de amor. O trecho da canção condiz com o enredo do romance de Lima Barreto, isto é, o envolvimento amoroso entre um braço (Cassi / feitor) e uma mulata (Clara). Na verdade, poderíamos ver o trecho da composição e Gonçalves Crespo como um prenúncio daquilo que ocorreria entre a filha de Joaquim dos Anjos e Cassi Jones. O narrador chama a atenção para a maneira como o personagem canta a modinha: Cantando, revirava os olhos e como que os deixava morrer. O cardeal de Retz diz, nas suas famosas Memórias, que Mme. de Montayon, ou uma outra qualquer duquesa, ficava mais bela quando os seus olhos morriam. Cassi talvez ficasse mais, se ele tivesse alguma beleza; entretanto, esse seu tic impressionava as damas (BARRETO, 1997, p. 64). A música de Cassi proporcionou um forte prazer artístico na aniversariante, levando-a à perpétua felicidade, de satisfação, de alegria, de amor, a ponto de quase ela suspender, quando as ouvia, a vida, ficar num êxtase místico, absorvida totalmente nas palavras sonoras da trova [...](BARRETO, 1997, p. 65). Cassi foi interrompido por Praxedes e Marramaque, que recitaram poemas. O violeiro, nesse momento, antipatizou-se com a figura do padrinho de Clara pensando: Este pobre-diabo me paga (BARRETO, 1997, p. 68). Cassi saiu. A festa ainda durou algumas horas. Clara se retirou para dormir. Joaquim e a mulher ficaram na sala conversando sobre o comportamento do violeiro. Não queriam mais um devasso dentro daquela casa. Clara estava deitada no quarto, havia ouvido toda a conversa e pôs-se em silêncio a chorar. 23 Cheio de vida. A educação recebida pela menina no seio familiar teve inúmeras consequências negativas para a sua formação enquanto adulta. A mãe Engrácia foi incapaz de transmitir à filha o que é verdadeiramente educação (BARRETO, 1997, p. 71). A mãe não soube apontar, comentar com exemplos e fatos, que iluminassem a consciência da filha, reforçassem- -lhe o caráter, de forma que ela mesma pudesse resistir aos perigos que corria (1997, p.71). Dessa maneira, em resguardada no ambiente doméstico, de onde só saía aos domingos para ir ao cinema no Méier ou no Engenho de Dentro, sempre acompanhada por uma vizinha, dona Margarida, ou pela professora de costura. Segundo o narrador, todo o posicionamento frágil de Clara é atribuído à mãe, que não a ajudou a compreender as relações humanas e a saber conhecer e se livrar dos perigos do mundo: Enganava-se com a eficiência dela; porque, reclusa, sem convivência, sem relações, a filha não podia adquirir uma pequena experiência da vida e notícia das abjeções de que está cheia, como também a sua pequenina alma de mulher, por demais comprimida, havia de se extravasar em sonhos, em sonhos de amor, de um amor extra-real, com estranhas reações físicas e psíquicas (BARRETO, 1997, p. 72). Além da frágil educação recebida no interior, o narrador aponta outro aspecto que também moldou negativamente o caráter da filha de Joaquim, isto é, a modinha. Todos ao redor da menina admiravam esse gênero musical: Acresce, ainda, que era geral em sua casa o gosto de modinhas. Sua mãe gostava, seu pai e seu padrinho também. Quase sempre havia sessões de modinhas e violão na sua residência. Esse gosto é contagioso e encontrava, no estado sentimental e moral de Clara, terreno propício para propagar-se. As modinhas falam muito de amor, algumas delas são lúbricas até; e ela, aos poucos, foi organizando uma teoria do amor, com os descantes do pai e de seus amigos. O amor tudo pode, para ele não há obstáculos de raça, de fortuna, de condição; ele vence, com ou sem pretor, zomba da Igreja e da Fortuna, e o estado amoroso é a maior delícia da nossa existência, que se deve procurar gozá-lo e sofrê-lo, seja como for. O martírio até dá-lhe mais requinte... (BARRETO, 1997, p. 72). A conduta da mãe e do pai para com a filha e a apreciação das modinhas tiveram reações negativas no caráter de Clara, deixando-a incapaz de compreender por si mesma as adversidades do mundo. Assim, a menina torna-se uma presa frágil para o malandro Cassi, sujeito experiente no campo amoroso. Na aproximação entre os dois, Clara dos Anjos já não era capaz de julgar entre todas as informações que obtinha de Cassi, o que era falso ou verdadeiro. Para ela, tudo não passava de um jogo de inveja dos méritos do rapaz. Alguns questionamentos, em seu limitado contingente de experiência acabaram sendo levantados, porém sempre eram concluídos de maneira positiva: Uma dúvida lhe veio; ele era branco; e ela, mulata. Mas que tinha isso? Havia tantos casos... Lembra-se de alguns... E ela estava tão convencida de haver uma paixão sincera no valdevinos, que, ao fazer esse inquérito, já recolhida, ofegava, suspirava, chorava; e os seus seios duros quase estouravam de virgindade e ansiedade de amar (BARRETO, 1997, p. 73). 24

25 UFU 2017 Cassi tentou uma nova aproximação com família de Joaquim, a qual não lhe recebeu como na primeira vez. Clara, ao saber do episódio, ficou aborrecida, cheia de desgostos para com o pai e a mãe. O tratamento recebido na casa do carteiro fizera Cassi meditar sobre os possíveis obstáculos que se opunham à sua aproximação de Clara. Pensou em duas pessoas que estariam lhe atrapalhando, Dona Margarida ou o aleijado (Marramaque). O malandro pensou em ir a procura de Lafões, o qual poderia dar-lhe algum informação útil sobre o seu caso. Enquanto Cassi se dirige à casa do amigo, o narrador aproveita para descrever um pouco mais o subúrbio carioca sob uma acidez ótica: O caminho era então pitoresco, não só pelos restos de capoeira grossa que ainda havia, mas também pelas casas roceiras de varanda e pequenas janelas de outros tempos. Caminho de tropa, talvez, os engenheiros da Light só se deram ao trabalho de fazer sumários nivelamentos. Os altos e baixos, os atoleiros e atascadeiros, consolidados com gravetos e varreduras de capinas, transformaram o caminho do bonde, naquele trecho, numa montanha-russa, com a lembrança, de um lado e outro, do espetáculo do que seriam ou do que são os caminhos do nosso interior, pelos quais nos chegam os cereais e a carne que comemos (BARRETO, 1997, p. 83). Clara dos Anjos é uma das obras mais emblemáticas sobre os subúrbios cariocas, e foi a primeira narrativa totalmente ambientada às margens dos trens da Central. Para a estudiosa Lúcia Miguel Pereira, o romance Clara dos Anjos trata-se do mais suburbano, o único rigorosamente suburbano dos romances desse grande escritor que quis ser e foi o cronista de seus muitos amados subúrbios (PEREIRA, 1948, 49-50). Inúmeros trabalhos feitos sobre Clara dos Anjos ressaltam a maneira como os subúrbios são descritos e retratados por Lima Barreto. Quase sempre essas descrições expressam ironicamente a opulência da metrópole reformada e o abandono dos subúrbios semirrurais e semiurbanos, em condição de subalternidade. Essa condição bem pode ser verificada no seguinte trecho: O Rio de Janeiro, que tem, na fronte, na parte anterior, um tão lindo diadema de montanhas e árvores, não consegue fazê-lo coroa a cingi-lo todo em roda. A parte posterior, como se vê, não chega a ser um neobarbante que prenda dignamente o diadema que lhe cinge a testa olímpica... (BARRETO, 1997, p. 98). No romance, temos uma visão panorâmica do subúrbio, a qual abrange desde os falsos aristocratas do lugar militares, pequenos proprietários e funcionários públicos e o estrato mais baixo da sociedade pequenos funcionários do governo, costureiras, golpistas, dentre outros. O subúrbio é representado como uma espécie de refúgio dos infelizes, é visto como um desterro, um não lugar, o qual aos poucos se sedimenta na consciência e na experiência dos que nele habitam. O próprio Joaquim dos Anjos viu no lugar uma espécie de asilo para a sua estada no Rio de Janeiro. Diferentemente da casa de Joaquim dos Anjos, na residência de Lafões, o tratamento dado a Cassi fora outro. O violeiro articulou uma visita com um falso intuito de emprego ( -Disseram-me que, no seu escritório, o inspetor está admitindo escreventes, para não sei que serviço extraordinário. BARRETO, 1997, p. 85). No lugar, por intermédio da filha de Lafões, a Edméia, Cassi escutou o que desejava: Agora mesmo, tivera a confirmação dessa suspeita com a ingênua denúncia de Edméia, a filha de Lafões, de que Marramaque, padrinho de Clara, não gostava dele. Era, portanto, prevenir-se contra as intrigas do aleijado e arredá-lo de vez (BARRETO, 1997, p. 88). Diante disso, Cassi pediu para Arnaldo ir à venda de seu Nascimento a fim de obter alguma confirmação da suspeita do violeiro acerca de Marramaque. No lugar, o malandro do grupo de Cassi teve a confirmação que desejava de que realmente o velho aleijado insistentemente criticava a conduta do violeiro em todos os lugares onde estivesse. Na estação de trem, Cassi encontrou com o advogado Praxedes, o qual lhe deu uma importante informação: Clara dos Anjos fazia um tratamento dentário com o doutor Meneses. Cassi procurou o dentista e lhe propôs que arranjasse uns versos do poeta Leonardo Flores. Subentendia que o malandro iria usá-los como uma modinha, porém no fundo Cassi sabia que o poeta não aceitaria esse tipo de negociação. Quando tivesse a negativa do literato, articularia o seu verdadeiro plano. O malandro pagou por isso entregando, no ato, certa quantia a Meneses. Com isso, o dentista dirigiu-se à casa do poeta amigo. O diálogo entre Meneses e Flores não se deu como o visitante esperava. O poeta se recusou veementemente a fazer versos por encomenda. No romance, Flores é colocado como um grande escritor, embora entregue ao alcoolismo que parece corrompê-lo de maneira inexorável. Esse artista é igualmente um refugiado do subúrbio, tivera seu momento de celebridade no passado, com influência sobre a geração de literatos posterior à sua. Para alguns estudiosos, Flores seria uma espécie de alter ego de Lima Barreto, o qual também fora vitimado pelo álcool. Não muito raro seria vê-lo vagando pelas ruas de Todos os Santos, ou mesmo quando passava pelo delírio da bebida despia-se todo, como o personagem Leonardo Flores: gritando heroicamente numa doentia e vaidosa manifestação de personalidade: Eu sou Leonardo Flores (BARRETO, 1997, p. 113). Outra analogia feita a Lima Barreto se dá quando o poeta diz Nasci pobre, nasci mulato (BARRETO, 1997, p. 114), ou mesmo em suas utópicas considerações sobre a incorruptível ligação com a arte: O quê? fez indignado Flores, erguendo-se, num só e rápido movimento, da cadeira, e deixando a xícara sobre a mesa. Pois tu não sabes quem sou eu, quem é Leonardo Flores? Pois tu não sabes que a poesia para mim é a minha dor e é a minha alegria, é a minha própria vida? Pois tu não sabes que tenho sofrido tudo, dores, humilhações, vexames, para atingir o meu ideal? Pois tu não sabes que abandonei todas as honrarias da vida, não dei o conforto que minha mulher merecia, não eduquei convenientemente meus filhos, unicamente para não desviar dos meus propósitos artísticos? Nasci pobre, nasci mulato, tive uma instrução rudimentar, sozinho completei-a conforme pude; dia e noite lia e relia versos e autores; dia e noite procurava na rudeza aparente das coisas achar a ordem oculta que as ligava, o pensamento que as unia; o perfume à cor, o som aos anseios de mudez de minha alma; a luz à alegoria dos pássaros pela manhã; o 25

26 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS crepúsculo ao cicio melancólico das cigarras tudo isto eu fiz com sacrifícios de coisas mais proveitosas, não pensando em fortuna, em posição, em respeitabilidade. Humilharam- -me, ridicularizaram-me, e eu, que sou homem de combate, tudo sofri resignadamente. Meu nome afinal soou, correu todo este Brasil ingrato e mesquinho; e eu fiquei cada vez mais pobre, a viver de uma aposentadoria miserável, com a cabeça cheia de imagens de ouro e a alma iluminada pela luz imaterial dos espaços celestes. O fulgor do meu ideal me cegou; a vida, quando não me fosse traduzida em poesia, aborrecia-me. Pairei sempre no ideal; e se este me rebaixou aos olhos dos homens, por não compreender certos atos desarticulados da minha existência; entretanto, elevou-me aos meus próprios, perante a minha consciência, porque cumpri o meu dever, executei a minha missão: fui poeta! Para isto, fiz todo o sacrifício. A Arte só ama a quem a ama inteiramente, só e unicamente; e eu precisava amá-la, porque ela representava, não só a minha Redenção, mas toda a dos meus irmãos, na mesma dor. Louco?! Haverá cabeça cujo maquinismo impunemente possa resistir a tão inesperados embates, a tão fortes conflitos, a colisões com o meio tão bruscas e imprevistas? Haverá? (BARRETO, 1997, p ). Leonardo Flores vive em função do seu ideal estético, todo o seu esforço é válido para se atingir a construção de um texto poético nas condições idealizadas por ele. O artista abriu mão de quase tudo para viver a sua arte e, com isso, ele lê a vida por meio da ótica da poesia. O pedido do dentista fora recusado por meio de um inflamado discurso sobre sua vida de resignação, sobre o amor pela poesia. O discurso de Flores nos permite associá-lo a um pensamento romântico no que se refere à arte, visto a defesa cujo artista lança utopicamente. O poeta recusa a sua inserção em qualquer ordem econômica e, em consequência disso, vive sacrificadamente de ideias e sonhos. Portanto, Flores é mais um sujeito dos subúrbios marcado pelo deslocamento social. Dias depois, Cassi procurou Meneses para buscar os versos encomendados: Não; estava bom. Como já lhe disse em certa ocasião, Flores é por demais orgulhoso, quando se trata de versos dele; e, ao falar-lhe no negócio, deitou-me um discurso enorme, dizendo que era isto e aquilo, tinha feito tais e quais coisas e, por fim, que não vendia versos. - Nem dados? - Não lhe propus; mas estou certo que não daria. Pelo que disse, os versos que lhe saíam da cachola eram dele e só dele. - E com quem arranjou? - Fi-los, eu mesmo. Não serão... - Vamos ver, doutor (BARRETO, 1997, p. 125). Na falta dos versos do poeta maior, Meneses escreveu de próprio punho os seus: A minha Querida pena Nas grades de uma prisão, Mas o Amor lhe ordena Sossego no coração (BARRETO, 1997, p. 125). A temática do poema é o amor, tema universal bastante aceito naquele momento, elemento influenciador das almas femininas. Cassi ficou insatisfeito com a produção do dentista, logo conseguiu articular uma nova maneira de estabelecer contato com Clara: necessário era encontrar alguém que fizesse modinhas. Ingenuamente, Meneses disse que Joaquim talvez servisse. Cassi pediu ao dentista que levasse uma carta à Clara, pedindo a ela que falasse com o pai, pois assim talvez ele escrevesse uma modinha para o violeiro. Dessa maneira, Meneses tornou-se o porta voz de Cassi dentro da residência de Joaquim dos Anjos. No princípio, Meneses teve um leve sentimento de culpa, deu-lhe vontade de rasgar o dinheiro dado por Cassi, mas a sua condição financeira acabou lhe obrigando a sujeitar-se ao pedido do malandro ( [...] mas já estava sem força moral, temia tudo, temia o menor sopro, o mais inocente farfalhar de uma árvore. [...] Que hei de fazer? As coisas me levaram a isso e... BARRETO, 1997, p ). Cassi leu a carta e a entregou a Meneses. O dentista ambulante, insatisfeito com a sua condição diante da carta, procurou durante todo o dia beber o bastante para perder o discernimento, procurou todos os meio de esquecer o acordo feito com o violeiro. A presença de Cassi desencadeou uma profunda crise no interior de Meneses, o qual procurava acalmar a alma com doses elevadas de bebida. O dentista havia se deixado levar pelos caprichos de sua miséria, agora mais do que nunca se sentia humilhado. A carta chegou às mãos de Clara. Cassi, no outro dia, já tinha uma resposta da virgem. Meneses não esperava mais o violeiro oferecer-lhe dinheiro, simplesmente pedia-o. No início, Cassi satisfazia inteiramente os pedidos, depois, fazia-o pela metade, por fim, dizia não ter dinheiro e se recusava a dar. Enquanto isso, Meneses desempenhava o indigno papel. Não se julgava mais um homem. Clara recebia as cartas com uma emoção de quem recebe mensagens divinas (BARRETO, 1997, p. 129). O encantamento da moça impedia que ela ouvisse qualquer crítica ao violeiro. Para ela, ele era o modelo do cavalheirismo e da lealdade (BARRETO, 1997, p. 129). O comportamento de Clara não era o mesmo, o seu humor oscilava da alegria ao choro sem nenhuma razão específica, o casal não sabia da aproximação entre a filha com o violeiro. Engrácia, vendo o estranho comportamento da filha, logo avisou o marido: 26

27 UFU 2017 É verdade, Engrácia. Essa menina tem alguma coisa... Antigamente, as suas cópias de música eram limpas e certas; agora, não. Vêm cheias de raspagens, erradas, borradas... Que terá ela? Vou levá-la a um médico que achas? (BAR- RETO, 1997, p. 129). O pai levou a filha ao médico, que lhe receitou remédios mesmo sem que ela tivesse algums enfermidade. Certo dia, Clara saiu com a alemã, Dona Margarida, e pôs-se em confissão, contou-lhe a origem de seus temores. A vizinha se colocou contrariamente ao violeiro. Clara contra-argumentou dizendo: Ele confessa que está arrependido do que fez, e agora quer se empregar e casar-se comigo (BARRETO, 1997, p. 130). Margarida procurou a mãe da jovem e contou-lhe a origem dos transtornos psicológicos da menina. Joaquim também soube do caso da filha. O carteiro expôs tudo ao amigo Marramaque, que se colocou veementemente contra Cassi. Clara ouviu todo o relato do pai ao aleijado e, no outro dia, sob o pretexto de copiar uma música, escreveu uma grande carta narrando todos os últimos ocorridos em sua casa. Cassi Jones não perdeu tempo e tratou de executar a morte daquele que se colocava como um obstáculo para o seu plano. De noite, ao sair da venda do seu Nascimento, Marramaque sucumbiu às pauladas de dois sujeitos, caiu sem fala sobre um lado. Malharam-no ainda com toda a força e raiva, sem dó nem piedade; e fugiram, quando lhes pareceu momento azado (BARRETO, 1997, p. 134). No dia seguinte, as pessoas que passavam na rua viram o sujeito aleijado morto no chão: E, assim, morreu o pobre e corajoso Antônio da Silva Marramaque, que, aos dezoito anos, no fundo de um armazém da roça, sonhara as glórias de Casimiro de Abreu e acabara contínuo de secretaria, e assassinado, devido à grandeza do seu caráter e à sua coragem moral. Não fez versos ou os fez maus; mas, ao seu jeito, foi um herói e um poeta... Que Deus o recompense! (BARRETO, 1997, p. 134). Marramaque, diferentemente de Joaquim dos Anjos, não se alienava diante das situações que lhe desagradavam, o velho aleijado foi capaz de ver Cassi por inúmeros ângulos, era uma espécie de caçador voraz dos casos horrendos do malandro. Afrontou paulatinamente Cassi, procurando destruir a imagem do malandro, no interior da família de Clara. As críticas vorazes de Marramaque abalaram o malandro o qual temia o velho não somente em função das pretensões para com a moça, mas por ser alguém que dialoga com a imagem do malandro diferentemente da maneira com que ele gostaria de ser lido. Em outras palavras, Cassi se irrita por Marramaque não aceitar a versão de si que ele oferecia (GUEDES, 2005, p. 104). O assassinato de Marramaque mexeu com toda a imaginação da cidade, não houve nenhuma pista e nem mesmo suspeito para o fato. A vítima não era rica, não trazia consigo algum valor. No sábado, à noite, antes de ser assassinado, Marramque, na venda de seu Nascimento, explicou a todos a expressão ovo de Colombo : - Muito simplesmente, Meneses. Vou contar a história como a li: Num banquete, procuravam os nobres de Espanha rebaixar o mérito da descoberta de Colombo, e dizia um: As Índias já lá estavam e, se o senhor não as descobrisse, qualquer um outro as descobriria. Colombo, sem responder, pediu um ovo; trouxeram-lhe e ele desafiou a que alguém o pusesse de pé, Impossível! bradaram. Então, o navegador tomou o ovo, bateu com ele, quebrando ligeiramente a mais rombuda das extremidades, e fêlo ficar de pé. Ora, isto também eu faria!... replicaram. Sim, depois que me viram fazer. É simples, mas é preciso pensar no caso, e achar o meio. Está ai como foi a coisa. Não tem nada de gravidade, nem de rotação, nem de translação, nem de constelação, nem de repulsão nada tem em ão, Meneses! (BARRETO, 1997, p. 137). Todos riram da explicação dada por Marramaque, mas mal sabiam que o assassinato do homem também seria uma espécie de ovo de Colombo. A expressão é uma metáfora famosa da cultura italiana narrada por toda a Espanha para referir-se a soluções muito difíceis, porém quando reveladas mostram-se óbvias. Se as pessoas do convívio de Marramaque pensassem um pouco sobre a sua condição de crítico voraz de Cassi, logo descobririam que o caso estava mais próximo do esclarecimento do que todos imaginavam. Portanto, a alusão feita a um episódio da cultura italiana pode ser vista como uma metáfora do caso, aparentemente, obscuro de Marramaque, pois uma vez que revelado, todos pensariam ser lógico que a vítima tivera sido morta por Cassi, visto que este via naquele uma barreira instransponível para os seus planos. Efetivamente, apenas duas pessoas podiam colocar as autoridades na pista verdadeira: eram Clara e Meneses. Cassi, atônito com a morte de Marramaque, prevendo uma cartada final em seu caso com Clara, vendeu os galos que serviriam como certa quantia financeira em mãos. O violeiro já temia as consequências do desfecho de sua relação com a filha do carteiro. Clara, dias depois do seu encontro às escondidas com Cassi, meio debruçada na janela do seu quarto, de madrugada, observava o céu estrelado. Não sabia ao certo o nome das joias expostas no céu, das quais apenas distinguia o Cruzeiro do Sul: Voltou ao Cruzeiro, em cujas proximidades, pela primeira vez, reparou que havia uma mancha negra, de um negro profundo e homogêneo de carvão vegetal. Perguntou de si para si: - Então, no céu, também se encontram manchas? (BAR- RETO, 1997, p. 152). A filha de Joaquim, ao observar o céu e sua imperfeição representada pelas machas escuras, parece perceber ali a própria alegoria daquilo que ela deixava de ser, isto é, agora ela não era a menina virgem, pura e protegida pela família. A sua condição intocada é algo tão distante como as estrelas inacessíveis que ela observa no céu. O seu envolvimento com Cassi manchara para sempre a existência de Clara dos Anjos. Dessa maneira, veio-lhe então perguntar a si mesma como se entregou. Como foi que ela se deixou perder definitivamente? (BARRETO, 1997, p. 152). A menina analisava todas as etapas que passou até chegar à fatídica noite em que perdeu a sua virgindade. Cassi, habilmente conseguira envolver a moça, ganhara sua confiança aproveitando-se do despreparo da menina: 27

28 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS Rememorando conversas e fatos, ela punha todo o esforço em analisar o sentimento, sem compreender o ato seu que permitiu Cassi penetrar no seu quarto, alta noite, sob o pretexto de que precisava se abrigar da chuva torrencial prestes a cair. Ela não sabia decompô-lo, não sabia compreendê-lo. Lembrando-se, parecia-lhe que, no momento, lhe dera não sei que torpor de vontade, de ânimo, como que ela deixou de ser ela mesma, para ser uma coisa, uma boneca nas mãos dele. Cerrou-se-lhe uma neblina nos olhos, veio-lhe um esquecimento de tudo, agruparam-se-lhe as lembranças e as recordações e toda ela se sentiu sair fora de si, ficar mais leve, aligeirada não sabia de quê; e, insensivelmente, sem brutalidade, nem violência de espécie alguma, ele a tomou para si, tomou a sua única riqueza, perdendo-a para toda a vida e vexando-a, dai em diante, perante todos, sem esperança de reabilitação (BARRETO, 1997, p ). Sem usar da força, simplesmente com a esperteza de malandro, finalmente Cassi obteve o seu triunfo. Clara em seu reduzido universo familiar, sem maiores expectativas, de que o casamento representaria a solução de vários problemas, vê a sua virgindade transformar-se numa maneira de ingressar no universo dos brancos. Mesmo se sentindo menor diante do amante (branco), a jovem parece apostar na sua condição de virgem para tentar galgar os degraus de um mundo de valores brancos e burgueses, acreditando que Cassi seria o seu marido. Vale dizer que este representa os valores da metrópole higienizada e embranquecida, segundo a ótica europeia, condição essa que procura apagar a nódoa (mancha como a própria moça se refere) de sua etnia. A filha de Joaquim ainda permaneceu na janela por um tempo, acreditava que Cassi viria vê-la, porém conclui: Ele não vinha; os galos começaram a cantar (BARRETO, 1997, p. 155). Ainda ouviu ao longe os galos cantando, ave bastante associada a Cassi ao longo do texto, uma vez que o moço os criava para vender aos apostadores da rinha. Segundo Chevalier e Gheerbrant (2006), o galo é conhecido como o emblema da altivez, arrogância, orgulho, soberba, traços que podem ser vinculados ao malandro da narrativa. Antes de dormir, Clara ainda olhou para o céu e novamente constatou: lá estava a indelével mancha de carvão (1997, p. 155). O único que ainda frequentava a casa de Joaquim dos Anjos era Meneses, que procurava fugir de todas as conversas, temia falar sobre Cassi Jones. O dentista sofria com um sentimento de culpa por ter favorecido o violeiro em seu caso com Clara. Meneses passou a frequentar diariamente a casa de Leonardo Flores, que dizia ao outro: - Só tu me procuras, Meneses! Os outros me abandonaram... Ah! A Poesia! Ela me tem dado bons momentos, mas me fez ir longe demais no meu grande serviço... (BARRETO, 1997, p. 157). Certo dia, Flores convidou Meneses para gozarem o prazer de um crepúsculo, a contragosto, o dentista saiu com o poeta, isso se dera em virtude do pedido de Dona Castorina, a esposa de Flores, a qual não gostava de ver o marido andando sozinho, pois temia os exageros dele. Meneses caminhava com muita dificuldade, com isso pediu a Flores para sentar um pouco. Sentaram distantes da rua, próximos de uma moita. O dentista não se demorou muito tempo sentado, deitou-se logo e ambos dormiram na relva. No outro dia: Leonardo, já dia adiantado, veio a despertar naquele capinzal, atordoado, zonzo; e, ao dar com Meneses ao lado, procurou acordá-lo. Foi em vão; o velho estava morto. Um colapso cardíaco o tinha levado. Percebendo que o amigo tinha morrido, Leonardo ergueu-se, tirou-lhe o chapéu de perto da cabeça, pôs-lhe o rosto bem à mostra, com as suas brancas barbas veneráveis, e começou a exclamar: - Sol! Sol glorioso das auroras e das ressurreições! Sol divino que conténs todos nós, homens e plantas, bestas e gênios, insetos e vampiros, lesmas e belezas! Sol que tudo fecundas e transformas! Vem tu ó Sol! beijar esta augusta cabeça de imperador (apontava para Meneses hirto) que vai para sempre mergulhar na treva e só te verá de novo, quando for árvore, quando for arbusto, quando for pássaro e quando de novo voltar a ser homem. Beija-o ainda mais uma vez! Beija-o, porque ele te amou e muitas vezes voou para os espaços sidéreos, desejoso de ver o teu fulgor e morrer por tê-lo visto (BARRETO, 1997, p ). Praxedes, advogado amigo de Joaquim dos Anjos, possuía o hábito de frequentar cedo a delegacia, lá encontrou Leonardo Flores e tomou conhecimento da morte de Meneses. O advogado avisou à família de Joaquim. Na ocasião referiu-se a Cassi, disse que o malandro estava para São Paulo. Clara, ao ouvi-lo, logo se trancou no quarto para chorar, somente agora a moça percebera quem era o tal Cassi (BAR- RETO, 1997, p. 162). Ao se perguntar sobre os motivos que o tinham levado a fazer aquilo com ela, Clara respondia: porque era pobre e, além de pobre, mulata (BARRETO, 1997, p. 162). A conclusão da moça remete novamente à epígrafe do romance, isto é, as mulatas naquele contexto serviam para atender os caprichos sexuais dos brancos. Talvez por isso o verdadeiro pavor da mãe de Cassi ao imaginar o envolvimento do filho com uma mulata, visto que, no Brasil, os mestiços vivem sob o código da estigmatização. Grávida e sozinha, Clara dos Anjos pensou no aborto. Assim, elaborou alguns projetos, queria livrar-se do sofrimento. Dirigiu-se à casa de dona Margarida e pediu dinheiro à senhora, disse que seria para comprar um presente para aniversário da mãe. A vizinha logo duvidou de Clara e pediu a moça para contar-lhe a verdade. A filha do carteiro revelou tudo. Margarida ordenou: - Vamos falar à sua mãe (BAR- RETO, 1997, p. 167). Dona Engrácia quando compreendeu a gravidade do fato, desesperou-se: - Mas, Clara!... Clara, minha filha!... Meu Deus, meu Deus! (BARRETO, 1997, p. 167). 28

29 UFU 2017 As três mulheres se dirigiram à casa de Cassi Jones. A mãe de Clara e Dona Margarida estavam bem vestidas, nada denunciava o que as trazia ali. A vizinha de Joaquim relatou o caso com objetividade. A mãe de Cassi indagou: O que a senhora quer que eu faça (BARRETO, 1997, p. 169). Clara respondeu dizendo que era para ele casar-se com ela. E a partir de então a conversa ganhou o tom de ofensas étnicas: - Que é que você diz, sua negra? (BARRETO, 1997, p. 169). A situação se agravou com a presença de Catarina, Irene e Azevedo. Quando o pai de Cassi apareceu na casa, Clara se ajoelhou à frente do homem e pediu compaixão para com a sua dor. O velho Azevedo respondeu: Minha filha, eu não te posso fazer nada. Não tenho nenhuma espécie de autoridade sobre ele... Já o amaldiçoei... Demais, ele fugiu e eu já esperava que essa fuga fosse para esconder mais alguma das suas ignóbeis perversidades... Tu, minha filha, te ajoelhaste diante de mim ainda agora. Era eu que devia ajoelhar-me diante de ti, para te pedir perdão por ter dado vida a esse bandido que é o meu filho... Eu, como pai, não o perdôo; mas peço que Deus me perdoe o crime de ser pai de tão horrível homem... Minha filha, tem dó de mim, deste pobre velho, deste amargurado pai, que há dez anos sofre as ignomínias que meu filho espalha por aí, mais do que ele... Não te posso fazer nada... Perdoa-me, minha filha! Cria teu filho e me procura se... Não acabou a frase. A voz sumiu-se; ele descaiu o corpo sobre a cadeira e os olhos se foram tornando inchados. (BARRETO, 1997, p. 171). As três senhoras saíram desoladas da casa de Cassi Jones. Na rua, Clara pensou em tudo aquilo que viveu e somente agora teve a noção exata da sua situação na sociedade. Fora preciso ser ofendida irremediavelmente nos seus melindres de solteira, ouvir os desaforos da mãe do seu algoz, para se convencer de que ela não era uma moça como as outras; era muito menos no conceito de todos (BARRETO, 1997, p. 171). Chegaram em casa, Joaquim ainda não tinha retornado. Mais tarde, Margarida relatou a entrevista com a mãe de Cassi ao carteiro. Em certo momento, Clara abraçou fortemente a sua mãe e disse: - Nós não somos nada nesta vida (BARRETO, 1997, p. 172). Após refletir sobre a sua condição social (mulher mestiça numa sociedade excludente), conclui que ninguém se importaria com o sofrimento de uma mulatinha, filha de um carteiro (BARRETO, 1997, p. 74). O sofrimento individual de Clara transcende a uma condição particular, na verdade, representa todo um processo de reificação sobre o qual os negros e mestiços viviam no Brasil. A sociedade procurava colocá-los numa condição de inferioridade étnica a todo custo, talvez por isso a fala absolutamente violenta da Dona Salustiana: - Que é você diz, sua negra? (BARRETO, 1997, p. 169), isso seria uma forma de se opor ao grupo de Clara, julgava-se superior aos negros. Entre os inúmeros problemas pertencentes à sociedade brasileira que circulam na obra de Lima Barreto, aqueles sobre a etnia negra na sociedade ocupam um espaço significativo. A culpa da sedução de Clara dos Anjos pelo malandro, temática central do texto, é atribuída, em parte, pelo narrador no final do livro à educação que a família dá à moça e, em parte, à ordem social que ratifica a relação entre homem branco e as mulheres negras e mestiças: A educação que recebera, de mimos e vigilâncias, era errônea. Ela devia ter aprendido da boca dos seus pais que a sua honestidade de moça e de mulher tinha todos por inimigos, mas isto ao vivo, com exemplos, claramente... [...] O que era preciso, tanto a ela como às suas iguais, era educar o caráter, revestir-se de vontade, como possuía essa varonil Dona Margarida, para se defender de Cassis e semelhantes, e bater-se contra todos os que se opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e moralmente. Nada a fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a covardia com que elas o admitiam... (BARRETO, 1997, p. 171). Dona Margarida, senhora teuto-eslava, ao longo do livro tem caráter exaltado pelo narrador, visto a força que ela apresenta ao longo das páginas. Essa mulher enfrentou inúmeros problemas com forte alicerce moral. Ela apresenta apenas três condições de inferioridade social para aquele momento: mulher, suburbana e viúva, logo sozinha em uma sociedade que limita a ação dessa parcela da população. Porém, a sua condição étnica e experiência contribuem para que ela se defenda e não tema as diferenças impostas ao seu gênero e cor. Diferentemente, os negros e mestiços se colocavam de certa maneira resignados diante das opressões dos brancos, para compreender isso, basta observar os dez anos de malandragem de Cassi. Quantas mestiças e negras foram abusadas por ele? Quantas tiveram a altivez de procurar meios legais ou não para minimizar os problemas realizados pelo homem? PERSONAGENS: Joaquim dos Anjos: funcionário público, mineiro, o qual se mudou-se para o Rio de Janeiro para tentar uma nova vida por intermédio de um engenheiro. Em sua terra natal, nos arredores de Diamantina, aprendeu a tocar flauta. Fazia polcas, chegou a ter uma de suas letras vendidas por cinquenta mil-réis. O traço mais importante desse personagem é a confiança depositada nas pessoas. É o pai da protagonista do romance, Clara dos Anjos. O carteiro é um homem pacato de origem humilde, não gostava de ler jornais, não se informava do que acontecia em sua cidade, acreditava na bondade das outras pessoas. Tudo isso nos mostra a sua incapacidade de inserir-se na ordem do arrivismo e da malandragem. Nele, vemos a inaptidão para defender a família, sobretudo a filha, Clara dos Anjos. 29

30 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS Engrácia: Esposa de Joaquim dos Anjos e, portanto, mãe de Clara. Ofereceu à filha precárias condições para que ela pudesse ter a sua própria autonomia. Em ambas estão traços da situação das mulheres negras e mestiças na sociedade carioca, a vida e o destino das duas assemelham-se. As duas possuem um perfil apático, condição reveladora da nulidade de ações e decisões da mulher negra na estrutura social, assunto também bastante presente nos textos de Lima Barreto. A mãe de Clara era uma mulher de personalidade fraca para a tomada de certas atitudes. Embora tenha sido firme com o marido ao proibir a entrada do violeiro em sua casa, não sabia tomar decisões diante dos problemas que surgiam. A sua vida era restrita ao lar, evitava o máximo sair de casa, só o fazia duas vezes por ano a fim de cumprir tarefas religiosas relacionadas ao catolicismo. Clara dos Anjos: Jovem de dezessete anos, era ingênua, criada com muito desvelo, recato e carinho. Essa personagem apresenta uma personalidade bastante frágil, o que pode ser visto como resultado de sua educação reclusa regrada à modinha. Seguindo os princípios da mãe e do pai, não possuía quase nenhuma ambição, exceto quando desejou envolver-se afetivamente com Cassi. Esse é um dos poucos momentos que apresentou uma postura mais enérgica, embora sobre a dominação do branco Cassi. A sua conduta revela os malefícios de uma formação branca, machista, superprotetora e limitadora destinada às mulheres em nossa sociedade. Antônio da Silva Marramaque: compadre de Joaquim dos Anjos. Eraum contínuo do ministério, embora não fizesse o serviço respectivo, nem outro qualquer, devido ao seu estado de invalidez de semi-alejado e semiparalítico do lado esquerdo. Pertenceu a uma modesta roda de boêmios literatos que discutiam poesia e política. Eduardo Lafões: Originário de Portugal, no Rio de Janeiro trabalhava na repartição e água da cidade. Todos os domingos se dirigia à casa de Joaquim para jogar solo. Aprendeu a dar valor aos homens em função das roupas usadas e grau de parentesco. É o maior responsável pela aproximação entre Clara e Cassi, uma vez que propôs convidar o violeiro para tocar na casa de Joaquim no dia do aniversário de Clara. Cassi Jones: É um malandro carioca. É duramente criticado ao longo do romance pelo padrinho de Clara, Marramaque. Além deste, o narrador também não poupa as suas farpas para criticar esse sujeito: Era Cassi um rapaz de pouco menos de trinta anos, branco, sardento, insignificante, de rosto e de corpo; e, conquanto fosse conhecido como consumado modinhoso, além de o ser também por outras façanhas verdadeiramente ignóbeis, não tinha as melenas do virtuose do violão, nem outro qualquer traço de capadócio, Vestia-se seriamente, segundo as modas da rua do Ouvidor; mas, pelo apuro forçado e o degagé suburbanos, as suas roupas chamavam a atenção dos outros, que teimavam em descobrir aquele aperfeiçoadíssimo Brandão, das margens da Central, que lhe talhava as roupas. A única pelintragem, adequada ao seu mister, que apresentava, consistia em trazer o cabelo ensopado de óleo e repartido no alto da cabeça, dividido muito exatamente ao meio a famosa pastinha. Não usava topete, nem bigode. O calçado era conforme a moda, mas com os aperfeiçoamentos exigidos por um elegante dos subúrbios, que encanta e seduz as damas com o seu irresistível violão (BARRETO, 1997, p. 33). Cassi é um malandro perigoso, matou Marramaque e possuía inúmeros problemas com a justiça. Sempre que era preso, conseguia livrar-se por intermédio de sua mãe que usava os benefícios de classe e cor. Cassi é a antítese de Clara, ou seja, é branco, sedutor, esperto, malandro. Manuel Borges: Pai de Cassi: É um sujeito reto, coloca se arduamente contra os projetos do filho, expulsando-o de casa algumas vezes. Desde criança, lutou para oferecer uma educação sólida para o filho, o qual se esquivava de qualquer conduta séria. Salustiana Baeta: Mãe de Cassi. Não encontrava no subúrbio, e talvez até no seu país, a sua identidade. Seu comportamento é marcado pela vaidade e pela arrogância, buscava se afastar e se diferenciar das pessoas de sua localidade. Dizia ser descendente do Lord Jones, cônsul da Inglaterra em Santa Catarina. As falas da mãe de Cassi expressam um processo de aculturação muito combatido por Lima Barreto. Catarina: Irmã de Cassi. Irene: Irmã de Cassi. Baeta Picanço: Tio de Cassi, médico que mora num sítio que serviu de abrigo ao malandro após mais um de seus crimes. Temia que mais um caso do sobrinho viesse a público no Rio de Janeiro. Conhecia a fama do sobrinho e logo o mandou ir embora de sua casa. Dona Margarida Weber Pestana: é amiga da família de Joaquim, veio para o Brasil na infância com o pai, havia nascido em Riga. Ela casou-se com um tipógrafo (Florêncio) que comia na pensão montada por ela, porém o sujeito morreu dois anos após o casamento, de tuberculose, deixando o filho Ezequiel. Quando o pai de Margarida morreu, a mulher vendeu a pensão e comprou uma casa próxima à de Joaquim. Nesse lugar, ela costurava e criava aves para o seu sustento e do filho. Praxedes: Preto baixo, corcunda, ombro direito levantado, uma enorme cabeça, uma testa proeminente e abaulada, a face estreita até acabar num queixo formado, queixo e face, um V monstruoso, na parte anterior da cabeça. Julgava- -se advogado. Com o tempo, tomou algumas luzes, atirou-se a tratar de papéis de casamento e organizou uma biblioteca particular de manuais jurídicos, de índices de legislação. Vestia-se sempre de fraque, botinas de verniz ou gaspeadas, e não dispensava a pasta indicadora de homens de leis. Quando foi moda ser de rolo, ele a usou assim; quando veio a moda de ser em saco, como a trazem agora os advogados, ele comprou uma luxuosa de marroquim com fechos de prata. Padre Sodré: É o representante do catolicismo no subúrbio. Mr. Quick Shays: Chefe de uma seita no subúrbio, nas proximidades da casa de Joaquim. 30

31 UFU 2017 Leonardo Flores: É um poeta decadente, alcoólatra, o qual vivia em função de sua arte. Abriu mão de tudo, a sua vida se restringia a escrever. Para alguns é o alter ego de Lima Barreto. Meneses: É outro personagem decadente do livro. Presta serviço como dentista. Pode ser visto como uma peça importante para a concretização do caso entre Cassi e Clara, pois é a pessoa que leva as cartas dos amantes aproximando- -os. Meneses é um sujeito luso que durante um tempo, viveu como caixeiro viajante. Possui 70 nos de idade. A roda de Cassi: Ataliba do Timbó Zezé Mateus Franco Sousa Arnaldo REFERÊNCIAS BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. Rio de Janeiro: Ediouro, BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma, edição crítica. Coordenadores: Antonio Houaiss e Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo. São Paulo: Scipione Cultura: (Coleção Archives/Unesco). BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Em torno de Lima Barreto, in Cobra de vidro, 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 20. ed. Rio: José Olympio, COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. São Paulo: Global, GUEDES, Amadeu da Silva. MALANDRO E MULATA: Contrastes e nuances da malandragem na obra Clara dos Anjos f. Dissertação (Dissertação em Literatura) - Pós-Graduação em Letras Subárea de Literatura Brasileira da Universidade Federal Fluminense, NOLASCO-FREIRE, Zélia. Lima Barreto: imagem e linguagem. São Paulo: Annablume, PEREIRA, Lúcia Miguel. Prefácio à 1ª ed. de Clara dos Anjos [1948]. In: Barreto, Lima. Prosa seleta. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. Ed. rev. ampl. São Paulo: Companhia das Letras, APROFUNDAMENTO POBRE, MULATA E MULHER: A ESTIGMATI- ZAÇÃO DE CLARA DOS ANJOS Artigo escrito por Marcos Hidemi de Lima Em seu artigo Literatura e consciência (1988) Octávio Lanni aponta Machado de Assis, Cruz e Souza e Lima Barreto como fundadores da literatura negra, ou seja, autores que se inscrevem na chamada literatura afro-brasileira, terminologia atualmente utilizada, a fim de evitar ambiguidades e imprecisões. Lanni não titubeia em afirmar que os três escritores de ascendência negra, efetivamente, pertencem ao cânone da literatura brasileira, bem como ressalta que possuem qualidades singulares, possibilitando ao leitor reconhecer em suas obras um envolvimento com a causa do negro, menos explícita nos dois primeiros e de maneira bastante pungente no último. Entretanto, para que seja reconhecidamente literatura afro-brasileira, não basta que exista um sujeito de enunciação afirmando-se negro conforme Zilá Bernd (1988) preconiza e ao que Luiza Lobo (2007) criticamente se opõe fato que tiraria os méritos que Lanni observa em Machado e Cruz e Souza, porque na produção literária de ambos são poucas as figurações de um sujeito afro, e mesmo as alusões dos dois à problemática negra não são tão explícitas, naquele sentido de um discurso de preocupação racial, sociológica ou ideológica no corpo de seus escritos. O caso de Machado é emblemático, porque a negritude e a escravidão ocorrem no seu texto por meio da sutileza, da ironia e da sátira, armas das quais lança mão o escritor para promover uma crítica contundente à classe senhorial, com o intuito de mostrar a anulação do negro pelo discurso escravagista do branco, o que não inviabiliza que o negro figurando como o outro componha o retrato da bancarrota dos donos do poder. O negro também está praticamente ausente da obra poética do simbolista Cruz e Souza, todavia não deixa de estar tão dolorosamente presente em O emparedado, um texto que oscila entre a prosa e a poesia, no qual este escritor deixa o protesto contundente contra todos aqueles que julgam a criação do artista pela cor de sua pele. Deste trio de fundadores da literatura afro-brasileira, vai ser Lima Barreto o escritor mais emocionalmente marcado pelo estigma de ser afro-descendente, deixando transparecer tanto em suas obras quanto na sua própria existência seu mal-estar diante de uma sociedade recém-saída da chaga da escravidão, ainda mantendo velhas práticas extremamente preconceituosas contra os ex-cativos. Em conflito com este estado de coisas, o escritor lança mão da literatura para explicitamente denunciar a impostura da democracia racial brasileira, valendo-se de uma literatura militante, inclusive no que se refere à luta pela expressão (IANNI, 1988, p. 6), que se opõe a uma escritura esvaziada de sentido, mais preocupada com um vocabulário precioso, tal qual praticada pela grande maioria de seus contemporâneos de letras. Em sua prosa fluente, Lima Barreto dá voz à silenciada gente dos subúrbios do Rio de Janeiro, num momento em que a elite carioca vexada tentava esconder, qual sujeira, essa população embaixo do tapete, isto é, empurrava-a para os lugares mais recônditos da cidade, com a justificativa da necessidade de modernizá-la. Em Os bestializados, José Mu- 31

32 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS rilo de Carvalho argumenta que o saneamento e o decalque de Paris sobre a parte central do Rio de Janeiro antigo explicavam-se pelas políticas públicas de reformas que visassem atender às expectativas da elite local com os olhos voltados para as estéticas europeias, envergonhada pela presença de pobres e negros circulando pelas ruas da então capital do país. O principal efeito dessa prática saneadora foi: a redução da promiscuidade social em que vivia a população da cidade, especialmente no centro. A população que se comprimia nas áreas afetadas pelo bota-abaixo de Pereira Passos teve ou de apertar-se mais no que ficou intocado, ou de subir os morros adjacentes, ou de deslocar-se para a Cidade Nova e para os subúrbios da Central. Abriu-se espaço para o mundo elegante que anteriormente se limitava aos bairros chiques, como Botafogo, e se espremia na rua do Ouvidor (CARVALHO, 1987, p. 40). Contra essa situação humilhante e prepotente, espécie de marca registrada das autoridades públicas dos princípios do século XX, levantou-se a escrita denunciadora de Lima Barreto, reação aliás esperada desse escritor que passou sua vida no subúrbio e foi permanentemente excluído da relação de igualdade que marca o cidadão. Pode-se afirmar que ele edifica sua obra com um olhar que perscruta de dentro a realidade da pequena classe média suburbana, na qual também estava inserido. Suas criações ficcionais refletem o abandono, o sofrimento e a ausência de perspectivas dessa camada proletária, também estigmatizada etnicamente, no momento em que as elites que se assenhoraram do poder andavam namorando as ideologias racistas europeias, dando livre curso ao acirramento do preconceito racial e social contra negros e mestiços, estes mudados pela lei de 13 de maio da condição de escravos para homens livres, todavia, sem o reconhecimento da sociedade de sua nova condição de cidadãos, em decorrência da estreiteza mental produzida pelos quase quatrocentos anos de cativeiro. Em virtude disso, Lima Barreto modulou sua voz de maneira dissonante em relação às oligarquias que, mesmo após a abolição e a proclamação da república, insistiam em manter intactas práticas segregacionistas, fechando as portas da inserção social à população negra, nem que fosse preciso recorrer a teorias raciais que estabeleciam a supremacia do homem branco em relação ao homem negro. À margem da sociedade devido à cor de sua pele e, paradoxalmente, dentro dela por ser escritor, Lima Barreto não se constrange em ser tanto um suburbano quanto um homem assumidamente de ascendência negra, num momento histórico em que era regra ocultar a afro-descendência, na crença pueril de que os sucessivos cruzamentos raciais transformariam a população mestiça brasileira, no decorrer de um século, numa população homogeneamente branca, sem contar que a alta mestiçagem existente no Brasil constituía, nessa época, uma pista para explicar o atraso ou uma possível inviabilidade da nação (SCHWARCZ, 1993, p. 13), reforçando o preconceito de alta voltagem de uma minoria supostamente branca contra a miscigenação racial ocorrida aqui. Observa-se que Lima Barreto assume abertamente a problemática negra, havendo em sua obra, em maior ou menor grau, a presença de elementos como temática, autoria, ponto de vista, linguagem e público, considerados as principais constantes configuradoras de uma produção literária afro-brasileira, conforme observa Eduardo de Assis Duarte (2009). Portanto, é possível perceber que há em Clara dos Anjos (1948) romance analisado neste artigo como representante da escritura afro-descendente uma temática voltada para questões como preconceito racial e exclusão social; um autor cuja fala, assim como seu ponto de vista, originam-se dos oprimidos; uma linguagem que permanentemente denuncia as humilhações impostas à mulher de ascendência negra; em síntese, um texto literário que, ao mostrar o papel de meros objetos sexuais das mulheres de cor na sociedade brasileira, pretende despertar no seu público leitor uma reação contra estes valores estereotipados. De acordo com suas anotações sobre a protagonista e a primeira versão incompleta da história, ambas existentes na segunda edição de seu Diário íntimo (1961), Lima Barreto começou a trabalhar em Clara dos Anjos por volta de 1904, à mesma época em que o escritor via-se às voltas com a redação de Isaías Caminha (1909) e com o desejo de escrever um painel da sociedade escravagista do século XIX. A retomada ocorreu em 1920, quando o esboço de romance foi transformado em conto, publicado em Histórias e sonhos (1920). A conclusão da escrita da história da mulata Clara ocorreu entre dezembro de 1921 e janeiro de 1922, no ano em que o romancista faleceu, sendo publicada postumamente pela Revista Sousa Cruz em forma de folhetins, entre janeiro de 1923 e maio de 1924, só obtendo a impressão em livro em 1948 pela Editora Mérito. Pelo longo tempo que o escritor dedicou a essa história, é possível inferir que este romance tivesse uma grande representatividade não só para sua produção literária, bem como para exorcizar os fantasmas do preconceito que se debatiam no seu íntimo. Se tivesse sido levado a termo, como explicita em algumas páginas do Diário íntimo, de fato a obra seria capaz de proporcionar um quadro da sociedade brasileira, desde meados do século XIX até as primeiras décadas pós-abolição. No entanto, mesmo que Lima Barreto tenha mantido a estrutura fundamental da história, que é o de uma moça pobre e mulata seduzida por um valdevinos de boa família (BARRETO: 1948, p. 14), segundo Lúcia Miguel Pereira, percebe-se que suas variadas versões de Clara dos Anjos apontam para a frustração de possivelmente não ter feito seu grande romance sobre o dilema da mulher afro- -descendente diante do preconceito racial, da exploração sexual e da miséria socioeconômica. A temática de Clara dos Anjos centra-se justamente no preconceito de cor e no drama íntimo da protagonista homônima que, na expectativa de um casamento que não acontece, deixa-se seduzir por um moço inescrupuloso. Grávida e abandonada pelo namorado, ao procurar a família do rapaz ela acaba sendo humilhada, devido à sua condição de pobre e mulata. Segundo José Ramos Tinhorão, a história de Clara busca ressaltar o problema do tradicional desrespeito sexual por parte dos homens das classes economicamente mais elevadas em relação às moças do povo (principalmente as negras e mulatas) (2000, p. 35). 32

33 UFU 2017 Dessa maneira, a fim de acentuar o caráter odioso da sedução se seu autor a aviltada e ingênua Clara, cujo papel na trama é o de instrumento de crítica à hipocrisia da sociedade brasileira, que insistia, anos depois da abolição, em manter no corpo da mulher de cor as sevícias que os senhores brancos perpetraram durante a vigência da instituição do cativeiro contra suas escravas. Além disso, mesmo sentindo um grande complexo de inferioridade, a pobre moça aposta na própria virgindade para tentar galgar os degraus de um mundo de valores brancos e burgueses, supondo que Cassi represente os valores da metrópole higienizada e embranquecida, suficientemente branqueadores para apagar as nódoas de sua raça e de sua miséria econômica e social, sem perceber que, por ser mulata, vigora um velado (pré)conceito que a torna inadequada à normalidade de um casamento tranquilo e durável (QUEI- ROZ JÚNIOR, 1982, p. 85), inscrevendo moças como Clara no âmbito de uma conduta social pautada pela amoralidade. Embora disponha de melhores condições econômicas que Clara, o próprio Cassi Jones também não passa de uma figura esfacelada, mais próxima de uma cópia deturpada da ordem masculina, que mal consegue reproduzir os valores sociais, econômicos, culturais, etc., existentes nas classes superiores. Ao tentar imitar estes padrões de conduta que julga aceitáveis, sua realidade suburbana acaba traindo-o: sobressaem-se seus gestos, sua maneira de vestir-se, mostrando sua perceptível incompatibilidade com o centro da cidade, reduzindo seu horizonte de expectativas e existencial à esfera da periferia da metrópole, onde convive naturalmente com companheiros integrados à marginalidade e onde unicamente consegue seduzir moças pobres, analfabetas e mal instruídas. Ao longo da narrativa, observa-se que Cassi procura obstinadamente aproximar-se de Clara, com o único objetivo de obter satisfação sexual, não demonstrando verdadeira afetividade pela moça, ou seja, seu sentimento ficava reduzido ao mais simples elemento do Amor a posse. Obtida esta, bem cedo se enfarava, desprezava a vítima, com a qual não sentia mais nenhuma ligação especial (BARRETO, 1948, p. 102). Esse tipo de ação confirma sua confusa associação entre amor e ardor sexual, impelindo-o a agir não só movido pela concupiscência, mas tomado de um estado de semiloucura (BARRETO, 1948, p. 103), como se pode caracterizar seu desenfreado desejo de possuir Clara. Em suma, fica evidente que o amor apaixonado que aparentemente Cassi nutre por Clara não passa de simulação, todos os movimentos do rapaz fazem parte de um jogo muito bem arquitetado, pensado friamente, sem alterar seu dia-a-dia, cujo único objetivo é possuir o corpo de Clara, valendo-se de estratagemas e de pessoas conhecidas para aproximar-se da moça. O jovem tem consciência da necessidade de seduzi-la o mais rápido possível, pois um caderno com indicações de datas e a narração dos fatos de suas complicações com a polícia e a justiça (BARRETO, 1948, p. 105) que insistentemente chegava pelo correio ao conhecimento da polícia e de outros causa suficiente temor no moço, a ponto de deixá-lo permanentemente alerta para empreender uma fuga. No prefácio da edição de 1948, Lúcia Miguel Pereira comenta que Lima Barreto era um romancista que tomava partido, que tinha preferências e antipatias (BARRETO, 1948, p. 20), levando estas qualidades para a criação de suas personagens. Em razão disso, a ensaísta julga defeituosa a construção de Cassi Jones, retratado como vil, asqueroso, assassino, etc., contaminando negativamente até a apresentação de seus galos de briga, designados também com adjetivos fosse branco e de condição social superior à da personagem, a humilde mulatinha filha do modesto carteiro suburbano (TINHORÃO, 2000, p. 35), Lima Barreto carrega nas tintas ao criar Cassi Jones, um moço de família pequeno-burguesa, pintado com todas as más qualidades possíveis, evidenciando-se, em chave antitética, bastante desfavoráveis. Todavia, a despeito desse ressentimento contra o sedutor de Clara, cabe frisar a coerência de Lima Barreto em encerrar seu romance sem puni-lo, mesmo com o evidente mau-caratismo do moço, o que esvazia um pouco a crítica acima, além de demonstrar fidelidade do escritor à realidade da maioria das moças suburbanas. Com o intuito de pôr termo a essa falta de punição, Esmeralda Ribeiro escreveria, anos mais tarde, Guarde segredo (1991), um pequeno conto no qual a atual Clara narra, por intermédio de uma carta dirigida a uma presumida amiga, como acabou com a impunidade de Cassi Jones matando-o a facadas. Nessa retomada intertextual, essa ação redime, de certa maneira, a resignada Clara limabarretiana, além de representar um novo desfecho para o romance, trazendo satisfação ao próprio Lima Barreto, transformado em personagem ficcional dessa história, marcando sua presença no enredo por meio de uma fotografia ou por aparições fantasmagóricas. Na literatura brasileira, a importância de Clara dos Anjos decorre do fato de ser o primeiro romance a trazer os dramas da personagem feminina pertencente ao mais distante dos círculos concêntricos que envolvem o núcleo, naquele sentido dado por Roberto Reis, em a Permanência do círculo (1987), de que a circunstância de ser mulher inseria-a automaticamente na esfera da nebulosa, obedecendo à rígida hierarquia desse conceito que permite apenas ao homem ocupar o centro. A protagonista dessa obra apresenta-se triplamente marcada pelo pertencimento à esfera da nebulosa, por ser mulher, ser mulata e ser pobre. Entretanto, diferentemente de outros textos ficcionais que retrataram figuras femininas, Clara não somente dá título à obra, como também é sua principal heroína, mesmo que, no decorrer de sua história, seja retratada de modo insignificante, aliás descrição bastante verossímil, em se tratando de uma jovem suburbana excessivamente protegida pelos pais do contato com o mundo. Evidentemente, existem vários romances brasileiros que buscam apreender as agruras de personagens femininas diante de uma ordem predominantemente masculina, todavia neles elas ocupam papéis secundários ou estão bastante próximas do núcleo, a ponto de confundirem-se com ele. Além disso, boa parte delas é branca. Quando se trata do negro focalizado pelos escritores antigos e modernos, as nódoas do passado escravagista brasileiro facilmente fazem-se 33

34 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS notar, seja pelo seu retrato infantilizado e erotizado, seja pelo encobrimento de sua pigmentação, disfarçado por adjetivos menos evidenciadores da cor da pele (moreno, trigueiro), seja pela negação de sua afro-descendência, com a finalidade de integrá-lo com menores dificuldades no mundo branco. A trama da história da queda moral de Clara constrói-se mediante teias quase imperceptíveis, que ligam sua sorte à de alguns personagens, emaranhando-se de tal forma para resultar no drama final da moça, que acaba sendo aviltada pela comunidade em que vive e pela hipocrisia da sociedade, acostumada a condenar e justificar os erros dos pobres, com o intuito de esconder suas próprias falhas por detrás de uma máscara farisaica, como é possível ler nas entrelinhas desse incômodo romance. Ao longo de todo esse romance, articula-se e funciona uma espécie de complô contra os sonhos de amor e casamento da jovem Clara, em que algumas personagens tomam posição ativa e outras agem passivamente, desencadeando o ocaso final da moça, mesmo considerando-se que a obra seja, a princípio, uma acusação mordaz do preconceito dos brancos e do complexo de superioridade do homem branco em relação à mulher de cor (BROOKSHAW, 1983, p. 166). O núcleo familiar também conspira contra as deturpadas aspirações românticas e idealizadas de Clara, esta descrita como semelhante à cor pardo-claro do pai e de cabelos lisos tais quais os da mãe, o que, segundo Gregory Rabassa, entre os mulatos de classe média (onde a moça mulata deseja chegar via casamento com Cassi) era muitas vezes desejável estar o mais próximo possível da raça branca. Clara seria considerada mais afortunada pelas características herdadas dos pais que, em cada caso, fossem mais próximas de sua ascendência branca (1965, p. 366), revelando um processo de embranquecimento já perceptível nos pais de Clara e que representaria, para a moça, com o possível casamento com o violeiro branco, uma espécie de trilha natural de apagamento das marcas de sua ascendência negra. Na responsabilização imputada à família, o narrador atribui o excesso de mimos com que a moça foi criada como mais um motivo para que seja facilmente enganada pelo filho de uma família próspera, cujos agrados excessivos também avariaram-no moralmente. Além disso, a simplicidade e a passividade dos pais de Clara inviabilizam um diálogo sem as peias do pudor com a jovem, transformando imprópria a educação da moça, abrindo flancos por onde a obstinação de Cassi pôde alcançar seu intento lúbrico, visto que a educação que [Clara] recebera, de mimos e vigilâncias, era errônea. Ela devia ter aprendido da boca de seus pais que a sua honestidade de moça e de mulher tinha todos por inimigos, mas isso ao vivo, com exemplos, claramente... (BARRETO, 1948, p. 200), como a própria moça constata, depois de sair totalmente humilhada da casa dos pais de Cassi. O demasiado desvelo da mãe em relação à filha, procurando protegê-la, elevá-la acima de sua posição (RABASSA, 1965, P. 367) surte o efeito contrário das expectativas e traz, à tona, oculta sob a atitude passiva de dona Engrácia, alguns resquícios inaproveitados de elevação social herdados da família patriarcal na sua educação: mesmo sendo filha de escravos, na mudança do campo para a cidade, sua condição se alterou para a de agregada, levando-a a ser educada quase do mesmo modo que os filhos dos antigos senhores, privilégio talvez devido à possibilidade de ser filha bastarda de algum dos filhos brancos da casa. A crítica do narrador refere-se ao fato de ela ter sido educada quase como uma dama, na casa de uma família de alta posição social (RABASSA, 1965, p. 370), estendendo à sua filha procedimento semelhante, embora com sérias omissões, por não mostrar que uma mera imitação ou observação dos modos dos brancos não é suficiente, seus filhos devem estar conscientes de sua posição particular na vida, de modo a evitar situações que podem ser desagradáveis, ou mesmo destrutivas quando nascidas de uma completa ignorância ou inocência (RABASSA, 1965, p. 371). De certa forma, subsiste uma tentativa de dona Engrácia de conciliar o modo dos brancos, que lhe foi legado pela família patriarcal e senhorial que a criou e educou, sem a consciência de que a realidade dos antigos senhores nunca foi exatamente a sua, muito pelo contrário, havia algumas prerrogativas, por conta de sua situação de agregada e por certa simpatia de seus ex-donos, que deixaram de existir após seu casamento, como se depreende da leitura do romance. Ademais, embora sua condição econômica e social negue a todo momento esses valores, absorvendo deles apenas seus elementos ornamentais, sua adequação aos parâmetros da família burguesa mostra-se deficiente porque o que possui de esposa exemplar, ocupando-se como os afazeres domésticos é posto a perder com seu deficiente papel de mãe conselheira. Isso sucede quando dona Engrácia revela-se totalmente incapacitada de oferecer exemplos e fatos que iluminassem a consciência da filha e reforçassem lhe o caráter, de forma que ela mesma pudesse resistir aos perigos que corria (BARRETO, 1948, p. 85). Além disso, a mãe pressupõe que sua estrita vigilância quanto aos movimentos da moça e o proceder monástico em relação à Clara (BAR- RETO, 1948, p. 85) seriam suficientes para evitar quaisquer aborrecimentos. O enclausuramento de Clara que, em vez de fazê-la fugir aos perigos a que estava exposta a sua honestidade de donzela, já pela sua condição, já pela sua cor, fustigava-lhe a curiosidade (BARRETO, 1948, p. 85) reflete mais alguns resquícios da velha família patriarcal e acaba atuando de maneira inversa à que os pais esperavam, levando-a a entregar-se a Cassi por uma série de motivos, figurando entre os principais a ausência de informações claras a respeito de sua sexualidade; um sentimentalismo bebido nas modinhas e poemas, que desata no seu íntimo a correspondência de seus sentimentos com uma visão romantizada do amor; certo temor de ficar solteira, justamente num momento em que o casamento, entre a classe dominante, constituía-se na única via legítima de unir o homem e a mulher. Além disso, pode-se inferir que a pobreza material e a ascendência negra entram em jogo conspirando contra as veleidades da moça em contrair um casamento nos moldes burgueses, não só devido à existência de outros padrões morais nos meios suburbanos, menos propensos ao casamento 34

35 UFU 2017 formal, por ser geralmente inviabilizado por questões burocráticas e monetárias, bem como também devido à permanência dos valores patriarcais, circunscrevendo o horizonte da jovem mulatinha à exploração sexual, não mais aos senhores e feitores das casas-grandes de outrora afinal os tempos parecem ser outros mas doravante aos jovens das cidades, renovados nhonhôs gulosos de sexo replicando velhas práticas senhoriais. Observa-se que esse pequeno núcleo familiar endossa valores pertencentes à família pequeno-burguesa: a castidade funcionando como passaporte para um casamento formal para a filha, o espaço privado da casa como ambiente da intimidade, a administração dos assuntos do lar a cargo da mulher, etc. Todavia, ao serem deslocados para a órbita suburbana, em que ainda pesam formas de relacionamento de caráter popular e grupal, além do distanciamento físico do centro da cidade, esses mesmos valores revelam um falseamento da realidade ali existente, porque a filha tão cercada de proteções pelos pais acaba ofendida irremediavelmente nos seus melindres de solteira (BARRETO, 1948, p. 200). Isso vem comprovar que os valores errados da família mulata que aspirava à pequena burguesia, mas inconscientes de sua vulnerabilidade, são, assim como o perverso sedutor, as causas da desgraça de Clara (BROOKSHAW, 1983, p. 166) e, também, a de Quincas dos Anjos e Engrácia, por agirem submissamente, reforçando o caráter de marginalidade daqueles que vivem na órbita da nebulosa. Esta subalternidade da família de Clara deve-se ao complexo de cor de pele, permanentemente estabelecendo referências com as marcas ainda frescas da escravidão, em que a sujeição ao mundo do homem branco configurava-se como o padrão de comportamento mesmo depois do fim da escravatura, obrigando aos libertos e a seus descendentes uma adequação aos valores burgueses, com uma cobrança muito maior de toda a sociedade para que não incorressem em falhas e erros que maculassem o branqueamento a que se sujeitavam. Portanto, não bastava o endosso aos valores da sociedade branca, era preciso mais do que se comportar como branco, na verdade tornava-se imprescindível negar-se como afrodescendente, buscar o branqueamento da pele por meio de sucessivos casamentos miscigenados. Num meio social em que negras e mestiças continuavam a gozar de má reputação, devido a uma cultura patriarcal e escravagista que havia submetido, através de uma violência explícita ou implícita, milhares de mulheres de cor a um permanente estado de prostituição. Os pais da jovem mulata, conscientes desse perigo da maior exposição da filha ao assédio sexual, julgam que os excessos de zelo podem protegê-la de uma pretensa superioridade que o homem branco tem em relação, principalmente, às mulheres de ascendência negra, conforme ambos acreditam e endossam como um discurso verdadeiro. Entretanto, como essa atitude da família de Clara perante os valores da sociedade branca é de humildade, [...] falta-lhe a força moral e o espírito prático para opor-se a atos prejudiciais impostos a eles por esta sociedade devido à sua cor (BROOKSHAW, 1983, p. 166), constituindo, pois, a cor da pele um sério entrave para Joaquim dos Santos, Engrácia e a própria Clara, para possuírem suficiente auto-estima que lhes permitisse um senso de valorização em relação aos outros. Fortemente marcada por esse complexo de inferioridade, Clara anseia por um casamento caracterizado por uma espécie de remédio para sua vida de reclusão da qual quer a todo custo se libertar, e a moça age de acordo com o figurino bastante disseminado do conceito de família burguesa, na qual há grande importância à sensibilidade, ao amor e à intimidade. Além disso, casar com um homem branco está próximo do pensamento bastante difundido nessa época, porque esse tipo de matrimônio avaliza positivamente a ideologia científica de cunho racial em voga, com livre curso nos meios republicanos e nacionais, da constituição da família brasileira via apagamento dos traços mestiços denunciadores do estigma da escravidão, efetuado pelo cruzamento com as raças brancas ditas superioras com a finalidade de promover um futuro melhoramento racial. Em virtude disso, Clara pressupõe que o jovem violeiro, aparentemente cheio de méritos, delicado e modesto seja a representação exata do homem que pode retirá-la da mesquinhez em que vive, ainda mais por ser o rapaz branco e presumidamente relacionar-se com coronéis, políticos, doutores representantes da nata da sociedade o que se lhe afigura como uma espécie de conquista de um status superior em relação ao meio pobre e periférico no qual ela circula. E se, por um instante, por força das raras observações que certamente havia feito, a dúvida lhe sobrevém: ele era branco; e ela, mulata (BARRETO, 1948, p. 87), ela acaba espantando essa má ideia, por estar totalmente tomada pelo espírito do amor romântico, a ponto de, mais tarde, totalmente enleada por Cassi, indagá-lo com tanta franqueza e ingenuidade: _ Por que não me pede a papai? (BARRETO, 1948, p. 179), supondo ser possível o casamento de ambos, sem perceber o artificialismo do sentimento amoroso do namorado, armando-se de torpes artimanhas com o único objetivo de possuí-la e vilipendiá-la. Enfim, Clara vive o imperativo de uma ordem urbana e burguesa, impedindo-a de perceber a incoerência dessa forma de pensamento no espaço suburbano e proletário, onde o matrimônio não tem as mesmas significações que possui nas classes superiores, tratando-se mais de uma cópia que só em sua exteriorização iguala elites e classes inferiores. Portanto, na lógica do favor, o casamento burguês é um instrumento que presumidamente promove, para a mulher, a ascensão a um status mais elevado. Nessa elevação via matrimônio, as contraprestações que a mulher oferece maternidade, dedicação ao marido, ambiente doméstico acolhedor, capacidade de educar os filhos e ser boa anfitriã perdem facilmente seu reconhecimento e seu valor, por diversas causas e fatores, mas notadamente pela pouca importância do sexo feminino numa esfera em que as decisões são regidas pela ala masculina, o que também pressupõe arbitrariedade nas relações. No reduzido mundo de expectativas de Clara, onde o casamento representa a solução para inúmeros problemas, sua virgindade transforma-se na única contrapartida, nessa ilogicidade da lógica do favor, que ela pode oferecer para tentar ingressar num círculo mais próximo ao núcleo, podendo resultar, como efetivamente ocorre, no seu ocaso. 35

36 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS REFERÊNCIAS: BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Notas de revisão de Beatriz Resende. 8. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. Rio de Janeiro: Mérito, Diário íntimo. Pref. Gilberto Freyre. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, Histórias e sonhos. Pref. Lúcia Miguel Pereira. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Brasiliense, BROOKSHAW, David. A tradição do escritor negro. In: Raça & cor na literatura brasileira. Trad. Marta Kirst. Porto Alegre: Mercado Aberto, CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados. São Paulo: Companhia das Letras, DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura afro-brasileira: um conceito em construção. In: < seção Artigos. Acesso em 29 jul IANNI, Octavio. Literatura e consciência. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. Edição comemorativa do centenário da abolição da escravatura. N. 28. São Paulo: USP, LOBO, Luiza. Crítica sem juízo. Rio de Janeiro: Garamond, PEREIRA, Lúcia Miguel. Prefácio. In: BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. Rio de Janeiro: Mérito, QUEIROZ JÚNIOR, Teófilo. Fundamentos da persistência do estereótipo de mulata contribuições do carnaval. In:. Preconceito de cor e a mulata na literatura brasileira. São Paulo: Ática, 1975, reimp RABASSA, Gregory. Lima Barreto. In:. O negro na ficção brasileira: meio século de história literária. Trad. Ana Maria Martins. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, REIS, Roberto. A permanência do círculo: hierarquia no romance brasileiro. Niterói: EDUFF; Brasília: INL, RIBEIRO, Esmeralda. Guarde segredo. In: Cadernos negros, n. 14, contos. São Paulo: Quilombhoje, SCHWARCZ, Lilia Katri Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras, SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. In:. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, TINHORÃO, José Ramos. Lima Barreto e os romances de crítica social. In:. A música popular no romance brasileiro: século XX (1. parte). V. 2. São Paulo. UMA LEITURA DA OBRA FELICIDADE CLANDESTINA APRESENTAÇÃO por Henrique Landim 24 Clarice Lispector nasceu na Ucrânia, em Tchetchelnik, no ano de Quando estava com apenas dois meses de idade, mudou-se para o Brasil com a família, pois fugiam da perseguição aos judeus, durante a Guerra Civil Russa. Sua mãe morreu quando no ano de 1930 em consequência da sífilis (doença adquirida por meio de um estupro durante a guerra). Nesse momento, Clarice contava apenas nove anos de idade. Passou a infância em Recife. No ano de 1937, mudou para o Rio de Janeiro, onde fez o curso superior de direito. Nesse estudo sobre Clarice, iremos nos ater, especificamente, na obra Felicidade Clandestina. Esse livro composto de 25 contos publicados em conjunto pela primeira vez em Alguns desses contos foram escritos anos antes para o Jornal do Brasil. A princípio Clarice iria fazer algumas crônicas para o jornal, modalidade textual que sempre lhe interessou bastante. A linguagem é o mecanismo que permite ao homem relacionar-se com o mundo, o outro e consigo mesmo. É por meio dela que nós nos constituímos enquanto sujeitos, porque somos seres em perpétua constituição comunicativa. É justamente nesse jogo de linguagem, formando pelas relações entre o homem e o mundo, que nós podemos inscrever a obra de Clarice Lispector que, por meio da linguagem, estabelece questionamentos profundos do ser e da língua, que, na maioria das vezes, ultrapassa o cotidiano uso da palavra e de seus significados. De acordo com Vieira Ao utilizar a linguagem de modo a superar os meros procedimentos para a comunicação cotidiana, o autor alcança a atenção do leitor que percebe a ora como raridade quando ocorre, então, sua desautomatização, ou seja, o leitor não apenas reconhece automaticamente os objetos, mas experimenta uma visão particular deles (VIEIRA, 2000, p. 25). 24 Mestre em teoria literária pela Universidade Federal de Uberlândia e mestre em Teoria Literária pela mesma instituição. 36

37 UFU 2017 Ao iniciar a sua carreira como escritora, Clarice Lispector encontrou um espaço propício à valorização do significante da palavra, uma vez que a influência modernista no Brasil contribuiu para uma nova articulação do uso da língua. As inovações da Semana de Arte Moderna, as Vanguardas Europeias, o Romance da década de 30, além da Geração de 45, foram importantes elementos que alicerçaram e deram liberdade de criação para Clarice Lispector. Assim, em 1944, Clarice publica o romance Perto do coração selvagem, obra, que ilustra a autonomia e inovação da autora, que revela uma maneira única para o uso da palavra. Na ocasião da publicação desse livro, Clarice afirma: Escrevo porque encontro nisso um prazer que não sei traduzir. Não sou pretensiosa. Escrevo para mim, para que eu sinta minha alma falando e cantando, às vezes chorando (apud, Manzo, 2001, p. 26). Ao confessar, que escreve para si mesma, Clarice tem condições de liberdade de criação para construir o seu texto sem atender a nenhuma demanda, a não ser a dela própria. A criação literária é importante para ela enquanto sujeito, em consequência disso, também acaba nos encantando, pois em sua escrita, temos a articulação da língua, às vezes, de maneira poética. Tudo isso, acaba expressando uma linguagem em confronto com o ser. Na verdade, os textos são sempre indagações sobre o ser e sobre o ato de comunicação com o mundo e consigo mesmo. Para Vieira, Clarice Lispector instaurou um projeto de escrita ao qual inseriu suas convicções, suas hesitações e forçou os esquemas convencionais dos gêneros que cultivou: o romance, o conto, a crônica. Tocou profundamente o poético, elaborando um texto quase-prosas, quase-verso, desarticulando as experiências, conferindo a estes gêneros a marca de seu estilo, renovando-os, conduzindo a fronteiras de difícil superação, legitimando o direito à permanente pesquisa estética, impedindo a estagnação do fazer poético (VIEIRA, 2000, p. 124). A obra de Clarice é marcada pela constante reinvenção da linguagem poética e da vida, condição que torna os seus textos revitalizadores da língua portuguesa e da própria literatura brasileira. Na escrita de Clarice, temos um importante elemento biográfico, a morte da mãe, a fecundá-la enquanto escritora. O sentimento de culpa povoa algumas de suas obras, sobre isso ela nos conta: Minha mãe era paralítica e eu morria de sentimento de culpa, porque pensavam que eu tinha provocado isso quando nasci. Mas disserem que ela já era paralítica antes... (p. 138). Embora, fosse penoso o drama familiar da escritora, tudo isso a fez sonhar, fabular uma espécie de cura milagrosa para a sua mãe. Segundo Moser, a impressão dominante da infância de Clarice, e talvez da sua vida inteira [...] a mãe agonizante e a falta que ela fazia para a filha seriam recorrentes em quase tudo o que Clarice escreveu (MOSER, 2009, p. 97). Clarice perdeu a sua mãe aos nove anos, pouco pode fazer diante do sofrimento e fim da mãe. Restava à Clarice imaginação, por meio dela, tentava consertar o mundo à sua maneira, ou, talvez, a si mesma: Mas Clarice era pequena demais para poder oferecer qualquer ajuda concreta. A única ajuda que podia oferecer era mágica. Implorava a Deus que ajudasse sua mãe, e, de acordo com Bertha Lispector Cohen, encenava pequenas peças para entretê-la, às vezes conseguindo fazer rir a estátua condenada. Anita Rabin lembrava que, quando Clarice criava histórias, usando acessórios como lápis ou ladrilhos, ela inventava desfechos mágicos, em que uma intervenção milagrosa curava a mãe (MOSER, 2009, p. 99). Clarice menina criava histórias que nos enredos a mãe era magicamente curada. Normalmente, essas narrativas eram contadas para a mãe. Aqui, podemos ver o possível nascimento de Clarice Lispector enquanto escritora. Contudo, as histórias da criança não foram capazes de salvar a sua mãe. Clarice carregará, por toda a vida, o peso desse fracasso atribuído a si mesma. Se a mãe não foi salva, restava resgatar quem estava em vida. Para Clarice a escrita passou a ser uma maneira de salvar a si mesma: Eu disse uma vez que escrever é uma maldição. Não me lembro por que exatamente eu o disse, e com sinceridade. Hoje repito: é uma maldição, mas uma maldição que salva. Não estou me referindo muito a escrever para jornal. Mas escrever aquilo que eventualmente pode se transformar num conto ou num romance. É uma maldição porque obriga e arrasta como um vício penoso do qual é quase impossível se livrar, pois nada o substitui. E é uma salvação. Salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive e que nunca se entende a menos que se escreva. Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada (LISPECTOR, 1999, p. 134). Em suas obras, Clarice se preocupa muito mais com o interior de seus personagens do que com o meio externo, que, normalmente, é deixado de lado. Os contos de Felicidade Clandestina se voltam para as regiões inconscientes do sujeito, por isso, os seus textos são chamados de intimistas. Clarice Lispector utiliza-se de um procedimento típico da produção de James Joyce, Prous e Virgínia Woolf, a revelação do fluxo de consciência dos personagens que são explorados de modo profundo. O fluxo de consciência, às vezes, indefine de quem seria a voz a se expressar pelas palavras, normalmente torna-se difícil dizer quem está falando no texto, pois, sentimentos, desejos se misturam na narrativa, espécie de jogo complexo do texto. Sobre o primeiro romance de Clarice Lispector, Perto do coração selvagem, Antonio Candido observou com olhos lúcidos o texto da autora como uma aventura da linguagem, para ele traduzida em um ritmo de procura, de penetração, que permite uma tensão psicológica poucas vezes alcançadas em nossa literatura contemporânea (CANDIDO, 1977, p. 129). Outro aspecto que merece destaque na obra da autora, é o uso da epifania, traço que pode ser compreendido como um momento de revelação do sujeito. A epifania é desencadeada, por meio de algum elemento da realidade externa, fazendo o personagem dá sentido a algo em sua existência. Esse momento privilegiado e fugaz, às vezes, é o ponto mais importante da narrativa que deixa não se preocupa com o enredo tradicional. A história se fragmenta como a própria 37

38 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS interioridade do homem. Nem sempre a epifania é capaz de resolver os conflitos interiores dos personagens. Na narrativa A mensagem, do livro Felicidade Clandestina, por exemplo, depois que os dois personagens centrais, dois estudantes, se deparam com uma casa próxima a um cemitério, vivenciam um momento de revelação epifânico, mas isso não lhes garante equilíbrio ao final do texto. Os contos de Felicidade Clandestina respeitam o critério de desenvolver-se em torno de um episódio, focalizando um momento carregado de significação. O núcleo desses contos revela um momento de tensão conflitiva, em algum momento dos textos, ocorre uma ruptura do personagem com o mundo externo, e, às vezes, a crise se estabelece do início ao fim. Olga de Sá (1989) define a epifania da seguinte maneira: [...] constitui, portanto, uma realidade complexa, perceptível aos sentidos, sobretudo aos olhos, ouvidos, e até ao tato. Não existem epifanias mudas. A palavra está sempre ao centro da manifestação (Sá, 1989, p. 266). É um momento excepcional da imaginação que rompe a casca do cotidiano. Ela também é defesa contra os desafios das descobertas interiores, das aventuras com o ser. Por isso a epifania é sempre um momento de perigo, a borda do abismo, da sedução que espreita todas as vidas. [...] Enfim, a epifania é um modo de desvendar a vida selvagem que existe sob a mansa aparência das coisas (Sá, 1989, p. 269). Sinteticamente a obra Felicidade Clandestina apresenta os seguintes elementos caracterizadores: Literatura intimista; Usa da epifania (momento de revelação); Presença de elementos do cotidiano (animais, flores, livros); Análise interior; Enredo fragmentado; Narrativas poéticas e, às vezes, breves; 25 contos; Presença de personagens infantis; Segundo Affonso Romano de Sant Anna, as obras de Clarice, em geral, percorrem quatro etapas: 1. Personagem disposta em determinada situação cotidiana 2. Prepara-se um evento que é pressentido discretamente pela personagem. 3. Ocorre o evento que ilumina (epifania) a vida da personagem. 4. Ocorre o desfecho em que a vida da personagem é revista. Clarice Lispector faleceu em 9 de dezembro de 1977, um dia antes de seu aniversário, vitimada de um câncer no ovário. LEITURA E INTERPRETAÇÃO DE ALGUNS CONTOS DO LIVRO CONTO: FELICIDADE CLANDESTINA Esse conto é aberto por meio da caracterização negativa acerca de uma menina rica a qual supostamente seria amiga da narradora personagem: Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme [...] (LISPECTOR, 1998, p. 9). Contudo, essa garota se distinguia das outras de sua idade, pois era detentora de uma condição venerada por todos: Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria (LISPECTOR, 1998, p.9). Isso, sob a ótica das crianças, a tornava superior a todas. Nenhuma das personagens do conto são nomeadas, o que facilita o processo de identificação do leitor com aquilo que é narrado. A menina dona do livro pouco aproveitava (LISPEC- TOR, 1998, p.9) as obras que estavam a sua volta, parece que nenhuma a sensibilizava. Na verdade, no interior dessa garota, havia outra motivação que a aproximava das amigas. Mesmo nos aniversários, a filha do dono da livraria tinha a delicadeza de presentear alguém com um livro, dava ao aniversariante um cartão postal da loja do pai, como para mostrar-lhe, que o mundo dos livros, para a maioria das meninas, seria algo inacessível. Os cartões postais dados como presentes retratavam a paisagem de Recife, onde moravam, com suas pontes mais do que vistas (LISPECTOR, 1998, p.9). Os cartões deixavam a narradora absorta de raiva da garota, pois em nada esses objetos chamavam a atenção, uma vez que os espaços fotografados eram habituais para todas. A filha do dono da livraria possuía um talento nato para a crueldade, condição exercida principalmente contra a narradora: Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo (LISPECTOR, 1998, p.9). Criticamente, tempo depois da relação de dependência, a narradora soube avaliar o comportamento da menina: Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres (LISPECTOR, 1998, p.9). Porém, o fascínio sobre os livros impedia a narradora de compreender o comportamento sádico da menina filha do dono da livraria: Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia (LISPECTOR, 1998, p.9). O dia magno da relação da dependência entre a narradora e a filha do dono da livraria teve o seu início no momento que a outra afirmou possuir As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato 25. A partir desse dia, a detentora das obras literárias aplicava sobre a narradora uma espécie de tortura chinesa (LISPECTOR, 1998, p.10), visto o verdadeiro prazer que a literatura exercia sobre a narradora-personagem. O livro de Lobato possuía muitas páginas: [...] meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormin- 25 O título desse conto ( Felicidade Clandestina ) é sugestivo, pois realiza uma espécie de homenagem o pai da literatura infantil brasileira, Monteiro Lobato, de maneira entusiástica: através da paixão de uma menina (que se supõe ser a própria Clarice) pelo primeiro volume da série d O Sítio do Picapau Amarelo: As Reinações de Narizinho. Provavelmente não foi casual a alusão a esta obra por Clarice, uma vez que ela centraliza a ação numa menina de sete anos, órfã Lúcia, a Narizinho -, que é criada pela avó. A famosa Emília ainda aparece como boneca de pano, muda, que só ganhará voz e destaque ao longo do tempo. Os principais episódios de abertura da série dialogam com a temática clássica dos contos de fadas dirigidos, sobretudo às meninas: a espera do príncipe encantado, que levará ao inevitável final feliz desse gênero de história: o casamento. Os principais eventos do livro de Lobato, portanto, são dois casamentos arranjados : o de Narizinho com o Príncipe Escamado, rei do maravilhoso Reino das Águas Claras, situado no ribeirãozinho do sítio; e o de Emília com o porco do quintal, o célebre Marquês de Rabicó. A fina ironia de Lobato com relação aos temas ligados à mulher, a irreverência com que sugere às meninas atitudes de independência e liberdade, bem como o senso profundamente crítico com que relê os textos dedicados à infância, não devem, certamente, ter escapado à percepção de Clarice. Um dos príncipes encantados aparece escamado, o outro é emporcalhado e indigno sequer da alcunha de marquês. Após o casamento, as meninas abandonam os maridos e seguem suas vidas. Emília cogita em divórcio ao longo da série, numa época em que o divórcio era proibido no Brasil, razão pela qual os livros de Lobato chegaram a ser queimados e proibidos nos colégios católicos para moças. A busca da verdade para além da convenção é uma constante na narrativa infantil de Lobato, e a marca de sua originalidade e pioneirismo na reformulação do gênero e na redefinição da imagem da criança na sociedade moderna, até então esculpida pelos textos moralistas, perpassados pelas noções de culpa e de castigo. 38

39 UFU 2017 do-o (LISPECTOR, 1998, p.10). Em virtude do tamanho do livro, a narradora jamais conseguiria comprar uma produção como essa, ela mesma afirma que o texto de Lobato estava fora de suas posses ( E completamente acima de minhas posses - LISPECTOR, 1998, p.10). A única solução para a narradora ter o livro de Lobato, pelo menos por alguns dias, seria o empréstimo. Com isso, a garota prometeu emprestar o texto à narradora que se transformou na própria alegria: eu não vivia, eu nadava devagar numa mar suave, as ondas me levavam e me traziam (LISPECTOR, 1998, p.10). Finalmente, a narradora se dirigiu à casa da garotava, a dona do livro. Diferentemente da outra, a narradora morava em um sobrado, isso sinaliza para o fato de quem possui livros pertence a uma condição social melhor, contudo, isso não diz que a posse das obras indique leitura. O encontro com a garota sádica ocorreu de forma negativa, pois o livro estava emprestado. Mesmo assim, a narradora teve esperanças de ter o livro em suas mãos. Regressou à sua casa aos pulos e com a esperança redobrada. A partir desse momento no texto, podemos observar uma complicação a ser desenlaçada pela protagonista. No dia seguinte, a narradora estava novamente à porta da casa da menina. Ouviu uma resposta calma da outra: o livro ainda não estava em seu poder (LISPECTOR, 1998, p.10). A filha do dono da livraria tinha um plano diabólico dentro de si, por isso não emprestava a outra o livro. Mal sabia a narradora que o drama do dia seguinte iria se repetir inúmeras vezes antes de ter o seu precioso objeto. Naqueles dias, a narradora começou a pensar no comportamento da garota: Eu começava a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho (LISPECTOR, 1998, p.11). Porém, mesmo sabendo dessa terrível relação sádica, que a outra lhe aplacava, a narradora ainda mantinha-se presa: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra (LISPECTOR, 1998, p.11). Esse conto, de acordo com alguns estudiosos, possui um elemento autobiográfico de da autora, que se transpõe para a personagem central (a narradora), sobretudo em virtude da paixão que a menina tem pela leitura. Assim, portanto, podemos ver a narradora do conto como o alter-ego de Clarice Lispector no interior do texto. Diariamente a narradora se dirigia à casa da menina rica, não faltava um dia sequer. Chegando lá, a outra dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina (LISPECTOR, 1998, p.11). Impiedosamente, a filha do dono da livraria instituiu um jogo de atração (esperança do empréstimo) e repulsa (negativa afirmação de que o livro estava emprestado). Esse jogo acabou refletindo fisicamente na narradora: E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados (LISPECTOR, 1998, p.11). Finalmente, chegou o dia da redenção da narradora. Ela estava à porta de seu algoz, como nas inúmeras outras vezes, recebendo mais uma negativa, quando, inesperadamente, apareceu a mãe da garota sádica. Certamente, a senhora estranhava a aparição muda e diária daquela menina (LIS- PECTOR, 1998, p.11) que, insistentemente, estava ali, à porta de sua casa. A mulher pediu explicação às duas garotas. Instantes depois, a mãe da menina conseguiu compreender tudo o que se passava e voltou-se para a filha dizendo: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler! (LIS- PECTOR, 1998, p.11). Nesse momento, a mãe pode compreender o grau de maldade de sua própria filha: E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha (LISPECTOR, 1998, p.11). Não ler o livro seria então o menor dos males daquela garota sádica. Naquele instante, a mãe conheceu a filha que desconhecia. Em contrapartida, a narradora acabou sendo coroada pelo o encontro do tão sonhado objeto de desejo, ouvindo as palavras da senhora que lhe disse: E você fica com o livro por quanto tempo quiser (LISPECTOR, 1998, p.11). A fome pela leitura vencera a perversidade da garota rica. Estar com o livro o tempo que pudesse, valeria mais que tê-lo para si. O alumbramento da narradora é tão forte que ela sentiu-se perdida diante da escolha das palavras para nos relatar o que se passou dentro dela quando esteve frente a frente com o livro de Lobato: Como contar o que se seguiu? (LIS- PECTOR, 1998, p.11). Regressou à sua casa com o livro rente ao peito, espécie de demonstração de carinho para com ele. A narradora em sua casa não começou a ler: Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter (LISPECTOR, 1998, p.12). Aqui a menina parece preferir não acreditar naquilo que vê. Mesmo com o livro em suas mãos, tratava-o como algo intocável, justamente porque para ela, o teor da obra adquiriu um caráter sagrado. Assim, criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim (LISPECTOR, 1998, p.12). Para a narradora, a felicidade é colocada de maneira ilícita. O livro não é mais um objeto, mas a realização da plenitude. Antes mesmo de ter o livro, mesmo a possibilidade de tê-lo é capaz de produzir momentos de alegria na jovem narradora. Ao certo, também devido à condição social da menina expressada pelo texto, sugere que a felicidade, não seria algo comum à sua rotina, o que sinaliza que ser feliz é algo ilegal e passageiro. Assim, a felicidade se mistura à sensação de medo, perigo, humilhação. Quando tem o livro em mãos, cria dificuldades ilusórias para surpreender-se de novo com o sentimento de felicidade. Por fim, a narradora completa o seu quadro de felicidade da seguinte maneira: Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante (LISPECTOR, 1998, p.12). A intensidade da alegria do mergulho no mundo ficcional é comparável ao prazer proporcionado pelo amante à mulher amada. Isso revela o poder capacidade de uma grande obra ficcional, isto é, um bom texto literário é capaz de nos deixar em êxtase como uma mulher/homem em suas relações amorosas. CONTO: UMA AMIZADE SINCERA Esse conto revela a suposta amizade entre o narrador e o seu amigo. Os dois se conheceram no último ano do colégio. A aproximação entre eles chegou a um ponto de amizade que não podíamos mais guardar um pensamento: um telefonava logo ao outro, marcando encontro imediato (LISPEC- 39

40 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS TOR, 1998, p.13). Logo após as conversas, ambos sentiam presenteados com a presença alheia. Porém, os primeiros sinais de perturbação começaram a aparecer: Às vezes um telefonava, encontrávamo-nos, e nada tínhamos a nos dizer (LISPECTOR, 1998, p.13). No primeiro momento, começaram a falar sobre outras pessoas, mas pensavam estar adulterando a amizade. Resolveram então, nos encontros, ficarem calados. Isso também não resolveu o dilema da amizade entre eles, a qual não parecia ter o mesmo encanto de antes. Com isso, os encontros passaram a ficar cada vez mais decepcionantes. Isso talvez fosse o resultado da nossa inquietude dimensão humana que atormentava os dois amigos. A aproximação estreita acabava desgastando a relação entre os dois com o tempo. O narrador convidou o amigo para vir morar com ele no apartamento da sua família, que se mudara para São Paulo, visto que o outro tinha família, em Piauí, e estava morando sozinho: Que rebuliço de alma. Radiantes, arrumávamos nossos livros e discos, preparávamos um ambiente perfeito para a amizade. Depois de tudo pronto eis-nos dentro da casa, de abraços abanando, mudos, cheios apenas de amizade (LISPECTOR, 1998, p.14). Quando tudo estava preparado para simplesmente serem amigos, o maior bem (amizade) dos dois torna-se um peso desconfortante. O cotidiano junto, as confidências e as conversas passam ser reveladas pelo narrador de maneira negativa. Todos os problemas já haviam sido debatidos, parecia que os dois haviam vivido tudo e não restava mais nada, a não ser uma amizade vazia. Paradoxalmente a amizade tinha desgastado a amizade. Restava apenas uma relação insolúvel como a soma de dois números: inútil querer desenvolver para mais de um momento a certeza de que dois e três são cinco (LISPECTOR, 1998, p.14). Não restava aos amigos mais nada a não ser conviver com a incômoda presença do outro. Depois de certas férias, comenta o narrador, a situação tornou-se ainda mais aflitiva: Além do mais, a solidão de um ao lado do outro, ouvindo música ou lendo, era muito maior do que quando estávamos sozinhos. E, mais que maior, incômoda. Não havia paz. Indo depois cada um para seu quarto, com alívio nem nos olhávamos (LISPECTOR, 1998, p.15). Nesse texto, Clarice tem a habilidade de falar de maneira poética e com profundidade psicológica da nossa condição humana, sobretudo no que se refere ao relacionamento com o outro. Esse conto transcende a um simples relato inexpressivo do cotidiano, e ganha uma dimensão universal do homem, pois revela um pouco sobre a nossa dialética condição. Os dois amigos tiveram uma trégua, momento que o amigo do narrador teve uma pequena questão com a prefeitura. Ficaram entusiasmados com a resolução desse caso e esqueceram o peso da amizade fragilizada pelos dias: Nessa época encontrávamo-nos de noite em casa, exaustos e animados: contávamos as façanhas do dia, planejávamos os ataques seguintes (LISPECTOR, 1998, p.15-16). Nesses dias havia encantamento sobre tudo, pois significavam as palavras e comentários de cada um em cada ação. Com isso, o narrador compreendeu por que os noivos se presenteavam, por que o marido faz questão de dar conforto à esposa, e esta prepara-lhe afanada o alimento, por que a mãe exagera nos cuidados ao filho. Essas ações seriam formas de dividir- -se em alguém, isto é, ceder a alma um ao outro ( Só muito depois eu ia compreender que estar também é dar - LIS- PECTOR, 1998, p.16). Por fim, o caso da prefeitura estava encerrado. A vitória da amizade dos dois teve prazo de validade, dias depois voltaram à condição de tédio: Estávamos fatigados, desiludidos (LISPECTOR, 1998, p.16). Com o pretexto de passar as férias com a família, o narrador se distanciou do amigo o qual também resolveu partir indo à cidade de seus parantes: Um aperto de mão comovido foi o nosso adeus no aeroporto. Sabíamos que não nos veríamos mais, senão por acaso. Mais que isso: que não queríamos nos rever. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos sinceros (LISPECTOR, 1998, p.16). CONTO: MIOPIA PROGRESSIVA O protagonista desse conto é um menino míope, hábil com as palavras e nas relações entre as pessoas do seu meio. Às vezes, o que ele dizia era capaz de realizar um rápido movimento no tabuleiro de damas, pois era esta a impressão de mecanismo automático que ele tinha dos membros de sua família (LISPECTOR, 1998, p.17). As coisas ditas pelo garoto determinavam a maneira pela qual os familiares se relacionavam, isto é, entendiam-se à sua custa. Mesmo quando se desentendiam, sentia que eles estavam submissos às regras de um jogo, que, ao certo, eram determinadas por ele. Todos viam o garoto míope como inteligente e astuto. Quase sempre, o menino usava as mesmas frases pronunciadas anteriormente, não propriamente a fim de produzir o sucesso anterior, tão pouco para provocar estabilidade, ou instabilidade na família. Na verdade, fazia isso para tentar apoderar-se da chave de sua inteligência (LISPEC- TOR, 1998, p.18), o que significa que o menino procurava controlar, com mais eficácia, o que dizia aos outros. Quando pronunciava o que já havia dito, ninguém dava-lhe mais atenção sendo: [...] dessa vez era recebido pela distração dos outros (LISPECTOR, 1998, p.18). Com isso, o garoto adquiriu um hábito mantido para sempre: pestanejava e franzia o nariz deslocando os óculos do rosto. Esse cacoete seria uma maneira de substituir o julgamento alheio pelo próprio, numa tentativa de aprofundar a própria perplexidade (LISPECTOR, 1998, p.18), o que acabava expressando a sua própria instabilidade. O menino passou a compreender que a chave de sua inteligência (autocontrole sobre suas ações) quase nunca estava com ele, a isso ainda menino habituou-se a saber, e dava piscadelas que, ao franzirem o nariz, deslocavam os óculos (LISPECTOR, 1998, p.18). Segundo o narrador, com o tempo, a miopia do garoto exigia lentes cada vez mais fortes. Isso nos leva a compreender, que o menino passava a conhecer o homem com um olhar de adulto, visto que ele estava aos poucos passando por um processo de amadurecimento. O menino descobriu, que a chave tão procurada por ele, não estava com ninguém, passando a viver na incerteza, por isso a miopia progredia. As lentes dos óculos revelam a vontade juvenil de atribuir estabilidade aos outros e, por conseguinte, a ele mesmo. 40

41 UFU 2017 Certo dia, a família levou o menino para a casa de uma prima, mulher casada, que não tinha filhos e adorava crianças. E quanto à prima, a prima significava amor extra, com suas inesperadas vantagens e uma incalculável pressurosidade e tudo isso daria margem a que pedidos extraordinários fossem atendidos (LISPECTOR, 1998, p.19). O menino pensou que o amor sem realização o unificaria finalmente: durante um dia inteiro, ele seria julgado o mesmo menino, ele seria apenas um. Na semana que precedia à visita, o menino começou a antecipar como tudo seria, como que se comportaria neste dia. Inúmeras foram as possibilidades, ser bem comportado, palhaço, triste, inteligente. Ter a possibilidade de escolher o que seria, e pela primeira vez por um longo dia, fazia-o endireitar os óculos a cada instante (LISPECTOR, 1998, p.20). Assim, o garoto passa a traçar o seu perfil. Poder escolher como seria visto pelo outro confere ao menino um estranho prazer, manifestado pelo gesto de endireitar os óculos no rosto. Aos poucos, o menino toma consciência de que aquilo que ele decidisse ser em nada modificaria a sua verdadeira essência: era saber que nada do que ele fosse durante aquele dia iria realmente alterá-lo (LISPECTOR, 1998, p.20). Finalmente, o garoto chegou à casa da prima. Lá viveu duas experiências que o deslocou de seus projetos: a prima possuía um dente de ouro do lado esquerdo da boca e não o recebeu com amor. A prima ocupada com os seus fazeres domésticos deixou o garoto livre para brincar, antes mesmo de realizar qualquer julgamento sobre ele: O que deu ao menino, assim de chofre, um dia inteiro vazio e cheio de sol (LISPECTOR, 1998, p.22). Mais tarde fez uma observação sobre as plantas do quintal e recebeu como resposta da prima um simples pois é. Assim, já que os seus planos todos ruíram, ele não precisava representar nenhum papel para a prima, então resolveu ser ele mesmo: por um dia inteiro ele não seria nada, simplesmente não seria. E abriu a porta num safanão de liberdade (LISPECTOR, 1998, p.23). Mais tarde, sob os olhos ternos da prima, o garoto sentiu o sabor deferente da comida e do amor novo que não parecia com o amor dos outros adultos (LISPECTOR, 1998, p.23). O amor da prima é diferente dos outros porque aceita a criança como criança, isto é, não estabelece nenhum juízo de valor acerca da condição física e psicológica do menino. Dessa maneira, o garoto passou o dia inteiro sem pronunciar nenhuma palavra. De outro lado, a prima exigindo dele que ele tivesse nascido no ventre dela (LISPECTOR, 1998, p.23). Nesse dia, o menino conheceu uma das raras formas de estabilidade: a estabilidade do desejo irrealizável. Sentindo o desejo da prima por um filho, o garoto passou por uma espécie de mudança ( E pela primeira vez teve então amor pela paixão - LISPECTOR, 1998, p.23). O menino descobre- -se amado pela prima, conseguiu sentir um amor diferente: [...] era um amor pedindo realização, pois faltava à prima a gravidez, que já é em si um amor materno realizado (LIS- PECTOR, 1998, p.23). O menino se encanta com a estabilidade de seus sentimentos, nunca viveu nada tão avassalador ( [...] do desejo irrealizável, inatingível (LISPECTOR, 1998, p.23). O garoto se apaixonou pela ideia do impossível (maternidade da prima), aspecto que o transformou, fazendo o vencer a cegueira que o impedia de ver a essência das coisas. Somente na casa da prima o garoto sentiu-se aceito pelo mundo dos adultos. Em sua casa, diante dos familiares, o menino via-se obrigado a mascarar a sua identidade de criança. Antes do encontro com a prima, o menino era um garoto precoce, emocionalmente carente, que necessitava da aprovação do adulto, para qualquer de suas atitudes. Para obter aprovação dos adultos articulava qual seria a melhor maneira de se expor aos olhos de seu interlocutor, por isso, às vezes, forçava parecer inteligente e comportado. O padrão de comportamento do menino era ditado pelas normas de conduta do adulto que enquadram os homens dentro de certas categorias. Ser ou não ser dependia do olhar do adulto: Se era inteligente, não sabia. Ser ou não inteligente dependia da instabilidade dos outros (LISPECTOR, 1998, p.17). A prima não usou as mesmas regras do jogo dos outros adultos, por isso a criança se adapta à realidade dela e diz para si mesmo que, então, passará um dia inteiro brincando. Diante do amor e da paixão, o menino perdeu a miopia dos olhos e viu o mundo claramente. O relance mais profundo e simples que teve da espécie de universo em que vivia e onde viveria (LISPECTOR, 1998, p.23). A partir desse dia, o garoto adquiriu o hábito de tirar os óculos a pretexto de limpá-los e, sem óculos, fitava o interlocutor com fixidez reverberada de cego (LISPECTOR, 1998, p.24), o que nos mostra que a descoberta é incorporada em seu comportamento como um hábito. É nesse processo que o garoto descobre o mundo real, como se vencesse a miopia que reduz a sua visão. Metaforicamente, os óculos podem ser vistos como a maneira pela qual o menino vê o mundo. Ao retirá-los, é como se pudesse, finalmente, enxergar a realidade das coisas, das pessoas e do mundo. CONTO: RESTOS DO CARNAVAL Novamente, temos uma narradora adulta realizando um resgate de sua memória, revelação de um passado íntimo marcado por uma forte carga subjetiva. O passado retomado liga-se ao carnaval, ou aos restos desse momento vivido de maneira intensamente negativa, uma vez que a narradora, aos oito anos, vivia um conflito, isto é, nas ruas 26 a alegria existia pujantemente, enquanto, que em seu interior, a menina sofria por causa da mãe. De outro lado, no interior de sua família, o peso de uma tragédia íntima e ameaçadora (a doença de sua mãe). No íntimo da narradora, o carnaval é colocado como uma voz secreta, explosão contida da alegria: Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim (LISPECTOR, 1998, p.25). Porém, o carnaval era uma realidade pouco participada por ela a qual sentia vontade de aproveitar a festa, porém a doença materna lhe oprimia o peito. Ela nunca houvera participado de um baile de carnaval. Em compensação, deixavam-na ficar até onze 26 Observe a alegria que dominava a menina em seu passado com a aproximação do carnaval: E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? (LISPEC- TOR, 1998, p.24). 41

42 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS horas da noite, à porta do pé da escada, do sobrado onde a família morava. Para compensar as limitações, restava à menina usar, economicamente, por três dias, um frasco de lança-perfume e um saco de confete. Essas lembranças deixam a narradora mais emotiva, chegando até expressar dificuldade para escrever/narrar o que lemos: Ah, está se tornando difícil escrever (LISPECTOR, 1998, p.25). Esses pequenos objetos e momentos (restos do carnaval) deixavam a menina realizada: [...] eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz (LIS- PECTOR, 1998, p.26). De seu seguro ponto de observação (pé da escada do sobrado), a narradora alimentava o seu medo das máscaras, medo fundamental para a sua compreensão interior. Ela suspeitava que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. Essas máscaras comunicavam com o mais íntimo da garota que permaneceu perplexa, quando observava uma delas: [...] eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim (LISPECTOR, 1998, p.26). Enquanto todos, na rua, se alegravam com o carnaval, a garota permanecia estática, como uma observadora da felicidade dos outros. Nunca a fantasiaram. Os adultos estavam aflitos demais com o estado de saúde da mãe da menina. Porém, às vezes, tinha pequenas doses de alegria: Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acendia ao meu sonho intenso de ser uma moça eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice (LISPECTOR, 1998, p.26). O carnaval, para a criança, era a possibilidade de fantasiar-se, fugir da rotina massacrante de uma casa dotada de uma pessoa enferma. A necessidade da transformação física criança compara-se às mascaras usadas pelos adultos. Houve um carnaval diferente de todos para a menina. Na verdade, milagroso, pois se configurava como um carnaval vivido com intensidade. A mãe de uma amiga fantasiou a filha, dando o nome ao figurino de rosa. Para fazer a fantasia, a mulher usou papel crepom cor-de-rosa com intuito de representar uma rosa. A narradora observou a amiga boquiaberta, vendo a fantasia tomar forma: [...] era uma das fantasias mais belas que jamais vira (LISPECTOR, 1998, p.27). Inesperadamente, a mãe da amiga, atendendo ao pedido mudo da narradora, fez outra fantasia com as sobras do papel: Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma (LISPECTOR, 1998, p.27). Objetivamente a obsessão da menina pela fantasia se dá, por um simples desejo carnavalesco. Porém, a fantasia, feita para o carnaval, ganha outra dimensão para a criança: a fantasia seria, ao mesmo tempo, a realização de um sonho, mas, sobretudo, uma trégua daquela situação desconfortante, pesada demais para uma criança de oito anos. Por isso, ela disse: Nunca me sentira tão ocupada: minunciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo [...] (LISPECTOR, 1998, p.27). Sentir ocupada pode ser lido como esquecer o peso da responsabilidade acerca da condição clínica da mãe. Assim, chegamos ao clímax do conto: Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim! Chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa (LISPECTOR, 1998, p.27). Os detalhes da fantasia estavam praticamente prontos. Porém, o destino impiedoso começou a manchar a alegria da menina: Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar remédio na farmácia (LISPECTOR, 1998, p.28). A menina saiu para comprar o remédio para a mãe, não teve tempo para colocar a máscara. Nas ruas, a alegria de todos espantava a narradora. A súbita piora do estado da mãe roubava qualquer possibilidade de uma verdadeira satisfação da menina que apenas mudou o ponto de observação da alegria alheia: antes via tudo do pé da escada, e, agora, pode contemplar de perto a festa, mas não como integrante ativo. Esse episódio é tão marcante para a narradora, que, mesmo anos depois, sobrevive em seu interior, talvez, por isso, a necessidade de narrar, a fim de resinificar a experiência. Quando a menina chegou à sua casa, a sua irmã a pintou e penteou os cabelos da narradora, porém, o encanto havia morrido para a criança. Ela não poderia ser uma rosa como desejava, mas uma simples menina. Por fim, desceu para o seu antigo posto para fazer a seguinte reflexão: Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados (LISPECTOR, 1998, p.28). Na escadaria, também teve tempo para cogitar: Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria (LISPECTOR, 1998, p.28). Na verdade, o que morria era a ilusão de poder sentir-se mulher, nas ruas de Recife, e distanciar-se da dolorosa rotina. O carnaval não estava completamente perdido para ela que pode dividir a sua alegria com um garoto de doze anos, o qual parou diante dela, e numa mistura de carinho, brincadeira e sensualidade, cobriu os cabelos da garota de confete. Por um instante, sorriram um para o outro. Finalmente, a menina de oito anos conseguiu ser reconhecida por alguém como uma rosa ( [...] enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa - LISPECTOR, 1998, p.28), isto é, o garoto pode vê-la como mulher. Tudo isso, nos revela o desejo de crescimento, forma encontrada para sair da condição de criança infeliz, visto as as questões de ordem familiar, como podemos ver no seguinte trecho: 42

43 UFU 2017 Nesses três dias, ainda minha irmã acendia ao meu sonho intenso de ser uma moça eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice (LISPECTOR, 1998, p.26). São os restos do carnaval (pedaços que sobraram da fantasia da amiga) que permitem à narradora realizar uma espécie de fuga da realidade massacrante. A fantasia de rosa expressa, não somente a ânsia de passar da infância à fase adulta, mas, também, o desejo de tornar-se outra, isso também com intuito de fugir da opressora condição existencial. O próprio nome da fantasia, rosa, revela uma interessante metáfora vinculada à mulher. Normalmente, flor / rosa, são símbolos dos atributos carnais feminino. Não podemos deixar de dizer que nesse conto, temos um importante elemento biográfico de Clarice Lispector sendo indiretamente tocado nas linhas do texto. A escritora também teve que conviver com a grave doença da mãe, sífilis, o que lhe restringiu alguns alegres momentos da infância. CONTO: O GRANDE PASSEIO Essa narrativa retrata a condição de uma senhora que possui dois nomes: Mocinha e Margarida. Ela havia sido casada, tivera dois filhos, porém todos morreram, restando a ela a solidão. Mocinha dormia em inúmeros lugares, a casa de um, a casa de outro. Vivia sob a proteção de quem pudesse ajudá-la. Essa senhora tinha o corpo pequeno, escuro, embora tivesse sido alta e clara (LISPECTOR, 1998, p.29). Nesse pequeno trecho, podemos ver na personagem o retrato do abandono. O corpo de Mocinha havia sido branco em tempos remotos, mas, agora, é escuro, o que sugere falta de banho. Às vezes, recebia esmolas dos outros que davam a ela uma quantia pequena, pois julgavam não precisar, visto o tamanho de seu corpo. Quando recebia a esmola não agradecia muito, simplesmente, sorria e balançava a cabeça. Dormia, não se sabe ao certo por quais motivos, no quarto dos fundos de uma casa grande, no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro. Na maior parte do tempo, a família dona da casa esquecia-se da, pois diziam se tratar de uma velha misteriosa. Às vezes, Margarida levantava-se de madrugada, arrumava sua cama de anão e disparava lépida como se a casa estivesse pegando fogo (LISPECTOR, 1998, p.30). Ninguém sabia por onde ela andava. Quando perguntavam onde estivera, Mocinha dizia que estava passeando. Mocinha nasceu no Maranhão, onde sempre viveu. Viera para o Rio há pouco com uma senhora muito boa que pretendia interná-la num asilo, mas não pudera ser: a senhora viajara para Minas e dera algum dinheiro para Mocinha se arrumar no Rio (LISPECTOR, 1998, p.30). Assim, a velha vivia passeando pelas ruas da cidade, como uma andarilha, até o dia que a família do Botafogo resolveu dar-lhe um lugar onde residir. A boa senhora, na verdade, abandonou Margarida, forma encontrada para passar a responsabilidade adiante. Porém, certo dia, os moradores da casa surpreenderam-se ao tê-la em casa há tanto tempo, e acharam melhor livrar-se dela. Todos da casa eram muito ocupados e quando passavam atarefados pela velha, ficavam surpreendidos como se fossem interrompidos, abordados com uma pancadinha no ombro: olha! (LISPECTOR, 1998, p.30). As moças da casa sentiam-se mal-estar diante de Margarida, aspecto que revela a velhice como algo incômodo. Mocinha torna-se um fardo inútil que, na primeira oportunidade, deveria ser destruído. A condição quase nula de Margarida, e, também, em razão de sua idade, promoveu o desejo de eliminação nos donos da casa, que a descartam como se fosse um objeto. Assim, um filho da casa, com a namorada e duas irmãs, foram passar um fim de semana na cidade de Petrópolis e levaram-na. Mocinha não dormiu, estava ansiosa por causa do passeio, passou a noite falando alto, na ocasião. Em certo ponto da noite, relembrou de seu triste passado: A excitação do passeio prometido e a mudança de vida, de repente, aclaravam-lhe algumas ideias. Lembrou-se de coisas que dias antes juraria nunca terem existido. A começar pelo filho atropelado, morto debaixo de um bonde no Maranhão se ele tivesse vivido no Rio de Janeiro, aí mesmo é que morria atropelado. Lembrou-se dos cabelos do filho, das roupas dele. Lembrou-se da xícara que Maria Rosa quebrara e de como ela gritara com Maria Rosa. Se soubesse que a filha morreria de parto, é claro que não precisava gritar. E lembrou-se do marido. Só relembrava o marido em mangas de camisa. Mas, não era possível, estava certa de que ele ia à repartição com o uniforme de contínuo, ia a festas de paletó, sem falar que não poderia ter ido ao enterro do filho e da filha em mangas de camisa. A procura do paletó do marido ainda mais cansou a velha que se virava com leveza na cama. De repente descobriu que a cama era dura (LISPECTOR, 1998, p.31). Nas obras de Clarice Lispector, normalmente, algumas situações exteriores provocam nos personagens um processo de abstração, levando-os a uma realidade mais profunda, condição nomeada de processo epifânio. A compreensão do passeio a possível mudança de vida causaram na senhora um mal-estar. Por isso, as lembranças vieram muito fortes impedindo-a de dormir. Levantou-se alucinada, desamarrou a pequena trouxa e tirou um pedaço de pão com manteiga ressecada que guardava secretamente há dois dias. Comeu o pão como um rato, arranhado até o sangue os lugares da boca onde só havia gengiva (LISPECTOR, 1998, p.32). A comparação entre a senhora e o rato expressa como a velhice é representada dentro do conto. Mocinha, como o animal, pratica atividades noturnas e clandestinas, como estratégia de sobrevivência e autossatisfação. É assim que ela se relaciona com o mundo hostil, degustando pequenos momentos de uma felicidade clandestina. A velhice é colocada de maneira negativa, como um incômodo ao outro. Margarida, pela segunda vez, é rejeitada por alguém. A própria alimentação dela revela as péssimas condições que ela vivia naquela casa. Somente de madrugada, Mocinha adormeceu. E, pela primeira vez, foi preciso acordá-la, ainda estava escuro, a moça veio chamá-la. 43

44 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS A caminho de Petrópolis, Mocinha sentou-se junto à janela do carro, nada disse. Quando o veículo arrancou, sentiu uma dor no peito. Não era só por alegria, era um dilaceramento (LISPECTOR, 1998, p.32). Margarida parecia compreender o interesse daquela viagem. Falaram com ela que quis sorrir, mas não conseguiu. Olhou para todos, com olhos lacrimejantes, o que os outros já sabiam que não significava chorar (LISPECTOR, 1998, p.33). Margarida dormiu, enquanto o carro seguia o seu percurso. Quando acordou, não soubera onde estava, então, a sua cabeça começou a trabalhar. O marido apareceu-lhe de paletó achei, achei! o paletó estava pendurado o tempo todo no cabide (LISPEC- TOR, 1998, p.33). A súbita lembrança dos mortos, novamente, veio no imaginário de Margarida, parecia ser um indicativo daquilo que estava prestes a ocorrer, a morte. Mocinha começava a compreender o que não disseram a ela: Que fazia ela no carro? (LISPECTOR, 1998, p.33). Abandonaram Margarida nas proximidades da casa dos parentes de Petrópolis. Mocinha desceu do automóvel e se dirigiu à casa de Arnaldo que não estava lá. Entrou na casa, lá pode ver a criança, decerto, aquele ela deveria vigiar. A dona da casa, uma senhora alemã, examinava a velha em silêncio: não acreditara na história da recomendação da cunhada, embora de lá tudo fosse de esperar (LISPECTOR, 1998, p.35). Margarida se perguntou: O que fazia naquela casa? (LISPECTOR, 1998, p.35). Adiante, Arnaldo chegou e conversou em voz baixa com a esposa. Em seguida, disse à Mocinha: -Não pode ser não, aqui não tem lugar não (LISPECTOR, 1998, p.36). A visitante ficou tranquila diante da informação do proprietário da casa. Diante do sorriso de Margarida, Arnaldo se impacientou dizendo: - E agora estou muito ocupado! Eu lhe dou dinheiro e você toma o trem para o Rio, ouviu? volta para a casa de minha mãe, chega lá e diz: casa de Arnaldo não é asilo, viu? aqui não tem lugar. Diz assim: casa de Arnaldo não é asilo não, viu! (LISPECTOR, 1998, p.36). Nessa casa, Mocinha sentiu o gostoso cheiro de café que foi servido a todos exceto para ela, ou seja, que, nesse ambiente, também, é marginalizada. O cheiro de café acentuou a fome na senhora. Mocinha pegou o dinheiro e saiu. Antes de se despedir, ainda disse: -Obrigada, Deus lhe ajude (LISPECTOR, 1998, p.37). A velhice, a necessidade, ou mesmo humildade da personagem não permitem deixá-la ver a crueldade na conduta do outro. Ela foi para a estrada, onde pode ver uma negra encher uma lata de água. Aproximou-se de um chafariz, e bebeu água. Em seguida, sentou numa pedra que havia próxima de uma árvore. Estava cansada, a senhora encostou a cabeça no tronco da árvore e morreu. O ato de se apoia na árvore pode ser lido como uma fusão da personagem com a natureza, isto é, Mocinha torna-se natureza também. O narrador apresenta a morte da personagem como um retorno ao habitat natural. A natureza recebeu de volta aquele ser negado pelos seus iguais. No final do conto, Mocinha viveu um momento de liberdade, não estava mais existiria nas condições de objeto na casa de estranhos, e, ao certo, não queria voltar a ser um fardo para os outros. De certa maneira, a morte é a forma encontrada pela personagem para fazer durar a sua liberdade. O descaso e indiferença tinham a deixado cansada. No final do conto, temos um triste painel da representação da velhice em nossa sociedade. Margarida/Mocinha, senhora que se coloca de maneira dupla às pessoas a fim de escapar da crueldade destinada aos mais velhos, por isso, quando perguntavam o seu nome sempre dizia ser Mocinha. CONTO: COME, MEU FILHO De manhã, mãe e filho tomam café e dialogam enquanto isso. Paulinho, o filho, procura estabelecer um diálogo com a mãe, a fim de driblar a vigilância da mãe, a qual procura alimentar a criança. Esse conto ocorre em torno de uma situação bastante prosaica (a refeição) e é todo construído sob forma de um diálogo estabelecido entre a mãe, mulher não nomeada, e o filho. Essa estrutura dialógica dispensa a figura do narrador. Essa maneira de narrar se assemelha aos textos dramáticos. No primeiro parágrafo, o garoto é mostrado por dentro, há uma revelação do fluxo de consciência do personagem central: O mundo parece chato mas eu sei que não é. Sabe por que parece chato? Porque, sempre que a gente olha, o céu está em cima, nunca está embaixo, nunca está de lado. Eu sei que o mundo é redondo porque disseram, mas só ia parecer redondo se a gente olhasse e às vezes o céu estivesse lá embaixo. Eu sei que é redondo, mas para mim é chato, mas Ronaldo só sabe que o mundo é redondo, para ele não parece chato (LISPECTOR, 1998, p.39). Essas são algumas das reflexões que o menino expõe para a mãe, ao longo do diálogo entre os dois. Esses pensamentos do menino possuem uma estreita relação com a idade que aparenta ter. Os assuntos levantados pelo menino são desconexos, aspecto utilizado pela criança para evitar o alimento. Para isso, Paulinho levanta discussões infundadas como, por exemplo, quem teria inventado arroz com feijão, o mundo é chato e não redondo, o sorvete só é gostoso quando é igual à cor, o pepino parece inreal (LISPECTOR, 1998, p.39). De outro lado, a mãe de Paulinho responde às perguntas do filho de maneira direta, o que pode sinalizar a falta de paciência da mãe para com o filho que se esquiva a comer, por isso ela procura trazê-lo novamente para comer a refeição. O enredo do conto é fragmentado, não temos linearidade na narrativa. Isso acaba sendo um ótimo texto possuidor de inúmeras características da obra de Clarice: narrativa fragmentária, linguagem semelhante ao pensamento, curta descrição de um único momento da vida de algum personagem, um recorte cotidiano, profundidade psicológica, embora essa característica final, não se apresente com tanta complexidade, em virtude de se tratar dos pensamentos de uma criança, que no conto, são mais elementares. Colocaremos o trecho final do texto, o qual corresponde cinquenta por cento dele, para compreendermos melhor a estruturação dessa obra: - Não, por que é que você também achou que pepino parece inreal? Eu também. A gente olha e vê um pouco do outro lado, é cheio de desenho bem igual, é frio na boca, faz barulho de um pouco de vidro quando se mastiga. Você não acha que pepino parece inventado? 44

45 UFU 2017 Parece. Onde foi inventado feijão com arroz? Aqui. Ou no árabe, igual que Pedrinho disse de outra coisa? Aqui. Na Sorveteria Gatão o sorvete é bom porque tem gosto igual da cor. Para você carne tem gosto de carne? Às vezes. Duvido! Só quero ver: da carne pendurada no açougue?! Não. E nem da carne que a gente fala. Não tem gosto de quando você diz que carne tem vitamina. Não fala tanto, come. Mas você está olhando desse jeito para mim, mas não é para eu comer, é porque você está gostando muito de mim, adivinhei ou errei? Adivinhou. Come, Paulinho. Você só pensa nisso. Eu falei muito para você não pensar só em comida, mas você vai e não esquece (LISPECTOR, 1998, p.40). Esse é o menor conto da obra Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector, esse texto explora como outros, o universo infantil em oposição ao adulto. A mãe, como notamos anteriormente, não se coloca de maneira autoritária, são inúmeras as vezes que ela pede ao garoto para comer, embora não percebemos um tom agressivo vindo dela. É, também, por isso que Paulinho não para de falar, pois o discurso dá mãe, não anula a fala do outro. CONTO: PERDOANDO DEUS Livremente pela Avenida Copacabana, a narradora andava, olhava distraída os edifícios, as pessoas, o mar, sem pensar em nada, apenas contemplava. Nesse trajeto, sentia um raro momento de absoluta liberdade, aspecto conquistado, inexplicavelmente, por meio de um simples deslocar-se pelas ruas. A narradora permanecia atenta, porém sem deixar de ser livre, condição que a deixava satisfeita. Inesperadamente, a personagem teve uma descoberta única: se sentia a mãe de Deus e a mãe de tudo que existe. Isso é dito por ela sem nenhuma prepotência / superioridade, pelo menos no início do conto. A hipotética condição materna da narradora, ajuda-nos a compreender o estado de espírito dessa personagem. O sentimento de ser mãe do mundo expressa o enorme prazer de existir, por isso o intenso estado de satisfação experienciado por essa mulher. Esse sentimento veio à tona sem nenhuma razão de ser e transforma-se numa espécie de revelação súbita (epifania). Segundo a narradora: O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo, e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alargava, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre (LISPECTOR, 1998, p.42). Nesse conto, como podemos ver, Clarice Lispector, revela um tema bastante denso e conflituoso, a relação do homem com a esfera divina. A escritora parece ter plena consciência dessa condição, uma vez que ela se coloca diante de Deus de maneira bastante afetiva, num primeiro momento. Insistentemente, ela procura reafirma esse aspecto em sua fala. Contudo, a plena sensação de liberdade e plenitude são quebradas por meio da imagem repugnante de um rato morto à sua frente: E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos (LISPECTOR, 1998, p.42). A sensação de plena liberdade é substituída pelo desconforto, ao ver a figura do rato. A partir desse momento, a narrativa se transfigura, o enredo fragmenta-se em um fluxo de pensamentos da narradora. Assim, enredo dilui-se, característica comum à obra de Clarice, para dá lugar às profundas reflexões da personagem central. A visão do rato instaura uma revelação psicológica profunda, destruindo toda a satisfação anterior da personagem. A narradora trêmula continuou a sua caminhada, procurou cortar a conexão entre os dois fatos anteriores: o que sentia antes relacionado ao sagrado e ao rato. Porém, isso se tornou inútil. Segundo a personagem, os dois fatos tinham ilogicamente um nexo (LISPECTOR, 1998, p.42). E novamente, a narradora procura estabelecer um diálogo silencioso com Deus, a partir de agora, sob outro tom, diga-se de passagem, um pouco mais negativo do que o outro: De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admito e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem palavra terrena tem sentido (LISPECTOR, 1998, p.42). Esse texto é narrado em primeira pessoa, o que nos permite ter acesso direto ao universo interior da personagem. Antes do encontro lúgubre com o rato, a narradora vivenciava um momento epifânico, em que a sua alma era invadida por uma sensação de compreensão e pelo sentimento de afeto divino, porém, ela foi interrompida por um bicho o qual conseguiu aterrorizá-la. A presença do rato é uma espécie de insulto divino contra a narradora, a qual passa a ver Deus como um bruto : Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer. Mas só me ocorria a vingança (LISPECTOR, 1998, p.43). 45

46 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS O rato morto confere à personagem a compreensão de uma nova ordem existencial. O animal opera uma revelação da verdade, elemento essencial para o entendimento, até então mantido sobre o divino. A reação da personagem é de revolta, pois a sua orgulhosa dimensão humana a coloca mais próxima a Deus do que ao rato. Contudo, a revolta dá lugar ao sentimento de medo do Todo-Poderoso (LISPECTOR, 1998, p.43). A raiva sentida pela narradora a distancia de Deus ( Em mim é que ELE não estava mais. Em mim é que eu não o via mais - LISPECTOR, 1998, p.43). A narradora sentindo-se pequena, ela pensou estragar a reputação de Deus, relatando o episódio às pessoas, o que seria uma espécie de vingança dos fracos. Após cogitar essa ação, vemos um parágrafo iniciar por reticências e um mas (conjunção adversativa) que indica uma nova quebra na postura radical da narradora. A partir desse momento, o conto é terminado por um longo parágrafo, espécie de fluxo de consciência da narradora: [...] mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, é eu tinha pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia o amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. [...] Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. [...] É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte (LISPECTOR, 1998, p.44). Esse fluxo de consciência da personagem revela um grande impacto das experiências vividas, enquanto caminhava pela avenida. Com isso, a personagem passa por uma experiência de iluminação (entendimento). Assim, a partir do momento que for capaz de aceitar o seu próprio lado humano: Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho da minha natureza (LISPECTOR, 1998, p.44). A narradora percebe que é impossível fugir do essencial: como amar aquilo que está a seu redor se não ama sua própria realidade enquanto ser? Somente após desenvolver a sua concepção humana em relação a si mesma, que a personagem será capaz de perceber Deus de forma mais plena e menos estereotipada. Apenas por meio da alteridade que a narradora poderá ter acesso ao divino. Subentende-se que após a narradora se livrar de sua repugnância pelo rato, isto é, eliminar a sua presunção de superioridade, tornar-se-ia um sujeito mais humano e, portanto, digno de amar Deus: É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão (LISPECTOR, 1998, p.44). O conto nos oferece inúmeras reflexões da narradora sobre a nossa própria condição humana. O simples encontro com um ser repugnante para a personagem a leva a tomar uma profunda consciência dela mesma. Olhar o rato é aceitar o lado mais escuro da própria natureza humana, fração que também faz parte da nossa condição e da própria vida, por isso ela reflete: Talvez eu tenha que chamar de mundo esse meu modo de ser um pouco de tudo (LISPECTOR, 1998, p.44). Na parcela final do conto, há uma sugestão de que só é possível existir paz com o mundo, se existir paz consigo mesmo, isso implica aceitar-se. O ideário de um Deus bom, segundo o conto, é um obstáculo a está aceitação total de si própria. Por fim, a narradora conclui: Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que Deus é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe (LISPECTOR, 1998, p.45). A protagonista afirma desconhecer o mundo, pois não entende a sua própria plenitude, como se enxergasse um mundo que não é real. Aqui, a narradora nos chama atenção para a relação das pessoas com Deus, isto é, enquanto imaginar o Todo-Poderoso, como bom somente porque somos ruins, não amaremos nada. Primeiramente, devemos conhecer nós mesmos para depois amarmos o nosso contrário. Essa problematização da figura de Deus, tira-o de uma posição que não comporta questionamentos. A possibilidade de perdoar Deus demonstra como ele é construído muitas vezes sem sentido por quem diz realmente crê. Na verdade, não é Deus que precisa de perdão, mas a narradora que deve reformular o seu conceito sobre ele e seu modo de viver a experiência do sagrado. Como podemos ver, o conto se devolveu em três momentos: o primeiro a personagem apresentou uma situação de plenitude interior; o segundo, a narradora se confrontou com um rato morto e reagiu com revolta; por fim, temos inúmeras reflexões sobre o conflito provocado pelo encontro com o rato e o reconhecimento das próprias incapacidades humanas por parte da personagem central. CONTO: TENTAÇÃO Às quatorze horas, sob os raios brilhantes do sol, a protagonista desse conto, uma garota ruiva, estava sentada na porta de sua casa, segurando um bolsa vermelha. Como tantos outros textos de Clarice Lispector, esse se inicia por meio de uma situação cotidiana, porém, as poucas linhas do texto revela um sentido mais profundo, o intenso drama íntimo da personagem central. A rua estava vazia em virtude do calor do momento. O narrador cria uma ambientação desértica para sugerir solidão, desamparo e incompletude da menina. Os cabelos da personagem flamejavam. A cor dos cabelos é explorada de maneira significativa, no início do texto, para sugerir o não pertencimento da persongem, ou seja, o estrangeirismo na sua própria terra, o ruivo simboliza o diferente realçado pelo sol da tarde. 46

47 UFU 2017 A menina suportava o calor resignadamente sentada à porta de sua casa. Na rua, apenas dois viventes, a garota e uma pessoa esperando inutilmente o bonde. A garota ruiva fazia mínimos movimentos ocasionados pelo soluço. Abraçar uma bolsa velha de adulto com um amor conjugal já habituado (LISPECTOR, 1998, p.46) seria a única compensação para aquela hora incômoda (o fato de ser ruiva e de não se aceitar) e solitária em nossos tristes trópicos. A bolsa é o único apego, isto é, afeto que a menina tem naquele momento solitário. Esse objeto poderia também metaforizar o desejo da criança crescer e escapar ao tédio e à solidão daquela infância impossível, por isso o narrador caracteriza a bolsa como um objeto de adulto. Assim, como no conto Perdoando Deus 27, analisado anteriormente, que a personagem central é interrompida de sua harmonia interior, por meio de um elemento externo, a menina ruiva tem a sua atenção atraída por um basset acompanhado por uma senhora: Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo (LIS- PECTOR, 1998, p.46). A menina atônita abriu os olhos. Ambos se olharam. A condição física da garota a incomoda ( Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária - LISPECTOR, 1998, p.46), sentia-se estrangeira em seu mundo exterior e interior, porém o cachorro aparece com certa semelhança física, no que ser refere à cor do pelo. Cabe aqui um comentário sobre a cor vermelha explorada pelo conto. Na mitologia cristã, está cor carrega a simbologia associada à tentação, cujo símbolo primordial é a maçã. A menina olhou o animal com uma força pronta para possuí-lo de maneira afetiva, isto é, os homens são seres incompletos que, movidos pela força de Eros, buscam completar-se no outro que é apresentado como uma tentação expressada pelo título. A menina se sente fascinada pelo cão: Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu- -a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo (LISPECTOR, 1998, p.47). A relação de desejo afetivo da busca pelo outro que nos complete é bem demarcada no trecho: Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se com urgência, com encabulamento, surpreendidos (LISPECTOR, 1998, p.47). O humano e o animal estavam impossibilitados de qualquer forma de aproximação mais efetiva: No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha (LISPECTOR, 1998, p.48). Além das condições meteorológicas, havia inúmeras outras questões que separam o desejo do cão de ser da menina e o da menina de ser do cão (ela com a sua infância impossível e o cão com a sua natureza aprisionada). Por mais um instante, o suspenso sonho se quebraria e eles iriam distanciar-se. Nesse jogo amoroso entre criança e o cão, a menina é quem mais sofre com a impossibilidade de pertencimento: Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam [...] (LISPEC- TOR, 1998, p.48). O sofrimento dela é maior em função de sua inocente condição de criança, diferentemente do basset, que não possui nenhuma promessa de liberdade, por isso, ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás (LISPECTOR, 1998, p.49). 27 No caso desse conto o rato é o responsável pela quebra da satisfação interior da personagem central. O tema do amor impossível é bastante recorrente na obra de Clarice Lispector. Essa impossibilidade sempre se esbarra em algum elemento externo. Essa condição amorosa sugerida pelo conto é colocada de maneira figurada pelo título ( Tentação 28 ) e a própria narrativa sinaliza para isso como mostramos em alguns trechos. A potência do olhar estabelecido entre o cão e a garota também é bastante significativa para a compreensão do tema do texto. CONTO: O OVO E A GALINHA Esse é um dos contos mais enigmáticos de Clarice Lispector. Nele, o enredo é apagado para dá lugar às inúmeras reflexões (comentários) acerca de temas diversos. Numa comunicação sobre Literatura e magia, realizada em 1975, em Bogotá, no Primeiro Congresso Mundial de Bruxaria, que a escritora acabou não lendo, fez referência ao conto O ovo e a galinha como um texto misterioso, hermético para ela mesma. A própria escritora denomina esse texto como sendo uma obra hermética. Quando lemos esse conto, também o classificamos como a própria Clarice. A primeira ação do conto é a percepção imediata da narradora ao reconhecer sobre a mesa um ovo ( De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo - LISPECTOR, 1998, p.49). Esse olhar lançado sobre o objeto observado dá lugar ao olhar que inventa o ovo imaginado. A narradora, além de está empenhada numa função alimentar, o café-da-manhã, prepara o texto. Esse conto narra uma atividade externa (preparar o ovo para o café-da-manhã) e interna (pensar o ovo). O primeiro olhar lançado sobre o ovo é pragmático. Em seguida, o objeto observado passa a ser visto de maneira criativa perdendo as singularidades que o individualiza no mundo. A rigor, poderíamos entender essa primeira frase como sendo o próprio conto e todo o restante seria uma espécie de reflexão da narradora sobre a escrita do texto. Assim, esse texto é uma reflexão sobre o próprio texto literário (metalinguagem). Portanto, esse conto é um texto crítico, nele Clarice reflete sobre o papel das palavras. Para que elas servem? Para encobrir, ou para apontar? Para dizer, ou ocultar? Se o ovo é a própria produção artística, talvez, seja por isso que ele aparece no conto como uma substância original a qual daria origem a todos os processos de diferenciações. Ver o ovo como um objeto nomeado é o mesmo que reconhecê-lo como tal, impedindo qualquer ampliação do olhar ( Ver o ovo nunca se mantém no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto um ovo há milênio LISPECTOR, 1998, p.49). Ver o nomeado não possibilidade a ampliação da nossa percepção, por isso a narradora diz: Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo. Olhar é necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo. O ovo não tem um si-mesmo. individualmente ele não existe LISPECTOR, 1998, p.50). Para José Miguel Wisnik (1998), o conto O ovo e a galinha é um tratado poético sobre o olhar, que não se limita a comentar as vicissitudes do olho e do pensamento diante da coisa, mas cifra na própria escolha do objeto uma espécie de circularidade enigmática do olhar (1998, p. 287). Ainda sobre esse conto, o estudioso comenta: mesmo assim, pro- 28 A palavra tentação vem do latim tentatio e liga-se à ideia de desejo, impulso, sedução. 47

48 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS totípico, alegórico, marca sublimada e apagada de um real que hesita entre a consciência e o inconsciente, o eu e o Outro, o ovo não deixa de ser, no conto de Clarice Lispector, o ovo doméstico, cotidiano (1998, p. 287). A protagonista está diante de um ovo real que lhe oferece um poderoso mecanismo para tentar compreender o processo de nomeação e representação do universo humano. O ovo, no texto de Clarice, é a palavra que foge da compreensão, em outros termos, segundo Benetido Nunes: sendo ovo, aquilo de que repetidamente se fala, passível de receber outros nomes, será até o fim do conto excedentário aos símbolos destinados a circunscrevê-lo, reaparecendo sempre, objeto visível de significado indizível, através dos elos que compõem a teia linguística das definições que o transportam (NUNES, 1989,. 92-3). O ovo é o grande motivo/ desmotivo dessa narrativa, isto é, do início ao fim, a narradora nos oferece significações ilimitadas reaparecendo sempre como um objeto visível de significado indizível. No conto, o ovo da cozinha transfigura-se em outro ovo: Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu entender é porque estou errada. Entender é a prova do erro (LISPECTOR, 1998, p.52). Nesse trecho podemos ver que o olhar humano é capaz de recriar, por meio da arte/palavras/ imaginário, aquilo que é sensível. Essa transformação da coisa real em coisa abstrata/recriada/reinventada é o papel da arte. O ovo poderia ser lido como uma obra de um escritor à frente de seu tempo. Seu fazer literário é, pois, revolucionário e se encontra adiantado demais para a sua época. Normalmente, certos textos não podem ser compreendidos em seu momento de escritura, pois lança um olhar à frente do momento de sua realização. Por isso, o conto O ovo e a galinha, cujo ovo foi chamado por Haroldo de Campos de ovo-enigma (SÁ, 1979, p ). Para Chevalier e Gheerbrant, o ovo, considerado como aquele que contém o germe e a partir do qual desenvolverá a manifestação, é um símbolo universal e explica-se por si mesmo (p. 672). Porém, mesmo observando a simbologia do ovo, de acordo com os estudiosos, no texto de Clarice, a representação contida nesse objeto nos escapa à compreensão. A própria narradora do texto afirma que o ovo retratado por ela é um esquivo. O ovo é esquivo justamente porque a nossa maneira de olhar para ele impede que possamos compreendê-lo em sua totalidade. Então, a escritora parece lançar uma proposta para a nossa maneira de ver o mundo ofertando-nos variáveis olhares sobre o mesmo objeto. Essas inúmeras afirmações e contradições apresentadas pela narradora sobre o ovo, nos faz pensar acerca dos limites de um texto literário. O que seria necessário para se contar uma história? Nesse conto de Clarice, o leitor se perde entre essas variáveis informações acerca do objeto retratado, o que acaba diluindo a história em cada reflexão realizada. Clarice, nesse texto hermético, toca na possibilidade do escritor perder a sua liberdade no ato da escrita. Por isso, a narradora diz: Ou é isso mesmo que eles querem que em aconteça, exatamente para que o ovo se cumpra? É liberdade ou estou sendo mandada? (LISPECTOR, 1998, p.52). O escritor se coloca entre os leitores e editores, cumprindo a árdua tarefa de 29 (Haroldo de Campos. Prefácio. In. Sá, 1979, p. 15). colocar sobre o papel aquilo que, de certa maneira, agrade ambas as partes. Tudo isso pode sugerir desagradar a si mesmo. Assim, aparece o tema da escrita como traição. O ovo como metáfora do ato da escrita também aparece no texto Água viva : Isso tudo que estou escrevendo é tão quente como um ovo quente que a gente passa depressa de uma mão para outra e de novo da outra para a primeira a fim de não se queimar já pintei um ovo. E agora como na pintura só digo: ovo e basta (LISPECTOR, 1998, p. 76). Inúmeros foram os artistas que se viram fascinados pela imagem do ovo: Jérôme Bosch ( O concerto no ovo, O jardim das delícias ), Anita Malfati ( Urubu ), Giorgio de Chirico ( O adivinho, Heitor ), Salvador Dali ( A madona de Port Ligatt, Ovos fritos sobre um prato sem o prato ), entre outros. A figura do ovo é eleito pelo homem como um dos principais símbolos da criação cósmica. Olga de Sá, sobre o conto O ovo e a galinha, sinaliza para a presença de provérbios, máximas parataxes 30 (SÁ, 1979, p. 262) e acredita que a autora discute a impossibilidade de nomeação do que aparece no escrito sob o signo ovo. Já Regina Lúcia Pontieri, em Clarice Lispector: uma poética do olhar, mostra que o ovo vive do esvaziamento e preenchimento semânticos, o que se revela frequentemente: A materialidade gráfica reitera a letra que desenha a ausência, sendo assim, o símbolo matemático do zero: Ovo. [...] O ovo traça circularmente o vazio onde tudo está (PONTIERI, 1999, p. 219). Às vezes, o ovo parece desviar-se de algo, uma espécie de grito de liberdade contra uma força opressora, ou mesmo uma forma de desviar a atenção da própria essência daquilo que se tenta contar. As possibilidades de interpretação desse conto, como toda obra de alta qualidade, são inúmeras. O ovo é um subterfúgio para tentar alcançar aquilo que a narradora procura dizer. As palavras tentam explicá-lo, mas acabam criando uma espécie de labirinto sem a mínima possibilidade de saída, mesmo porque, talvez, seja assim, que a própria escritora sinta-se diante das exigências do público e editores. O conto O ovo e a galinha, portanto, pode ser lido como um grito de liberdade da autora que rompe completamente com aquilo que viria a ser uma história. CONTO: CEM ANOS DE PERDÃO Esse é outro conto bastante pequeno da obra Felicidade Clandestina. A narradora revela alguns episódios marcantes de sua vida na cidade do Recife. Ela e a amiga gostavam de transitar pelas ruas de classe alta a fim de brincar de ser donas dos enormes casarões: Aquele branco é meu [...] Não, eu já disse que os brancos são meus [...] Mas esse não é totalmente branco, tem janelas verdes (LISPECTOR, 1998, p.60). Em uma dessas brincadeiras, as duas amigas pararam diante de uma casa a qual parecia com um castelo. Na parte da frente da residência havia canteiros de jardins. Em um desses canteiros estava uma rosa entreaberta cor-de-rosa-vivo. Assim, cresceu na menina o desejo de possuir a rosa ( Fiquei feito boba, olhando com admiração aquela rosa altaneira que nem mulher feita ainda não era (LISPECTOR, 1998, p.60). 30 Sequência de frases justapostas em um texto. 48

49 UFU 2017 Não perceberam a presença do jardineiro o qual poderia expulsá-las de lá. Com isso, a narradora propôs à amiga que vigiasse as janelas da casa, ou a aproximação ainda possível do jardineiro, vigiar os transeuntes raros da rua (LISPECTOR, 1998, p.60). A narradora abriu o portão e pé ante pé, porém com certa velocidade rodeou o canteiro e roubou a rosa: Eis-me afinal diante dela. Para um instante, perigosamente, porque de perto ela ainda é mais linda. Finalmente, começo a lhe quebrar o talo, arranhando-me com os espinhos, e chupando o sangue dos dedos (LISPECTOR, 1998, p.61). Com a rosa em casa, a narradora a colocou dentro de um copo com água. A posse imaginária dos casarões alegrava as duas garotas dando a elas um caráter de redenção diante das possíveis dificuldades econômicas da vida. Possuir as rosas dava às meninas uma glória que ninguém poderia tirar. No palacete a narradora viu um jardim e um pomar. Os canteiros onde as rosas estavam eram cercados de pedras, espécie de barreira simbólica para o desejo da criança. Além das pedras, a menina, anteriormente, teve que passar por um portão de grade um pouco enferrujadas (LISPECTOR, 1998, p.60), o que sugere interdição às crianças da experiência e das dores do conhecimento. Como se nota, as rosas, e adiante na narrativa, as pitangas, simbolizam a subversão da ordem, que liberta as meninas, mesmo que por ínfimos instantes, das condições adversas da vida. Mesmo por meio da lembrança da narradora, que se encontra adulta, esses episódios tem o poder de lhe proporcionar um princípio de liberdade. Entre todos os símbolos presentes no conto, a rosa é um dos mais significativos. O primeiro roubo da menina se deu diante do desejo de posse da flor que pode ser compreendida como um indício de erotismo. As próprias descrições que a narradora realiza, colocadas a seguir no texto, sinalizam para esse aspecto, por isso, sente-se mulher diante do objeto roubado olhando com admiração aquela rosa altaneira que nem mulher feita ainda não era (LISPECTOR, 1998, p.60). O coração da narradora bateu forte quando roubou pela primeira vez as rosas: Para um instante, perigosamente, porque de perto ela ainda é mais linda. Finalmente começo a lhe quebrar o talo, arranhando-me com os espinhos, e chupando o sangue dos dedos (LISPECTOR, 1998, p.61). O talo da rosa apresenta uma simbologia fálica reforçada pelo erotismo da boca deslizando sobre os dedos úmidos. A sensação obtida pelo furto e a intensa relação com o objeto roubado adquire contos paradisíacos semelhantes aos do prazer sexual ( Sempre com o coração batendo e sempre com aquela glória que ninguém me tirava LISPECTOR, 1998, p.62). Após o roubo da rosa, a narradora criou o hábito de furtar pitangas numa igreja presbiteriana próxima ao palacete: [...] rodeada por uma sebe verde, alta e tão densa que impossibilitava a visão da igreja (LISPECTOR, 1998, p.62). No templo religioso estava o produto do roubo, porém não era visto pela menina que estaria assim cometendo uma espécie de profanação ao furtar algo no lugar. Contudo, o sentimento de culpa não aparece, uma vez que a igreja não estava em seu campo de visão: [...] eu metia a mão por entre as grades, mergulhava-a dentro da sebe e começava a apalpar até meus dedos sentirem o úmido da frutinha. Muitas vezes na minha pressa, eu esmagava uma pitanga madura demais com os dedos que ficavam como ensanguentados (LISPEC- TOR, 1998, p.62). O roubo das pitangas era feito às pressas, deixando os dedos da menina como ensanguentados, do mesmo modo que descreve o furto da rosa: Finalmente começo a lhe quebrar o talo, arranhando-me com os espinhos, e chupando o sangue dos dedos (LISPECTOR, 1998, p.61). Em ambos os roubos temos imagens sugestivas de sucessivos defloramentos e erotismo, visto a maneira pela qual a menina manuseia os objetos e o resultado que essa ação implica, deixando sempre um produto fluido nas mãos. Nunca ninguém soube dos roubos praticados, o que se subentende que essas ações duraram por alguns anos na vida das duas garotas, por isso o ladrão de rosas e de pitangas tem 100 anos de perdão (LISPECTOR, 1998, p.62). No final do texto, novamente temos um importante enunciado da narradora que diz: As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pedem para ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens (LISPECTOR, 1998, p.62). A narradora na condição de menina-mulher é metaforizada pela imagem das pitangas a espera de alguém que as colha. Dessa maneira, como essas frutas, a menina quer ser vista e tocada de outra forma a fim de não morrer intocável e virgem. REFERÊNCIAS: BACHELARD, Gaston. O labirinto. In: A terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens da intimidade. São Paulo: Martins Fontes, CANDIDO, Antonio. No raiar de Clarice Lispector. In: Vários escritos. São Paulo: Duas cidades, LISPECTOR, Clarice. A descoberta do Mundo. Rio de Janeiro: Rocco, LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, LISPECTOR, Clarice. Outros Escritos. Organização de Teresa Montero e Lícia Manzo. Rio de Janeiro: Rocco, MANZO, Lícia. Era uma vez: Eu a não ficção na obra de Clarice Lispector. Curitiba: Secretaria do Estado de Cultura: The Document Company Xerox do Brasil, MOSER, Benjamin. Clarice. São Paulo: Cosac Naify, NUNES, Benedito. Clarice Lispector ou naufrágio da introspecção. Remate de Males. n. 9. Campinas: Unicamp, PONTIERI, Regina Lúcia. Clarice Lispector: uma poética do olhar. São Paulo: Ateliê Editorial, SÁ, de Olga. Clarice Lispector: Processos criativos. Petrópolis: Vozes; Lorena: Faculdade Integradas Teresa D Ávila, VIEIRA, Nelson. A linguagem espiritual de Clarice Lispector. In: Travessia. Revista do curso de Pós-Graduação em Literatura brasileira. Florianópolis: UFSC, n 14, WISNIK, José Miguel Soares. Iluminações profanas, profetas, drogados. In. NOVAES, Adauto e al. O olhar. São Paulo. Companhia das Letras,

50 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS ANÁLISE DA OBRA A METAMORFOSE 31, DE FRANZ KAFKA, por Henrique Landim 32 Olha só, que cara estranho que chegou Parece não achar lugar No corpo em que Deus lhe encarnou Tropeça a cada quarteirão Não mede a força que já tem Exibe à frente o coração Que não divide com ninguém Tem tudo sempre às suas mãos Mas leva a cruz um pouco além Talhando feito um artesão A imagem de um rapaz de bem [...] ( Cara Estranho, da banda Los Hermanos). DADOS BIOGRÁFICOS DO AUTOR tor acabou optando pelo curso de química, seguindo seus amigos Oskar Pollak e Hugo Bergmann, mas não permaneceu no curso por quinze dias, matriculando-se, em seguida, em Direito,pois assim poderia satisfazer o seu pai e, ao mesmo tempo, seguir a sua verdadeira vocação. Vale dizer que, durante o curso, às vezes, aproveitava para seguir as aulas de literatura e poesia. No ano de 1906, o escritor terminou o curso superior de direito. Em 1908, conseguiu um emprego no Instituto de Seguros contra Acidentes de Trabalho, no qual exercia as suas atividades no período das 8 às 14 horas. Logo seria promovido a escrevente chefe e passou a trabalhar apenas meio período por dia, podendo, assim, dedicar-se à literatura. No ano de 1917, aos 34 anos, Kafka sofreu a primeira hemoptise, fruto de uma tuberculose que iria levá-lo à morte em sete anos. A partir desse momento, o escritor mantinha-se internado, por alguns intervalos, em sanatórios e, mesmo com o processo degenerativo da doença, o escritor ainda trabalhava. No ano de 1922, Kafka aposentou-se, entretanto continuava a escrever. Para ele tudo que não era literatura o aborrecia. Kafka, no campo amoroso, teve envolvimento com algumas mulheres. Ele chegou a morar com Dora Diamant, em Berlim, no ano de 1923, porém o seu estado de saúde agravou-se, obrigando-o a seguir para o sanatório Wiener Wald. Não ficou muito tempo nesse lugar. Com tuberculose na laringe, o escritor foi internado em outro sanatório, nas proximidades de Viena, onde morreu, no dia 03 de junho de 1924, aos 40 anos. Graças a Max Brod, seu grande amigo desde a infância, podemos hoje ter acesso aos textos de Kafka que, num testamento, pediu o amigo que queimasse todos os seus escritos. Numa carta anterior, o escritor disse: Filho de Herman Kafka, comerciante judeu que venceu na vida a custo de muito esforço pessoal, condição sempre valorizada, mesmo de forma arrogante diante do filho. A mãe do escritor, Julie Lowy, ajudava o marido nos negócios da família. O casal, antes de ter Franz Kafka, viu nascerem outros dois filhos, porém ambos morreram logo após o nascimento. A relação do escritor com o pai sempre foi marcada pelos conflitos, como ele mesmo relatou em seu livro intitulado de Carta ao pai, escrito aos 36 anos e publicado postumamente. Esse livro é uma sensível reflexão sobre a relação entre pai e filho que se vê fracassado diante das expectativas paternas. A possível relação arbitrária entre os dois não servirá como tônica para a nossa compreensão da obra A metamorfose, porém poderemos usá-la se necessário. Após concluir os estudos no ginásio alemão de Praga, Kafka pensou em fazer filosofia, contudo o pai não era favorável a essa opção de curso, alegando que filosofia não era interessante sob o ponto de vista financeiro. Assim, o escri- 31 Em alemão o livro recebeu o seguinte título: Die Verwandlung. 32 Graduado em Letras pela Universidade Federal de Uberlândia e mestre em Teoria Literária pela mesma instituição. De todos os meus escritos, os únicos livros que podem ficar são: O veredicto, A metamorfose, Na colônia penal, Um médico de província e o conto Um artista da fome. (As poucas cópias de Contemplação podem permanecer. Não quero dar a ninguém o trabalho de macerá-las; mas que nada desse volume torne a ser publicado). Max Brod não atendeu ao pedido de Kafka; interpretou a carta do escritor como algo de alguém que não soubesse o que estava fazendo. Da gaveta do escritor, Brod ainda salvou obras como O processo, O castelo, por exemplo. GÊNEROS LITERÁRIOS Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos. (...) O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem. (Poema O bicho, de Manuel Bandeira) 50

51 UFU 2017 O dicionário Aurélio define gênero: qualquer agrupamento de indivíduos, objetos, fatos, ideias, que tenha caracteres comuns; espécie, classe, etc. Seguindo essa definição, a literatura, desde a Antiguidade, teve divididos os textos que tenham caracteres comuns, em três grandes categorias: épico, lírico e dramático. Quanto à forma, esses textos podem se manifestar em prosa ou verso. A obra A metamorfose, de Franz Kafka, pode ser compreendida como uma produção narrativa. Vale dizer que o gênero narrativo consiste em relatar um fato ou uma história de ficção. A obra desse gênero mostra um enredo em que se tem uma situação inicial, a modificação desta situação, um conflito, o clímax (o ponto de tensão na narrativa) e o chamado epílogo, que é a solução narrada no ponto máximo da história. Os elementos que compõem tal gênero são: o narrador, o tempo, o lugar, o enredo ou situação e as personagens. O gênero narrativo pode vir a nós, leitores, pelas maneiras mais usuais que são as modalidades desse gênero: romance, novela, conto, crônica e fábula. O GÊNERO NARRATIVO A novela pertence, como o conto e o romance, ao gênero narrativo. A novela é uma modalidade literária cujas fronteiras não estão muito bem definidas, misturando-se, por vezes, com o conto ou com o romance. De vez em quando, encontramos novelas apelidadas de contos; entretanto o mais usual é vermos romances qualificados como novelas ou novelas com a designação de romances. No geral, é adotada uma distinção mecânica, baseada no número de páginas ou de palavras: a novela contém de cem a duzentas páginas, ou mais de vinte mil palavras, ou seja, situa-se a meio caminho entre o romance e o conto, menos extensa que o primeiro, mais longa que o segundo (MOISÉS,1988, p.361). Portanto, nessa espécie narrativa, condensam-se os elementos do romance, com diálogos rápidos, sem muitas divagações, ensejando ao autor um encaminhamento da história para o final mais rápido. Nesses casos, a fronteira torna-se tão tênue que é necessário comparar e analisar todos os aspectos do texto antes de fixá-lo num compartimento. Logo, não basta verificar superficialmente o tamanho, o número de ações e de personagens para classificar um texto. Para Hênio Tavares Costumam os autores fazer distinção entre o romance, a novela e o conto pela extensão de cada uma dessas espécies. O romance seria a obra mais longa, a novela menos longa que o romance e mais extensa que o conto. A precariedade do critério salta aos olhos. Não é pelo número de páginas que uma espécie se destaca da outra, mas sim pela técnica da construção, segundo nos ensina Soares Amora. A novela condensa os elementos do romance: os diálogos são rápidos, as narrações diretas, sem circunlóquios ou divagações, as descrições impressionistas, tudo ensejando a precipitação da história para seu desenlace (TAVARES, 2002, p.122). A novela é, então, uma narrativa que se foca na ação, que pode ou não ter uma aparência fundamentalmente sentimental, e todas as ações contribuem para a conclusão da ação central, que deverá pôr um ponto final em todas as intrigas que foram exploradas, condição não muito aplicável ao nosso texto analisado, A metamorfose. As personagens, cujo número varia, dependendo do número de ações, são geralmente planas, ou seja, construídas em torno de uma só ideia ou qualidade. Em geral, são definidas em poucas palavras. O espaço na novela é mais explorado que no conto, permitindo um maior envolvimento do leitor, e o tempo tende a prender-se num presente constantemente atualizado, de modo que o leitor se defronta sempre com a ação a decorrer no aqui e agora. A obra de Kafka, A metamorfose, classificada como novela, traz um título que tem sempre uma função primordial nesse gênero que é um verdadeiro título-tema. Quando o lemos, percebemos logo o assunto que será desenvolvido no texto. O desenvolvimento começa já no primeiro parágrafo: Certa manhã, após um sono conturbado, Gregor Samsa acordou e viu-se em sua cama transformando num inseto monstruoso (KAFKA, 2010, p. 11).Nas páginas iniciais da novela, temos o desenvolvimento do tema expresso pelo título, isto é, a transformação profunda do protagonista Gregor Samsa. O que é notório em A metamorfose é a ausência de vários núcleos narrativos, pois a história se dá em torno do protagonista e, em torno dele, concentra-se toda a atenção, sem a presença dos chamados núcleos periféricos, que demandariam tempo e distrações. ENREDO CAPÍTULO I Na primeira página da novela, mais precisamente no primeiro parágrafo, temos a apresentação do problema central do texto: a transformação do protagonista em um inseto assustador. O narrador evita qualquer tipo de adjetivação que pudesse causar esclarecimentos, por meio da frieza de um relatório, não faz nenhuma preparação para chegar a terrível constatação física do sujeito, ele, simplesmente, por meio de uma economia vocabular, descreve: Certa manhã, após um sono conturbado, Gregor Samsa acordou e viu-se em sua cama transformando num inseto monstruoso. Deitado de costas sobre a própria carapaça, ergueu a cabeça e enxergou o seu ventre escurecido, acentuadamente curvo, com profundas saliências onduladas, sobre o qual a colcha deslizava, prestes a cair. Suas inumeráveis pernas, terrivelmente finas se comparadas ao volume do corpo, agitavam-se pateticamente diante de seus olhos (KAFKA, 2010, p. 11). O negativismo da narrativa de Kafka nos leva para um universo absurdamente insólito 33. O que mais espanta na leitura da novela é a naturalidade com que o personagem trata a situação. Parece estarmos diante de uma doença corriqueira como, por exemplo, um resfriado. Não há um grito de 33 que não é habitual; infrequente, raro, incomum, anormal. 51

52 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS desespero, somente a terrível constatação da metamorfose e a impossibilidade, pelo menos naquele dia, de cumprir o seu ritual diário: acordar cedo e prosseguir em sua rotina de caixeiro-viajante. O trecho revela uma descrição objetiva, vazada numa linguagem seca (o alemão protocolar do Império Austro-Húngaro). A nossa experiência cognitiva com o mundo nos nega aceitar a transformação de uma pessoa em um inseto, condição marcada por um profundo estranhamento. Ao mesmo tempo, parece que estamos diante de um mundo fantasioso, marcado por criaturas sobrenaturais, que vivem em lugares inóspitos 34. Contudo, o espaço demarcado é a casa, mais precisamente, o quarto do um caixeiro-viajante 35 Gregor Samsa. O quarto fechado torna-se o único espaço de ação desse impotente sujeito. Esse lugar apresenta uma caracterização interessante: não há corredores separando-o dos outros espaços da casa, mas três portas o ligam ao quarto do pai, ao da irmã e à sala de jantar, aspecto que sugere uma intimidade altamente forçada e inconveniente. O próprio narrador afirma que Gregor não estava diante de um sonho, pois o quarto é o ambiente facilmente reconhecido pelo protagonista: Em cima da mesa está o mostruário de tecidos - pois Samsa era caixeiro viajante e acima dela, numa elegante moldura dourada, a fotografia que recentemente recortara de uma revista ilustrada. Era a figura de uma senhora, muito aprumada, com chapéus e estola 36 de pele, empunhando na direção do observador uma manga, igualmente de pele, que lhe ocultava o antebraço por inteiro (KAFKA, 2010, p. 11). A abertura do livro comunica-se, indiretamente, com os contos de fada que são iniciados pela expressão era uma vez, porém o universo kafkiano não permite aventuras ao sabor das peripécias do protagonista. Nesse caso, Gregor tem a vida controlada pelos ponteiros do relógio e, também, pelo espaço limitado de seu quarto. A absurda transformação do caixeiro viajante fecha-o ainda mais entre as quatro paredes. Quase todo o enredo da novela se passa dentro de um espaço limitado e delimitado. O homem inseto permanecerá entrincheirado sem nenhum horizonte de expectativas. Resta ao sujeito rastejar-se, confinado em seu locus, não há comunicação possível com o ambiente externo e sem possibilidade de qualquer diálogo humanamente interpretável. Segundo Adorno: O deslocamento é moldado segundo o costume ideológico que glorifica a reprodução da vida como um ato de graça dos empregadores, que dispõem sobre ela. Ele descreve um todo no qual aqueles que a sociedade aprisiona, e que a sustentam, tornam-se supérfluos. Mas o sórdido, em Kafka, não se esgota nisso. Ele é o criptograma 37 da fase final e resplandecente do capitalismo, que Kafka exclui para determiná-lo em sua negatividade (ADORNO, 1998, p. 252). Como vemos na novela A metamorfose, o universo kafkiano é marcado pela presença do homem comum, operário, caixeiro viajante, costureiro, contínuo, balconista, que precisa prestar contas de seu serviço ao seu superior e, quase sempre, se vê mergulhado em situações embaraçosas que não se resolvem. 34 Que não recebe com hospitalidade; Diz-se do lugar que apresenta más condições de vida para o Homem; 35 Representante de vendas; 36 Tipo de indumentária religiosa, usada pelos padres nas missas e outras cerimônias, tem formato de uma faixa larga que é posta na nuca deixando as duas pontas deslizar sobre o peito chegando até próximo dos joelhos; em alguns casos é transpassada num dos ombros tendo as pontas unidas num dos lados do ventre. 37 Mensagem ou documento expresso de maneira cifrada; Todorov analisa a obra A metamorfose como uma narrativa do sobrenatural. Para esse estudioso, o sobrenatural aparece logo na primeira página do livro: Certa manhã, após um sono conturbado, Gregor Samsa acordou e viu-se em sua cama transformando num inseto monstruoso (KA- FKA, 2010, p. 11). Contudo, a novela de Kafka se distingue das narrativas fantásticas tradicionais, pois o acontecimento estranho não aparece seguido de indicações indiretas, mas logo no início do texto. Para ele a narrativa fantástica partia de uma situação perfeitamente natural para alcançar o sobrenatural, A metamorfose parte do acontecimento sobrenatural para dar-lhe, no curso da narrativa, uma aparência cada vez mais natural; e o final da história é o mais distante possível do sobrenatural (TODOROV, 2008, p. 179). A realidade representada em A metamorfose é absurda e anômala. As ações são tão sobrenaturais que não provocam hesitação no leitor, segundo Todorov (2008, p. 181). Sendo assim, o texto apresenta fatos estranhos, fora da ordem tradicional, que, entretanto, podem ser explicados pelas leis da racionalidade, conforme explica Todorov 38. Acreditamos que o fantástico, no texto de Kafka, funciona como artifício para chamar a atenção sobre a desumana realidade do sujeito. Temos aqui, na verdade, uma espécie de realismo trágico e grotesco. A natureza alegórica do texto mostra as incertezas e os absurdos do homem moderno. Talvez, Gregor necessitasse da transformação para poder se libertar do trabalho e da família em função de uma existência mais digna e autêntica. Para Coutinho, Kafka: transforma o fantástico num instrumento de autênticas catarses: sua obra não confirma os receptores em sua falsa consciência, mas os obriga a entrar em contato com uma realidade nova, cujo conhecimento os leva a uma tomada de posição diante de si mesmos e do mundo manipulado que os envolve (COUTINHO, 2005, p.174). A condição animalesca é um enigma para nós, leitores, e para o próprio herói. A inusitada transformação do protagonista nos causa bastante estranhamento. Como observou Modesto Carone (2009), grande especialista kafkiano no Brasil, a novela parece uma fábula invertida, que começa pelo clímax, isto é, a obra é aberta pelo ponto de maior tensão da narrativa. No mundo de Kafka, tudo parece invertido, irreal, fantástico. Assim, contrariando a convenção literária que o clímax é projetado para o final, vemos em A metamorfose que o escritor traz para o início o ponto alto do enredo, ou seja: aqui a coisa narrada não caminha para o auge, ela se inicia com ele (CARONE, 2009, p. 32). Gregor Samsa se questiona: - O que aconteceu comigo? (KAFKA, 2010, p. 11). Pensou em dormir um pouco mais, acreditava que talvez a sua condição física fosse alterada com o sono. Entretanto, dormir não seria possível, uma vez que a sua condição não permitia adormecer em sua maneira predileta. A metamorfose do personagem não é um pesadelo do qual pudesse acordar, pelo contrário ela é definitiva. A súbita transformação não é um disparate, mas uma espécie de licença poética transformada em fato com a qual todos nós (leitor e protagonista) teremos que nos conformar. 38 Para esse estudioso, a fórmula que melhor resumo a essência do fantástico é: quase cheguei a acreditar (TODOROV, 1970, p. 150). 52

53 UFU 2017 Anders (2007, p. 15), estudioso da obra de Franz Kafka, faz uma interessante observação: A fisionomia do mundo kafkiano aparece desloucada. Mas Kafka deslouca a aparência aparentemente normal do nosso mundo louco, para tornar visível sua loucura. Manipula, contudo, essa aparência louca como algo muito normal e, com isso, descreve até mesmo o fato louco de que o mundo louco seja considerado normal (grifo do autor). Kafka, segundo o estudioso acima, apresenta situações deformadas para introduzir o seu objeto principal, o homem. Logo, o espantoso é a própria realidade que aparece determinada pelo mundo do trabalho que desumaniza e oprime os sujeitos. No universo kafkiano até a simples prática do acordar, torna-se algo tenebroso, um pesadelo sem volta, portanto, irresolvível. Sendo assim, Gregor fechou os olhos para não ter que ver o movimento frenético das inúmeras perninhas de seu novo corpo. Pensou negativamente na profissão que exercia, a de caixeiro viajante, sentiu-se oprimido pelo ofício, mas sobretudo pela figura de seu chefe: Se eu fizesse o mesmo, levando em conta o chefe que tenho, já estaria no olho da rua. [...] Não fosse por causa dos meus pais, já teria pedido as contas há muito tempo: eu me postaria diante do chefe e lhe diria, com todas as letras, tudo o que penso. Ele cairia da mesa (KAFKA, 2010, p. 12). O trabalho exercido por Gregor é fruto de uma dívida adquirida pelo seu pai no passado, o que indica a condição compulsória do emprego: No momento em que juntar o dinheiro que meus pais lhe devem talvez eu consiga em mais cinco ou seis anos -, não tenho dúvidas de que o farei. Aí sim, mudo de vida. Mas, por ora, o que preciso fazer é levantar-me, pois o trem parte às cinco (KAFKA, 2010, p ). O protagonista não tem mais a possibilidade de viver a sua própria vida. Gregor Samsa se abdicou de ser que o era ou fosse, para dedicar-se somente ao trabalho, a fim de cumprir com a dívida oriunda da falência de seu pai. Portanto, ele não trabalhava por uma motivação de ordem subjetiva, mas de ordem pragmática, isto é, sanar a dívida de seu pai. Havia cinco anos que Gregor trabalhava na mesma empresa e ainda necessitaria de outros cinco para cumprir com as obrigações pecuniárias herdadas do pai. Em todos os anos de trabalho, o protagonista nunca houvera faltado por nenhum motivo. Ao certo, seria a primeira falta em cinco anos, isso também o aflige. O relógio despertou às quatro horas da madrugada, porém Gregor não despertou, não conseguiu escutar o alarme. Agora planejava pegar o trem das sete horas, infelizmente ouviria a bronca do chefe. Os maus pensamentos invadiram Gregor e, no mesmo momento em que o despertador marcava quinze para as sete, alguém bateu de leve na porta do quarto: - Gregor era a voz de sua mãe -, são quinze para as sete. Você não iria viajar? (KAFKA, 2010, p. 14). O personagem respondeu com uma voz chiada que já estava levantando. O pedido da mãe levou ao conhecimento dos outros membros da casa cerca consciência da condição de Gregor. Em seguida, o pai bateu a porta do quarto. A irmã, em outro quarto, perguntou discretamente ao irmão se estava tudo bem com ele. Gregor empenhou grande energia, sem buscar um ponto de apoio, simplesmente impulsionando para frente, contudo calculou mal a direção, chocando-se contra os pés da cama e a dor sobreveio-lhe. Insatisfeito, voltou para a posição original na cama. Queria sair da cama, mas deveria fazê-lo com serenidade, sem atitudes impensáveis. Com isso, quando necessitava pensar em algo detidamente, costumava concentrar o olhar na janela, mas infelizmente a neblina, encobrindo até o outro lado da rua, não permitia que se lhe infundisse algum ânimo ou inspiração (KAFKA, 2010, p. 16). Entre as quatro paredes opressoras, sem horizontes, o narrador poderia, talvez, ver pela janela aberta um possível conforto para a sua alma dilacerada, funcionando como esperança de melhoria do seu estado animalesco. Por ela entraria vida nova, daria para ver a rua, pessoas, carros, enfim, o dinamismo do mundo convidando-o a voltar à realidade. Da janela do quarto, dava para ver apenas uma neblina desalentadora. Já que a janela não oferecia nenhuma perspectiva, ficou deitado sem um mínimo movimento, respirando lentamente, como se aquilo pudesse lhe proporcionar a volta à sua condição de antes. O relógio marcava sete horas da manhã. Gregor sentiu- -se bastante oprimido por ele. Pensou que a empresa iria mandar alguém à sua casa. Então, decidiu sair da cama. A operação consistiu em inclinar a parte da frente do corpo para fora da cama. Assim, metade do corpo estava de fora da cama. Já houvera avançado bastante quando as sete e dez a campainha tocou: É alguém da firma, tenho certeza (KAFKA, 2010, p. 17). Não demorou muito para Gregor notar que estava em sua casa, era o gerente. Com isso, lançou-se fortemente ao chão. A queda resultou numa pancada surda que despertou a atenção dos outros: Gregor chamou então o pai -, o senhor gerente está aqui e gostaria de saber por que você não seguiu no primeiro trem. Não sabemos o que responder. Então, abra a porta, por favor. O senhor gerente não vai reparar na bagunça de seu quarto (KAFKA, 2010, p. 19). O pai interveio, porém o protagonista não abriu a porta. A irmã, no quarto da direita, começou a soluçar, sabia das consequências negativas para Gregor daquela presença opressora do gerente. O protagonista permanecia estendido sobre o tapete e ninguém que o visse naquele estado exigiria que ele abrisse a porta. E essa insignificante descortesia seria desculpada no momento oportuno. Dessa maneira, o gerente interveio: Senhor Samsa interveio o gerente, elevando a voz -, o que isso significa? O senhor entrincheirou-se aí em seu quarto, respondendo somente sim ou não. Deixe seus pais preocupados inutilmente e, diga-se de passagem, falta à sua obrigação na firma de maneira verdadeiramente inacreditável. Falo aqui em nome de seus pais e, como seu superior, peço-lhe muito seriamente que apresente uma explicação clara e imediata (KAFKA, 2010, p. 20). 53

54 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS A inserção da figura do gerente acentua ainda mais o clima de desconforto da narrativa. Esse personagem é a materialização da dívida 39 do pai de Gregor. Aqui, podemos notar como o mundo do trabalho já havia invadido a existência desse sujeito. O mal estar da situação é intensificado quando o gerente afirma que a posição de Gregor na firma era incerta, isto é, ele poderia ser demitido em virtude da falta. O mundo ficcional de Kafka revela um mundo arbitrário e antiteticamente dividido entre uns poucos que mandam e a maioria que obedece e só conhece a rigidez das leis e regras. Resta ao personagem fragilizado curvar-se diante do absurdo das relações. Para revelar esse absurdo, Kafka dá vida a um árduo jogo de contrastes entre o natural e o estranho, o absurdo e o lógico. Portanto, Gregor Samsa vive situações impensáveis dentro de uma realidade cotidiana. A consequência de um sistema que confere ao ser humano o último lugar é a alienação que o transforma numa espécie de autômato 40 facilmente manipulado. Assim, Gregor, ao longo das páginas, é um homem desorientado diante do poder do outro, parece estar em meio a um labirinto de proporções imensuráveis, tudo conspira para uma ordem caótica. Samsa, do quarto, respondeu que estava melhor e partiria no trem das oito. Contudo, o gerente não conseguiu entender com clareza a fala de Gregor: Entenderam algo do que ele falou? perguntou aos pais. Será que ele está se caçoando de nós? [...] Era uma voz de animal disse o gerente, falando baixo em comparação aos gritos da mãe (KAFKA, 2010, p. 23). A metamorfose de Gregor progredia ao ponto de modificar a sua capacidade de comunicação verbal. Ao longo do livro, iremos notar que ele perde o poder de se comunicar. A voz parecia um ruído animalesco. O pai pediu que Grete, a irmã de Gregor, fosse à procura de um médico e Ana, a empregada, de um serralheiro para abrir a porta. O mundo do trabalho anulou por completo o protagonista da obra. Gregor é um sujeito que anda na linha. A própria profissão de caixeiro viajante confirma esse aspecto: a imagem do trem, meio de transporte que se movimenta nos trilhos, poderia ser vista como um exemplo alegórico do mundo que exerce o seu controle sobre o sujeito, anulando- -o demasiadamente. O trem é um meio de transporte em que não há quase nenhuma possibilidade de decisão individual do passageiro, o seu trajeto é determinado pela linha e tem de ser cumprido, rigorosamente, dentro do tempo. Sendo assim, de maneira análoga, tanto no mundo do trabalho como familiar, Gregor é como o usuário do trem, isto é, alienado, à mercê de um modelo existencial previamente programado. A obra A metamorfose é a representação do mundo moderno que o homem padece em uma existência vazia de sensibilidade inteiramente consumida pelo automatismo que o prende. Gunther Anders delineou com precisão a obra de Franz Kafka: 39 No alemão Schuld apresenta duas traduções: dívida e culpa. A segunda tradução (culpa) remete diretamente à condição de Gregor, pois a palavra carrega em si um valor bastante psicológico, uma vez que ele assumiu a culpa da família e por ela irá responder até que possa se redimir das faltas do outro. As obras de Kafka são repletas desse sentimento de culpa do sujeito. Embora desconheça totalmente a natureza de sua falta, carrega, ao longo das páginas, esse sentimento. Gregor tem a convicção de que é culpado, contudo não sabe, com profundidade, a motivação de tal fato e também não tem a possibilidade de defender-se. Tudo isso, atesta o universo absurdo das narrativas de Kafka. 40 Máquina que imita o movimento de um corpo animado: o autômato de Vaucanson. Fig. Pessoa que não pensa nem age por si mesma. Milhares de vezes o homem de nossos dias esbarra em aparelhos cuja condição lhe é desconhecida e com os quais só pode manter relações alienantes, uma vez que a vinculação deles com o sistema de necessidades dos homens é infinitamente mediada: pois estranhamento não é um truque do filósofo ou do escritor Kafka, mas um fenômeno do mundo moderno só que o estranhamento, na vida cotidiana, é encoberto pelo hábito oco. Kafka revela, através da sua técnica de estranhamento, o estranhamento encoberto da vida cotidiana (ANDERS, 1969, p.17-18). A obra de arte, às vezes, se configura numa tônica do exagero, a fim libertar o nosso olhar dos condicionamentos impostos pela nossa cultura. Assim, os reais sentidos do nosso mundo são encobertos e passam despercebidos ao longo da nossa rotina. Kafka, por meio de seus textos, lança mão do estranhamento a fim de tirar o véu que encobre a existência. Conta-se que certa vez, numa exposição de Picasso, Gustav Janouch disse a Kafka que o pintor espanhol distorcia deliberadamente os seres e coisas. Kafka disse que o pintor não pensava desse modo, mas apenas registra as deformidades que ainda não penetraram em nossa consciência. A arte é um espelho que adianta, como um relógio, não as formas, mas as nossas deformidades (KAFKA apud CARONE, 2009, p. 37). O homem moderno se aceita como coisa, esquece que essa condição é adquirida lentamente e que vai sedimentando-o. Essas transformações são frutos do absurdo existencial no qual estamos mergulhados. Sendo assim, Kafka, em seu livro, denuncia por meio da metamorfose, o processo de aviltamento do ser que ocorre diariamente. Em Kafka temos: O inquietante não são os objetos nem as ocorrências, mas o fato de que as criaturas reagem a eles descontraidamente, como se estivessem diante de objetos e acontecimentos normais. Não é a circunstância de Gregor Samsa acordar de manhã transformado em barata, mas o fato de não ver nisso nada de surpreendente a trivialidade do grotesco que torna a leitura aterrorizante (ANDERS, 1969, p. 19). Sendo assim, Kafka deseja dizer que o natural e o não - espantoso da nossa realidade é pavoroso. Ele fez uma inversão: o que causa pavor não é espantoso. Essa é uma técnica que permeia a novela kafkiana, constituindo um elemento fundamental de seus textos. Franz Kafka escreveu e revisou as primeiras provas da novela A metamorfose nos anos de 1912 e 1914, respectivamente. Nessa época, os conflitos políticos, econômicos e sociais levariam à Primeira Guerra Mundial. Em um contexto de guerra, o ser humano sente-se pequeno, indefeso e temeroso. A qualquer momento, as pessoas poderiam ser aniquiladas como insetos. O escritor não ficou impassível a todo esse movimento de guerra e, possivelmente, a forma encontrada por ele para expressar os absurdos da guerra e a consequente desumanização do ser encontra-se, principalmente, nas páginas de sua novela animalista. Sigfried Kracauer, por exemplo, em seu ensaio sobre Kafka, diz: Eles foram escritos durante os anos da guerra, da revolução e da inflação. Embora nem uma única palavra no volume todo se refira imediatamente a estes eventos, eles figuram entre seus pressupostos (KRACAUER, S, 1977, p. 256). 54

55 UFU 2017 No livro A metamorfose, a incapacidade de falar da opressão da família, das injustiças sociais, dos aviltamentos físicos e morais, das atrocidades da guerra, do matar e morrer em massa e da zoomorfização do homem nos campos de batalha pode ser representada pelos sons incompreensíveis que Gregor produz ao tentar comunicar-se com o gerente. Gregor, porém, estava bem mais calmo. Sentiu-se novamente incluído entre os humanos, e passou a contar com as ações do médico e do serralheiro de uma maneira fantasiosa, fora de propósito. Em seguida, ele amparou-se na cadeira e deslizou em direção à porta, onde trocou de apoio, lançando-se contra ela, mantendo-se de pé, sustentado nela, com auxílio das pontas das perninhas, que tinham uma viscosidade aderente. Ali, descansou por um instante do esforço. Assim, tentou girar, com a boca, a chave da fechadura. Pareceu-lhe, então, que não possuía dentes como iria conseguir segurar a chave para girá-la? Em compensação tinha mandíbulas fortes, com as quais pôde iniciar a operação e nem percebeu que havia machucado a si com aquilo, pois um líquido amarronzado saía-lhe da boca e escorregava pela chave, pingando no chão. Em certo sentido, Gregor Samsa ignorava a sua metamorfose corporal, que era lembrada, sobretudo, quando necessitava movimentar-se em suas atividades diárias. Em nenhum momento do texto, é colocada em pauta a motivação para a metamorfose de Gregor. Talvez, se alguém se perguntasse sobre a questão, pudesse, quem sabe, reverter o quadro, ou para, pelo menos, entendê-lo melhor, sendo capaz de aprender, crescer, amadurecer e, ate mesmo, mudar. Um dos traços da obra de Kafka é essa sensação de nonsense, os personagens não sabem que rumo tomar, sentem-se presos, sozinhos e incomunicáveis. Gregor Samsa mordeu a chave com toda a força de que dispunha a fim de mover a chave, girou em torno da fechadura, pendurado pela boca e, de acordo com a necessidade, apertava a chave ou a empurrava para baixo com o peso de seu corpo. O dique da fechadura, abrindo-se finalmente, deixou-o aliviado e confiante, a ponto de congratular-se. Depois de abrir a porta, empurrou a maçaneta com a cabeça. A porta abriu-se parcialmente, não o bastante para que se pudesse vê-lo. Ele teve de girar o corpo com lentidão, enquanto pressionava uma das folhas da porta, tudo com extremo cuidado para não deixar que seu peso o levasse a cair de costas na entrada do quarto. Estava ainda entretido com essa difícil tarefa, sem pensar em outra coisa, quando ouviu de súbito Oh! do gerente, que pareceu um som forte de ventania, e, então, Gregor o avistou também. O homem levou a mão à boca e, estarrecido, retrocedeu pesadamente, como se empurrado por uma força invisível. A mãe, apesar da presença do gerente, ainda estava despenteada, com os cabelos eriçados - olhou primeiro para o pai, em seguida deu dois passos em direção a Gregor e tombou, desmaiada, espalhando as pregas da saia a seu redor, o rosto caído em cima do peito. O pai, com expressão hostil, cerrou os punhos, como se quisesse empurrar Gregor para dentro do quarto; depois, olhou em torno, absolutamente transtornado, colocou as mãos no rosto e chorou compulsivamente, estremecendo o peito robusto. Desse modo, Gregor não chegou a entrar na sala, permanecendo apoiado na outra folha da porta, que ainda estava fechada; deixava visível, portanto, apenas a parte superior do corpo, com a cabeça meio inclinada, olhando para fora do quarto. Nesse meio tempo, o dia já tinha clareado. Já se podia ver, no outro lado da rua, o grande prédio do hospital, com suas paredes escuras e suas janelas simétricas, que subvertiam a monótona rigidez da fachada. Ainda chovia, mas em pingos grandes e esparsos, de tal modo que era possível vê-los cair, quase um a um, no chão da rua. A mesa ainda estava posta, com todos os seus apetrechos e variedades, pois o café da manhã era para o pai a principal refeição do dia, e ele a prolongava com a leitura de diversos jornais. O protagonista em forma de inseto dirigiu a palavra ao gerente tentando se justificar, entretanto, desde as primeiras palavras de Gregor, o gerente tinha lhe dado as costas, fitando o com a cabeça voltada para trás. Não ficou parado em nenhum momento, pois enquanto Gregor falava, ele tentava se deslocar lentamente embora parecesse que uma força secreta o segurava. Gregor se deu conta de que o gerente não devia sair daquele jeito, pois o seu emprego ficaria perigosamente ameaçado. Era absolutamente necessário não deixar que o gerente fosse embora daquela forma, era imperativo acalmá-lo, convencê-lo. Dessa ação dependia seu futuro e de sua família. Passando pelo vão aberto da outra divisão da porta, Gregor caiu, buscando inutilmente sustentar-se nas incontáveis perninhas, soltou um breve gemido. Ele se encontrava emparedado, perplexo, diante de uma situação que começava a desvendar-se sem saída. Era necessário manter o emprego e garantir que a engrenagem familiar continuasse a existir. Até esse momento, não houve uma tentativa analítica, por parte de Gregor, de entender o que o levou àquela absurda condição de inseto. Parece que ele estava numa situação irreal, espécie de pesadelo. Com isso, quanto mais o texto apresenta esse aspecto de pesadelo e de irrealidade, mais se aproxima do real, pois é a realidade que, às vezes, apresenta a dimensão mais absurda. Toda a família se assustou com a imagem metamorfoseada de Gregor. O pai procurou empurrá-lo para dentro do quarto com o apoio de um jornal e uma bengala. Após muita dificuldade, Gregor chegou à porta do quarto. Notou que o seu corpo era muito largo para poder passar no vão aberto, e não ocorreu ao pai, dado o humor em que se encontrava, abrir a ou- 55

56 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS tra parte vertical da porta para lhe facilitar a passagem. O pai tinha uma ideia fixa: fazer Gregor entrar no quarto o quanto antes. Por fim, parte do corpo ergueu-se, meio de lado, e esfolou-se, deixando manchas repulsivas na porta. Gregor ficou entalado, sem poder fazer nenhum movimento, enquanto as perninhas de um dos lados remexiam-se no ar, e as do outro eram prensadas contra o chão. Foi quando o pai lhe deu, por trás, uma pancada enérgica, libertando-o do aperto, e impulsionando-o para dentro do quarto, onde ele caiu, sangrando abundantemente. Nisso, o pai fechou a porta, empurrando-a com a bengala, e tudo ficou em completo silêncio. CAPÍTULO II Somente à noite, Gregor despertou de um sono profundo, semelhante a um desmaio. O reflexo da iluminação da rua fazia-se presente no quarto, tanto no teto quanto na parte de cima dos móveis, contudo, embaixo, onde ele estava, tudo permanecia na mais absoluta escuridão. Utilizando de suas antenas, cuja utilidade começava a compreender, ele se deslocou lentamente até a porta para ver o que havia se passado. Mancava, pois em um dos lados do corpo havia um longo ferimento. Um das perninhas feridas pela manhã roçava sem vida no chão. Ao chegar à porta, percebeu que houvera sido atraído pelo cheiro de comida. Havia uma tigela cheia de leite açucarado e com pedacinhos de pão que fora colocada ali. Gregor estava faminto. Então, mergulhou a cabeça no leite até perto dos olhos, mas logo retirou-a, decepcionado, pois, além da dor que sentia do lado esquerdo, e só conseguisse comer se pusesse todo o corpo em movimento, o leite, que sempre fora sua bebida predileta, motivo pelo qual a irmã o havia colocado ali, agora não lhe apetecia nem um pouco. Quase com repugnância, afastou-se da tigela e deslocou-se para o meio do quarto. Além da transformação corpórea e alteração na voz, agora, Gregor inicia outro processo de animalidade. Aos poucos, também mudava os seus hábitos alimentares. Não lhe interessava o leite açucarado tão à maneira de seu antigo gosto humano, mas tudo aquilo que era recusado ao paladar das pessoas lhe serviria de bom grado. Do interior da casa, não saía nenhum ruído. Não obstante, o silêncio era total, embora a casa, sem dúvida, não estivesse vazia: Que vida tranquila minha família tem!, disse para si mesmo e, com os olhos fixos no escuro do quarto, sentiu-se orgulhoso por ter podido oferecer aos pais e à irmã um vida calma numa bela residência (KAFKA, 2010, p. 34). A família buscava retomar a normalidade da vida, mas o silêncio da casa é o indício de uma inquietude arraigada e compartilhada entre eles. A mudez é uma espécie de signo do ruído interno bastante incômodo. A comunicação é feita às avessas, na verdade, às escondidas, por meio de um jogo dissimulado de pequenos gestos que Gregor, às vezes, escutava sons de passos próximos à porta de seu quarto, como se estivessem à espreita do lado de fora. Gregor garantia o conforto e tranquilidade para toda a sua família, indiretamente. Para que essa condição se cumprisse, ele se anulava em um emprego compulsório de caixeiro viajante há cinco anos. Entretanto, o conforto e harmonia da casa estavam ameaçados pela condição de Gregor. Esse tipo de pensamento amedrontava-o, condição que expressa uma dificuldade de se libertar da família, aspecto estabelecido por meio dos frutos de seu trabalho. E por aí os seus pensamentos fluíam quando, repetidamente, se apossou dele um sentimento de vergonha que o levou a precipitar-se para debaixo do sofá, onde se sentiu mais à vontade, apesar do aperto que não lhe permitia mexer a cabeça e, sobretudo, apesar de seu grande corpo não caber por inteiro naquele espaço. Antes da transformação, pela manhã, momento em que todos puderam vê-lo, a família tentou, de todas as maneiras, entrar no quarto. Agora, a chave permanecia do lado de fora, indicando o permanente estado de medo: De manhã, quando a porta estava fechada, todos queriam entrar, mas depois que ele a abrira, ninguém se manifestara. E, ainda por cima, haviam deixado a chave no lado de fora da fechadura (KAFKA, 2010, p. 34). O questionamento feito pelo narrador no fragmento acima, poderia ser explicado: a família manifestou profunda preocupação para com Gregor, enquanto desconheciam a condição animal do filho. Bateram na porta do seu quarto, pois era necessário que ele fosse ao trabalho, caso contrário, o bem estar de todos estaria comprometido. A partir do momento em que Gregor se transformou em inseto, o equilíbrio financeiro doméstico entrou em crise, e, em consequência, ele deixou de ter um significado no lar. Se Gregor não atende mais ao mundo do trabalho, logo ele é rebaixado à condição de coisa, por isso, a chave permanecia do lado de fora da porta, subtraindo-lhe a chance de reintegrar-se ao mundo. Gregor, vítima de uma fatalidade que o transformou num inseto monstruoso, aos poucos, vai se tornando vítima da própria família que não sabe lidar com a nova forma de seu filho. Ninguém tentou compreender o que se passou com Gregor, não encontramos um sentimento de humanidade na família do protagonista, exceto, pelo menos por enquanto, por parte da irmã. Ao que parece, Gregor e a irmã tinham um relação de proximidade, contudo, poderíamos relativizar esse comportamento, haja vista que, ao certo, a irmã desejava de Gregor o pagamento de um curso de música: 56

57 UFU 2017 A irmã permanecia mais próxima e afetuosa e, como ela, ao contrário de Gregor, era amante da música e sabia tocar violino com muita graça, ele tinha planos de enviá-la para o Conservatório no ano seguinte, sem importar-se com os gastos extras que isso acarretaria. Em conversas com a irmã, nos curtos períodos em que ficava sem viajar, sempre mencionava o projeto (que ela considerava lindo, mas impossível de concretizar), enquanto os pais demonstravam não aprovar nem um pouco a ideia (KAFKA, 2010, p. 40). Sendo assim, até que ponto a preocupação dela seria originária de sentimentos elevados? Ela não seria outro membro da família a ver Gregor apenas como um mantenedor de ordem pecuniária? Um pouco adiante na narrativa, quando ela ingressa no quarto do irmão notamos o imensurável poder dela: [...] abriu-a novamente e entrou devagar, como se aquele aposento abrigasse alguém muito doente ou pertencesse a uma pessoa desconhecida (KAFKA, 2010, p. 35). Nesse trecho, o próprio narrador deixa transparecer um tom crítico ao comportamento da irmã. Enquanto todos negligenciavam qualquer auxílio mais concreto, Gregor sofria no abandono do quarto sem luz: aquele quarto frio e de teto alto, em cujo chão era agora obrigado a permanecer deitado, amedrontou-o, sem que conseguisse descobrir o porquê, uma vez que era, sem pôr nem tirar, o lugar onde dormia havia cinco anos (KAFKA, 2010, p ). Gregor permaneceu durante toda a noite debaixo do sofá, onde se sentiu mais à vontade, mesmo apossado de um profundo sentimento de vergonha. Não conseguiu dormir com propriedade, entrou numa espécie de transe/delírio: Ficou ali durante toda a noite, às vezes num sono leve, do qual despertava sobressaltado, outras, acordado, imerso em preocupações e esperanças difusas, mal definidas, mas que sempre o conduziam à conclusão de que devia permanecer sereno e paciente para que a família sofresse, o menos possível, os aborrecimentos relacionados ao seu estado atual (KAFKA, 2010, p. 35). No outro dia cedo, a irmã de Gregor foi ao aposento do irmão. No local, percebeu que ele não havia alimentado do leite deixado próximo à porta. Ele sentia grande vontade de sair debaixo do sofá e jogar-se aos pés da irmã, implorando que lhe trouxesse algo gostoso. Assim, ele fazia mil especulações a respeito do alimento. Nenhuma, contudo, aproximou-se daquele que a dedicada irmã acabou lhe proporcionando. Querendo desvendar o que mais lhe agradava, ela lhe ofereceu uma variedade enorme de alimentos: legumes bem amadurecidos, quase podres; ossos e um resto de molho branco, meio coalhado, sobras do jantar da noite anterior; uvas passas e amêndoas; um pedaço de queijo que Gregor, dois dias antes, não quisera comer, pois julgara rançoso; um pedaço de pão endurecido. A irmã saiu do quarto para que ele tivesse privacidade para comer: Com uma alegria tamanha, que lhe encheu os olhos de lágrimas, devorou o queijo. Não gostou, porém, dos alimentos frescos, cujo cheiro considerou insuportável, ao ponto de levá-los para longe da comida que realmente lhe havia agradado (KAFKA, 2010, p. 36). A profunda metamorfose pela qual Gregor vivenciava começou a afetar também os seus hábitos alimentares. Como se notou, o gosto pelos alimentos podres atesta o distanciamento do mundo humano, marcado por supostas ações higiênicas. Neste dia, sobraram alguns alimentos, e Gregor observava-os: a irmã varre os restos de comida, incluindo os alimentos que nem sequer haviam sido tocados. Como se nada mais daquilo pudesse ser aproveitado, ela colocou tudo num cesto de lixo, fechou-o com uma tampa de madeira e o levou para fora (KAFKA, 2010, p. 37). As ações de Grete, aos poucos, deixavam transparecer o que todos da casa sentiam por Gregor, repúdio e asco. Às vezes, ao entrar no quarto, Grete suspirava e invocava os nomes de todos os santos (KAFKA, 2010, p. 36). Dessa maneira, Gregor passou a receber comida todos os dias: uma refeição pela manhã, quando os pais e a empregada ainda dormiam, e outra depois do almoço, quando os pais tiravam uma soneca, e a irmã pretextava algo para obrigar a empregada a sair para a rua. Quem intermediava toda a entrega dos alimentos era a irmã de Gregor. Esta, talvez, tivesse optado por se encarregar sozinha da tarefa, poupando os pais de mais esse sofrimento. Sobre a empregada, no primeiro dia da transformação do protagonista, não se sabia até que ponto ela tinha conhecimento da situação, havia suplicado à mãe que a demitisse e, ao deixar o apartamento, meia hora depois, agradeceu a demissão com lágrimas nos olhos, jurando, sem que ninguém lhe pedisse que não contasse nada a ninguém. Também, nos primeiro dias, o pai revelou a real situação econômica da família e qual perspectiva tinha pela frente. Ainda restava um capital, que, se não era muito, ao menos tinha crescido nos últimos anos por conta dos rendimentos de juros acumulados. Além disso, o dinheiro que Gregor entregava (retinha apenas uma pequena parte) não era gasto integralmente e, pouco a pouco, ampliava o montante economizado. Enquanto o pai explicava a vida financeira da família, Gregor, no quarto, acompanhava a explanação com positiva esperança nas medidas no pai. Antes, o protagonista era a fonte mantenedora de todos, agora, temiam o futuro, pois os recursos não chegavam a casa. Sendo assim, portanto, era necessário fazer algo. Para garantir uma boa condição à família, Gregor: começou a trabalhar com tal perseverança e dedicação que, em pouco tempo, passou de um reles empregado interno a caixeiro-viajante, o que lhe ampliou as possibilidades de ganho, uma vez que sua eficiente atuação profissional lhe proporcionava significativas comissões em dinheiro, que colocava sobre a mesa da casa, sob o olhar admirado e jubiloso da família (KAFKA, 2010, p. 39). A operação de crescimento profissional, acrescentada à preocupação de ordem financeira, aos poucos, não se pode negar, acabou por modelar a conduta de Gregor que se anulava enquanto sujeito, condição que pode ser a chave, mas não a única, para a compreensão de seu estado animalesco. 57

58 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS Às vezes, após a metamorfose, o incômodo era tão grande que Gregor não conseguia dormir à noite. Assim, empurrava o sofá até a janela e, servindo-se dele, apoiava-se no peitoril, lembrando-se do prazer e do sentimento de liberdade que experimentava ao ficar observando da janela o movimento da rua (KAFKA, 2010, p. 41). Agora, contudo, o deleite da contemplação se extinguira, uma vez que aquele cenário ficava cada vez menos claro: o hospital, que sempre detestara por estar bem em frente a seus olhos, já não era mais visível [...] (KAFKA, 2010, p ). A metamorfose também ia se operando na visão desse sujeito, já não conseguia contemplar o cenário da rua de sua casa, condição que lhe trazia prazer. De acordo com Aristóteles, o ser humano consegue obter alegria no processo de contemplação, isto é, para esse filósofo grego, o ato de observar traz ao homem a verdadeira felicidade. Gregor, ao perder a capacidade da contemplação, e o prazer oriundo dela, decai ainda mais em sua condição humana. Sobre a paisagem bloqueada da janela o narrador comenta: [...] que sua janela dava para um deserto, no qual terra e céu cinzentos se fundiam indistintamente (KAFKA, 2010, p. 42). A enigmática metamorfose do protagonista incomodava a todos há um mês. Gregor bem sabia que a sua condição física era uma ofensa aos olhos de todos. Por isso, um dia, levou um lençol para o sofá, o trabalho lhe custou quatro horas, e o organizou de forma que o tecido o escondesse por completo. Ele notou na irmã certo olhar de agradecimento pela discrição. A comida não lhe trazia o prazer dos primeiros dias, por isso, Gregor criou um mecanismo para se distrair: subia às paredes e ao teto. Particularmente, gostava mais do teto, ali respirava melhor, sentia uma leve vibração no corpo e, uma vez, entretido e quase feliz, despencou-se, contudo não se machucou, pois o corpo adquirira certa resistência. A irmã, vendo o contentamento do irmão resolveu, com a ajuda da mãe, retirar todos os móveis do quarto. Contudo, as duas mulheres tiveram concepções divergentes sobre a nova organização do quarto. A irmã ansiava retirar todos os móveis, enquanto a mãe deseja deixar alguns por ali. Por fim, as duas se esforçaram para retirar os móveis, a mãe, contudo não teve força suficiente para promover a nova organização do quarto. Essa articulação do quarto deixava transparecer a falta de esperança familiar na possível recuperação da humanidade de Gregor. O quarto de um indivíduo carrega a sua marca, isto é, a organização espacial dos lugares está repleta da identidade do sujeito. A alteração do quarto também seria um indício do distanciamento da humanidade do protagonista. Sobre isso ele reflete: [...] percebeu que a ausência de comunicação humana nos últimos dois meses - aliada à monotonia em que vivia, causara-lhe uma perturbação no raciocínio, pois de outro modo não conseguiria explicar por que desejava ver o quarto vazio. Será que ele queria, verdadeiramente, que transformassem aquele aposento confortável, repleto de objetos familiares, numa toca onde ele pudesse subir nas paredes sem nenhum impedimento, mas ao mesmo tempo arriscando-se a perder rápida e completamente seu passado humano? Já estava bem próximo disso, e apenas a voz da mãe, que há muito não ouvia, mexeu com ele. Não, era melhor não alterar nada, deixar tudo como estava. Os móveis, certamente, produziriam uma benéfica influência, e, embora eles impedissem seu livre movimento, poderiam constituir uma grande vantagem (KAFKA, 2010, p. 46). Outro indício da transformação de Gregor é a sua ausência da capacidade de comunicação humana. Ele já não se expressava por meio de palavras, condição que não refletiu em sua maneira de pensar, haja vista que o nosso pensamento é profundamente relacionado ao universo da palavra, isto é, pensamos, principalmente, e não somente, por meio de vocábulos. Sendo assim, Gregor tornou-se uma espécie de homem- -inseto, isto é, um ser híbrido, externamente, é um animal e, por dentro, guarda a dimensão da profundidade da alma humana. Deixar de comunicar-se verbalmente, ter o seu quarto levado à condição de uma toca, inserem Gregor, um pouco mais, em um mundo animal. De acordo com Modesto Carone: Para o narrador e o herói, porém, a identidade permanece. Isto é: a metamorfose em inseto representa de fato a perda da voz que comunica, a mudança dos gestos alimentares, dos movimentos reativos e da maneira de lidar com o espaço, ou seja: no nível da aparência, ela atesta uma redução ao estágio puramente animal de organização da vida. Mas o relato objetivo comprova que a consciência da metamorfoseado continua sendo humana e inteiramente apta a captar e compreender o que se sucede, no meio ambiente muito embora, pela mão contrária, ninguém, nesse meio, possa admitir que o inseto seja capaz disso. Dito de outra forma, Gregor está transformado num bicho, mas não deixa nunca de ser Gregor. Ou seja: ele se comporta como um homem que ainda existe, mas que já não pode ser visto como sendo ele mesmo e nessa medida ele é empurrado para o isolamento e a solidão (para acabar na exclusão). Isso explica que aos poucos a incomunicabilidade se firma como um dos temas centrais da novela. Prova disso é o fato de que a história mobiliza, nos seus três capítulos, um mesmo padrão narrativo, que é o das iniciativas inúteis de contato do herói com os membros da família e vice-versa (CARONE, 2009, p. 137). 58

59 UFU 2017 Apesar de Gregor repetir para si mesmo que as mudanças no quarto não ocasionariam nenhuma diferença, pois se tratava apenas da retirada de alguns móveis, não deixou de se incomodar pelo vaivém das mulheres subtraindo-lhe os móveis. Quando retiraram o armário e a escrivaninha, permaneciam no quarto ao lado, Gregor, afoitamente, subiu até a parede onde havia uma moldura, quadro de uma mulher, cujo contato achou agradável, pois a sua barriga ardia. Essa ação guardaria uma condição erótica? As duas mulheres voltaram subitamente e, por mais que Grete tenha se esforçado para que isso não ocorresse, avistaram aquela imensa mancha escura sobre o papel da parede florido e, antes mesmo de ter certeza de que era Gregor, a mãe gritou: Ai meu Deus! Ai, meu Deus! e desmaiou sobre o sofá, como se todas as suas energias se tivessem esvaído (KAFKA, 2010, p. 49) Grete saiu para outra sala a fim de conseguir algo para reanimar a mãe. Gregor, em um profundo ato de desespero, saiu atrás da irmã que não notou a presença do irmão deixando um frasco cair ao chão. O objeto quebrou jogando uma substância corrosiva em Gregor. Grete voltou ao quarto para ajudar a mãe. Enquanto isso, sem saber o que fazer, Gregor, cheio de remorsos e inquietações, começou a rastejar por toda a parte, a subir pelas paredes e móveis e no teto, e, finalmente, tonto de tanto girar, caiu sobre a grande mesa da sala. Inesperadamente, o pai chegou ao apartamento. Agora, ele era outro homem, rijo e ereto, ostentando um uniforme azul com botões dourados, como aqueles usados pelos contínuos dos bancos (KAFKA, 2010, p. 51). O pai viu o estado da filha, adivinhou o que tivera ocorrido em sua casa. Assim, partiu para cima de Gregor o qual correu na frente do pai, parando quando ele parava e reiniciando a fuga quando o pai reiniciava. Assim, deram muitas voltas em torno da sala, sem chegar a lugar nenhum, além do que, em face das longas pausas entre uma parada e outra, aquilo não chegava a ser, de fato, uma perseguição. O pai decidiu bombardear o filho com objetos: As pequenas maçãs vermelhas rolavam pelo chão como se estivessem eletrizadas, chocando-se uma com as outras. Uma acertou-lhe as costas, mas deslizou sem causar grandes danos. Em compensação, a seguinte lhe pegou as costas em cheio, cravando-se ali; mesmo assim, ele tentou escapar, supondo que uma mudança de lugar poderia atenuar a dor insuportável que sentia. Nesse ponto, pareceu-lhe estar pregado ao chão, e ficou ali, esticado, perdendo a noção do que acontecia em torno. Com a vista turva, conseguiu ver a porta do quarto se abrir abruptamente [...] (KAFKA, 2010, p. 52). A mãe, que houvera se recuperado do desmaio, aproximou-se do marido, implorando que preservasse a vida do filho. O pai tentou pelo menos duas vezes se livrar da incômoda presença do filho-inseto, pois Gregor não mais supria as necessidades pragmáticas daquela casa, pelo contrário, como veremos adiante, ele passou a ser um problema para a nova ordem econômica do lar. Um dado simbólico importante acima é a metáfora contida na imagem da maçã que pode ser compreendida de inúmeras maneiras. Como todo bom texto literário, a produção de Kafka obriga o leitor a relê-lo, pois apresenta várias hipóteses ambíguas e contraditórias de interpretação. Sendo assim, vamos à imagem da maçã e da ferida nas costas do protagonista. Numa primeira asserção, a ferida que não cicatriza, causada pelo arremesso de uma maçã pelo pai, poderia relacionar-se a um dado biográfico de Kafka, a conturbada relação familiar com o pai. Assim, o peso da maçã que carrega nas costas, na ferida que não sara, vincula-se à difícil relação entre Kafka e o próprio pai. Note-se que a maçã lançada pegou Gregor nas costas, sugestão de traição, como uma facada nas costas ( a seguinte lhe pegou as costas em cheio idem), elemento que reforça ainda mais a leitura biográfica proposta acima. Como se percebe, o escritor carregará pelo resto da vida as dores de uma difícil relação com o pai. Outro olhar sobre a o mesmo símbolo, a maçã, que, também, no contexto da obra, como na bíblia, adquire um significado de conscientização. Gregor parece compreender o seu papel de sujeito alienado tanto na esfera profissional como familiar. A maçã tirou o homem do paraíso, de forma análoga, o protagonista perde o seu porto seguro da ilusão e do engano. Cabem aqui, nessa parte do enredo, algumas noções simbólicas sobre a figura do pai, com base em Chevalier e Gheerbrant (2006), que podem nos orientar na compreensão da obra: [...] é uma figura inibidora; castradora, nos termos da psicanálise. Ele é uma representação de toda forma de autoridade: chefe, patrão, professor, protetor, deus. O papel paternal é concebido como desencorajador, dos esforços de emancipação, exercendo uma influência que priva, limita, esteriliza, mantém na dependência. Ele representa a consciência diante dos impulsos instintivos, dos desejos espontâneos, do inconsciente é o mundo da autoridade tradicional diante das forças novas de mudanças (CHEVALIER e GHEER- BRANT,2006, p. 678). A força simbólica da figura paterna exposta acima se vincula diretamente com as ações do pai de Gregor o qual não mede esforços para proteger os membros da família da imagem monstruosa do filho. 59

60 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS Gregor Samsa, após ser atingido pela maçã lançada pelo pai e de alguns percalços, conseguiu ver a porta de seu quarto aberta, dirigiu-se para lá, dolorosamente, amedrontado. CAPÍTULO III A grave ferida de Gregor, que o fez padecer por mais de um mês, ainda guardava a maçã lançada pelo pai, ninguém se atreveu a tirá-la. Ali permaneceu, constatando como uma lembrança concreta de um acontecido, a castração existencial do pai. As consequências físicas para ele foram permanentes, perdeu o controle total das pernas para sempre. Agora, se comportava como um idoso. A simples atividade de transportar-se pelo quarto consumia longos minutos. A possibilidade divertida para ele de subir as paredes não era mais possível. Não bastou o isolamento e incomunicabilidade vividos por ele, o projeto de anulação total desse sujeito também era físico. Não seria mais possível locomover-se no interior de seu quarto. Porém, havia uma compensação levemente satisfatória: no início da noite, a porta da sala de jantar era aberta, ele aproveitava para observar, sem ser visto, toda a família reunida em torno da mesa iluminada, e ouvir as conversas, de certo modo com a aquiescência 41 geral. Aqui, notamos um importante contraste entre a coletividade dos membros familiares que vivem à luz da mesa, numa pálida troca de experiências, e Gregor mergulhado na escura solidão do quarto. A rotina da família transformou-se bastante desde a metamorfose de Gregor, condição que nos prova que a transformação operou-se não apenas nele, mas em todos. A retirada da base econômica, a literal exploração do filho, provocou inúmeras transformações na dinâmica da residência. Antes, a família vivia, parasitamente, às custas do trabalho de Gregor e de sua alienação no mundo do trabalho, entretanto, agora, ele é, aos olhos de todos na casa, em virtude da metamorfose, apenas um inseto incômodo, uma espécie de monstro. O pai, mesmo velho, teve que assumir um posto de contínuo em um banco. A mãe costurava roupas finas para uma loja, e a irmã, que havia conseguido um emprego, estudava estenografia 42 e francês, pois pretendia atingir um posto melhor remunerado. Enquanto todos os membros da família se articulavam em um novo contexto repleto de atividades, Gregor afundava em um profundo vazio existencial, não restava nada a ele a não ser definhar infinitamente no interior do quarto. Agora, poucas coisas pareciam fazer sentido para ele. O termo vazio existencial poderia ser visto como uma forma de niilismo existencial, que na acepção de André Cancian, no livro O vazio da máquina Niilismo e outros abismos, consiste em: O niilismo existencial se demonstra quando reduzimos o homem a nada, e para isso basta possuir algum talento intelectual aliado à honestidade, pois o esvaziamento da existência é a mera consequência de entendermos o que ela é em si mesma. Não precisamos degolar a humanidade inteira para provar que a vida carece de sentido; para chegarmos a essa conclusão basta usar os olhos e um pouco de senso crítico (CANCIAN, 2009, p.17). 41 Consentimento; ação de consentir, de não impedir, de não colocar obstáculos: a aquiescência de uma solicitação, de um pedido. Concordância; ação de concordar, de permitir: não obteve aquiescência do povo. 42 Taquigrafia ou estenografia é denominação dada a todo método de abreviação ou simbólico de escrita, com o intuito de aprimorar a velocidade da escrita comparada ao método padrão. A diferença das duas denominações é que a taquigrafia é realizada a mão, usando lápis ou caneta enquanto a estenotipia utiliza máquinas destinadas para a produção de taquigramas, ou seja, de símbolos que fornecem abreviaturas para as palavras e frases comuns. O que possibilita que uma pessoa treinada no sistema escreva de maneira muito veloz, sendo capaz de acompanhar as falas de um discurso. Se a vida carece de sentido na modernidade, a de Gregor, aos poucos, tornava-se a representação do nada, condição, imperativamente, erguida pela mãe, irmã e, sobretudo, pelo pai. O protagonista vivia imerso no total abandono em seu quarto escuro. Ele era tratado como se não existisse mais nenhum vestígio do seu eu na sua nova forma. Assim, Gregor deixava de ser reconhecido como pertencente àquela família. Dessa maneira, portanto, ele deveria ser exilado do mundo em seu próprio quarto. O diferente não pode viver junto da sociedade, por isso deve ser excluído, isolado de todos. O envolvimento profissional dos membros da família no mundo do trabalho subtraiu deles um dos aspectos mais importantes da vida: o tempo ocioso. Além disso, a fim de restabelecer a economia doméstica, viram sucessivas perdas de ordem pragmática: a empregada é despedida, as joias são vendidas e, por fim, um dos quartos é alugado a três inquilinos, obrigando Grete a dormir na sala. Como se nota, a transformação de Gregor implica a transformação de todos os outros que vivem na casa. Com uma espécie de peculiar teimosia, o pai se recusava tirar o uniforme de contínuo. Mesmo quando estava em casa, ele dormia uniformizado, aspecto que talvez pudesse sugerir que, na casa, há um novo homem pronto para servir a todos, elemento bem à maneira de Gregor, no passado. As mulheres da casa viviam incomodadas com a manifestação profissional do pai. Gregor passava horas da noite observando-o naquele traje cheio de manchas, mas com botões dourados sempre brilhantes, com o qual o pai dormia desconfortável, mas tranquilo (KAFKA, 2010, p. 58). As despesas da casa tiveram que ser reduzidas drasticamente: a empregada foi demitida e substituída por uma faxineira que trabalhava na casa no início da manhã e no final da tarde, enquanto a mãe cuidava de todo o resto. Foram obrigados a vender algumas joias e cogitava-se a possibilidade de deixar o apartamento onde moravam, pois o consideravam grande demais para as condições atuais, porém não sabiam o que fazer para remover Gregor que percebeu ser um entrave para a mudança. As forças da família chegavam ao fim, todos estavam envolvidos demais em inúmeras atividades diárias. Certa noite, a mãe, que, às vezes, demonstrava relativa compaixão para com o filho disse à filha: Grete, feche aquela porta (KAFKA, 2010, p. 60). Assim, Gregor se via mergulhado na imensa escuridão solitária do quarto. A insólita situação do protagonista começava a apresentar uma parcela de angústia, condição eminentemente humana: Dias e noites passavam sem que Gregor conseguisse dormir direito. Por vezes, pensava que iria abrir a porta do quarto e encarregar-se das questões da família, como antes. Em sua mente, retornavam as figuras do chefe e do gerente, dos funcionários internos e dos aprendizes, daquele idiota do contínuo, de dois ou três conhecidos de outras firmas, de uma camareira [...] Essas pessoas apareciam em seu pensamento misturadas a outras, estranhas e já há muito tempo esquecidas; mas como nenhuma delas pudesse prestar qualquer ajuda, nem a ele nem à sua família, sentiu-se aliviado quando finalmente conseguiu apagar aquelas recordações (KAFKA, 2010, p. 60). 60

61 UFU 2017 Embora tivesse perdido a capacidade comunicativa, Gregor ainda possuía a memória, condição que lhe confere um status humano. Ele ainda conseguia realizar reflexões sobre a sua condição de inseto. É um homem pelo pensamento e um animal pelo corpo físico e pela ausência da fala. A metamorfose levou Gregor à morte física e à morte da linguagem, mas não à morte do pensamento e da memória humana. A nova condição de Gregor Samsa libertou-o do emprego, mas, principalmente, fez com que ele saísse da condição de mantenedor da família, cumprindo um papel simbólico de pai que trabalhava para manter a todos. O papel de filho com a metamorfose também lhe é negado, mesmo a tentativa de ocupação de seu espaço, o quarto, lhe é subtraída. Se antes, ele era visto como o arrimo da família, aquele que lhes garantia o sustento e a ordem doméstica, a partir da metamorfose, ele passa a ser visto como um monstro desertor de suas obrigações. Toda uma carga de culpa lhe é jogada nas costas, literalmente, quando o pai atira várias maçãs para expulsá-lo da sala. Por que Gregor teve que carregar toda a família nas costas após a falência do pai? Qual crime ele cometeu? Por que precisou ser punido? Quem prescreveu tão cruel sentença contra o rapaz? Não encontraremos respostas para nenhum desses questionamentos. Em certos momentos, nos perguntamos por que esse sujeito pelo menos não questionou os motivos que o levaram àquela condição? Na verdade, não há mais sujeito (ser). Esse homem animalizado sucumbe à espera da própria morte, a vida e o mundo deixaram de ter sentido. Com isso, diante desta visão absurda do ser humano, não resta salvação, nenhuma esperança resta a esse homem. Como se nota, Kafka apresenta uma visão bastante trágica do mundo, isto é, uma concepção do mundo como lugar da aniquilação absoluta, inacessível a qualquer solução e inexplicável por nenhum sentido transcendente, de forças e valores que necessariamente se contrapõem (LESKY, 1990, p. 30). O interessante da obra de Kafka, conforme Anders (2007, p. 22), é que, aos poucos, vai sendo despojada de espanto. Na narrativa A metamorfose, como em outros textos do escritor, os personagens se veem mergulhados em sucessivas situações absurdas das quais não conseguem se desvencilhar. Essas situações traduzem a realidade insólita de Gregor Samsa. Temos, portanto, nessa novela, a famigerada situação kafkiana. Gregor estava bastante desanimado com a negligência da família, e, às vezes, passou sentir irritação para com todos. A irmã não se preocupava mais em satisfazer os impulsos alimentares dele: antes de sair para o trabalho e ao meio-dia, quando vinha almoçar, ela apenas empurrava com o pé, e às pressas, uma comida qualquer para dentro do quarto e, depois, ao retornar, nem reparava se ele havia comido ou como ocorria mais frequentemente nem sequer havia tocado na tigela (KAFKA, 2010, p. 61). Se antes, ela tentou agradar o irmão, agora, aos poucos, expressava o seu verdadeiro sentimento para com ele. A limpeza do quarto também estava comprometida, havia manchas de sujeira pelas paredes: buscando chamar a atenção da irmã, Gregor se colocava justamente nos pontos onde a sujeira era mais flagrante, mas logo percebeu que podia permanecer ali durante várias semanas sem que Grete se importasse pois, afinal, ela podia ver a imundice tão bem quanto ele, mas estava decidida a não perder tempo como isso (KAFKA, 2010, p. 61). Embora os cuidados com o irmão tivessem bem reduzidos, Grete ainda não permitia que ninguém limpasse o quarto a não ser ela. Assim, curiosamente, o espaço fechado do quarto, pouco-a-pouco, perde a noção de espaço íntimo do sujeito e adquire o sentido de uma cela que não pode mais ser aberta por quem o habita. A indiferença da família acaba revelando a incapacidade de lidar com um signo estranho. O único elemento de sentido deste novo ser que habita o quarto é o aspecto repulsivo, por isso, a reiterada necessidade de manter Gregor isolado. A empregada da família abria sempre a porta do quarto de Gregor a fim de incomodá-lo um pouco, é verdade, que ela o chamava por meio de palavras que, por certo, julgava carinhosa como: vem cá, porqueirinha! ou vejam só o porqueirinha! (KAFKA, 2010, p. 62). Essa empregada não tinha o compromisso de limpar o quarto dele, contudo gostava de ver as reações do inseto gigante diante da sua presença. O homem-inseto quase não comia, às vezes, permanecia com um alimento horas na boca para depois cuspi-lo. Nos últimos dias, viu o seu quarto novamente cheio de móveis e objetos, a família, a fim de trazer recursos financeiros para casa, havia alugado um dos quartos para três inquilinos: Eram três senhores muito circunspectos os três usavam barba, como Gregor verificou, numa ocasião, pelo vão da porta e gostavam de tudo na mais completa ordem [...] haviam trazido grande parte de seus móveis próprios, o que tornava sem uso alguns pertences da família. [...] A empregada atirava no quarto dele - sempre da maneira mais apressada aquilo que não tinha utilidade no momento, de tal forma que, apenas por sorte, Gregor conseguia desviar-se da trajetória dos objetos (KAFKA, 2010, p. 63). Viver em uma sociedade em que tudo é medido por um valor de troca (uso) constrói uma noção pragmática para tudo, assim todas as coisas que nos cercam guardam um valor objetivo, estrutura que moldou a nossa maneira de dar significado à realidade. Essa organização do mundo, imperativamente, nos faz estabelecer eixos paradigmáticos a fim de demarcar fronteiras entre o falso e o verdadeiro, o útil e o inútil, o certo e o errado, entre tantos outros valores forjados pela noção de troca. Foucault, em seu livro intitulado As palavras e as coisas, debruça-se sobre as relações de representação e nos leva a compreender que o valor é um atributo acidental e que depende unicamente das necessidades do homem como o efeito depende de sua causa (FOUCAULT, 1992, p. 65). Portanto, de acordo com Foucault, o valor dado a tudo que está ao nosso redor depende das necessidades do próprio homem. É num contexto utilitarista que Gregor vive, e é esse mesmo contexto que, paulatinamente, propõe excluí-lo ao ponto de misturar-se a objetos velhos e mesmo ter que desviar-se deles ao serem lançados no quarto. Enquanto isso, ele se sentia imóvel, cansado e melancólico durante horas (KAFKA, 2010, p. 64), pois bem entendia a indiferença de sua família. 61

62 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS A sala do apartamento de uso comum da família passou a servir aos inquilinos de refeitório. Às vezes, a porta da sala era esquecida aberta pela empregada e Gregor podia contemplar os homens comendo: - Mas eu também tenho apetite, sim murmurou Gregor para si, muito preocupado. Só que essas coisas não me agradam... Como esses inquilinos comem! E eu aqui morrendo (KAFKA, 2010, p. 65). Numa noite, a irmã resolveu tocar, na cozinha, o violino que chamou a atenção dos inquilinos que logo a chamaram para a sala a fim de vibrar as cordas do instrumento. Muito calma, a irmã começou a executar uma música: Atraído pela melodia, Gregor atreveu-se a avançar e enfiou a cabeça um pouco para fora do quarto. Nem se surpreendeu por ter feito isso, pois vinha se importando cada vez menos com os demais; a consideração, que antes lhe era motivo de orgulho, quase não existia mais. Agora, contudo, mais do que nunca, deveria sentir necessidade de esconder- -se, pois, em razão da sujeira que se encontrava no quarto, qualquer movimento que fazia levantava ondas de poeira, e ele próprio estava coberto de pó e arrastava [...] E, apesar do estado em que se encontrava, não teve vergonha de invadir o espaço imaculado da sala. O fato foi que ninguém reparou na presença dele. [...] Gregor avançou um pouco mais e manteve a cabeça bem próxima do chão, tentando fazer os olhos da irmã se encontrarem com os seus. Se a música o envolvia tanto, seria ele um bicho? [...] Estava decidido a aproximar-se dela, puxá-la pela saia e fazê-la, assim, compreender que devia ir para seu quarto, pois somente ele poderia valorizar aquela música (KAFKA, 2010, p ). A música ecoada do violino fez renascer, dentro de Gregor, a sua humanidade já quase esquecida. O protagonista viu-se envolvido em um momento de profundo prazer estético. A arte pode provocar no homem inspirações diversas. O sentimento de prazer, quando interrompido, nos leva de volta à realidade limitada e opressora, sobretudo, no caso de Gregor, que parece fugir das suas angústias existenciais. A música o liberta da náusea, de seu mundo de sombra, pois, enquanto ouve a irmã com o violino em mãos, habita outro universo: o irreal que é muito mais autêntico e verdadeiro. A beleza artística, por ser uma experiência desinteressada, é oriunda de uma faculdade subjetiva. Cabem aqui as palavras de Deleuze sobre o belo: [...] o prazer estético é tão independente do interesse especulativo como do interesse prático e define-se a si próprio como inteiramente desinteressado (1963, p. 54). Ocorre um desinteresse da realidade pragmática quando estamos diante do prazer estético, por isso, Gregor se desprende de sua rotina. Para Chevalier e Gheerbrant: Em todas as civilizações, os atos mais intensos da vida social ou pessoal são decompostos em manifestações, nas quais a música desempenha um papel mediador para alagar as comunicações até os limites do divino. Platão distingue formas musicais apropriadas às diversas funções do homem na cidade (2006, p. 627). A fruição estética e a própria existência da música é uma condição eminentemente relacionada ao mundo do homem. Com isso, portanto, Gregor, visto o fascínio da música sobre ele, apresenta um forte teor de humanidade 43, embora seja, sistematicamente, anulado enquanto sujeito em sua casa. Enquanto Gregor contemplava a irmã com o violino, um dos inquilinos notou a presença do homem-inseto que se movia lentamente. O instrumento, subitamente, emudeceu. Os homens não se assustaram, pelo contrário, se divertiram mais com a estranha figura do que com as melodias do violino. O pai procurou levar os inquilinos para o seu aposento. Houve um principio de confusão. Obstinado no que fazia, esquecendo o mais básico respeito que devia a eles, o pai procurava empurrá-los para o quarto. Por fim, o que parecia ser o mais representativo deles disse: Afirmo categoricamente ergueu a mão, procurando com o olhar também a mãe e a irmã - que neste instante, em face das repugnantes condições desta casa e desta família e nisso cuspiu com força no chão -, a locação do meu quarto está encerrada. Obviamente não pagarei coisa alguma pelos dias que morei aqui; muito ao contrário, ainda vou pensar se não devo apresentar uma reclamação legal contra o senhor, pois me causou muitos danos (KAFKA, 2010, p ). Os outros dois inquilinos também manifestaram a vontade de se retirarem da casa. Gregor permaneceu o tempo todo no mesmo lugar onde havia surpreendido os inquilinos; a fraqueza causada pela fome excessiva impossibilitava-o de realizar o menor movimento. O incômodo na casa tornou-se insuportável. Assim, Grete resolveu falar: Queridos pais disse a irmã, e, como preâmbulo, bateu com a mão na mesa -, isso não pode continuar assim. Caso não estejam entendendo, eu estou. Diante desse monstro, não vou pronunciar o nome do meu irmão. E tem mais: precisamos nos livrar dele. Tentamos o humanamente possível para cuidar dele, e creio que ninguém pode nos censurar por nada (KAFKA, 2010, p. 69). Perceba a adjetivação de Grete ao referir-se ao irmão como monstro. Nesse caso, podemos notar a total incapacidade de lidar com uma situação atípica dentro da casa. Sendo assim, para nos ajudar na compreensão do texto de Kafka, recorremos a Chevalier e Gheerbrant acerca do conceito de monstro: 43 O próprio narrador lança mão de um interessante questionamento sobre essa condição de Gregor: Se a música o envolvia tanto, seria ele um bicho? (KAFKA, 2010, p ). 62

63 UFU 2017 O monstro surge também da simbologia dos ritos de passagem: ele devora o homem velho para que nasça o homem novo. O mundo que ele guarda e ao qual introduz não é o mundo exterior dos tesouros fabulosos, mas o mundo interior do espírito, ao qual não se tem acesso a não ser por meio de uma transformação interior. [...] O que foi considerado, por exemplo, como monstruosidades das revoluções toma sentido todo especial à luz dessa interpretação: significa que a revolução quer ir até uma transformação radical do homem, para torná-lo apto a viver dentro de um mundo novo. Morra o homem velho, viva o homem novo; essa fórmula poderia resumir a simbologia do monstro (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2006, p. 615). Já que estávamos tratando de um mundo de papel ao qual o fantástico é possível, podemos levantar alguma hipótese sobre o caso de Gregor, com base na citação feita acima, sobre a simbologia associada ao monstro. A figura do monstro carrega a semântica da transformação, rito de passagem. Sendo assim, o protagonista poderia estar passando por uma profunda transformação, a fim de viver dentro de um mundo novo (idem). Contudo, a resistência da família é tamanha ao ponto de interromper o nascimento de um novo homem. Portanto, é preciso livrar-se dele, de acordo com Grete com a concordância do pai: - Está inteiramente certa disse o pai consigo mesmo (KAFKA, 2010, p. 69), enquanto a mãe sentia falta de ar. Categoricamente, para que não haja dúvida, Grete repetiu: - Precisamos nos livrar daquilo disse a irmã exclusivamente ao pai, pois a mãe, com sua tosse, não ouvia mais nada -, ele vai acabar matando vocês dois, é o que acontecerá. Quem tem de trabalhar duro como nós não é capaz de suportar em casa esse eterno tormento (KAFKA, 2010, p. 70). Curiosamente, Gregor, por cinco anos, trabalhou incansavelmente para pagar uma dívida herdada do pai e ainda dar qualidade de vida a família sem se queixar. C o m mais ênfase ainda, Grete gritou para todos ouvirem: - Ele tem que ir embora! gritou a irmã. É o único jeito, pai. O senhor precisa desfazer da ideia de que aquilo é Gregor. Acreditar nisso, durante tanto tempo, tem sido a nossa desgraça. Como pode ser Gregor? Se fosse, há muito teria percebido que seres humanos não podem viver com um bicho como aquele. E teria partido por conta própria. Perderíamos o irmão, mas poderíamos continuar vivendo com o verdadeiro Gregor em nossa memória, para sempre (KAFKA, 2010, p ). Quem seria o verdadeiro Gregor? Seria o filho exemplar? Ou seria o pai simbólico da casa que se anulou em prol de todos? Seria mais fácil expulsá-lo, ou mesmo matá-lo, a que tentar compreender as motivações da metamorfose. Diferentemente dos heróis aventureiros cuja existência se apresenta como um horizonte aberto, Gregor vive reduzido ao seu quarto fechado, condição crescente até a sua anulação total por meio da morte. Estamos diante do realismo brutal de Franz Kafka: Gregor é apenas uma vaga memória no interior daquela casa; é a barata que, portanto precisa ser aniquilada. O escritor, certa vez, disse algo relevante sobre a sua escrita: Precisamos de livros que nos afetem como um desastre, que nos angustiem profundamente, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos, como ser banidos para florestas distantes de todos, como um suicídio. Um livro tem de ser o machado para o mar congelado dentro de nós (KAFKA, 2010, p. 82). As impressões, curiosamente, da leitura da novela A metamorfose, aproximam-se perfeitamente daquilo que Kafka descreve acima. A força arrebatadora desse texto nos convida a profundas reflexões sobre a falta de sentido da existência humana na Modernidade. Gregor iniciou, após ser visto pelos inquilinos, com muita dificuldade, como um inválido de guerra, o caminho de volta para o seu quarto. Às vezes, parava para descansar, não era possível conter a respiração ofegante. Dessa vez, ninguém o pressionava, era deixado por conta própria. A fraqueza tamanha era que achou a distância muito grande até o quarto: Somente quando chegou à porta virou-se a cabeça apenas um pouco, pois sentia o pescoço enrijecido e pôde observar que nada havia mudado, a não ser pela irmã, que agora estava em pé. Lançou, então, um último olhar à mãe, que tinha acabado de adormecer (KAFKA, 2010, p. 72). Ele rastejava como um morto-vivo. A fome e as violências físicas roubaram-lhe todas as suas forças. Restava lançar à família um olhar de despedida. Mal entrou no quarto e a porta foi bruscamente fechada e trancada. Gregor assustou-se de tal modo com o barulho da porta que suas perninhas dobraram. E agora?, questionou-se Gregor. Olhou a escuridão do quarto e notou que não podia mais se mexer, contudo, não se surpreendeu: pois caminhar com aquelas perninhas lhe parecia, agora, pouco natural. Sentia-se também relativamente confortável. É verdade que o corpo doía, mas teve a impressão de que pouco a pouco as dores iriam atenuar-se e acabariam por desaparecer. Nas costas, a maçã podre encravada e a inflamação ao redor, coberta de pó, praticamente não mais o incomodavam. Pensava com carinho e emoção na sua família. Tanto quanto possível, pensava, ainda mais firmemente do que a irmã, que era necessário ir embora. E, assim, nesse 63

64 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS estado de meditação e insensibilidade, permaneceu até o relógio da torre da igreja bater três horas da madrugada. Olhando pela janela, ainda pôde contemplar o raiar do dia que despontava. Depois, embora ele relutasse, a cabeça tombou por completo e a boca emitiu um último suspiro (KAFKA, 2010, p ). Para alguns estudiosos, Gregor morreu não porque se tornou uma barata, mas porque perdeu a capacidade de comunicação com os integrantes da sua família. Essa informação não é de toda errônea, contudo, no caso do protagonista, o que mais exerceu influência sobre a sua morte foi algo mais do que a falta de comunicação com a sua família. Na verdade, um repertório do mal levou Gregor à morte, isto é, o jogo de interesse da irmã, as violências físicas do pai, o não envolvimento da mãe. Tudo isso, levou-o a desejar a própria morte, vontade de deixar-de-ser, condição construída a partir do momento em que deixou de se alimentar, falar e, sobretudo, pensar. No final da novela, subentende-se que, enquanto houver pensamento, há esperança de salvação do sujeito, há vida, logo, pode-se tirar tudo do homem, menos a sua capacidade de pensar. Mesmo no ato da morte, Gregor ainda conseguiu pensar com carinho e emoção em sua família (idem). A faxineira, no outro dia cedo, dirigiu-se ao quarto de Gregor e, a princípio, não notou nada de especial. Ela pensou que ele estivesse se fazendo imóvel, pois estava ofendido com algo. Assim, resolveu fazer cócegas nele com a vassoura, contudo não obteve respostas. Dessa maneira, passou a cutucá-lo, sem encontrar nenhuma resistência. Logo compreendeu as condições de Gregor. Por fim, ela abriu a porta do quarto dos pais e gritou: - Ei, venham ver, ele bateu as botas, está lá esticado! Ele bateu as botas (KAFKA, 2010, p. 73). Todos foram ao quarto, lá, a faxineira empurrou o cadáver com a vassoura a fim de comprovar a veracidade da sua informação. O pai disse: - Bem - disse o senhor Samsa -, agora podemos agradecer a Deus (KAFKA, 2010, p. 74). Grete, sem desviar os olhos do irmão, disse: - Como ele estava magro! É verdade que ultimamente não comia nada. A comida voltava do jeito que ia (KAFKA, 2010, p.74). Sobre a condição do corpo de Gregor, o narrador comentou: Verdade, o corpo de Gregor estava ressequido; somente agora percebiam por que já não mais se sustentava nas perninhas, e o olhavam atentamente (KAFKA, 2010, p. 74). O antropólogo francês René Girard refere-se à noção de vítima expiatória que para nós seria o mesmo que bode expiatório, que significa pessoa ou coisa a que(m) se imputam ódios, revezes, frustações, desgraças (1990, p. 85). Segundo o francês, uma unanimidade coletiva e violenta se volta contra um indivíduo, ou grupo de indivíduo, como meio de instaurar a ordem. Essa hostilidade da maioria contra um sujeito, a vítima expiatória, exerce o papel de purificador. A extinção da vítima é celebrada e tomada como exemplo sempre que a coletividade necessite de restabelecer a ordem. Segundo Girard, a repetição dessa conduta possibilitou a constituição da cultura e humanidade. As noções do antropólogo francês podem ser utilizadas no texto de Kafka, uma vez que, a família irá responsabilizar Gregor pelos males que povoavam aquela casa, portanto, deve ser exterminado como um bode expiatório. A morte do protagonista, como veremos adiante, apazigua a tensão, restaura a ordem e faz com que todos reflitam sobre o futuro. Os inquilinos acordaram dispostos a tomar café, contudo nada estava sobre a mesa. A faxineira, como para justificar espécie de negligência, levou-os ao quarto de Gregor: Eles avançaram para o quarto, agora já banhado de claridade, e ficaram parados em volta do cadáver, com as mãos enfiadas nos bolsos dos casacos um tanto puídos (KAFKA, 2010, p. 74). Não houve por parte de nenhum membro da casa algum tipo de dor ou sofrimento para com a morte de Gregor, pelo contrário, a sensação de alívio parece mergulhá-los numa espécie de alegria contida. Inesperadamente, o senhor Samsa ordenou que todos os inquilinos abandonassem a casa. Não queria a presença daquele que, na noite anterior, tinham trazido tantos transtornos à família que resolveu descansar e passear: não apenas mereciam uma folga no trabalho, como dela necessitava imensamente. Por isso, sentaram-se à mesa e escreveram três cartas: o senhor Samsa justificando-se ao seu chefe no banco; a senhora Samsa ao dono da loja e Grete o seu patrão (KAFKA, 2010, p. 76). A empregada, cinicamente, disse à senhora Samsa, pessoa a quem a faxineira mais respeitava naquela casa: Pois bem começou a responder, mas um risinho não a deixava prosseguir -, é que a senhora não precisa se preocupar mais com aquela coisa aí ao lado. Já está tudo arrumado (KAFKA, 2010, p. 76). O grau de maldade contido na fala da empregada relacionado à condição de Gregor, por incrível que pareça, é a concretização verbal dos sentimentos de todos. A família ficou incomodada com a fala da faxineira, não porque sofria pela morte, mas porque referir-se ao Gregor seria o mesmo que trazer o problema à tona, por isso, o narrador comenta a inserção da empregada com sua fala: [...] a empregada parecia ter perturbado a tranquilidade que há tão pouco tempo haviam recuperado (KAFKA, 2010, p. 77). Em seguida, a família de Gregor pegou um bonde com destino aos arredores da cidade. Sentiam-se satisfeitos e contemplaram a luz e sentiam o calor dos raios de sol que invadiam o bonde completamente. Recostados gostosamente em seus assentos, trocaram ideias sobre o futuro e percebiam que, bem pesadas as coisas, as perspectivas não eram ruins, pois seus três empregos sobre os quais praticamente não haviam conversado eram bons e auspiciosos (KAFKA, 2010, p. 77). Em suas reflexões não passou, em nenhum momento, a imagem do filho morto, pareciam ter esquecido por completo a figura de Gregor. Pensaram em mudar de casa, queriam um apartamento menor, de aluguel mais barato, mas bem situado e, sobretudo mais prático do que o atual. Cogitou-se também que já estava na hora de Grete se casar, isto é, precisava arrumar um bom marido para ela: E quando a filha, ao final da viagem, levantou-se e esticou preguiçosamente o corpo jovem, tudo pareceu confirmar seus novos sonhos e intenções (KAFKA, 2010, p. 78). No final da novela, vemos que o conceito de bode expiatório se aplica com certa precisão ao livro, pois, com a morte de Gregor, o bem estar da família é quase automático, chegando ao ponto de fazê-los planejar o futuro. 64

65 UFU 2017 ALEGORIA Feito esse grande percurso ao longo dessa obra tão emblemática de Franz Kafka, que tanto nos causa desconforto e estranhamento, ainda nós nos perguntamos: o que seria a metamorfose? Ler Kafka é como caminhar sobre um território movediço em que cada passo deve ser ponderado a fim de não perdemos por completo o sentido do nosso deslocamento. Sendo assim, de maneira objetiva, tentaremos levantar algumas possibilidades de resposta para essa pergunta, embora, seja inerente a um grande escritor, a multiplicidade de leituras que o texto possa permitir. A metamorfose poderia indicar um relativo desejo de mudança de postura de vida. A condição mecânica de caixeiro-viajante estava exaurindo Gregor por completo. Neste caso, seria necessário o deslocamento dos trilhos da rotina. Porém, a família não permitiu que a transformação seguisse adiante, trazendo-o para um sistema mais absurdo do que o próprio trabalho. Não há nenhuma fala de Gregor que permita afirmarmos categoricamente essa leitura, na verdade, as suas ações, ou a anulação completa delas, poderia sugerir essa leitura. De outro lado, os membros familiares também passaram por uma profunda metamorfose. Antes, eles eram dependentes, prostrados, doentes, e, após a metamorfose de Gregor, tornaram-se ativos, independentes e saudáveis. Tudo isso, nos permitiria inferir que o protagonista impedia a independência da família. Assim, olhando-o por esse viés, Gregor deixaria de ser a vítima inocente adquirindo um status de vilão. Com isso, a metamorfose seria uma possibilidade de reequilíbrio de uma condição de dependência, espécie de redenção de algo que necessitava ser restabelecida a fim de que todos pudessem se tornar seres mais autônomos. A metamorfose de Gregor seria um catalizador para o desabrochar de uma nova forma existencial da família. Outra possibilidade de compreensão da obra seria olharmos a metamorfose como uma metáfora do isolamento humano, alegoria das condições que nos levam à solidão absoluta. A transformação de Gregor, poderia ser compreendida como a materialização das mais íntimas angústias que nos cercam, levando-nos à anulação total da nossa individualidade. Em outra possibilidade interpretativa, a metamorfose de Gregor Samsa seria a representação da condição alienante do sujeito moderno. Tornado coisa, o homem aceita-se com naturalidade, por isso, talvez, Gregor não procurou compreender o que poderia tê-lo levado à condição de inseto. Com isso, Kafka denuncia o processo de aviltamento do ser humano em sua rotina alienante. Logo,a transformação do protagonista seria a materialização da terrível condição que ele já vivia como humano, subjugado por diversas instituições como, por exemplo, a família e o trabalho. Kafka viveu num momento que antecedeu à Primeira Guerra Mundial. Num contexto de conflitos como esse, o ser humano sente-se absurdamente pequeno. O escritor não ficou impassível a todo esse movimento de guerra e, possivelmente, a forma encontrada por ele para expressar os absurdos desse conflito e a consequente desumanização do sujeito se encontra principalmente nas páginas de sua novela animalista. Sendo assim, a incapacidade de falar da opressão da família, das injustiças sociais, dos aviltamentos físicos e morais, das atrocidades da guerra, do matar e morrer em massa e da zoomorfização do homem nos campos de batalha podem ser representadas pelos sons incompreensíveis que Gregor produz ao tentar comunicar-se com o gerente. PERSONAGENS: Gregor: personagem que se transforma em um ser repugnante ao longo do enredo. Trabalhou de maneira bastante alienada para sanar uma dívida proveniente de seu pai. Uma das marcas mais características desse sujeito é a alienação pode ser a representação do sujeito moderno. Pai: essa figura é altamente opressora. É um dos personagens mais intolerantes para com o Gregor. Costuma-se associá-lo à própria figura do pai de Kafka. Mãe: mulher asmática que se camuflou atrás de uma espécie de medo da imagem do filho-inseto. Grete: irmã de Gregor. Ao certo, tinha um sonho de entrar para a escola de música. No início da novela, apresentou uma suposta disposição para cuidar do irmão, contudo, com o tempo, revelou a sua verdadeira essência. Gerente: esse sujeito apareceu apenas no início da novela. Vemos a representação da exploração do homem pelo homem. Inquilinos: personagens indiferentes ao sofrimento da família e de Gregor. No final da novela, foram expulsos do apartamento. REFERÊNCIAS: ADORNO, Theodor W., Prismas crítica cultural e sociedade. Trad. Augustin Wernet e Jorge Mattos Brito de Almeida São Paulo: Editora Ática, ANDERS, Günther. Kafka: pró e contra. Aos autos do processo. São Paulo: Perspectiva, CANCIAN, André. O vazio da máquina - Niilismo e outros abismos. 2ed. São Paulo: Ateus.net, CARONE, Modesto. Lição de Kafka. São Paulo: Companhia das Letras, CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 20. ed. Rio: José Olympio, DELEUZE, G. A filosofia crítica de Kant, Edições 70, Lisboa, FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas: Uma Arqueologia das Ciências Humanas. São Paulo: Martins Fontes, GIRARD, René. A violência e o sagrado. Trad. Martha Conceição Gambini. São Paulo, Universidade Estadual Paulista. KAFKA, Franz. A metamorfose. Trad. Lourival Holt Albuquerque. São Paulo: Abril, KRACAUER, siegfried. Franz Kafka, in Das Ornamente der Masse. Frankfurt am Main: Suhrkamp: LESKY, A. A tragédia grega. 2. ed. Trad. de J. Guinsburg, Geraldo Gerson de Souza e Alberto Guzik. São Paulo. Perspectiva, MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. Cultrix. São Paulo

66 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS TAVARES, Hênio. Teoria literária. Itatiaia. Belo Horizonte. 12ª ed TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, Introdução à literatura fantástica. Trad. De Maria Clara Correia Castello. 3. ed. 2. reimp. São Paulo: Perspectiva, ANÁLISE DA OBRA O SANTO E A POR- CA 44, DE ARIANO SUASSUNA, por Henrique Landim 45 ARIANO SUASSUNA: O CAVALEIRO DO SERTÃO Ariano Villar Suassuna nasceu no dia 16 de junho de 1927, na cidade de João Pessoa, em dia de Corpus Christi, no Palácio do Governo da capital da Paraíba, uma vez que o seu pai, João Urbano Pessoa Vasconcelos Suassuna, era presidente da referida localidade, cargo que corresponderia hoje ao de governador. O pai do escritor pensou em dar a Ariano o nome de Pedro ao filho, contudo recorreu a outro, após conhecer a história de um santo que houvera vivido no Egito muito antes, o santo Ariano. Desde muito pequeno, Ariano apresentou a capacidade de memorizar fatos, textos, acontecimentos que impressionava a todos. Aos três anos, Ariano Suassuna perdeu, prematuramente, o pai, assassinado devido às disputas políticas que culminaram com a Revolução de 30. Esse episódio trouxe consequências negativas à vida do escritor o que, às vezes, aparece de maneira sutil em suas obras literárias como, por exemplo, O Rei Degolado, de 1977, produção que, em seu próprio título, remete ao assassinato 46. Sobre o caso do pai, Ariano confeccionou o seguinte poema: 44 Em alemão o livro recebeu o seguinte título: Die Verwandlung. 45 Graduado em Letras pela Universidade Federal de Uberlândia e mestre em Teoria Literária pela mesma instituição. 46 Sobre a morte do pai, no dia da posse da cadeira da Academia Brasileira de Letras, em 1990, o escritor proferiu as seguintes palavras: Posso dizer que, como escritor, eu sou, de certa forma, aquele mesmo menino que, perdendo o Pai assassinado no dia 9 de outubro de 1930, passou o resto da vida tentando protestar contra a sua morte através do que faço e do que escrevo, oferecendo essa precária compensação e, ao mesmo tempo, buscando recuperar sua imagem, através da lembrança, dos depoimentos dos outros, das palavras que o Pai deixou. (PIMENTEL,& PIMENTEL, 2007, p. 11). A ACAUHAN Aqui morava um Rei, quando eu menino: vestia ouro e Castanho no gibão. Pedra da sorte sobre o meu Destino, pulsava, junto ao meu, seu Coração. Para mim, seu Cantar era divino, quando, ao som da Viola e do bordão, cantava com voz rouca o Desatino, o Sangue, o riso e as mortes do Sertão. Mas mataram meu Pai. Desde esse dia, eu me vi, como um Cego, sem meu Guia, que se foi para o Sol, transfigurado. Sua Efígie me queima. Eu sou a Presa, Ele, a Brasa que impele ao Fogo, acesa, Espada de ouro em Pasto ensanguentado. (PIMENTEL,& PIMENTEL, 2007, p. 10). A malhada da onça A mãe de Ariano, Rita de Cássia 47, levou os filhos para morar na fazenda Acauhan, em seguida, para Taperoá, lugares do interior da Paraíba. Acredita-se que esse momento é bastante significativo para a absorção da cultura popular revelada da produção do autor. Sobre isso o dramaturgo comenta: Ainda menino, no sertão da Paraíba, o palco mágico e festivo do Teatro, com seus violentos contrastes entre recantos sombrios, povoados de assassinatos, e zonas de luz cheia de gargalhadas, todo esse mundo me foi revelado, ao mesmo tempo, pelo Circo (...), pelo auto-popular (...), e pela ribalta (SUASSUARANA apud NUNES, 2000, p. 10). Por volta dos quinze anos, Ariano Suassuna partiu para uma residência perene em Recife. Dos dez aos quinze anos, o autor estudou num colégio protestante interno, o Americano Batista. Sempre muito brincalhão, Ariano recebeu o apelido de chocalho, pois não havia momento de silêncio quando estava próximo. No colégio, ele encontrou um acervo vasto de obras literárias. Os alunos tinham a possibilidade de pegar qualquer título que quisessem. Ariano sempre teve muita habilidade com o universo escolar, por isso, era considerado o melhor aluno da turma. Contudo, nunca tivera a mínima habilidade com o futebol. Indo para o Ginásio Pernambucano encontrou outra importante biblioteca, maior e mais variada que a de seu pai e a do outro colégio onde estudou. O escritor sempre nutriu um verdadeiro encanto pela literatura, amava os personagens de papel que ele conhecia. Por fim, passou a querer se transformar em um grande personagem-escritor. Aos 17 anos, no Jornal Literário, publicou a sua primeira tentativa poética. Nesse período, o autor conviveu com a escrita do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, obra de profunda qualidade que Ariano leu. Porém, o escritor norueguês não tinha nada a ver com as referências do jovem menino sertanejo. 47 Viúva aos 34 anos, conseguiu criar os filhos com muita dignidade, ensinando-lhes a verdadeira dignidade do viver estimulando, nos nove filhos, valores como humildade, generosidade e o companheirismo. Comenta o escritor que se alguém quisesse deixar a mãe triste bastava ficar se lamuriando da vida. Rita de Cássia usou luto a vida inteira sem deixar que os filhos tivessem a mesma conduta. 66

67 UFU 2017 Ariano passou a fazer o curso superior de Direito e a escrever poemas marcados pela cor local da Paraíba. No curso superior, leu Federico García Lorca, poeta e dramaturgo espanhol que representou um novo horizonte cultural para Ariano, pois a obra do espanhol é repleta de cavalos, festas populares, grupos de ciganos, elementos recorrentes do universo literário de Ariano Suassuna. Assim, o escritor começou o seu horizonte dramático: Toda obra de arte é ligada a um local determinado, toda arte é nacional. Ninguém mais espanhol do que Cervantes e ninguém mais universal do que Cervantes [...] Obras criadas em locais determinados e com todas as características dos países em que foram realizadas tornam-se universais por sua alta qualidade e pela divulgação que alcançaram, o que permitiu que elas fossem incluídas no patrimônio comum da Arte mundial (PIMENTEL,& PIMENTEL, 2007, p. 34). Anos depois, em 19 de janeiro de 1957, data do aniversário do pai do escritor, Zélia e Ariano Suassuna casaram-se. Em 1955, Ariano escreveu a sua peça de maior representação, O Auto da Compadecida. Essa obra foi levada ao palco em 1956, com a participação de um público diminuto. No ano seguinte, tornou-se professor de estética da Universidade Federal de Pernambuco, cargo que ocupou até Criou, em parceria com Hermilo Borba Filho, o teatro Popular do Nordeste. Objetivando a defesa da cultura popular, Ariano criou o Movimento Armorial. Tornou-se secretário de cultura de Pernambuco e passou a realizar as suas aulas-espetáculo a fim de promover a cultura regional de seu estado. Após trinta e dois anos em sala de aula, Ariano Suassuna aposentou-se do cargo de professor da Universidade Federal de Pernambuco. Um pouco antes da aposentadoria, o escritor publicou uma carta, sob o título de Despedida, onde realizou um pedido: Estou até tentando conseguir um local que nem minha família saiba onde é, um lugar onde eu possa me defender, assim,contra cartas, livros, telefones, revistas e televisões. A decisão está me custando muito, de modo que tenho o direito de pedir que ela seja respeitada. Com a exceção da Universidade, o que eu tinha de dizer, escrever, ou fazer em público, já fiz. Basta de tanta grandeza. O resto é segredo, um segredo entre mim e Deus (PIMENTEL,& PIMENTEL, 2007, p. 15). Na mesma carta, o escritor exige que ninguém lhe cobre outros livros. Diante da qualidade literária e pessoal do artista, o seu pedido não foi respeitado. Sendo assim, em 3 de agosto de 1989, Ariano foi eleito para ocupar a cadeira de número 32 da Academia Brasileira de Letras. Certa vez, adiante em seu fértil sertão cultural, o escrito, genialmente, afirmou: Há duas raças de gente com as quais simpatizo: mentiroso e doido, porque eles são primos legítimos dos escritores. O que é um mentiroso? É um camarada que não se conforma com o universo comum e inventa outro. Ora, isso é um escritor. Eu também sou assim. Na minha vida não acontece nada, se eu não mentir o que é que eu vou contar? (PIMEN- TEL,& PIMENTEL, 2007, p. 73). O trecho mostra a necessidade permanente da liberdade criadora e a profunda relação com aqueles que são desprovidos de notoriedade social, condição que revela a simplicidade com que a obra do escritor se relaciona. Após décadas de produções literárias, o cavaleiro do sertão faleceu às 17h28m, em 23 de julho de 2014, aos 87 anos, vítima de uma parada cardíaca, decorrente de um AVC, após dias de internação. O GÊNERO DRAMÁTICO (COMÉDIA) Para grande parte dos estudiosos, o texto O Santo e a Porca, de Ariano Suassuna, produção inserida no Teatro Moderno Brasileiro, pode ser entendida como sendo uma comédia 48. Essa condição pode ser inicialmente compreendida no subtítulo do texto: Imitação Nordestina de Plauto (p. 17). Dessa maneira, nas páginas iniciais da obra, é possível notarmos o ponto de contato de O Santo e a Porca com a comédia latina de Plauto. O enredo da obra do escritor nordestino apresenta uma proposital similaridade com a comédia latina do dramaturgo romano Plauto. Essa convergência com a cultura clássica não ausenta da obra O Santo e a Porca os elementos da cultura nordestina. Sobre esses aspectos, Ariano Suassuna comentou algo análogo sobre outro texto dramático dele: Anatol Rosenfeld [...] notou que meu teatro era, sim, aproximado do de Gil Vicente, dos milagres medievais e acrescento eu do de Plauto, do de Goldoni, do de Lope de Vega, do de Calderón de la Barca. Anotou ele, ainda, a importância do folclore nordestino para a feitura do Auto da Compadecida. O que não disse [...] foi que o Romanceiro e os espetáculos populares nordestinos foram também decisivos para aquelas características que ele anotou no Auto da Compadecida o jogo dirigido ao público e acentuado por um comentador, a cena representando o tribunal celeste e a intervenção de Nossa Senhora. Tudo isso em minha peça, vem do Bumba-meu-boi, do Mamulengo, da oralidade dos desafios dos Cantadores e mesmo de autos populares religiosos publicados em folhetos, no Nordeste (SUASSUNA, 2008, p. 179). Embora os comentários acima sejam referentes à outra obra, podemos aplicá-los ao nosso texto analisado. Com isso, afirmamos, com propriedade, o quanto O Santo e a Porca transita entre o universo erudito e o popular. O referido autor latino Plauto é um dramaturgo romano, nascido no século III a.c., e sua obra está em meio aos textos literários mais antigos preservados em latim. Escritores como Shackespeare, Molière, Luís Vaz de Camões e, em nosso caso específico, Ariano Suassuna, possuem uma relação estreita com o autor romano. Muito pouco se sabe da vida de Tito Mácio Plauto (em latim, Titus Maccius Plautus). Ao certo, ele teria nascido em Sarsina, por volta de 255 a. C. Comenta-se que ele escrevia peças de teatro para fugir das dificuldades financeiras. Umas das marcas do teatro de Plauto é a sua profunda habilidade para construir cenas por meio de humor, movimentação e gestualidade dos personagens, peça dentro da peça, personagem enganador. 48 A origem da palavra comédia é o grego que remete ao vocábulo komoidía ( komos remete ao sentido de procissão). 67

68 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS Para a estudiosa Aline Aparecida de Souza Gomes, em sua dissertação de mestrado, a peça teatral O Santo e a Porca, comédia dividida em três atos, se configura a partir dos modelos da alta cultura, absorvendo, em sua essência, a peça do autor latino Plauto, Aululária (século III a. C.), de modo a imbricar-se com a de Molière, L avare (século XVII) (GOMES, 2010, p. 13). A peça do escritor de Recife foi composta quase dois mil anos após Plauto, contudo apresenta um protagonista avaro à maneira do escritor romano. O objeto de avareza do personagem de Suassuna, Euricão, é uma porca de madeira. De forma análoga, em Plauto há um personagem avaro possuidor de uma panela. Na peça do escritor romano Aululária, o protagonista recebe o nome de Euclião. De outro lado, na obra O Santo e a Porca, de Ariano Suassuna, observamos um personagem nomeado de Euricão, nome que apresenta uma sonoridade semelhante ao nome do protagonista Euclião de Plauto. Esses pontos de contato entre O Santo e a Porca, de Ariano Suassuna, com a produção do escritor romano, efetivamente, nos permite classificar a referida peça brasileira como sendo uma comédia. Vale dizer que essa modalidade dramática é estruturada por meio do riso. Esse elemento, na arte dramática, tem a função de recriar o mundo de maneira mais tolerável. Sobre o poder do riso, discute o estudioso: Cada vez mais, o homem utiliza o riso de maneira consciente, com uma finalidade precisa que é, frequentemente, agressiva e destruidora. Dominando essa faculdade, faz dele um instrumento, uma arma (MINOIS, 2003, p 366). Talvez por isso, na árdua realidade nordestina, representada na peça de Ariano, o riso seja tão recorrente. A comédia teve a sua origem num ritual festivo que homenageava o deus Baco. Durante alguns períodos festivos em Atenas, as pessoas saiam de suas casas rindo e dançando, numa postura alusiva ao comportamento do deus Baco. Sendo assim, com o passar dos anos, essas celebrações das ruas ganharam um significado artístico por meio da comédia. No surgimento desse texto dramático, as obras tinham uma função zombeteira para com a figura pública de alguns políticos decadentes de Atenas. Isso sugere que a comédia também teve a sua origem numa suposta função social. Sobre isso, comenta Molière: É um grande golpe para os vícios expô-los à zombaria de todo mundo. Aguentam-se facilmente as repreensões; mas não se aguenta de modo algum o escárnio (MOLIRÉRE apud ALBERTI, 2002, p. 123). Para Molière, rindo corrigiam-se os defeitos do cidadão. Normalmente, a comédia trata-se de pessoas inferiores, homens sem a grandeza da tragédia, contudo, isso não torna essa modalidade dramática desprezível. Para Bergson, a tragédia deve passar um profundo processo de elaboração para conseguir o efeito trágico, já a comédia quanto mais se eleva, mais tende a confundir-se com a vida, e há cenas da vida real tão próximas da alta comédia que o teatro poderia apropriar-se delas sem mudar uma palavra (BERGSON, 2004, p. 102). As falhas que a comédia expõe possuem uma extraordinária capacidade de fazer com que o público se identifique com as misérias dos personagens. Quase sempre, os defeitos dos personagens promovem o riso no público. Para Bergson (2004, p. 104) os defeitos alheios nos fazem rir desde que acrescentemos, é verdade, que esses defeitos nos fazem rir em razão de sua insociabilidade, e não da sua imoralidade. A comédia chama a atenção dos defeitos que devem ser corrigidos. No caso da peça O Santo e a Porca, de Ariano Suassuna, o avareza é levada ao riso para ser combatida. O herói cômico é aquele que possui um defeito em alta escala ao ponto de torna-se um tipo, podendo ser facilmente caracterizado por um adjetivo, condição verificada no avaro Euricão da peça de Ariano Suassuna. Sobre o exagero do riso da comédia diz Propp (1992, p. 88) que se dá de três formas: a caricatura, a hipérbole e o grotesco. A caricatura é marcada por um detalhe ampliado de tal forma que o faça parecer a principal. A hipérbole pode ser vista como uma variante da caricatura, contudo só pode ser cômica quando o detalhe a ser exagerado é um elemento negativo. Por fim, o grotesco define-se por ser o elemento mais elevado do exagero, condição possível apenas no fantástico ou na loucura. Vale dizer que Euricão apresenta a categoria de caricatura. Ariano Suassuna, nessa comédia em três atos marcadamente dinâmica, recheada de improvisos brilhantes de Caroba e Pinhão, nos possibilita perceber, no texto, as técnicas que dão vida e movimento ao teatro de bonecos (o mamulengo 49 ), que anima os repentistas, que faz rir o público. Grande parte dos personagens da peça de Ariano Suassuna são objetos de manipulação de Caroba, trazendo assim para o cenário a representação do teatro de bonecos (mamulengos). Esse elemento, juntamente com a expressão dos costumes, da religiosidade, dos cantos, dos movimentos frenéticos (semelhantes ao ritmo da dança) que estruturam a obra em análise, mais que pôr em relevo a influência desses elementos na confecção de O Santo e a Porca, traz para o palco o próprio Romanceiro do Nordeste, pois sistematiza em si uma parcela das riquezas populares (GOMES, 2010, p. 28). O riso causado pela comédia, em um primeiro, momento não apresenta um sentido metafórico que vá além de si mesmo, porém há, como dito anteriormente, certo intuito com a ação cômica dessa forma dramática. 49 Espécie de fantoche, recorrente do nordeste brasileiro, sobretudo do Estado de Pernambuco. O teatro mamulengo apresenta bonecos como atores da encenação. Esse tipo de peça apresenta características inteiramente populares. Os mamulengos guardam vínculos com a tradição ibérica e, às vezes, são vistos como remanescentes dos espetáculos da Commedia dell Arte. O teatro de Mamulengo baseia-se na improvisação livre do ator (mamulengueiro). 68

69 UFU 2017 A CONSTRUÇÃO DA PEÇA: O mundo sertanejo é representado magistralmente na obra teatral O santo e a porca por Ariano Suassuna, que soube jogar ficcionalmente com fatos e pessoas reais. Com isso, a realidade sertaneja ganha vida no palco, mas a vida, segundo o próprio autor, jamais se igualará ao dinamismo, à riqueza e à constante invenção da realidade. Assim, a história de um avarento é, na verdade, a história de um nordestino pertencente à família Suassuna: Aproveitei, entre outras coisas, a circunstância de ser Euricão Engole-Cobra um estrangeiro, um árabe, como se diz no sertão, dos sírios, árabes e turcos enraizados e insinuei, através disso, nossa própria condição de desterrados (SUASSUNA, 2007, p. 24). Não tem sentido, portanto, dada as características do meu teatro, dizer (...) que é inverossímil que um avarento ignorasse uma operação bancária e perdesse, assim, seu tesouro. Em primeiro lugar mesmo que isso fosse impossível na vida, não o seria em meu teatro (...) e segundo lugar, mesmo na vida o fato é tão possível que aconteceu; foi em Taperoá, com uma pessoa avarenta, por sinal pertencente à minha família. Na agência do Banco do Brasil, em Campina Grande, onde ela foi trocar seu dinheiro, avisada por um tio meu, juntou gente para ver aquelas notas, guardadas durante tanto tempo que ninguém as conhecia mais (SUASSUNA, 2007, p. 26). Mesmo o texto tendo essa estreita relação com fatos da realidade do autor, isso não exclui a beleza da obra que foi escrita em onze dias. Segundo parcela da crítica literária, a peça O santo e a porca foi uma obra encomendada, pois atendia à solicitação de uma companhia que necessitava responder a uma imposição oficial da lei, a lei dos dois terços. Essa lei obrigava a apresentação teatral de uma peça nacional em oposição a duas estrangeiras, numa proporção de dois por um, isto é, duas peças estrangeiras e uma peça brasileira: (...) há uma lei de obrigatoriedade de autor nascido no Brasil para estreias de companhias, fruto da obtusidade e de arbitrariedade de alguns decrépitos (FRANCIS, Diário Carioca, 9 mar. 1958). ENREDO PRIMEIRO ATO O espaço primordial desse texto é a casa do avaro Euricão Engole-Cobra. Por isso, no começo da peça, há uma rubrica indicando que um pano se abre para a performance dos personagens. Sendo assim, Caroba anuncia ao patrão, Eurico, a possível chegada de um visitante: CAROBA E foi então que o patrão dele disse: Pinhão, você sele o cavalo e vá na minha frente procurar Euricão (SUASSUNA, 2015, p. 33). De acordo com o texto, Pinhão viera à casa de Euricão entregar-lhe uma carta de seu patrão, Eudoro Vicente. O dono da casa ficou atordoado com o teor da carta recebida. Assim, Euricão recusa a receber a epístola, criando uma verdadeira confusão. Esse personagem temia que Eudoro Vicente, o visitante que estava por vir, quisesse pedir-lhe dinheiro emprestado: EURICÃO Ai, meu Deus, com essa carestia! Ai crise, ai a carestia! Tudo que se compra é pela hora da morte! CAROBA E o que é que o senhor compra? Me diga mesmo, pelo amor de Deus! Só falta matar a gente de fome! EURICÃO Ai a crise, ai a carestia! E é tudo querendo me roubar! Mas Santo Antônio me protege! (grifo meu - SUASSUNA, 2015, p. 34). Nas poucas palavras expressas pelo personagem Euricão, dá para traçarmos o seu perfil psicológico como o de um típico avarento. Por isso, insistentemente o personagem lança mão de uma espécie de jaculatória profana ( Ai a crise, ai a carestia! idem) a fim de justificar a sua predileção ao dinheiro. A carestia não real referida pelo Euricão é o resultado de inúmeros problemas econômicos que acarretam uma fome generalizada na população. Porém, a fome e a miséria no nordeste do Brasil é um tema bastante recorrente, para isso basta nos atermos à leitura de um clássico da nossa literatura, Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Euricão ama o dinheiro e, por isso, não o gasta a fim de utilizá-lo, como bem dito por ele acima, na hora oportuna ( Tudo que se compra é pela hora da morte! idem). Segundo George Simmel (1899), o dinheiro torna-se um simples poder-fazer, seria uma espécie de desejo de um futuro alcançável e, portanto, não imediato. Para o avarento o prazer está em ter o dinheiro que se torna uma tentação, um mal genuíno. Para Dante, em seu célebre texto A Divina Comédia, a avareza e a ganância são males, frutos da sedução que os bens materiais exercem sobre o ser humano de sua época. De acordo com o autor italiano, quando o homem faz da riqueza o bem maior de suas vidas, seu caminho para a felicidade, a natureza original é transformada, abrindo espaço para a loucura e a perdição. Os avarentos, no clássico italiano, caminham no quarto círculo do inferno, local onde aparecem três feras, uma das quais é uma loba magra, que simboliza a avareza. No caso do texto O Santo e a Porca, de Ariano Suassuna, o maior ícone do avaro é a porca, local onde Euricão guarda toda a sua fortuna. Feita essa digressão sobre o perfil psíquico, a avareza do protagonista, voltemos ao enredo. Pinhão, namorado de Caroba, pede a Euricão que, pelo menos, pegue a carta para ler. Porém, o dono da casa nega-se veementemente a ter a posse da missiva. Dessa maneira, vendo-se diante de uma situação de profunda tensão, visto que envolvia dinheiro, Euricão pede auxílio divino: EURICÃO Eu? Deus me livre de ler essa maldita! Essa amaldiçoada! Ai a crise, ai a carestia! Santo Antônio me proteja, meu Deus! Ai a crise, ai a carestia! (SUASSUNA, 2015, p. 34). 69

70 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS Em seguida, atraída pela forte presença do rumor, entra Margarida, filha de Euricão, acompanhada de Dodó Vicente, disfarçado com uma feia barbicha, com a boca torta, com corcova, coxeando e vestido de preto. A jovem pergunta ao pai o que houve. Ele grita que há ladrões por ali, aspecto que deixa Margarida preocupada: MARGARIDA Socorro! Socorro! Pega ladrão! EURICÃO Ai, minha filha, não grite assim não! Não grite, senão vão pensar que a gente tem o que roubar em casa. E vêm roubar! Santo Antônio, Santo Antônio! Ai a crise, ai a carestia! (SUASSUNA, 2015, p. 35). Nesse diálogo acima, podemos encontrar uma das tônicas centrais do livro, o elemento cômico. É bastante risível ver o desespero da filha ao pedir socorro e a abrupta interrupção do pai temeroso com a sua porca (dinheiro). Ao assumir o papel de avarento, Euricão, traz à tona o exagero emocional, atraindo para si a atenção do público, provocando nele o riso. O exagero é nesse sentido, de acordo com Propp, elemento primordial à existência do cômico. Segundo os estudiosos, ele pode manifestar-se por intermédio de traços grosseiros e refinados que se excedem na edificação e na representação das personagens e, também, nos eventos que constroem a história ficcional (GOMES, 2010, p. 39). O protagonista Euricão é um personagem marcadamente caricatural. É dele, sobretudo, o aspecto cômico citado acima pela estudiosa. Esse sujeito expressa o aspecto religioso da obra O Santo e a Porca, que, a nosso ver, pode ser visto como sinônimo de alienação, unido ao excessivo apelo dramático ao dinheiro de Euricão, que acaba, no fim da peça, sendo traído pela vida. Sobre isso comenta a estudiosa: Nessa acepção é que o religioso e o profano se entrecruzam na peça suassuniana, sendo representados respectivamente, pelo santo (devoção alienante) e pela porca (dinheiro, avareza, mesquinhez). Ambos, objetos essenciais à sobrevivência de Euricão Engole-Cobra ; logo, tal personagem é simbolicamente a sistematização do sagrado e do profano. (GOMES, 2010, p. 58). Após um curto intervalo, momento marcadamente dinâmico pelo excesso de diálogos, Margarida consegue entender que o incômodo do pai está diretamente ligado à vinda do patrão de Pinhão e ao possível pedido de dinheiro emprestado por parte dele, Eudoro Vicente. Enquanto isso, Euricão se recusa a ler a carta, jogando-a ao chão. Após insistência da filha, Euricão resolve ler a carta: Meu caro Eurico: espero que esta vá encontrá-lo como sempre com os seus, gozando da paz e prosperidade! [...] Gozando paz e prosperidade. Sobretudo, espero que esteja passando bem sua encantadora filha Margarida, cuja estada em minha casa ainda não consegui esquecer. [...] Mando na frente meu criado Pinhão, homem de toda confiança para avisá-lo de minha chegada aí (SUASSUNA, 2015, p. 39). A carta, colocada integralmente acima, teve a sua leitura várias vezes interrompida por Euricão, que, temeroso com a vinda de Eudoro, a fim de pedir-lhe dinheiro emprestado, não conseguiu compreender bem o sentido da carta. Margarida tira a carta das mãos do pai para ler o final do texto: De minha chegada aí, mas quero logo avisá-lo: pretendo privá-lo de seu mais precioso tesouro! (SUASSUNA, 2015, p. 40). A última palavra dita por Margarida ( precioso tesouro - idem) deixou Euricão bastante preocupado com a chegada do visitante. Com isso, Euricão empurra os quatro personagens para um quarto trancando-os pelo lado de fora. Tranca também as portas e janelas com pedaços de madeira para, em seguida, abrir pelo meio uma grande porca de madeira, velha e feia. Dentro da porca, há pacotes de dinheiro. O avarento, enquanto segura a porca e fala como a imagem do Santo, deixa cair de dentro dela pacotes de dinheiro: Ladrões, ladrões! Será que me roubaram? E preciso ver, é preciso vigiar! Vivem de olho no meu dinheiro, Santo Antônio! Dinheiro conseguido duramente, dinheiro que juntei com os maiores sacrifícios. Eurico Arábe, EuricoEngole-Cobra! Pois sim! Mas é rico e os que vivem zombando dele não têm a garantia de sua velhice. Ah, está aqui, os ladrões ainda não conseguiram furtar nada. Ah,minha porquinha querida, que seria de mim sem você? Chega dá uma vontade da gente se mijar! Fique aí até outra oportunidade. Se eu pudesse, comia você inteirinha! Ai, mas é impossível! Senão, desconfiam! (SUASSUNA, 2015, p ). Na sequência, Euricão, numa alegria satânica, abre a porta do quarto onde os quatro personagens foram trancados. Dodó sugere ao patrão que vá ao hotel para reservar um lugar para Eudoro Vicente. O avarento elogia a sugestão de Dodó: É a única pessoa que sabe me compreender! Se você não fosse tão pobre e tão feio, minha filha bem poderia... Eu vou, sua ideia é boa (SUASSUNA, 2015, p. 42). Mal sabia Euricão que Dodó estava, às escondidas, de caso com Margarida. O avarento vai ao hotel, imediatamente, Margarida abraça Dodó. Assim, nesta parte do texto, percebemos que filha de Euricão passou uns dias na fazenda de Eudoro Vicente e lá se apaixonou pelo seu filho, o Dodó Vicente, que está fantasiado de corcunda para estar próximo à amada. O casal vivencia dias de tensão afetiva, pois, comenta o personagem: DODÓ - Mas dizer tudo como, meu bem? Não tenho um tostão meu, meu pai é contra a ideia de eu me casar sem estudar, seu pai só deixa você casar com um homem rico... O que é que eu posso fazer contra este inferno? (SUASSUNA, 2015, p. 44). O casal apaixonado pensa no que fazer diante dos obstáculos que os impedem de ser felizes. Com isso, Dodó conclui: Talvez você tenha razão, é melhor confessar. Quando ele chegar, descobrimos tudo e ficamos de joelhos diante dos dois, pedindo consentimento para nos casar (SUASSUNA, 2015, p. 44). Entretanto, Caroba, que estava presente em toda cena, diz ao casal que Eudoro Vicente se deslocava de sua fazenda para pedir a mão de Margarida em casamento: Caroba Ele não disse, na carta, que vinha roubar o tesouro mais precioso de Seu Euricão? (SUASSUNA, 2015, p. 45). Dodó concorda com a suposição de Caroba, uma vez que o seu pai, Eudoro Vicente, sujeito viúvo, estava a dias falando com ele sobre casamento. Diante desse conflito, magistralmente, Caroba apresenta uma solução : É deixar as coisas como estão. Se o senhor tiver habilidade, pode ser que seu pai não o reconheça, pelo menos hoje. Quando ele chegar, já é quase noite. Com a corcova, a perna curta, a barbicha e a boca torta, o senhor bem que pode passar por outro. Então a gente vê o que faz, examina tudo, vê se é casamento mesmo e pode então partir daí para resolver tudo. 70

71 UFU 2017 DODÓ Como? CAROBA Eu sei lá, na hora se vê (SUASSUNA, 2015, p. 46). Como se nota, a personagem Caroba apresenta uma solução, por meio do improviso, para os problemas vividos pelo casal. Tudo isso, acaba revelando os traços característicos dessa personagem: Caroba coloca diante dos expectadores a marionete, uma vez que as personagens por ela controladas oferecem- -lhe a imagem de bonecos cujas articulações estão presas às cordas e seus movimentos são governados por um manipulador (Caroba) que determina suas ações. A ideologia de estar preso ou conduzido pelas mãos de outrem, como um joguete, é que constrói a comicidade, ou seja, cria as inúmeras cenas cômicas apreciadas na peça (GOMES, 2010, p. 54). Para articular os anseios do casal, Dodó e Margarida, Caroba exige daquele um contrato, isto é, ela poderá ajudá-los, contudo haverão de pagar por isso com umas terras que Dodó possui. Sendo assim, fica acordado que se Caroba conseguir unir o casal por meio do casamento ganhará em troca uma terrinha pequena: CAROBA Para o senhor, para mim vale muito. A coisa que eu mais desejo na vida é casar com Pinhão e ter uma terrinha para trabalhar nela com ele. Se a história se resolver e eu conseguir fazer seu casamento, o senhor passa a escritura dessa terra para nós dois?(suassuna, 2015, p. 47). Numa espécie de versão carnavalesca que procura relativizar a realidade, Suassuna, por meio de Caroba, transforma em movimento teatral a problemática da terra, aspecto primordial à vida e à sobrevivência do povo nordestino. Sobre isso comenta a estudiosa: A fala da personagem (Caroba) no que se refere à terra é a síntese do desejo daqueles que procuram conquistar uma vida mais digna, pois a terra fulgura não só como fonte de sobrevivência, mas também como instrumento que dignifica o homem. É ela que lhe confere estabilidade e possibilidade de crescimento. [...] Se fizermos uma analogia com a literatura bíblica, podemos relacionar simbolicamente, os espertos como representantes do povo de Deus, pois em ambas as literaturas há a promessa e a busca ou o deslocamento em direção a terra prometida. Considerando que, para a realização desse evento, necessita-se de alguém que articule e conduza o povo, diríamos que Caroba é o mentor, e Pinhão é aquele que, como Moisés, o conduz com indulgência (GOMES, 2010, p. 75). Nessa peça de Ariano Suassuna, as artimanhas de Caroba trazem ao público a imagem da marionete, cujo automatismo provoca riso. Essa condição da personagem permite relacioná-la ao universo do teatro mamulengo, que apresenta bonecos como atores da encenação. Dodó põe os disfarces e sai atrás de Margarida. Entra na cena Euricão, gritando para pegar ladrão. Aproxima-se de Caroba que estava colocando a mão no dorso da porca. Espertamente, Euricão diz para Caroba sair de perto do objeto, pois havia uma aranha próxima. A mulher se distancia da porca, pois temia o contato com a aranha. Em seguida, Euricão revistou a empregada para ver se ela não havia roubado algo. Caroba simula para o patrão o pedido financeiro de Eudoro Vicente, condição que deixou o Euricão amedrontado. Assim, o velho pediu ajuda a empregada que propõe uma solução: quando o homem vier pedir o dinheiro emprestado, Euricão o faria primeiro, desobrigando-o de emprestar. Caroba não pediu uma comissão ao patrão se o dinheiro de fato fosse emprestado a ele: COAROBA Ah, ele empresta! Vou dar um jeito nisso. O senhor me dá uma comissão? [...] EURICÃO Ai, ai! Ainda não tenho os vinte contos e já querem me roubar! Não dou, não dou de jeito nenhum. CAROBA Então, estou fora do negócio. EURICÃO Não! Preciso de você, Caroba, não me abandone! CAROBA Então me dê minha comissão. EURICÃO Quanto é que você quer? (SUASSUNA, 2015, p. 52). Minutos seguintes, Eudoro Vicente chegou à casa de Euricão. Caroba pediu ao seu patrão que saísse a fim de que ela pudesse servir de suporte para Euricão pedir o dinheiro emprestado. Porém, restou na sala Caroba e Benona, irmã do avarento, ex-noiva de Eudoro. Dissimuladamente, Caroba inicia o seu jogo de manipulação para com Benona: CAROBA Pinhão está desconfiado de que Seu Eudoro vem pedir a senhora em casamento. BENONA Caroba! CAROBA É verdade, Dona Benona! A senhora não foi noiva dele? BENONA Fui, mas briguei por uma besteira, e ele se casou com outra. CAROBA Mas o fato é que está viúvo e arrependido! Ele mandou dizer a Seu Euricão que vinha privá-lo de seu tesouro, e Pinhão acha que só pode ser a senhora. BENONA É possível? CAROBA A senhora mesmo vai ver, daqui a pouco. Mas parece que ele está meio envergonhado, depois de tanto tempo. É natural, mas é preciso ajudá-lo (SUASSUNA, 2015, p. 52). Benona recebe Eudoro cheia de um olhar tenro. Em seguida, ela sai de cena permanecendo na sala apenas o visitante e Caroba. Assim, Eudoro revela a motivação para a sua visita naquela casa: estava ali para pedir a mão de Dona Margarida em casamento. Caroba diz ao homem notar nele certo constrangimento, comportamento confirmado por ele. Sendo assim, Caroba diz: O senhor agrade o velho, seja delicado, diga que ele vai bem de saúde e de negócios, fale em Santo Antônio, que é a devoção dele, e deixe o resto comigo. Depois que eu puxar o assunto, depois que tudo estiver encaminhado, aí o senhor faz o pedido, está bem? (SUASSUNA, 2015, p. 59). Nesse momento, Caroba inicia o seu processo de manipulação de mais um personagem. 71

72 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS Euricão entra em cena. Caroba lança um diálogo ambíguo cheio de más intenções para com o seu patrão: CAROBA Seu Euricão, o senhor sabe perfeitamente que Seu Eudoro gostou de uma pessoa de sua família. EURICÃO Sei, mas pensei que isso já tivesse passado. CAROBA Ora passado, agora foi que começou! A simpatia que essa pessoa inspirou a Seu Eudoro só fez aumentar com a separação. Pois bem, Seu Eudoro veio pedi-la em casamento. EURICÃO Está dada, pode se considerar noivo. Mas eu preciso de vinte contos emprestados para fazer a festa do casamento. EUDORO Mas eu ainda não sei se ela aceita!(suassu- NA, 2015, p ). No presente diálogo, há uma insinuação, sobretudo por parte do avaro, que a pessoa com a qual Eudoro anseia cansar-se seria a irmã, Benona. Como se nota, a mulher referida pelos homens acima (o pai e o pretendente) não é a mesma. Eudoro pede para chamar a Margarida para a oficialização do pedido, porém Caroba consegue novamente causar a incerteza acerca da presença da filha de Euricão. A ambiguidade da cena, a tensão humorística prosseguem: EUDORO Está bem, mas posso ver Margarida? EURICÃO Pode, por que não? EUDORO Diziam que você era tão cheio de coisas com ela! EURICÃO Ah, sou. Mas confio em você, por causa de sua idade e porque agora você é noivo. Você promete ir para o hotel? EUDORO Prometo, homem cuidadoso! Não fica bem eu, noivo, hospedado em casa da noiva, não é?(suassuna, 2015, p. 62). Temos uma cena bastante inusitada, improvisadamente elaborada pela maestria marginal de Caroba. Os dois homens acordam um casamento com noivas distintas. Margarida e Dodó entram em cena após o pedido de Euricão. Vale dizer que Dodó entrou de costas, mancando e muito encurvado pela corcunda, condição que não permite o seu reconhecimento pelo seu pai. Enquanto isso, Eudoro lança mão de um diálogo afetivo com a sua suposta noiva: EUDORO É, Margarida. Ainda não tive tempo de ir ao hotel, mudar de roupa, mas quero logo pedir uma entrevista a você para conversarmos. EURICÃO Ah, não, entrevista não. A entrevista é essa! EUDORO Mas Eurico... MARGARIDA Não precisa nem o senhor falar, meu pai. Prefiro ir para um convento. EURICÃO Está vendo o que é recato, Eudoro? Aí, Margarida! Sustente o pudor, Margarida, sustente o recato. Trata-se de Eudoro, é uma pessoa séria, de mais idade e, além do mais, vai entrar na família. Mas recato é recato! Entrevista sozinha, com ninguém! EUDORO Mas Eurico... MARGARIDA Já disse que prefiro ir para um convento. E vá marcar entrevista com gente de sua idade, está ouvindo? E saia daqui com seu casamento! Saia daqui porque eu... (SUASSUNA, 2015, p ). Entre Eudoro e Margarida a tentativa de estabelecimento conjugal é notada, entretanto Euricão ainda não conseguiu perceber que o visitante procura relacionar-se com a filha. Caroba, ao ver a tensão eminente dos ataques ao velho Eudoro, pede para Margarida sair. A moça sai acompanhada pelo Dodó. Euricão segue a filha para acalmá-la. Enquanto isso, Caroba explica a motivação da postura hostil de Margarida para com Eudoro. A justificativa é dada pelo grau de afetividade que a jovem possui com a sua família, um casamento iria distanciá-la de todos: CAROBA Isso passa, deixe comigo! Ela faz isso porque está na frente do pai. Mas quando ela falar com o senhor a sós, há de ver que ela quer o casamento (SUASSUNA, 2015, p. 66). Enquanto isso, Caroba aproveita a situação para arquitetar o seu plano para obter a terra de Dodó. Caroba marca um suposto encontro entre Eudoro e Margarida. Na verdade, sabemos que objetivava restabelecer as relações afetivas entre Eudoro e Benona. Sendo assim, o encontro entre o velho e a noiva iria ocorrer à noite, quando todos estivessem dormindo. Antes de vir para a entrevista, haveria um jantar para celebrar o noivado. Dessa maneira, Eudoro foi ao hotel e voltaria para o jantar. Subitamente, Eudoro regressa à casa do avarento, porque desejava propor um negócio com Euricão: comprar a porca. Entretanto, note o incômodo causado pela suposição de compra: EURICÃO Preço por minha porca? Ai! Socorro! Ladrão! Pega o ladrão! EUDORO Que é isso, homem? EURICÃO Ai a crise, ai a carestia! Ai Santo Antônio! Veja o que querem fazer comigo! EUDORO Mas afinal de contas... EURICÃO Ai minha porquinha que herdei de meu avô, e esse criminoso quer tomar! Ai minha porquinha! (Cai desfalecido numa cadeira,) EUDORO Está bem, homem de Deus, se não quer vender, não venda! Precisa essa agonia? Diabo duma esquisitice danada! Vá ser esquisito assim no inferno!(suassuna, 2015, p. 72). Esse trecho apresenta um alto teor irônico, haja vista que as notas que estão dentro da porca não possuem mais nenhum valor, pois o sistema monetário alterou a moeda à revelia de Euricão. Caso o personagem soubesse, pelo menos poderia ver em seu bolso algum valor relacionado à venda do objeto. Ao sair da casa de Euricão, Eudoro encontra-se com Benona. Esta lança ao velho um diálogo que tenta restabelecer a relação interrompida no passado. Tudo isso deixa Eudoro bastante assustado, fazendo-o sair da casa. Chegando ao final do primeiro ato, Euricão estabelece um diálogo significativo com o seu objeto de veneração: 72

73 UFU 2017 EURICÃO Ai minha porquinha adorada, ai minha porquinha do coração! Querem roubá-la, querem levar meu sangue, minha carne, meu pão de cada dia, a segurança de minha velhice, a tranquilidade de minhas noites, a depositária de meu amor! Mas parece que Santo Antônio me abandonou por causa da porca. Que santo mais ciumento, é ou ele ou nada! É assim? Pois eu fico com a porca. Fui seu devoto a vida inteira: minha mulher me deixou, a porca veio para seu lugar. E nunca nem ela nem você me deram a sensação que a porca dá. Ah, minha bela, ah, minha amada! Aqui você fica muito à vista de todos, todo mundo deseja a sua beleza, a sua bondade. É melhor levá-la para um lugar escondido. A mala do porão, é lá! Aí você ficará em segurança e eu poderei dormir de novo (SUASSUNA, 2015, p ). Nesse diálogo, Euricão deixa transparecer que a sua concepção religiosa é fraudulenta. O capital eleva-se à condição de bem maior para esse homem. Aqui poderíamos fazer um importante trocadilho para a compreensão do texto: o santo é a porca. No caso desse avaro, o capital é o seu maior objeto de veneração, ganhando a condição apologética. Sendo assim, Euricão, temendo perder o seu dinheiro, resolve mudar a porca de lugar, levando-a para o porão. SEGUNDO ATO Esse ato é aberto na mesma sala na qual o anterior foi finalizado. Surgem em cena Caroba, Margarida e Dodó. Entre Caroba e Dodó ocorre uma situação de conflito: o jovem não aprovou a maneira pela qual a empregada de Euricão conduziu as ações. Para ele tudo poderia ter se perdido. Porém, Caroba, com a habilidade e inventividade, contra argumenta da seguinte forma: CAROBA Que é que eu podia fazer? Era preciso que seu pai acreditasse que a noiva era ela. Agora, que já está encaminhado, o senhor fica aí dando jeito em tudo. Queria ver era na hora, inventar tudo isso de repente, noivar seu pai com Dona Benona, quando ele pensava que era com Dona Margarida, noivar Dona Benona no pedido da sobrinha, fazer Seu Euricão acreditar que o candidato a genro queria ser cunhado... O senhor acha pouco? (SUASSUNA, 2015, p. 77). Como se nota, a improvisação de Caroba é uma tônica muito recorrente ao longo do texto visando, sobretudo à concretização de seu plano, que é centrado na realização de três casamentos: Eudoro e Benona, Caroba e Pinhão, Dódo e Margarida. A improvisação é, nesse âmbito, a arma que ajuda a manipular o outro, impedindo-o de descobrir a verdade. O medo de Dodó dava-se, principalmente, motivado pela entrevista entre Eudoro, o seu pai, e Margarida, a sua noiva, o que poderia desqualificá-lo, caso Euricão descobrisse que o possível noivo de sua filha fosse o rico Eudoro. Margarida fica sensibilizada com a fala de Dodó que coloca Euricão como um homem avaro. Sendo assim, ela passa a defender afetivamente o pai e cria outra situação de conflito: MARGARIDA Você é quem parece de repente cheio de dureza para com ele! Você não já sabia como ele era? Por que, então, esses modos, de repente? Parece é que você quer me deixar de lado e está procurando um pretexto! DODÓ E você? Parece estar ansiosa por essa entrevista! Pois vá! Vá, siga os conselhos de Caroba e, quando estiver de volta, jogue fora a aliança que lhe dei. Não quero casar com uma moça que marca entrevista com outro! (Sai, MAR- GARIDA chora.) (SUASSUNA, 2015, p. 79). Podemos ver que os planos de Caroba tornam-se difíceis de serem praticados. Margarida, ao ver o namorado incomodado com a situação, diz que não irá à entrevista com seu Eudoro. Sendo assim, ela propõe uma substituição: Caroba deveria ir ao encontro com o pai de Dodó. Caroba aceita a suposição da filha do patrão, impondo uma condição: MARGARIDA Eu lhe dou um vestido meu, e você vai em meu lugar! Você é mais ou menos de meu tipo: com meu vestido, de noite, no escuro, pode passar por mim, perfeitamente! CAROBA Tem que ser um vestido que Seu Eudoro conheça, senão não dá certo! (SUASSUNA, 2015, p. 80). Curiosamente, nesse momento, Caroba, pelo menos por um ligeiro instante, parece ser uma marionete de si mesma. Porém, já houvera articulado uma solução para a condição conflitante. Quando Margarida estava saindo da sala, Caroba fez um pronunciamento alto: CAROBA Mas é claro que vou à entrevista, meu plano todo era esse (SUASSUNA, 2015, p. 80). No mesmo instante, Pinhão entrou em cena, ouvindo a fala de Caroba, incomodando-se com a entrevista que poderia ocorrer entre a namorada e Eudoro. Ocorre uma discussão entre o casal e, por fim, Pinhão se despede de Caroba, espécie de sugestão de término: PINHÃO Pois adeus, Caroba. Quem gosta de dormente é trem. (Sai. CARO- BA chora, mas logo enxuga as lágrimas). CAROBA Essa é boa, ninguém deixa eu falar e haja todo mundo contra mim! (SUASSUNA, 2015, P. 82). Em poucas partes do livro, Caroba faz uma espécie de reflexão moral sobre o seu próprio comportamento. Pinhão saiu de cena e, no mesmo instante, apareceu Benona dizendo que encontrou Eudoro e o achou estranho para quem quisesse noivar-se com ela. Caroba contra-argumentou, dizendo que o tempo passou, por isso, talvez, Eudoro estivesse diferente. Caroba, ao ver a sensibilidade de Benona, propícia à manipulação disse-lhe: CAROBA Não tenha dúvida, ele continua no mesmo entusiasmo! Chegou até a pedir que eu arranjasse uma entrevista dele com a senhora! BENONA Uma entrevista? Quando? CAROBA À noite, quando o povo estiver dormindo. BENONA Eurico vai estranhar. 73

74 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS CAROBA Para estranhar, ele vai ter que saber, e Seu Euricão não vai saber de nada. BENONA E se alguém acordar? CAROBA A senhora vem disfarçada. Veste um vestido de Dona Margarida. Se alguém acordar, a senhora faz que é ela, que veio rezar, e ninguém desconfia. De noite, é fácil. BENONA E como é que eu vou arranjar o vestido de Margarida? CAROBA Pode deixar que disso eu me encarrego. Depois do jantar, deixo a porta destrancada e Seu Eudoro vem. Quando tudo estiver preparado, canto como gia, entrego o vestido e a senhora fala com ele. (SUASSUNA, 2015, p ). As duas saem de cena para dar lugar a Pinhão e Dodó que apresentam uma feição de arrependidos de algo. Os dois voltaram a casa para pedir desculpas às amadas, contudo acabam conversando sobre a possível entrevista de que ambas participariam. Dessa maneira, Pinhão e Dodó combinam um plano para tentar compreender a entrevista com Eudoro: DODÓ Não custa nada esclarecer, não é? Vamos fazer o seguinte: quando Caroba abrir a porta, a gente vem antes e se esconde aqui. Assim, assiste-se à entrevista e pode-se saber, afinal de contas, o que é isso. Está certo? (SUASSUNA, 2015, p. 85). Enquanto conversam, lembram-se do jantar que seria oferecido ao seu Eudoro. Assim, Pinhão grita para fora: É a porca? Levem lá para trás, nossa alegria hoje é essa porca (SUASSUNA, 2015, p. 85). Euricão aparece desesperado em cena, dando pancadas em quem ele vê à sua frente. O avaro vai investir sobre Pinhão, que puxa uma faca. Após uma discussão, Eurico resolve prender os dois homens no porão, mas lembra-se de que a porca estava lá. O velho avaro ficou atônico com a possibilidade de os homens descobrirem onde estava a sua porca. O barulho feito por eles atraiu a presença de Dodó. Após alguns instantes, Euricão consegue compreender que a porca referida por Pinhão era a do jantar. Contudo, este, desconfiado, vai até a porta do porão e fica olhando o quarto, pensativo. Pouco adiante, Margarida e Caroba entram, conduzindo Eudoro Vicente. Pinhão acena para Caroba, mostrando Dodó sem os disfarces, mas ela não atende e dá-lhe as costas, zangada. Dodó volta-se para ela, com Eudoro no limiar. Finalmente, Caroba sensibiliza-se com a possibilidade de descoberta de Dodó como sendo o filho de Eudoro e resolve agir: CAROBA Ai! Um ladrão! DODÓ Um ladrão? EUDORO Um ladrão? CAROBA (Agarrando-se com ele.) Um ladrão, Seu Eudoro! Ai, o ladrão! (Empurra EUDORO, saindo de cena com ele.) DODÓ Pega! Pega o ladrão! PINHÃO (Avisando.) Seu Dodó! Seu Dodó! (SUASSU- NA, 2015, p. 92). Pinhão corre atrás de Dodó, este sem disfarce. Pinhão e Margarida dão a volta à casa e regressam à cena, cada qual por um lado. Margarida e Pinhão tentam fazer de tudo para que Dodó, sem disfarces, não seja reconhecido pelo pai. Com isso, aparecem Dodó e Eudoro, cada um por um lado, com jeito de quem procura algo. Os dois caminham um para o outro e vão se encontrar, mas na hora exata, cada um vira o rosto para o lado oposto e, por um triz, não se veem. Vão ao limiar da cena, tendo-se cruzado, e param. Eudoro procura o ladrão que Caroba havia anunciado, contudo encontra-se subitamente com Dodó agarrando-o pelo pescoço. Este está com as mãos sobre o rosto. Eudoro anuncia gritando que pegou o ladrão. Caroba imediatamente dá um salto, escancha-se no lombo de Eudoro, como se este fosse o ladrão, e Pinhão agarra-o. Benona, que ouviu os gritos, entrou em cena. Eudoro havia agarrado Dodó e Caroba, Eudoro. Esse princípio de confusão fora manipulado por Caroba para que o velho rico não descobrisse a identidade de Dodó. Passada a confusão, todos riem do ocorrido: CAROBA Pega o ladrão! Foi tão engraçado! Vamos? Ai, meu Deus, eu hoje estufo de tanto rir! (Sai empurrando todo mundo e todo mundo rindo. PINHÃO, porém, fica pensativo, olhando toda a sala.) VOZ DE EURICÃO Ai, ai, meu Deus! Pega, pega o ladrão! Estão me roubando! (SUASSUNA, 2015, p. 97). Euricão novamente aparece, de súbito, em cena, pensando que algum ladrão estivesse roubando a sua porca ( fortuna ). O personagem busca a porca, cobrindo-a com uma capa. Eudoro se aproxima de Euricão e começa a olhá- -lo, examinando-o com um misto de curiosidade, desgosto e compaixão. Chega mesmo a tocar na roupa de Euricão para inspecioná-la. Este, desconfiado, vai se afastando dele, aos arrancões, mas sem querer sair, para não despertar suspeitas sobre a porca. Na oportunidade, Euricão pede ao Eudoro vinte contos emprestados. O noivo não possuía a quantia referida, contudo o avaro, temendo não pegar a quantia, providencia um vale: Você pode me dar um vale, e eu vou receber o dinheiro no armazém que compra seu algodão (SUASSUNA, 2015, p. 100). 74

75 UFU 2017 Por fim, após um curto diálogo, Euricão consegue extrair a quantia desejada de Eudoro. Nesse momento da peça, temos um diálogo bastante revelador sobre a alma avara de Euricão: Obrigado, obrigado, obrigado! Agora me sinto seguro! Grande coisa é o dinheiro! (SUASSUNA, 2015, p. 100). Essa fala é uma das mais significativas sobre a alma pragmática desse sujeito. Eudoro percebe que Euricão tem algo sob uma capa (a porca escondida) e pergunta ao seu interlocutor sobre o que seria aquilo. O avarento responde que estava com algumas cervejas. Eudoro pede então que o homem mostre as cervejas. Euricão se recusa ( Não gosto de mostrar a cerveja - SUASSUNA, 2015, p. 101). O visitante sai do quarto e vai à sala a fim de aguardar o jantar. Enquanto isso, Euricão: Foi-se, com todos os diabos! Pronto, a porca fica aqui, agora! Aqui, Santo Antônio, servindo de suporte à sua imagem. Fica sob sua proteção, meu santo, estou arrependido de tudo o que disse! Ai, meu Deus, o santo ou a porca? Os dois! Não há necessidade de escolher, fico com os dois! Ouvi dizer que você, Santo Antônio, era cabo do exército brasileiro: fique aí como cabo-de-dia, guardando o que é meu. Vou lhe confiar o que não confiaria mais nem a minha mãe. Mas veja como corresponde a esta confiança! Está aí, confiei em você: retribua agora essa confiança, dando-me toda a sua proteção. (Sai. PINHÃO sai do esconderijo) (SUASSUNA, 2015, p ). Nesse trecho, Euricão revela o quanto a sua alma é articulada em torno de seu próprio jogo de interesse financeiro. Anteriormente, ele houvera descartado a figura de Santo Antônio, alegando que o santo não mais estava protegendo-o e, também, que ele, Euricão, houvera sido devoto do santo por anos e que agora a porca necessitava mais dele. Entretanto, nessa passagem da obra, vendo a necessidade de proteção inerente ao santo, Euricão resolve fazer uma espécie de chantagem moral para com o elemento religioso a fim de ter a porca protegida. Sendo assim, Euricão lança uma fraudária dúvida: Ai, meu Deus, o santo ou a porca? Os dois! (idem). Quando dissemos que a dúvida do personagem não é verdadeira, isso pode ser justificado pelo imensurável apego de sua parte ao dinheiro. Após Euricão sair de cena, Pinhão, em seguida, se aproxima do santo a fim de inquirir o religioso sobre tamanha devoção e proteção do proprietário da casa para com a porca. Contudo, às escondidas, Euricão observa e se aproxima de Pinhão: EURICÃO Pra fora! Pra fora daqui, conversador! Que devoção foi essa que lhe deu de repente? Você pensa que me engana, mas eu sei quem você é! E agora você me paga! (Agarra-o pelo pescoço.) (SUASSUNA, 2015, p. 102). Os insultos e agressões para com Pinhão se acentuam ao ponto de ele ser revistado pelo Euricão. Este temia que alguma quantia tivesse sido retirada da porca. Porém, nada foi encontrado. De maneira bastante cômica, Euricão expulsa Pinhão. Ambos, mentirosamente, simulam sair do espaço, porém voltam ao mesmo tempo para o quarto. Por fim, Pinhão desaparece numa carreira. Ele dá uma volta por fora da cena, subentende-se que ele rodeou a casa, então, pula uma janela, novamente para dentro da cena, e esconde-se. Euricão volta para onde saiu e projeta uma maneira de tornar a porca inacessível aos outros: Agora não deixo mais meu dinheiro aqui de jeito nenhum. O cemitério da igreja! É aqui perto e é lugar seguro. Entre o túmulo de minha mulher e o muro, há um socavão: é lá que guardarei meu tesouro. Prefiro a companhia dos mortos à dos vivos, e ali minha porca ficará em segurança. Com medo dos mortos, os vivos não irão lá e os mortos, ah, os mortos não desejam mais nada, não têm mais nenhum sonho a realizar, nenhuma desgraça a remediar. Ao cemitério! Escondo a porca no socavão e à noite, quando todos estiverem dormindo, cavo a terra e hei de enterrá-la o mais fundo que puder. E você, Santo Antônio, fique-se aí com sua proteção e seu poder de encontrar. Lá, meu ouro, meu sangue, estará em segurança: o mundo dos mortos é mais tranquilo, e, digam o que disserem os idiotas, lá é o lugar em que se perde tudo e não se acha nada! (SUASSUNA, 2015, p. 107). Novamente, pela segunda vez, Euricão desdenha da figura do santo, condição realizada após sucessivas não proteções do objeto venerado, a porca. Curiosamente, o cemitério poderia ser visto pelo protagonista avaro como uma metáfora do desprendimento material, uma vez que ali, pelo menos na morte, em tese, não há nenhuma distinção entre possuídos e possuidores. Portanto, o mundo do capital não influenciaria o universo dos mortos. Ao se deslocar rumo ao cemitério, Euricão encontra Caroba e, imediatamente, ele volta-se de costas. A empregada faz alusão ao jantar que deveria ocorrer mais tarde. Ela também pergunta o que o patrão avaro esconde sob a capa. Euricão sai do quarto correndo sem dar nenhuma explicação à mulher. Pinhão encontra-se com a Caroba. Ele tinha visto todo o diálogo dela com o patrão e, novamente, ficou cheio de ciúmes para com a namorada. Com isso, os dois brigam encerrando esse ato: CAROBA Você quer saber do que mais, Pinhão? Vá se danar! Eu comecei a lhe dar muito valor, você ficou convencido demais. Dê o fora! Eu também ia lhe explicar tudo sobre a entrevista, mas se você vem com essa desconfiança de minuto em minuto, pode se danar! Dou-lhe somente uma explicação: brinco com o velho Euricão porque gosto dele, está ouvindo? Com toda a avareza, com toda a ruindade e as manias, é um dos homens mais sofredores que conheço. Nada na vida dele deu certo, casou-se, a mulher o deixou e toda a esperança dele agora é essa filha que nós lhe vamos tirar. Por isso e muitas coisas mais, tenho pena do velho Euricão, de quem ninguém gosta! Queria lhe dizer isso. Mas não para me justificar, pode ir para o inferno, com sua mania de mandar e sua desconfiança! PINHÃO Mas Caroba... CAROBA Vá se danar, Pinhão. PINHÃO Está bem, depois não se arrependa. Você não sabe o que está perdendo, principalmente agora. CAROBA Por que principalmente agora? PINHÃO Por causa de tudo o que eu agora sei, dos lugares, dos planos, dos sonhos e dos desejos desse velho com quem você está estragando sua compaixão. CAROBA Que é que você quer dizer? 75

76 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS PINHÃO Nada. CAROBA Que é que você sabe? PINHÃO Nada. CAROBA Ai, Pinhão, me diga! PINHÃO Não posso, estou sem tempo e sem vontade. CAROBA O que é que você vai fazer, Pinhão? PINHÃO Vou me danar, Caroba. Adeus! (Sai CAROBA.) Pois sim! Disse o velho que o sangue dele está em segurança e o mundo dos mortos é um mundo tranquilo! Mas não há sangue que não se possa derramar e há mortos que ressuscitam! Ao cemitério! Desta vez eu enriqueço, nem que seja à custa de minha caveira! (Sai.) (SUASSUNA, 2015, p ). No diálogo acima, podemos ver uma fala bastante afetiva de Cabora sobre a vida de Euricão, contudo, mais uma vez, não podemos afirmar com toda convicção que ali há um princípio efetivo de alteridade, uma vez que, ao longo das páginas, ela já houvera apresentado um comportamento manipulador. Nesse caso, como em outros, pode ser um jogo de encenação, mas, sobretudo de improvisação para com o outro. TERCEIRO ATO Entram Caroba e Margarida. Essa aponta à outra um lugar qualquer onde ela deva se esconder. Margarida assente com a cabeça e se esconde. Então Caroba joga um pacote que contém o vestido que depois ela virá a precisar atrás de um móvel qualquer. Ouve-se um barulho de fim de jantar, e vozes que se aproximam. Caroba se esconde no mesmo lugar com Margarida. Na sequência, entram Euricão, Benona e Eudoro. Eles haviam terminado de jantar. Euricão se despede do casal, pois iria se retirar para dormir. Enquanto isso, Eudoro e Benona dialogam sobre o passado. Um dos assuntos abordados é a fuga da esposa de Euricão da residência. Não fica explícita, no texto, a motivação para a fuga da mulher do protagonista. Após abordado esse tema, o casal faz um flash back do passado afetivo entre ambos: BENONA Reconheço que a maior parte da culpa foi minha. Mas eu era tão moça, tão sem conhecimento das coisas. Eudoro! Você se lembra da noite que passei em sua fazenda com Eurico? EUDORO Como havia de não me lembrar? Foi desde aquele dia que você me deixou. Por que foi aquilo, Benona? Eu nunca pude me conformar com aquele silêncio, de repente, sem uma explicação! BENONA Eu era muito moça, Eudoro. Eurico não me deixava sair para lugar nenhum, eu não conhecia o mundo, não conhecia você direito, nada! Bem, naquela noite em sua casa... Você sabe o que foi, fiquei com medo de você (SUAS- SUNA, 2015, p. 115). Como se nota, a motivação para o término entre os dois pode ter sido alguma palavra mal colocada pelo homem, embora isso não apareça no texto de maneira evidente. Se essa informação fosse comprovada, poderíamos associar essa condição ao conservadorismo da sociedade patriarcal do nordeste. Em meio à conversa sobre o passado do casal, Euricão chama a irmã para arrumar a cama. Em seguida, Caroba, que estava escondida, aparece em cena a fim de conversar com Eudoro. Combinam que ele voltará mais tarde para, supostamente, encontrar-se com Margarida. Por fim, Eudoro sai de cena, e Margarida, que estivera no mesmo esconderijo onde Caroba estava, surge. Margarida trouxe o seu vestido que seria usado pela Caroba com intuito de colocar no mesmo quarto Benona e Eudoro. Pelo menos, em tese, as ações deveriam se passar dessa maneira. Margarida revela o seu medo para com a movimentação arquitetada por Caroba: Tome e assuma a responsabilidade. Se essa confusão toda acabar com meu casamento, você me paga! Eu me vingo de você! (SUAS- SUNA, 2015, p. 118). Caroba tranca Margarida no quarto e chama Benona. As duas combinam, porém tudo não passava de uma manipulação de Caroba: a irmã de seu Euricão iria esperar em seu quarto até seu Eudoro entrar. Em seguida, seria entregue o vestido de Margarida a Benona de tal forma que, se alguém a visse, pensaria que fosse a filha de Euricão. Caroba entra atrás de algum móvel, ou biombo, e coloca o vestido de Margarida, se possível por cima do seu, para tornar possíveis mudanças rápidas. Ela abaixa as luzes, ajeita o cabelo, tudo isso enquanto vai falando e mudando a roupa. Esse trecho é bastante revelador para o livro, pois nos mostra que temos uma espécie de peça dentro da peça. Perceba como Caroba articula as ações como se fosse um dramaturgo. Dentro da estratégia ingênua dessa personagem, seria simplesmente preciso levar Eudoro para o quarto 76

77 UFU 2017 onde estava Benona para ter-se um flagrante entre um homem e uma mulher, às escondidas de todos, contrariando o conservadorismo social, de tal forma que se justificasse o casamento. Assim sendo, quando o casal estivesse junto no quarto, Caroba chamaria Euricão para presenciar o ocorrido. Caroba sai de cena. Aparece Pinhão com um grande saco de estopa velho onde carrega, às escondidas, a porca de Euricão: PINHÃO Ô lírio, ô lírio, ô lírio, ô lírio como é? Bom almoço, boa janta, boa ceia e bom café, da roseira eu quero o galho, do craveiro eu quero o pé. Agora, é assim, Santo Antônio, meu velho, bom almoço, boa janta, boa ceia e bom café. Mas ali onde diz da roseira eu quero o galho, do craveiro eu quero o pé, agora é assim: da porquinha eu quero as tripas, quero pá, cabeça e pé. Sou o homem mais rico do mundo, Santo Antônio, trate de me agradar de hoje em diante. Não há como um dia atrás do outro e uma noite no meio. O velho Engole-Cobra, de tanto engolir cobra, terminou achando uma que o engolisse. Ra, ra! Plantou o roçadinho dele, mas quem arrancou o milho foi Pinhão (SUASSUNA, 2015, p. 121). Em várias passagens da peça, temos o uso de um costume popular, por meio do qual homens e mulheres pedem proteção divida para si e para os outros. Essa conduta também revela a religiosidade do povo que a passa de geração a geração, logo, vincula-se à tradição. O homem, na obra de Ariano Suassuna, expressa um intimidade com o divino a ponto de tratá-lo como igual. Observando o trecho acima com mais atenção, veremos que dele se desprende um canto, técnica usada pelos repentistas do nordeste e o uso de uma cantiga de roda ( Da laranja quero um gomo; do limão quero um pedaço; da menina mais bonita quero um beijo e um abraço autor desconhecido). Essa cantiga aparece no texto, parodiada por Pinhão que atualiza seus elementos, adequando-os à própria realidade, isto é, a personagem esperta, partindo do acontecimento que tem nas mãos, o reelabora com a improvisação. Assim, vemos, na peça O Santo e a Porca, a paródia e a improvisação: procedimentos bastante recorrentes dos cantadores populares no momento em que o canto é criado. Pinhão abre a porta para Dodó que entra em cena. Porém, Euricão aparece, de camisão, com um candeeiro e uma pá, fazendo com que os dois homens tivessem que se esconder. Euricão acordou após um pesadelo pensando em enterrar a porca no cemitério de maneira que ninguém pudesse roubar a fortuna que estava dentro dela. Dodó e Pinhão veem o dono da casa saindo. Em seguida, entra Caroba vestida de Margarida. Dodó dialoga com Caroba acreditando que fosse verdadeiramente a sua noiva: CAROBA Tudo pronto. Agora, só falta o noivo. DODÓ O noivo está aqui. CAROBA Seu Eudoro? DODÓ Não, sou eu, Margarida! Sou eu, que vim me certificar de sua traição! CAROBA (Trancando a porta.) Mas Seu Dodó... DODÓ Não me chame assim, pelo amor de Deus! CAROBA O senhor não sabe de nada e veio foi atrapalhar tudo! DODÓ Tudo está esclarecido. VOZ DE EUDORO (Fora.) Margarida! CAROBA Meu Deus, é seu pai. Que é que eu faço agora, meu Deus? Com esta eu não contava! Entre aqui neste quarto, é o jeito (SUASSUNA, 2015, p ). Caroba, notando os caminhos que a conversa com Dodó tomava, mas, sobretudo com a presença de Eudoro lá fora, batendo na porta, resolveu empurrar Dodó para dentro do quarto de Margarida e trancar a porta. Enquanto fala, tira o vestido: CAROBA Santo Antônio, o senhor vai me desculpar, mas foi um imprevisto! No quarto de Dona Benona é que eu não podia empurrá-lo. Mas eu destranco já a porta! (SUASSUNA, 2015, p. 125). As ações começam a sair do planejado, contudo Caroba, por meio do improviso, consegue amarrar as consequências como ela deseja. Dessa maneira, vai ao quarto de Benona. Nesse lugar, Caroba entrega o vestido de Margarida e pega um vestido de Benona, colocando-o em seu corpo para ir à porta receber Eudoro. Caroba conversa com o homem como se fosse Benona e, por fim, consegue levá-lo ao quarto onde a irmão de Euricão estava. Sendo assim, em um quarto estava Dodó e Margarida, em outro Benona e Eudoro. Caroba almejava chamar o seu patrão para ver os respectivos casais nos quartos de tal maneira que essa condição os obrigasse a se casarem, uma vez que homens não poderiam ficar sozinhos em quartos com as futuras pretendentes: CAROBA Pronto, agora é chamar o velho. Do jeito que as coisas estão, ele terá que fazer os dois casamentos. E vamos logo, Santo Antônio, antes que seja tarde e aconteça alguma coisa, senão eu estou complicada com Nosso Senhor! (Sai. PINHÃO sai do esconderijo.) (SUASSUNA, 2015, p. 129). Pinhão retira as chaves das portas. Caroba, ainda com as roupas de Benona, procura em vão as chaves. Instantes seguintes, Pinhão conversa com ela achando que estivesse realmente com a irmã de Euricão. Pinhão tenta assediar Caroba, pensando que fosse Benona. O sujeito propõe à mulher bons momentos de sexo em troca das chaves. Entretanto, Caroba (Benona) não faz nenhuma concessão: CAROBA Ajoelhe-se! Isto! Agora, tome! Tome, tome, e tome! Tome, para deixar de ser safado! Um sujeito como você, que devia dar graças a Deus por ter uma noiva como Caroba, com essas molecagens para as senhoras de respeito! Tome, safado! PINHÃO Ai, ai, ai! Ai, Dona Benona! 77

78 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS CAROBA Vou parar! Mas vou por causa de Caroba, está ouvindo? Aquilo é uma santa, gosto tanto dela! PINHÃO Eu também, Dona Benona! CAROBA Devia gostar mais, safado! Você devia beijar os pés de Caroba todo dia, porque aquilo é uma santa! Agora, fique aí. Eu vou chamá-la. PINHÃO Mas Dona Benona, o que é que a senhora vai dizer a Caroba? (SUASSUNA, 2015, p. 132). Enquanto Pinhão ficou de costas, Caroba tirou o vestido de Benona e voltou-se ao namorado a fim de criticá-lo por causa das insinuações sexuais feitas à Benota. Caroba agrediu Pinhão que passa a beijá-la, dizendo que agora poderiam se casar. O casal destranca os quartos onde o restante dos personagens estavam. Caroba e Pinhão adentram-se no terceiro quarto. Pinhão busca o saco com a porca para o quarto. Enquanto isso, Margarida vê o pai chorando, encostado na janela de seu quarto. A moça acreditava que Euricão estava chorando, pois teria visto ela e o Dodó, às escondidas, no quarto. Entretanto, as lágrimas do velho caíam porque ele havia notado que alguém roubara a sua porca: DODÓ Acalme-se, meu amor! Entre aqui comigo. Vamos ver se é possível apurar o que ele viu. Depois a gente sai, fala com ele e explica tudo! (MARGARIDA e DODÓ se escondem. Entra EURICÃO.) EURICÃO Ai, ai! Estou perdido, estou morto, fui assassinado! Para onde correr? Para onde não correr? Pega, pega! Mas pegar a quem? Não vejo nada, estou cego. Não sei mais para onde vou, não sei mais onde estou, não sei mais quem sou! Ah, dia infeliz, dia funesto, dia desgraçado! Que fazer agora da vida, tendo perdido aquilo que eu guardava com tanto cuidado? Roubei-me a mim próprio, furtei a minha alma! Agora outros gozam com ela, para meu desgosto e prejuízo! Não, é demais para mim! (Cai desfalecido, chorando. Entram DODÓ e MARGARIDA) (SUASSUNA, 2015, p. 136). A partir desse trecho, temos um diálogo bastante desencontrado entre Dodó e Euricão. Dodó pensou que o sofrimento do sogro tivesse a sua origem no ciúme do pai para com a filha. Pensou que Euricão o tivesse visto no quarto com Margarida. Contudo, quando Dodó lhe pediu desculpas, Euricão acreditava que esse pedido ocorria em função do roubo da sua porca e não de sua filha. Por isso, durante um tempo, por causa do desencontro, temos cenas bastante risíveis. Na cultura popular nordestina, o aspecto zombeteiro sobressai no mamulengo, visto pelos estudiosos como o teatro do riso, juntamente com o bumba-meu-boi. Mesmo que o texto de Ariano Suassuna não se caracterize genuinamente como teatro mamulengo, a técnica usada por ele em sua confecção do texto é a mesma: EURICÃO O que eu quero é minha porca que você confessou ter roubado! MAGARIDA Ai, meu Deus, por que o senhor me insulta? DODÓ Isso é coisa que o senhor diga? Porca por quê? Sua filha é a mais pura das moças, portou-se com toda a prudência e o senhor a trata com essa grosseria! EURICÃO Minha filha? Que é que minha filha tem a ver com isso? Que é que você está fazendo aqui, Margarida? MARGARIDA Mas papai, eu não... DODÓ Não é ela que o senhor está reclamando? EURICÃO Olhe a inocência do ladrão! O que eu quero é minha porca, cheia de dinheiro, que você confessou ter roubado! (SUASSUNA, 2015, p ) Finalmente, a confusão estabelecida entre o patrão e o empregado começa a ser desfeita. Euricão revela que o motivo de seu sofrimento é a sua porca de estimação, objeto que continha uma verdadeira fortuna que ele poupou a vida inteira. Por fim, Caroba entrou em cena, acabando com a confusão generalizada entre Euricão e Dodó: CAROBA Um momento, Seu Euricão, eu sei o que foi que ele quis dizer. EURICÃO Que foi? CAROBA Ele disse que foi a causa de sua desgraça porque comprometeu sua filha para o resto da vida. Esse tal de Seu Dodó entrou aqui, nas caladas da noite, iludiu Dona Margarida não sei de que jeito, e trancou-se com ela aí nesse quarto. Eu vi tudo! [...] EURICÃO Ainda mais essa! Por cima de queda, coice! Canalha, safado, por que você não disse logo? Por que deixou que eu confessasse meu segredo? DODÓ A culpa foi sua, era eu falando da filha e o senhor pensando na porca! EURICÃO Ai, a porca! Juntei dinheiro a vida inteira, para a velhice, e agora perco, num dia só, a porca e a filha! CAROBA E vá logo se preparando para perder a irmã também porque a situação de Dona Benona é muito difícil! EURICÃO Benona? Que há? CAROBA Seu Eudoro resolveu matar saudades e está aí, trancado nesse quarto, com ela. Eu vou sair desta casa, porque para falar com franqueza, nunca pensei em ver tanto escândalo num dia só! EURICÃO Não é possível! Eudoro e Benona aqui! Entram EUDORO e BENONA. (SUASSUNA, 2015, p ). As ações de Caroba começam a dar certo, e nós, leitores, começamos a compreender o caminho que cada um dos personagens irá tomar ao longo das páginas. Tudo isso se dá pela articulação de Caroba que movimenta as ações dos personagens como num teatro. A presença de Eudoro e Benona resulta em um pedido oficial de casamento, condição previamente manipulada por Caroba que colocou o casal dentro de um quarto a fim criar um suposto flagrante de desmoralização familiar. Quando o caso de Benona e Eudoro estava resolvido, Euricão voltou-se para a situação da filha: EURICÃO Não, Margarida! Benona está garantida, mas essa aí me arranjou um genro corcunda e de boca torta, um miserável que não tem nem onde cair morto! Mas ele me paga! Mato esse miserável, quebro-lhe a cara! Tome, safado, tome! Que é isso? A barba! 78

79 UFU 2017 EUDORO Dodó! Você aqui? (SUASSUNA, 2015, p. 143). Em meio à agressão de Euricão contra Dodó, a barba deste cai e, com ela, a sua falsa identidade. Nesse momento, Eudoro consegue identificar o filho que resolve explicar toda a situação: ele se apaixonou pela Margarida, contudo o Euricão deixaria a sua filha se casar apenas com um homem rico, e Eudoro não consentiria no casamento do filho que deveria primeiro estudar. Sendo assim, ele, Dodó, conseguiu um emprego na casa de Euricão, ganhando confiança do homem, apenas para poder ficar próximo da amada. Num primeiro momento, mesmo com o pedido do filho, Eudoro se nega a aceitar o casamento do filho, porém vendo toda a circunstância que envolvia o encontro desmoralizador entre Dodó e Margarida no quarto, resolve permitir o casamento do filho: EUDORO Você tem razão, é melhor que ele case. Você fica trabalhando comigo na fazenda, e eu faço uma casa para você (SUASSUNA, 2015, p. 147). Como se nota, os dois casamentos que estiveram latentes ao longo das linhas da peça, agora se tornaram evidentes a todos. Euricão continuava temeroso pela sua porca. Margarida informa ao pai que Pinhão tivera roubado a porca. Euricão agarra o pescoço de Pinhão exigindo a porca (dinheiro) de volta. Nesse momento do texto, temos um importante diálogo de Pinhão: PINHÃO Um momento, me solte! Vá pra lá! Eu confesso que furtei essa porca, mas o senhor não ganha nada mandando me entregar à polícia. Eu morro e não digo onde ela está! Todo mundo fala em furto, em roubo, e só se lembra da porca! Está bem, eu furtei a porca! Sou católico, li o catecismo e sei que isso não se faz! Mas onde está o salário de todos estes anos em que trabalhamos, eu, meu pai, meu avô, todos na terra de sua família, Seu Eudoro? Onde está o salário da família de Caroba, na mesma terra, Seu Eudoro? Não resta nada! Onde está o salário de Caroba durante o tempo em que ela trabalhou aqui, Seu Euricão? Seu Euricão Engole-Cobra? EURICÃO Engole-Cobra é a mãe! PINHÃO Nós não temos nada! A coisa que a gente mais deseja na vida, eu e ela, é casar! Até agora, não pudemos. Onde está a minha porca? Ninguém diz nada! Pois bem, proponho um acordo a todos. Seu Eudoro não emprestou vinte contos a Seu Euricão? Eu entrego a porca por esses vinte contos (SUASSUNA, 2015, p ). A fala de Pinhão é a indicação coletiva do sofrimento de um povo oprimido pelo latifúndio brasileiro. Ali temos uma espécie de herança exploratória passada de pai para filho (... eu, meu pai, meu avô, todos na terra de sua família, Seu Eudoro? idem). Sobretudo nessa parte do texto, temos uma nuance crítica do escritor que nos remete a obras antológicas da literatura brasileira como, por exemplo, Vidas Secas, de Graciliano Ramos, Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, que tratam da exploração do homem no sertão do Brasil. O confronto de Pinhão com os poderosos (Euricão, Eudoro e Dodó) simboliza a oposição entre riqueza e pobreza. Essas duas realidades são polarizadas pelo escritor no livro, considerando que ambas não são prerrogativas do nordeste brasileiro, mas de todos os países do mundo, aspecto que se converte em um dos elementos que dá à peça O Santo e a Porca uma tônica universal. Os vinte contos exigidos por Pinhão seriam para comprar uma terra e, em consequência, deixar a condição de explorado e casar-se com Caroba. Dessa forma, a quantia é repassada para ele em troca da porca. Pinhão buscou a porca para seu Euricão: EURICÃO Ah, Santo Antônio poderoso! Até que enfim você se compadeceu de seu velhinho, de seu devoto de todos os momentos e de todas as horas! Pensei que estava obrigado a escolher entre o santo e a porca! Mas Santo Antônio não podia me exigir esse absurdo! Ai, minha porquinha, que alegria apertá-la de novo contra o meu coração! Que alegria beijá-la! Ó minha esperança, ó minha vida! Agora que a encontrei não a largarei um só instante! Afastem-se, saiam de perto de mim! Agora é assim, minha porca e eu! (SUAS- SUNA, 2015, p. 149). Euricão reflete com bastante clareza, no fragmento acima, que não havia, sobretudo para ele, um antagonismo entre o santo e a porca, porém uma exaltação do dinheiro. Quando ocorre uma alusão ao santo, na verdade, se fundamenta como um elemento para proteger outro (a porca = dinheiro) de ordem mais importante. O próprio personagem avaro, linhas adiante, afirma que tudo perdeu importância diante da porca. A condição de avareza de Euricão deixou Eudoro muito preocupado. Ele que tentou mostrar a necessidade de se valorizar outras coisas de ordem mais importantes como, por exemplo, a nova família que acabava de se configurar. Não tendo nenhum resultado positivo, Eudoro questiona quanto tempo o dinheiro de Euricão ficou armazenado na porca. Vendo que a resposta do avarento foi por quase toda a vida, Eudoro afirma Esse dinheiro está todo recolhido, Eurico! Tudo o que você tem aí não vale nem um tostão! (SUASSU- NA, 2015, p. 149). Euricão, vendo que todo o seu dinheiro não possuía nenhum valor, sentiu um profundo vazio existencial: Trancarei a porta e não a abrirei para mais ninguém. [...] Não vê que eu fico só (SUASSUNA, 2015, p. 151). Todos os personagens começam a se retirar de cena, deixando Euricão sozinho, momento no qual o personagem faz uma avaliação sobre a sua conduta de vida: EURICÃO Estão ouvindo? É a voz da sabedoria, da justiça popular. Tomem seus destinos, eu quero ficar só. Aqui hei de ficar até tomar uma decisão. Mas agora sei novamente que posso morrer, estou novamente colocado diante da morte e de todos os absurdos, nesta terra a que cheguei como estrangeiro e como estrangeiro vou deixar. Mas minha condição não é pior nem melhor do que a de vocês. Se isso aconteceu comigo, pode acontecer com todos, e se aconteceu uma vez pode acontecer a qualquer instante. Um golpe do acaso abriu meus olhos, vocês continuam cegos! Agora vão, quero ficar só! [...] EURICÃO Bem, e agora começa a pergunta. Que sentido tem toda essa conjuração que se abate sobre nós? Será que tudo isso tem sentido? Será que tudo tem sentido? Que quer dizer isso, Santo António? Será que só você tem a resposta? Que diabo quer dizer tudo isso, Santo Antônio? (SU- ASSUNA, 2015, p ). Euricão é dominado pela solidão e pela angústia no final da peça. De acordo com os preceitos do Teatro do Absurdo, a crença o homem é cercado por áreas de escuridão impenetrável, de que não pode nunca conhecer sua verdadeira natureza nem seu objetivo, e que ninguém lhe poderá fornecer 79

80 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS regras de conduta pré-fabricadas (ESSLIN, 1968, p. 370). O homem é levado a confrontar-se com o seu próprio eu (mistério), com os limites da condição humana, com o vazio existencial. Assim, conhecendo a sua própria limitação, Euricão deixa-se vencer por ela morto vivo permanece, ao fim do livro, como se não existisse. Euricão, na passagem acima, se coloca no mesmo patamar de Deus, visto a teoria do teatro do absurdo, a divindade é pobre, nula e vazia, como se não existisse, ela não tem, não quer, não deseja, não trabalha, não obtém. A divindade é tão vazia quanto se não existisse (ESSLIN, 1968, p. 371). Nesse sentido, podemos inferir que a angústia \ solidão \ vazio existencial são temas recorrentes da peça de Ariano Suassuna. Euricão Engole-Cobra se angustia, pois, ao que parece, tomou consciência de sua própria condição existencial, do vazio de sentido da trajetória de sua vida. Sobre isso, comenta o escritor: O santo e a porca apresenta a traição que a vida, de uma forma ou de outra, termina fazendo a todos nós. A vida ê traição, uma traição contínua. Traição nossa a Deus e aos seres que mais amamos. Traição dos acontecimentos a nós, dentro do absurdo de nossa condição, pois, de um ponto de vista meramente humano, a morte, por exemplo, não só não tem sentido, como retira toda e qualquer possibilidade de sentido à vida. É desta traição que Euricão Arábe subitamente se apercebe, é esta visão perturbadora e terrível que lhe aponta os homens como escravos como escravos fundamentais e não só do ponto de vista social, como um crítico apontava, isto é, como eles próprios se veriam a instante, não fossem as preocupações, a cegueira voluntária e involuntária, as distrações e divertimentos, a covardia, tudo enfim que nos ajuda a ir levando a vida enquanto a morte não chega e que faz desta aventura que se fosse sem Deus era sem sentido um aglomerado suportável de cotidiano (SUASSUNA, 2015, p ). No universo ficcional da peça O santo e a porca, de Ariano Suassuna, as traições voluntárias ou involuntárias da vida podem ser vistas como instrumentos que propiciam dinamismo na existência de cada um de nós. Devemos, pois, saber compreendê-las para não sermos tragados por ela. Somente assim evitaremos ser um morto vivo ainda em vida como Eurico Engole Cobra. Por fim, na peça O santo e a porca, as temáticas mais trabalhadas são: a) a busca por melhor condição de vida, b) a angústia \ solidão, c) avareza, d) vazio existencial, e) a morte, f) sociedade machista \ conservadora. Esses temas, como em um bom texto, não são apresentados de maneira direta \ explícita pelo escritor, caso contrário, a obra se tornaria um instrumento pedagógico e não uma verdadeira obra de arte. PERSONAGENS: Euricão: é o personagem principal da peça, vive com sua filha Margarida e sua irmã Benona. Após a morte da esposa, Euricão se torna um homem bastante avarento. Margarida: filha de Euricão. Personagem que desperta o interesse de Eudoro, um homem mais velho, mas gosta de seu filho Dodó. Benona: irmã de Euricão, uma solteirona recatada. No passado, chegou a assumir compromisso com Eudouro e ainda era apaixonada por ele. Eudoro: um fazendeiro rico, que já tinha certa idade e, por ser solitário, desejava pedir a mão de Margarida em casamento. Dodó: filho de Eudoro. O personagem, apesar de ser apaixonado por Margarida, se mantém submisso ao pai e só consegue terminar com sua amada por conta das armações de Caroba. Caroba: empregada de Euricão e desejava casar-se com seu noivo Pinhão. Para conseguir dinheiro para seu casamento, utiliza de sua esperteza e gera toda a intriga da peça. Pinhão: também trabalhava para Eudoro. Personagem que possui uma linguagem bastante regional, representando a fala dos mais simples. Porca: objeto do qual a peça gira em torno. Simbolizava a avareza. Santo Antônio: além de santo casamenteiro, também era convocado para proteger as finanças de Euricão, já que era seu santo protetor. Simbolizava o divino e o sagrado. REFERÊNCIAS: ALBERTI, Verena. O riso e o risível na história do pensamento. 2ªed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. 1ª Edição. São Paulo: Ed. 34, BERGSON, Henri. O riso. Ensaio sobre a significação da comicidade. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, ESSLIN, Martin. O Teatro do Absurdo. Trad. Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968 (3ªed. 2001). GOMES, Aline Aparecida de Sousa. O Santo e a Porca, de Ariano Suassuna: o imaginário do sertão em nova cena. São Paulo: Universidade Católica de São Paulo, (Dissertação de Mestrado). MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. São Paulo: Unesp, NOVAIS, Maria Ignez Moura. Nas Trilhas da Cultura Popular O Teatro de Ariano Suassuna. São Paulo: USP, (Dissertação de Mestrado). PIMENTEL, Juliana Lins & PIMENTEL, Adriana Victor. Ariano Suassuna um perfil biográfico. Rio de Janeiro: Zahar, SUASSUNA, Ariano. Almanaque Armorial. Rio de Janeiro: José Olympio, O Santo e a Porca. 31ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, WAIZBORT, Leopoldo. Simmel no Brasil. Revista Dados, Rio de Janeiro, v. 50, n. 1, ANÁLISE DA OBRA TERRA SONÂMBULA, DE MIA COUTO, por Henrique Landim 50 O sonho é o olho da vida (Mia Couto) 50 Graduado em Letras pela Universidade Federal de Uberlândia e mestre em Teoria Literária pela mesma instituição. 80

81 UFU 2017 BIOGRAFIA Antônio Emílio Leite Couto é o nome do famigerado Mia Couto, que nasceu no dia 5 de julho de 1955, na cidade da Beira, na porção central de Moçambique, filho de emigrantes portugueses. Ainda muito jovem, Mia Couto publicou os seus primeiros poemas no Jornal Notícias da Beira, aos 14 anos. Primeiramente, como se nota, no início de sua carreira, o escritor deu os seus primeiros passos no campo da poesia para, posteriormente, criar produções em prosa. O seu primeiro livro publicado foi o Raiz de Orvalho, de Em seguida, de maneira bastante poética, trilhou um novo caminho com seus contos, tateando outras direções até lançar o seu primeiro romance, Terra Sonâmbula, de No ano de 1972, deixou a Beira, passando a viver em Lourenço Marques, a fim de estudar medicina. Envolveu-se, pouco tempo depois, com o jornalismo, tornando-se, com a independência de seu país, repórter e diretor da Agência de Informação de Moçambique (AIM). Foram mais de 10 anos dedicados ao jornalismo, quando, em 1985, deixou de lado essa carreira. Regressou ao curso superior para formar-se em biologia, especializando-se na área de ecologia. Com isso, se tornou professor de diversas faculdades da Universidade Eduardo Mondlane. Em 1992, conseguiu garantir a preservação de uma importante reserva natural da Ilha de Inhaca. Mia Couto é um escritorque, visceralmente, discute a identidade em transe do povo moçambicano. É claro que, como um grande autor, transcende o exotismo local, tocando-nos com indagações que perpassam os seres humanos. Ele escreve e descreve as próprias raízes do mundo, explorando a própria natureza humana na sua relação umbilical com a terra. A sua linguagem, extremamente rica e muito fértil em neologismos, confere-lhe um atributo de singular percepção e interpretação da beleza interna das coisas. Cada palavra inventada como que adivinha a secreta natureza daquilo a que se refere, entende-se como se nenhuma outra pudesse ter sido utilizada em seu lugar. As imagens de Mia Couto evocam a intuição de mundos fantásticos e em certa medida um pouco surrealistas, subjacentes ao mundo em que se vive, que envolve de uma ambiência terna e pacífica de sonhos o mundo vivo das histórias. Mia Couto é um excelente contador de histórias. É o único escritor africano que é membro da Academia Brasileira de Letras, como sócio correspondente, eleito em 1998, sendo o sexto ocupante da cadeira nº 5, que tem por patrono Dom Francisco de Sousa Informações retiradas do site oficial de Mia Couto disponível em: biografia-bibliografia-e-premiacoes. Acesso em 23/02/17. Mia Couto faz parte de um seleto grupo de artistas, que após a Independência de 1975 buscou a pesquisa do vasto território linguístico de Moçambique. Mergulhou como poucos na luta anticolonialista, com a qual mostrou que é possível debater situações históricas de crise sem recorrer aos recursos fáceis e obtusos do panfletismo pós-colonial (RIOS, 2005, p. 108). Mia Couto, atualmente, pode ser visto como o autor africano mais lido e divulgado no exterior. Em Portugal, por exemplo, é o escritor estrangeiro recordista em vendas de obras literárias. As suas produções foram publicadas em mais de 24 países. O romance Terra sonâmbula, publicado em 1992, é considerado pela crítica como um dos melhores livros africanos do século XX. AS EPÍGRAFES: EPÍGRAFE I Se dizia daquela terra que era sonâmbula. Porque enquanto os homens dormiam, a terra se movia espaços e tempos afora. Quando despertavam, os habitantes olhavam o novo rosto da paisagem e sabiam que, naquela noite, eles tinham sido visitados pela fantasia do sonho (Crença dos habitantes de Matimati). EPÍGRAFE II O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro (Fala de Tuahir). Essas duas epígrafes são atribuídas a personagens ficcionais do romance Terra sonâmbula. São eles os habitantes da fictícia Matimati (narração II) e a Tuahir (narração I). A referida crença dos habitantes numa terra que fosse sonâmbula está presente na narração I, em que é percebida e vivida por Muidinga e Tuahir, que notam as modificações na paisagem causadas pelo movimento da terra à noite. Referente à epígrafe de Tuahir, o sonho possui a capacidade de mover a estrada, aspecto comum à primeira epígrafe, na qual se afirma o movimento da terra em função do sonho de seus habitantes. Tudo isso nos leva a pensar na im- 81

82 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS portância da imaginação, que poderia ser uma via reflexiva sobre um futuro melhor. A utopia, nas duas epígrafes, se articula associada à terra, isto é, para haver sonho é necessário um locus para que ele se torne real, pois, enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. Dessa forma, o sonho é o elemento capaz de fazer a vida seguir adiante, nele há a esperança. A guerra, ao contrário, dizima os sonhos, traz consigo o desencanto. Numa terra marcada pelos conflitos, os homens perdem a sua capacidade de sonhar e, às vezes, tornam-se mudos, dado o trauma ocasionado pelos conflitos. Portanto, é o mundo dos sonhos que é buscado na narrativa por meio da fantasia. Muidinga, ao ler os cadernos de Kindzu, mistura a realidade e ficção, vive intensamente cada aventura lida nos cadernos achados. No final da leitura desses cadernos, Muidinga descobre a sua própria identidade. EPÍGRAFE III Há três espécies de homens: os vivos, os mortos e os que andam no mar (Platão). A epígrafe de Platão dialoga com as ações dos personagens da narrativa I e II. Tuahir, quando vivo, pediu para Muidinga que o colocasse dentro de um barco e o empurrasse para o mar, condição associada à dinâmica da vida, a inércia levaria à morte, portanto, navegar é preciso. Na narrativa II, notamos um diálogo entre as imagens contidas nessa epígrafe e vários personagens como, por exemplo, Taímo, que era pescador, Kindzu, que viajou pelo mar, quando se dirigia ao sul do país, Farida, que vive num barco naufragado, e Assma, que é lançada ao mar numa jangada à deriva. Numa entrevista dada a Nelson Saúte, Mia Couto fala a respeito do que acredita ser a missão de um escritor em seu país: O escritor moçambicano tem uma terrível responsabilidade: perante todo o horror da violência, da desumanização, ele foi testemunha dos demônios que os preceitos morais contêm em circunstâncias normais. Ele foi sujeito de uma viagem irrepetível pelos obscuros e telúricos subsolos da humanidade. Onde outros perderam a humanidade, ele deve ser um construtor da esperança. Se não for capaz disso, de pouco valeu essa visão do caos, esse Apocalipse que Moçambique viveu (apud SECCO, 1999, p. 114). Os homens que andam no mar são aqueles que nutrem esperança, isto é, são capazes de sonhar. O sonho alimenta a vida, ele é o olho da existência. A ausência da fantasia nos levaria à morte. A terceira epígrafe ilustre essa necessidade do sonho. A NARRATIVA FANTÁSTICA Uma possibilidade para a compreensão da narrativa Terra Sonâmbula é relacioná-la ao realismo maravilhoso, também denominado de realismo mágico ou fantástico. Esse termo foi forjado pelo escritor cubano Alejo Carpentier, que no prefácio de sua obra O reino deste mundo, de 1949, define o realismo maravilhoso como uma inesperada alteração da realidade, de uma inabitual ou singular revelação que favorece a apreensão das inadvertidas riquezas da realidade e ampliação das escalas e categorias da realidade (CARPENTIER, 1966, p.12). Porém, o conceito deve ser usado na obra de Mia Couto com bastante cautela, pois os eventos ali narrados são de natureza do maravilhoso/ fantástico e são incorporados à vida dos personagens de maneira bastante natural, condição que acaba revelando a manifestação do lirismo, uma vez que os fatos narrados fazem parte da existência dos sujeitos e, por isso, não quebram o habitual na vida dos personagens. Sobre o realismo maravilhoso, escreve Bella Jozef: [...] a literatura contemporânea abandona a visão realista e a descrição direta do mundo declina. A ficção das últimas décadas se afasta da representação direta da realidade primeira e dá preferência à criação de um mundo mágico e simbólico, metáfora do mundo real. Cria-se um cenário de dimensões transcendentais, explorando o reino do subjetivo e do maravilhoso (JOZEF, 2006, p. 181). A narração de Mia Couto predomina o acentuado jogo imaginário direcionando a narrativa para o insólito 52. Os elementos fantásticos presentes em seu romance são provenientes das cosmogonias africanas, podendo ser vistos como traços essenciais no confronto entre a tradição, o fantástico, e o mundo atual, a realidade. Vale dizer que o primeiro se articula como um sustentáculo para que se dê a resistência da população assolada pela guerra. Talvez, por isso, as epígrafes realçam tanto a noção do sonho, aspecto associado ao fantástico. AS VOZES NARRATIVAS DO ROMANCE O romance Terra sonâmbula apresenta dois fios narrativos, elemento que abaixo chamaremos de narrativa I e narrativa II. Têm-se, dessa maneira, dois enredos/narrações, portanto, o livro é estruturado por meio de, no mínimo, dois narradores, que relatam duas narrativas distintas as quais, principalmente, no final do romance, convergem para o mesmo ponto. Há uma narração articulada por um narrador em 3ª pessoa onisciente, que relata a história de Muidinga e Tuahire, outra narrativa em 1ª pessoa, os cadernos de Kindzu, onde há, por exemplo, a identidade/história de Farida, Virgínia, Nhamataca, Siqueleto. 52 Aquilo que não é habitual/incomum. 82

83 UFU 2017 Não é por acaso que a narração de abertura do romance é feita sob a ótica de um narrador em 3ª pessoa, focalização na trajetória de Muidinga e Tuahir. Na verdade, trata-se de uma visão de fora, espécie de panorama que expressa a necessidade de reconstrução de um país dividido. No caso da narrativa de Kindzu, a narração em 1ª pessoa, percebe-se uma visão mais próxima ao personagem, aspecto que acaba revelando as dificuldades da construção de uma identidade nacional, visto que a própria identidade do sujeito se encontra esfacelada. Esse conjunto narrativo, visão de dentro e de fora, tenta traçar um panorama das ressonâncias da guerra no país e no indivíduo. Esses dois eixos narrativos estão dispostos no livro de maneira alternada, o primeiro capítulo, por exemplo, é denominado de A estrada morta, narração sobre a chegada de Muidinga e Tuahir a um ônibus/ machimbombo abandonado numa estrada, momento marcado pela descoberta de uma mala abandonada próxima a um cadáver. Nesse local, Muidinga encontra os cadernos de kindzu. Nesses cadernos está a narrativa em 1ª pessoa. A leitura desse caderno dá início ao segundo capítulo do romance: Primeiro caderno de kindzu/o tempo em que o mundo tinha a nossa idade. A narração de Kindzu trata da busca por Gaspar, filho de Farida. Para Muidinga, personagem da narração em 3ª pessoa, conhecer a história de Gaspar significa mais que conhecer um indivíduo. Os cadernos de Kindzu lhe devolvem o seu passado, a identidade de sua família, a situação de seu país. Encontrar-se consigo, condição permitida por meio da narrativa de dentro, é também conhecer Moçambique, que lhe passa diante dos olhos na narrativa de fora. Muidinga, após o contato com os cadernos de Kindzu, vivencia algumas transformações. Antes, ele era um ser humano moribundo, sem identidade. Ao ler os cadernos, torna-se um ser pensante, sujeito crítico acerca do ambiente em que estava. Como se nota, ele passa por um constante estado de mutação, construindo, assim, portanto, a sua individualidade em meio a um espaço hostil e mutante, sonâmbulo. Para Ana Mafalda Leite, a estrutura do livro Terra sonâmbula, de Mia Couto, é feita à maneira de contos que se unem para formar o romance: O processo de alternância e de justaposição das duas macro-narrativas permite singularizar, a maioria das vezes, cada capítulo como uma unidade fabular independente, episódio que se continua acrescentado de outro episódio-conto. O romance é utilizado como uma sequência de contos, ligados por coordenação, e simultaneamente por encaixe. No final do romance, a primeira narrativa conflui na segunda, e a narrativa imaginária dos cadernos integra-se na primeira história. Este processo de encaixe é reproduzido especularmente no interior das duas narrativas, pelo surgimento de novas unidades do tipo conto (LEITE, 2003, 42). O leitor pode acompanhar, por meio dessas micro-narrativas de encaixe, um poético painel de um mundo que clama pelo direito ao sonho. Magistralmente, quando as duas narrativas se cruzam, e não somente por esse aspecto, ascendem à condição de testemunhos de rudes sobreviventes de guerra. O romance Terra sonâmbula é um texto bastante depurado/engendrado por um grande prosador. O TÍTULO DO ROMANCE O vocábulo sonâmbulo se relaciona a um estado de sonolência, algo entre o dormir e o acordar, condição bastante recorrente nas ações narrativas do livro, em que os personagens transitam (deambulação) entre o sonho e a realidade (guerra civil), à procura de uma identidade que possa salvá-los do estado de sonambulismo Em certo momento da narração, Kindzu declarou: Eu e a terra sofríamos igual castigo (COUTO, 2007, p. 45) e, posteriormente, se define como sendo um sonâmbulo como a terra em que nascera (COUTO, 2007, p. 107). Os homens e a terra parecem possuir a mesma identidade sonâmbula. Por isso, talvez, os personagens caminham sobre ela, que parece se movimentar com eles. Com isso, Moçambique, a terra sonâmbula, é apresentada no romance de maneira personificada. Os personagens, ao longo do romance, notam os movimentos da terra: É, miúdo, estamos a viajar. Nesse machimbombo parado nós não paramos de viajar. Me faz lembrar quando andava no comboio (COUTO, 2007, p. 137). Esse movimento da terra e homens sonâmbulos parece representar um país inteiro que não dorme e, tampouco, está acordado, portanto, parecem viver em um não-lugar existencial marcado por um estado de transe. Enquanto a terra é sonâmbula, resta aos homens tentar ressignificá-la por meio do sonho/ficção/literatura, por isso, o forte apego ao contar e registrar histórias. NARRATIVA I (VISÃO DE FORA) Esse eixo narrativo é dividido em capítulos numerados de um a onze, cada um deles apresenta um título. O primeiro capítulo do romance Terra sonâmbula é aberto por meio de coordenadas espaciais bastante negativas, topos lúgubre, fruto do incessante conflito interno em Moçambique: Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram cores sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul. Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte (COUTO, 2007, p. 9). A terra/estrada, nesse primeiro momento, surge como fonte inibidora das utopias dos indivíduos/viventes. Contudo, à frente, a terra receberá como mãe amorosa os cadernos de Kindzu em seus últimos passos em vida. Nem mesmo as hienas, carnívoros que vivem da morte alheia, se alegram frente ao cenário desolador da guerra. Na estrada apodrecem carros incendiados. Nessa triste moldura, aparecem os protagonistas da narração I: Um velho e um miúdo vão seguindo pela estrada. Andam bambolentos como se caminhar fosse seu único serviço desde que nasceram. Vão para lá de nenhuma parte, dando o vindo por não ido, à espera do adiante. Fogem da guerra, dessa guerra que contaminara toda a sua terra. Vão na ilusão de, mais além, haver um refúgio tranquilo. Avançam descalços, suas vestes têm a mesma cor do caminho. O velho se chama Tuahir. É magro, parece ter perdido toda a substância. O jovem se chama Muidinga (COUTO, 2007, p. 9-10). 83

84 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS A árida terra parece se estender para o íntimo dos personagens, sujeitos sem cores e quase sem vida, mas, em seu interior, guardam a força da ilusão, por isso seguem rumo a lugar algum na falta de uma alternativa. Essa busca por algo inexplicável se relaciona às epígrafes, que alegorizam o poder dos sonhos na constituição do sujeito. Na verdade, há uma busca, Muidinga tentava descobrir a sua origem familiar: - Não vale a pena queixar. Culpa é sua: não é você que quer procurar seus pais? (COUTO, 2007, p. 10). MACHIMBOMBO Próximo a um grande embondeiro, árvore também conhecida como baobá, estava um machimbombo, ônibus, lugar que o velho Tuahir e o jovem Muidinga encontram corpos de vítimas da guerra. O velho sugeriu que retirassem os corpos de dentro do ônibus, supondo ser ali um lugar seguro para os dois permanecerem, a segurança do machimbombo se dá, pois estava queimado, portanto, não voltaria a pegar fogo, e, também, não despertaria o desejo de grupos armados: Você não sabe nada, miúdo. O que já está queimado não volta a arder (COUTO, 2007, p.10). Próximo ao ônibus, havia um corpo virado de costas, existia ao lado dele uma mala intacta. A criança estremece, pois sabia, afinal, que aquela tragédia era muito recente, os espíritos dos falecidos ainda por ali pairavam (COUTO, 2007, p. 12). Após enterrar o defunto, puseram-se a examinar o conteúdo da mala. Encontraram comida e uma coleção de cadernos escolares. O velho Tuahir pensou em utilizar os cadernos para acender uma fogueira, contudo, o mais jovem, Muidinga, escondeu os cadernos debaixo do banco, no interior do ônibus. Muidinga retirou a capa de um dos cadernos, acendeu uma fogueira para espantar a escuridão da noite, aproveitou a luz do fogo para preencher o vazio da existência com a literatura: O miúdo se levanta e escolhe entre os papéis, receando rasgar uma folha escrita. Acaba por arrancar a capa de um dos cadernos. Para fazer fogo usa esse papel. Depois se senta ao lado da fogueira, ajeita os cadernos e começa a ler. Balbucia letra a letra, percorrendo o lento desenho de cada uma. Sorri com a satisfação de uma conquista. Vai-se habituando, ganhando despacho (COUTO, 2007, p. 13). Há, no início do romance, uma nítida diferença entre a conduta do velho Tuahir em oposição às ações de Muidinga. Enquanto esse personagem alimenta certo encantamento pelo mundo das palavras, aquele desejou usar os cadernos achados para acender o fogo. Aqui, valem alguns comentários sobre o poder da ficção sobre a alma desses dois viventes. Os cadernos, à medida que vão sendo lidos, dão vida ao lugar, alimentam a alma do velho e da criança ao sonhar. Nesse sentido, Mia Couto, certa vez, em 2009, proferiu importantes reflexões sobre o papel da literatura: Acredito que a literatura pode ajudar a manter vivo o desejo de inventar outra história para uma nação e outra utopia como saída (COUTO, 2009, p. 6). A ficção é um respiradouro, uma terceira margem, para aqueles que vivem um mundo objetivo esfacelado pela guerra. Essa condição não sugere alienação. Pelo contrário, os cadernos de Kindzu trarão sentido à existência de Muidinga e de Tuahir, que conhecerão um pouco mais a história de Moçambique. Os cadernos de Kindzu tinham se tornado o único acontecimento importante para a vida de Tuahir e Muidinga. Na verdade, o fascínio, sobretudo, no início, era da criança. O velho, com o adentrar na história de Kindzu, acaba revelando o seu prazer pelo mundo de papel. Ao questionar sobre a identidade de Kindzu, Muidinga é levado a pensar sobre a sua própria origem. Interrogou Tuahir, que disse tê-lo encontrado no campo, desnutrido e sozinho. Por isso, disse ao garoto: Eu não sou teu tio: sou teu pai (COUTO, 2007, p. 37). Muidinga lembra-se das vozes de crianças numa escola, porém não consegue resgatar maiores informações em sua memória apagada pela doença. O diálogo dos dois acabou sendo interrompido pela imagem de um elefante ferido na traseira pelos fazedores de guerra. O animal é a imagem/ metáfora de Moçambique sangrando séculos inteiros, diante de crônicas explorações europeias. MANTAKASSA No outro dia, o velho e o moço fizeram a sua primeira incursão à procura de alimento e água. Seria a primeira vez que se afastariam do ônibus, eles [...] se descaminham pelo mato (COUTO, 2007, p. 50). Ao fim da tarde chegaram num terreno de machamba 53. Tudo tinha sido abandonado, as culturas, que antes ali existiam, tinham sido perdidas. Muidinga se preparava para comer um pedaço de mandioca 54, quando, subitamente, foi interrompido por Tuahir: Vou-lhe contar, miúdo. Foi por causa de mandioca dessa que você apanhou doença. Tuahir me conte tudo. Me conte como me encontrou. O velho, enfim, acede. Limpa o chão onde se vai sentar em preparativo de que se iria demorar. E conta: ele estava no campo de deslocados, vindo de sua aldeia distante. Uma 53 Local onde são plantados vegetais. 54 No passado, Muidinga contraiu uma doença nomeada de mantakassa oriunda de mandioca amarga, rica em cianeto, condição aliada à pobreza alimentar da população africana provoca uma intoxicação conhecida como mantakassa, expressão cujo significado é paralisia. 84

85 UFU 2017 noite lhe pediram para ajudar a enterrar seis crianças recém- -falecidas. Os corpos estavam numa cabana, por baixo de uma velha lona. Ninguém sabia quem eram, de onde tinham vindo, a que famílias pertenciam. Estavam despidas, suas roupas tinham sido roubadas mal as crianças perderam força para se defenderem. Tuahir ajudou a arrastar os corpos para um buraco. Enquanto puxava pelas pernas frias se admirava daquele peso tão diminuto. Olhava os braços ondeantes como ramos ossudos, esqueletudos, quando reparou com espanto: os dedos de uma das crianças se cravavam no chão. Não havia dúvida, aqueles dedos se agarravam à vida, lutando contra o abismo. Aquela criança ainda respirava. Era a mais clara e a mais raquítica de todas (COUTO, 2007, p ). Como se vê, Tuahir deu a vida novamente a Muidinga, menino morto. O velho resgatou a criança dizendo a todos que era um sobrinho seu, mesmo sem nunca ter visto a criança. Muidinga estava bastante fraco e, durante muito tempo, oscilou entre a vida e a morte. Por fim, melhorou e, Tuahir decidiu dar-lhe o nome de Muidinga, nome de um filho seu ido e esvaído nas minas do Rand (COUTO, 2007, p. 54). SIQUELETO Novamente, Muidinga e Tuahir resolveram explorar os matos vizinhos. Começaram a caminhada, mas logo caíram numa armadilha, [...] se abismalham, tombados numa enormíssima cova. É um desses buracos onde a noite se esconde como o rabo de fora (COUTO, 2007, p. 64). Horas depois, os dois dormiram. Muidinga teve sonhos, surgiram imagens de um tempo que ele nunca foi capaz de compreender, viu um menino saindo de uma escola. A luz do dia pestaneja. Um vulto de um velho apareceu: [...] é um velho alto, torto, usando sobre o corpo nu uma gabardina comprida, maior que o seu tamanho (COUTO, 2007, p. 65). O velho lançou uma rede prendendo-os ainda mais. Por fim, tirou os dois presos-peixe do buraco, encarou os dois prisioneiros com um só olho enquanto falava a língua local: Ele diz que nos vai semear. Semear? Não sabe o que é semear? É isso que nos vai fazer. Ele quer companhia, quer que nasça mais gente. O velho é doido, vai é matar a gente (COUTO, 2007, p. 65). O velho se apresentou como sendo Siqueleto, sugestão sonora associada a esqueleto, e, ao certo, pretendia usar os dois prisioneiros como sementes-humanas a fim de repovoar a sua aldeia devastada pela guerra. À noite, Muidinga pegou um graveto, lembre-se os dois ainda estavam presos a rede, e rabiscou na terra algumas letras. Siqueleto encantou- -se com as palavras gravadas no chão ao ponto de soltar os dois prisioneiros levando-os a uma árvore ordenando Muidinga que escrevesse Siqueleto no tronco dela. Em seguida, de maneira fantástica, o velho colocou o dedo no ouvido, vai enfiando mais e mais fundo até que sentem o surdo som de qualquer coisa se estourando. O velho tira o dedo e um jorro de sangue repuxa da orelha. Ele se vai definhando, até se tornar do tamanho de uma semente (COUTO, 2007, p. 69). A história envolvendo o personagem Siqueleto, por mais fantástica que seja, relaciona-se à realidade de Moçambique no período de guerra: inúmeros ataques de bandos levam à fuga em massa da população. O velho insistia em permanecer no lugar, como uma árvore, à espera da mudança de estação ou passagem de ano para ver, assim, nascer um novo tempo, ganhando a guerra resistindo. Ali permaneceu tirando os dentes e depositando-os em uma lata, pois acreditava serem os dentes que traziam a fome e, sem eles, portanto, seria mais fácil permanecer no local sem alimentos. De acordo com as crenças do velho aldeão desdentado, a sua morte poderia determinar o nascimento de uma nova aldeia. Siqueleto pode ser compreendido como a possibilidade de transcender o mundo material, encarnado na figura da hiena que o acompanha e que ele abandona com a morte. Dessa maneira, ele se transforma na semente de um mundo novo. NHAMATACA/FAZEDOR DE RIO Muidinga e Tuahir voltaram ao ônibus, o menino pensava em Siqueleto. Resolveram partir, novamente, para a mata em nova exploração. Dessa maneira, encontraram um homem conhecido de Tuahir: Nhamataca, antigo amigo de profissão. O amigo de Tuahir preenchia a sua vida covando um rio. Havia feito um buraco de onde objetivava ver cursar um rio, fluviando até ao infinito mar. As águas haveriam de nutrir as muitas sedes, confeitar peixes e terras. Por ali viajariam esperanças, incumpridos sonhos. E seria o parto da terra, do lugar onde os homens guardariam, de novo, suas vidas (COUTO, 2007, p. 86). Ele cavava dia e noite, desafiando os deuses que lhe deram o mundo apenas para viver, não para alterá-lo. Os dois visitantes perguntaram sobre o nome do rio: Nome que dera ao rio: Mãe-água. Porque o rio tinha vocação para se tornar doce, arrastada criatura. Nunca subiria em fúrias, nunca se deixaria apagar no chão. Suas águas serviriam de fronteira para a guerra. Homem ou barco carregando arma iriam ao fundo, sem regresso. A morte ficaria confinada ao outro lado. O rio limparia a terra, cariciando suas feridas (COUTO, 2007, p. 86). Nhamataca, o filho das águas, nasceu de uma relação estabelecida no meio do rio. O seu sonho desacreditado, a construção do rio, revela a beleza que, às vezes, se esconde por detrás de ações aparentemente sem importância. Não importa a intensidade, largura, mesmo a existência do rio, o que vale é a entrega de corpo e alma ao leito daquele projeto. Novamente, estamos diante da noção de sonho, elemento inspirador da existência humana, o contrário é a morte do ser. Tuahir e Muidinga passaram a cavar com Nhamataca. À noite, uma tempestade, parecia que o universo se dissolvia. Os três homens correram rumo a um abrigo, contudo, de repente, Nhamataca apontou para o chão dizendo: O rio, é o rio! Nhamataca festeja o nascimento como se fosse um fruto de sua carne. Larga o abraço dos outros, se acerca do febrilhante ribeiro. Ergue os braços ao 85

86 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS céu, pedindo luz. Ele quer afagar sua nascente obra. Muidinga e Tuahir clamam para que preste cuidado mas ele se ocupa dando vivas ao vindouro. Seu corpo convulso é visível apenas nos breves e entrecortados instantes dos raios. A memória do acontecido se fará assim por soluços, Nhamataca tombando na torrente do furioso regato. O velho e o moço querem segurar o corpo do covador, mas a corrente, redemoníaca, cresce em fúrias desordenadas. E Nhamataca desaparece, misturado nas súplicas dos outros, o trovejar dos céus e o gorgolejar do rio, seu descendente. Tuahir ainda segue a tentar vislumbrar sua reaparição mas as margens se esboroam, farejadas. O leito se iguala ao resto da savana, as terras fugindo na torrente. Se houve obra de um homem foi apenas um rio de pouca dura (COUTO, 2007, p ). Muidinga, no outro dia, olhou para a paisagem e pensou: morreu um homem que sonhava, a terra está triste como uma viúva (COUTO, 2007, p. 89). Estavam longe do ônibus e, naquela noite, tiveram que dormir ao relento. Novamente, estamos diante da ambivalência relacionada à agua, o corpo do homem terminou arrastado por uma corrente redemoníaca desordenada. A morte do fazedor de rio deixa uma profunda lição para Tuahir e Muidinga: tudo é possível ao homem livre da materialidade do palpável, basta ter o poder do sonho. Nesta parte do romance, Tuahir deixa evidente o seu fascínio pelo mundo dos sonhos/ficção, revela o desejo de ouvir as histórias do caderno de Kindzu: - Quais estórias? - Essas que você lê nesses caderninhos. Esse fidamãe desse Kindzu já vive quase connosco. - Deixei os cadernos lá no machimbombo. Mas eu já li outro caderno, mais à frente. Lhe posso contar o que diz, quase sei tudo de cabeça, palavra por palavra. - Fala devagarinho para eu compreender. Se adormecer, não pára. Eu lhe ouço mesmo dormindo (COUTO, 2007, p. 90 grifo meu). O fragmento destacado acima deixa transparecer certa dúvida sobre a narrativa dos cadernos de Kindzu. Muidinga, ao ler, seguia, perfeitamente, as ações anunciadas pelo outro? Quais partes seriam acrescentadas à narrativa de Kindzu? Tuahir tinha contato com os cadernos por intermédio de outro, ele não sabia ler. Esses questionamentos, na verdade, não diminuem a qualidade do texto, pelo contrário, deixam-no muito mais enigmático, pois não nos oferece respostas às nossas indagações. VELHAS PROFANADORAS Em outra excursão pelos arredores do ônibus, Muidinga se distanciou de Tuahir. De repente, viu-se atacado por um grupo de mulheres: estava a ser violentado, em flagrante abuso. A primeira se sacia, abusa e lambuza. Depois, as outras se seguem, num amontanhado de corpos, gorduras e pernas (COUTO, 2007, p. 101). Uma após a outra abusaram sexualmente de Muidinga, que não compreendeu muito bem a situação, perdendo os sentidos. Minutos depois, ao acordar, Tuahir explicou que aquelas mulheres eram feiticeiras, estava desempenhado um papel protetor às colheitas, esse ritual não podia ser visto por homens. A presença da criança atrapalhou o ritual, por isso, o voraz ataque sexual. Os dois voltaram para o ônibus. Em meio à chuva, Tuahir sentiu saudades dos amores vividos. Com isso, Tuahir e Muidinga conversaram sobre mulheres. Com isso, o velho sentou ao lado de Muidinga masturbando o garoto, fazendo-o pensar com o corpo. Nessa passagem é nítido o papel formador de Tuahir exercido sobre Muidinga. Adiante na história, o velho e o menino constataram que a natureza ao redor exercia uma espécie de movimento: Lhe vou confessar miúdo. Eu sei que é verdade: não somos nós que estamos a andar. É a estrada. Isso eu disse desde há muito tempo. Você disse, não. Eu é que digo. E Tuahir revela: de todas as vezes que ele lhe guiara pelos caminhos era só fingimento. Porque nenhuma das vezes que saíram pelos matos eles se tinham afastado por reais distâncias. Sempre estávamos aqui pertinho, a reduzidos metros. Tudo acontecera na vizinhança do autocarro. Era o país que desfilava por ali, sonhambulante. Siqueleto esvaindo, Nhamataca fazendo rios, as velhas caçando gafanhotos, tudo o que se passara tinha sucedido em plena estrada (COUTO, 2007, p. 137). A visão que os dois possuem de dentro do ônibus equivale a pinceladas da história fragmentada de Moçambique. O velho se lembrou de quando trabalhava numa estação de trem/comboios, sua memória se inundava de vapores. Com a chegada da guerra, os trens deixaram de operar. Mesmo assim, o velho Tuahir permaneceu em seu posto, com a sua lanterna, atenta bandeira, à espera da normalidade das coisas. Pontualmente, ele continuava a madrugar na gare, varria, reparava as tábuas estragadas. Aplicava seu princípio: há-de vir, um dia o comboio virá. Quando chegasse a data ele estaria à frente da ocasião, todo fardado, todo organizado (COUTO, 2007, p. 138). Mas os trens não vieram, sobrou-lhe uma criança sem memória, que cumpre o papel simbólico de filho, e um ônibus queimado. Esse trecho, como tantos outros, expressa o desejo dos africanos em ter uma existência sem guerra. TUAHIR É O PAI Muidinga, por meio de uma espécie de jogo, propôs a Tuahir fosse Taímo e ele, Muidinga, o Kindzu. Em um primeiro momento, Tuahir negou, não gostaria de brincar com o nome de um falecido. Muidinga disse que brincariam dentro de um nível de respeito. Depois de certo tempo, porém, a voz do velho se abriu, em fresta de riso: - Certo, Kindzu (COUTO, 2007, p. 154). Portanto, o velho Tuahir aceitou participar do jogo simbólico: 86

87 UFU 2017 Muidinga, então, se deita ajeitando a cabeça no colo do velho. Seus olhos se perdem no horizonte. O miúdo não esperava que Tuahir aceitasse aquele jogo. Agora parece ser ele que está menos à vontade que o velho. - Estás a ver o monte, Kindzu?, pergunta Tuahir (COUTO, 2007, p. 154). Essa brincadeira acaba aproximando os dois afetivamente. Tuahir, por exemplo, não possuía a capacidade de mostrar afeto pelo Muidinga. A leitura dos cadernos entra como um elemento catalizador dos afetos. O teatro proposto acima, mesmo que de maneira precária, simbolicamente, estabelece uma relação afetiva entre pai e filho. Nota-se um processo de iniciação, a partir da escrita do outro, a leitura dos cadernos de Kindzu, Tuahir e Muidinga passam a perceber-se mutuamente de maneira afetuosa. Em um mundo feito de fome, miséria e guerra, o que valeria o amor, amizade, solidariedade e afeito? O único valor em tempos de barbárie é a sobrevivência. Os laços afetivos entre Tuahir e Muidinga se estreitam, sugestão simbólica para a construção de um novo país. A criança necessita de um paterno carinho, porém Tuahir, também, necessitava de afeto: ao invés de ajudar, o velho lhe pede apoio. Estava com frio, solicitou agasalho. O miúdo lhe cobre com seu corpo. E sente pena de si. Como é que ele, tão menino, tão recém-recente, andava cuidando de seu pai? Como é que a sua mão, do tamanho de um beijo, protegia um homem tão volumoso? E lhe cresce uma grande raiva para com seu pai. Afinal, nunca ele lhe cobrira dos frios, nunca ele o empurrara para fora da tristeza. Ou seria que apenas depois da infância ele poderia ser criança? (COUTO, 2007, p. 155). Pela primeira vez no romance, Tuahir mostrou o esboço de seu íntimo. Muidinga encantou-se como se o seu pai de verdade estivesse ali, nunca alguém lhe dera abrigo. O mundo se estreava, já não havia escuro, não havia frio (COUTO, 2007, p. 156). O único incômodo seria o cessar daquela ilusão. Cada disparate de Tuahir traz a Muidinga a doçura de ser filho, deita-se no banco do ônibus e, antes de dormir, passa a mão por aquelas folhas, em cúmplice afago (COUTO, 2007, p. 156). O carinho lançado aos cadernos de kindzu é um sinal de reconhecimento, as páginas trouxeram satisfação plena, mas, sobretudo, ensinamentos tornando-os melhores. A fim de realizar um sonho de Muidinga, Tuahir resolveu seguir viagem rumo ao mar. Ao certo, o mar lhes daria um alívio daquele mundo. Sem querer ele pensava em Farida, por isso, enfrentou uma marcha por um pântano cheio de mosquitos. Foram picados por esses insetos, ao despertar no seguinte dia, Tuahir tem as orelhas feitas num dobro. Não tarda a que lhe apareçam as febres. Seu corpo se cinzenta, os dedos se tornam asmáticos (COUTO, 2007, p. 175). Os dois escutam os lamentos de uma xigovia, flauta em fruto da ncuacueira. Era um pequeno pastor que se aproximava. Muidinga pediu ao pastor para tocar o seu instrumento, contudo, ele recusou, assustado, afirmou que muitos já tinha ouvido o som de sua flauta e adormecido para sempre. Em vez de xigoviar diz preferir contar uma história, verdadeira, passada consigo, naqueles mesmos pastos (COUTO, 2007, p. 176). O pastor relatou a história de um boi de sua aldeia que, repentinamente, tornou-se melancólico e pensativo. Após seguir o animal, notou que o bovino estava apaixonado por uma garça. O amor do bicho era tão forte que, em tempo de lua cheia, o animal se metamorfoseava em garça a fim de namorar livremente a sua amada. Contudo, em certo ano, a lua cheia depois deixou de aparecer, condição que levou o boi à morte de tanto amor. BARCO DE TAÍMO Muidinga ficou sensibilizado com a narração do menino pastor, assim, resolveu voltar onde tinha deixado o seu companheiro, Tuahir. Os sinais da doença se apresentavam mais severos. Tuahir mostrou a Muidinga a jangada que construíra para que saíssem do pântano. Os dois partiram. A febre intensificou no velho que pediu ao Muidinga que o abraçasse a fim de minimizar o frio que sentia. Maneirosa, a mão do outro lhe desvanece uma ruga que teima em seu rosto. Longe se escuta o assobio da xigovia (COUTO, 2007, p. 155), espécie de sugestão sonora da morte do velho, lembre-se que se o pastor tocasse a sua flauta levaria o ouvinte ao sono definitivo. O estado de saúde de Tuahir piorava na medida em que eles se aproximavam do mar. O velho pediu ao menino que o levasse a um barco próximo a eles. Ao se aproximar do barco, Muidinga percebeu escrito um nome ilegível: - Como se chama o concho? - Nem vai acreditar, tio. - Porquê? - Porque se chama Taímo. Lembra? É o mesmo nome da canoa de Kindzu (COUTO, 2007, p ). Tuahir não acreditou nas palavras de Muidinga. Esperaram a subida da maré, ação que facilitaria empurrar o barco rumo ao mar. Por fim, Muidinga arrastou o velho amigo para dentro da barriga do barco. Tuahir se deitou olhando a água subir. O barquinho já balançava. Começaram então a viagem de Tuahir para um mar cheio de infinitas fantasias. Nas ondas estão escritas mil estórias, dessas de embalar as crianças do inteiro mundo (COUTO, 2007, p. 196). Principalmente, para Muidinga o mar configura-se como um legítimo espaço do sonho/utopia, metáfora da sensação de liberdade:... Mas era como se o mar, com seus infinitos, lhe desse um alívio de sair daquele mundo (COUTO, 2007, p. 174). Por isso, chegar ao mar poderia ser lido como uma maneira de assumir uma longa jornada de desafios e perigos, e, sobretudo, também a possibilidades de (re)nascer para um outro modelo de existência. Com a chegada ao mar e, também, a morte de Tuahir, a narrativa I (visão de fora) chega ao fim. Porém, há um recomeço com o surgimento de Gaspar, que representa o cumprimento da missão de Kindzu. Esse dado narrativo, a aparição de Gaspar, será compreendido apenas ao final da narrativa II. 87

88 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS NARRATIVA II (VISÃO DE DENTRO) Esse eixo narrativo é dividido em capítulos intitulados de cadernos, cada um deles enumerado de um a onze e igualmente com um título. Kindzu abre a escrita de seu caderno refletindo, metalinguisticamente, sobre a dificuldade de colocar no papel as suas lembranças que transitam entre [...] a vontade de serem nada e o gosto de me roubarem do presente. Acendo a estória, me apago a mim. No fim destes escritos, serei de novo uma sombra sem voz (COUTO, 2007, p. 15). Dicotomicamente, escrever é se dissolver no presente, apagando o agora, mas, ao mesmo tempo, sensível condição para não cair no esquecimento. Kindzu não será uma sombra sem voz anunciada por ele, as suas palavras, quando registradas no papel, ecoarão enquanto houver a existência do outro. Em seguida, Kindzu narra a sua identidade: Sou chamado de Kindzu. É o nome que se dá às palmeiras mindinhas, essas que se curvam junto às praias (COUTO, 2007, p. 15). Esse nome fora dado pelo seu pai, Taímo, solitário pescador, alcoólatra, contador de causos e dado a sonhos premonitórios. O velho pai se recusava dormir em cama feita. A recusa se dava por uma crendice: ele acreditava que a morte poderia pegá-lo na moleza da esteira. Com isso, deitava apenas no chão, lugar onde a chuva gosta de deitar-se também. Às vezes, encontravam o pai coberto de formigas deitado no chão. Os insetos gostavam do sabor adocicado do suor repleto de bebida alcoólica. GUERRA: A LEI DA MORTE Kindzu se lembra, particularmente, de um dia em que os filhos foram chamados pelo pai, encontram-no de terno e gravata. Esperavam ouvir mais sonhos, mas o pai anunciou um importante fato: a Independência de Moçambique, ocorrida em 25 de junho de Na ocasião, a mãe de Kindzu estava grávida e ele, o pai, colocou a mão sobre a barriga da esposa e batizou a criança de Vinticinco de Junho. Após o nascimento, a criança passou a ser chamada de Junhito. A guerra, tempos depois, chegou empobrecendo todos. Segundo Kindzu, numa sugestão poética, a guerra é como [...] uma cobra que usa os nossos próprios dentes para nos morder. Seu veneno circulava agora em todos os rios da nossa alma. De dia já não saímos, de noite não sonhávamos. O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos (COUTO, 2007, p. 17). O direito ao sonho, com a guerra, acabou sendo subtraído. A mãe insatisfeita e preocupada ensinou aos filhos serem sombra objetivando não serem vistos. Certo dia, Taímo, o pai, sofrera um ataque de delírio, estava taciturno, a cabeça encostada ao peito, certamente esperava as palavras certas. Finalmente, encarou os filhos e disse que um deles iria morrer. A mão do velho apontou para Junhito. O velho ergueu a bengala suspendendo as gerais tristezas: Calem! Não quero choraminhices. Este problema já todo eu pensei. Em diante, Junhito vai viver no galinheiro! Fez seguir ordens de seu mandamento: o miúdo devia mudar, alma e corpo, na aparência de galinha. Os bandos quando chegassem não lhe iriam levar. Galinha era bicho que não despertava brutais crueldades. Ainda minha mãe teve ideia de contrariar: não faltavam notícias de capoeiras assaltadas. Meu pai estalou uma impaciência na língua e abreviou o despacho: aquela era a única maneira de salvar Vinticinco de Junho (COUTO, 2007, p ). A partir desse dia, o irmão passou a viver no galinheiro fantasiado de galinha coberto com um saco de penas, fantasia tecida pela mãe. A transformação do irmão se intensificou ao ponto dele não conseguir soletrar uma palavra humana sequer, às vezes, esganiçava [...] uns cóóós e ajeitava a cabeça por baixo do braço. E assim adormecia (COUTO, 2007, p ). Certo amanhecer, notaram a ausência de Junhito: Nunca mais o Junhito. Morrera, fugira, se infinitara? (COUTO, 2007, p. 19). Fartaram as versões sobre o desaparecimento de Junhito que, tratado como objeto, é colocado na perspectiva de ser animalizado, deixando, inclusive, de ter linguagem humana, decaindo à condição mínima do ser: a ignorância, um não-ser. Em A metamorfose(2010), de Franz Kafka, o protagonista Gregor Samsa passa por análogas transformações, espécie de alegoria da reificação do sujeito na modernidade. No caso de Junhito, essa metamorfose relaciona-se diretamente aos absurdos provocados pela guerra. Os rumos que a independência do país tomou e o desaparecimento de Junhito deixaram Taímo, que sempre buscara explicações para tudo no sobrenatural, decepcionado, passando a se anoitecer na beberagem : O barco dele dormia na duna, vela entornada, com nostalgia do vento. Meu velho se embebedava encostado no barquito. Era como se os dois, embarcação e pescador, esperassem uma viagem que nunca mais chegava. O estado dele se foi reduzindo até ficar menos de uma lástima: carapinhoso, aguardendo nos bafos. A sura era o seu único conteúdo. Um dia lhe encontrámos, tão repleto, já nem falava. Borbulhava espuma vermelha pela boca, pelo nariz, pelos ouvidos. Foi vazando como um saco rompido e é quando já só era pele, tombou sobre o chão com educação de uma folha (COUTO, 2007, p. 20). Taímo torna-se prisioneiro de si mesmo, entregou a vida à desilusão, o barco dele não navegava no mar, metáfora da perda dos sonhos que o alimentava vivo. O homem reificado pode encontrar algum alívio existencial na renúncia da própria vida, por isso a busca pela terceira margem, a anulação completa do ser. Além de Junhito e de Taímo, que se tornaram seres assujeitados, a mãe de Kindzu no livro aparece sem rosto, sequer recebeu um nome, essa personagem não tem um sentido de ser, não há projetos que a alimentem, por isso apenas sobrevive. Aqui, cabe, novamente, a imagem do barco com a vela entornada. O corpo de Taímo foi lançado ao mar, que, no dia seguinte, secou. No lugar, surgiu uma planície cheia de palmeiras com exuberantes frutos. Alguns moradores da aldeia desejaram os frutos, contudo, uma voz, que para Kindzu seria de seu pai, anunciou que eles deveriam deixar intactas as palmeiras. Porém, os moradores não ouviram a voz, retirando os frutos da árvore. Quando o primeiro foi retirado da palmeira, fez sair uma enorme quantidade de água inundando tudo e todos na proximidade. Tal qual Adão e Eva, os homens desejaram e tocaram os frutos proibidos. Além dessa conotação bíblica, nesse trecho, é possível observarmos a tradição do dilúvio vinculada à ideia da extinção de seres a fim de, por meio da água, nascer uma nova geração, o aparecimento de um homem novo. Esses mitos bíblicos sugerem uma concepção de cosmo cíclica: um tempo é abolido para que uma nova humanidade nasça. 88

89 UFU 2017 Kindzu, desde a morte de seu pai, ia, todas as noites, à casa que a sua mãe construiu, pedido dos feiticeiros da aldeia, construída em homenagem ao morto. Na casa, havia sido colocado o velho barco de Taímo, pois, nas palavras de Kindzu: [...] meu pai poderia regressar, vindo do mar (COU- TO, 2007, p. 21). Dessa maneira, o rapaz colocava na casa uma panela cheia de alimentos, mesmo que, às vezes, duvidasse que não era o seu pai quem usufruía da comida, mas as hienas. Para, assim, provar a mãe, pensava Kindzu, a total ausência de meu pai era para mim uma vitória (COUTO, 2007, p. 21). Essa vitória, a certeza de que o pai não retornava do mundo dos mortos a fim de consumir os alimentos deixados pelos vivos. HOMENS ÍNDICOS A vila/aldeia possuía apenas um comerciante, Surendra Valá, indiano que morava na venda com a esposa, Assma, mulher que vivia em outra dimensão psicológica. Kindzu nutria uma verdadeira amizade pelo indiano, porém a família do jovem africano não apreciava o estreitamento dos laços entre os dois amigos. Certa tarde, apareceu na venda um homem da aldeia vizinha que roubou os produtos da loja, Kindzu presenciou a ação denunciando-a a Surendra. O ajudante do indiano, Antoninho, cooperativamente, desmentiu Kindzu dizendo que o indivíduo não havia roubado nada, certamente, [...] não queria trair um de sua raça, dar razão a um de outra pele (COUTO, 2007, p. 25). Os ânimos se acenderam na venda. O indiano apenas pediu que os produtos fossem colocados novamente nas prateleiras. Os dois africanos resolveram atribuir a responsabilidade pelo insólito clima a Kindzu. A tensão do momento chegou ao ponto de: O intruso se chegou ao indiano e roncou fúrias e escarros, puxando o peito para a garganta. Foi subindo em veias e nervos até que cuspiu na cara de Surendra. O indiano ficou ali, especado, a saliva escorrendo. Molhado, nem parecia humilhado. Quando eu quis pedir contas ao intruso, Surendra me pediu silêncio: Deixa, Kindzu. Se fazemos barulho é Assma que pode acordar (COUTO, 2007, p. 26). O intruso pegou um fósforo e insinuou que colocaria fogo à loja. Surendra pediu a Kindzu para aumentar o som do rádio, não queria que a briga acordasse a esposa. Contudo, chegou à venda, para o espanto de todos, um guerreiro, que na África é denominado de naparama, guerreiro tradicional abençoado pelos feiticeiros, que lutava contra os fazedores de guerra. Por onde andavam, levavam a paz, combatiam com lanças, zagaias e arcos. Nenhum tiro lhes tirava a coragem, pois estavam blindados contra balas: O inesperado, então, sucedeu-se: um estranhíssimo homem entrou na loja. Trajava as mínimas vestes mas, na compensação, exibia colares, penas, fitas, enfeitações. E me deu fundo arrepio: nos braços se enrodavam vermelhos panos, pulseiras de xicuembo (Xicuembo: feitiço), exactos como aqueles que vi saindo da cabana do defunto meu pai. Fiquei de olhos presos na chegada figura. O ameaçador freguês também se emparvalhou, o fósforo se consumindo inteiro em seus dedos tremeluzentes. Assim mesmo, de mãos chamuscadas, saiu. O recém-chegado se aproximou do balcão e, em voz baixa, falou com Surendra. O volume do rádio não me deixava ouvir. Fui de novo à prateleira para diminuir o som (COUTO, 2007, p. 26). Kindzu ficou encantado com a presença pacificadora do guerreiro naparama, pediu esclarecimentos a Surendra, que lhe explicou a importância desses heróis da paz. Dias depois, a venda do indiano foi incendiada e Surendra 55 resolveu partir para a sua terra. Mais essa infelicidade tinha aleijado Kindzu: o desaparecimento de meu irmão, a morte de meu pai, a loucura de minha família. Mas nada me afectou tanto como a partida do indiano. Tentei convencer o homem a deixar-se por ali. Em vão. Surendra possuía fundas razões (COUTO, 2007, p. 28). A partida do indiano é marcada por uma fala altamente significativa sob o ponto de vista étnico: Não gosto de pretos, Kindzu. Como? Então gosta de quem? Dos brancos? Também não. Já sei: gosta de indianos, gosta da sua raça. Não. Eu gosto de homens que não tem raça. É por isso que eu gosto de si, Kindzu (COUTO, 2007, p. 28). No caso da guerra civil, na África, questões de ordem étnica são elementos que acentuam os conflitos no país, pois, quase sempre, esse fator gera o tribalismo como podemos ver, por exemplo, no romance singular Mayombe (2004), de Pepetela. Kindzu, após a partida de Surendra, sentiu-se órfão da família e da amizade. Confuso, procurou o antigo professor, o velho pastor Afonso, todavia ele tinha sido assassinado e a escola incendiada. Em meio ao desespero, veio-lhe o claro desejo de tornar-se um naparama: Sim, eu queria ser um desses guerreiros de justiças. Já me via, tronco despido, colares, fitas e feitiços me enfeitando. Sacudi a ideia, tocado pelo medo. Eu me dividia entre a escolha de um destino de briga e a procura de um cantinho calmo, onde residisse a paz. Afinal, eu estava como dizia o cantador da aldeia: no sossego, sou cego; na timaca 56 não vejo (COUTO, 2007, p. 29). Kindzu estava decidido dar um rumo à sua existência, tornar-se um naparama, teria que partir. O pai lhe apareceu em sonho e lançou uma maldição à decisão do jovem: - Se tu saíres terás que me ver a mim: hei-de-te perseguir, vai sofrer para sempre as minhas visões...[...] Nunca mais me chames de pai, a partir de agora serei teu inimigo (COUTO, 2007, p. 30). Aterrorizado com a maldição paterna, Kindzu resolveu aconselhar-se com os mais velhos da aldeia, disseram que ele devia sossegar a morte do pai: Teu pai não fala por boca dele, é um morto que endoidou. Por causa das coisas que se passam na nossa terra (COUTO, 2007, p. 30). Kindzu colocou em dúvida a sabedoria dos velhos: - Aquele grupo de idosos, de repente, me pareceu estar perdido também. Já não eram sábios mas crianças desorientadas (COU- TO, 2007, p. 30). Certamente, a guerra havia enlouquecido todos: seu pai, sua mãe, os velhos sábios e, talvez, por que não dizer o próprio Kindzu. 55 No romance Terra sonâmbula, de Mia Couto, o estrangeiro possui a significação daquele que está fora de seu lugar e, portanto, não pertence a nenhuma terra, pois perdeu os laços com a família e a sua pátria. O estrangeiro é um eterno deslocado, no livro, são inúmeros: Surendra Valá, Kindzu, Romão Pinto, Farida, Assma e Virgínia. 56 confusão, briga. 89

90 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS NAPARAMA Os velhos sábios orientaram Kindzu consultar o nganga, curandeiro espiritual da tribo. Este, por sua vez, disse ao jovem para viajar pelo mar: [...] onde a água faz sede e a areia não guarda nenhuma pegada levando consigo o amuleto dos viajeios na velha casca do fruto ncuácuá (COUTO, 2007, p. 31). Esses elementos simbólicos que perfazem a feitiçaria de Kindzu, segundo o nganga, poderiam garantir a sobrevivência do jovem à guerra. De toda maneira, a sobrevivência implica partida, abandonar a terra sugere por outro lado, deixar para trás os antepassados e suas tradições. O feiticeiro, antes da partida de Kindzu, falou: - Te vais separar dos teus antepassados. Agora, tens de te transformar num outro homem (COUTO, 2007, p. 32). O velho ainda levou alguns sinais simbólicos expressos em ossos: Está ver, todos linhados? Isso quer dizer: você é um homem de viagem. E aqui vejo água, vejo o mar. O mar será tua cura, continuou o velho. A terra está carregada das leis, mandos e desmandos. O mar não tem governador. Mas cuidado, filho, a pessoa não mora no mar. Mesmo teu pai que sempre andou no mar: a casa onde o espírito dele vem descansar fica em terra. Vais encontrar alguém que te vai convidar para morar no mar. Cuidado, meu filho, só mora no mar quem é mar. Estas foram as falas do adivinho, palavras que nunca eu decifrei a fundura (COUTO, 2007, p. 32). O nganga, de maneira cifrada, sugeriu elementos futuros da existência de Kindzu, por exemplo, ao referir-se ao convite hipotético para ele morar no mar, é uma alusão a Farida. O mar é necessário, mas o descanso/tradição está na terra. O mar carrega em si forças ambivalentes, ao mesmo tempo simboliza a possibilidade de concretização dos sonhos idealizados, sugestão de desenlace mortal. Decidido a ser um naparama, Kindzu partiu. Antes, ao despedir-se da mãe, ela lhe revelou estar grávida fazia bastante tempo, porém retinha a criança em seu útero por não querer ter um filho em um mundo tão violento: - São anos que guardo essa criança. Nem quero ela nascer nesse tempo. Fica assim dentro de mim, me companha o coração (COUTO, 2007, p. 33). O corpo da mãe guarda uma dupla possibilidade: pode ser o berço, porto seguro, para a proteção de uma criança, e, também, pode ser lido como um ventre-túmulo guardando uma semente que não chegou a vingar. Kindzu, em seu barco nomeado de Taímo, navegava sempre à beira da costa. Os remos, aos poucos, iam se transformando em árvore para afundar no mar. Com isso, ele tinha que remar com os seus próprios braços. Em suas mãos começaram a nascer escamas: Dentro da água eu sentia as escamas no lugar da pele. Lembrei as palavras do feiticeiro: no mar, serás mar. E era: eu me peixava, cumprindo sentença (COUTO, 2007, p. 41).Kindzu lembrou-se de não deixar para trás marcas. Para isso, em seus rastos jogava uma pena branca, imediatamente, da pluma nascia uma gaivota que, ao levantar voo, fazia desaparecer o buraco. O voo das aves que eu semeava ia apagando meu rasto (COUTO, 2007, p. 40). Os infortúnios encontrados pela frente eram articulados pelo espírito do pai. Mesmo em terra firme, caminhado nas dunas, ele não estava plenamente seguro: [...] num súbito, vi uma mão sair da terra. Subiu no espaço e, avançando no desajeito de um cego, me agarrou a perna. [...] daquele areal, foram saindo outras mãos, mãos e mais mãos. Pareciam estacadas de carne (COUTO, 2007, p.41). Assim, Kindzu encontrou um psipoco 57, inteiro de sombra e fumo, que havia começado a cavar com a pá: A areia se convertia em água e se soltava com barulho líquido. Não, não deliro: salpingaram-me gotas, eu senti (COUTO, 2007, p. 41). O fantasma cavou um buraco no chão e forçou Kindzu a entrar. Ele desmaiou. Ao acordar, não soube se as imagens vistas formavam um pesadelo ou uma aparição de um espírito: Regressei daquele pesadelo já era noite (COUTO, 2007, p. 42). Pegou a canoa e continuou a viagem, ondas adentro. Remou por dias compridos. Dias depois, numa noite escura, Kindzu sonhou com o seu pai que lhe disse: - Fizeram bem não me enterrar. Esse chão está cheiinho de mortos. [...]- E tu, filho, que andas por esses caminhos selvagens? Não sabes estes trilhos não foram limpos dos xicuembos? Ou queres cair nas boas desgraças? (COUTO, 2007, p ). Kindzu tentou explicar a motivação de suas andanças, mas o teimoso Taímo não deu ouvidos ao filho. Os tristes desígnios de Kindzu, segundo o pai, eram fruto da quebra da tradição: MATIMATI - Sou um morto desconsolado. Ninguém me presta cerimónias. Ninguém me mata a galinha, me oferece uma farinhinha, nem panos, nem bebidas. Como posso te ajudar, te livrar das tuas sujidades? Deixaste a casa, abandonaste a árvore sagrada. Partiste sem me rezares. Agora, sofres as consequências. Sou eu que ando a ratazanar teu juízo (COUTO, 2007, p. 44). O pai explicou que Kindzu não poderia continuar a viagem enquanto a sombra dele, Taímo, pesasse sobre o filho. Assim, o pai disse ao filho que ao encontrar a ave mampfana 58, a ave que mata a viagem, Kindzu deveria chamá-lo para tentar ajudar o filho. Por fim, Taímo desapareceu e Kindzu chegou à baía de Matimati. Na praia havia uma grande concentração de pessoas, como se fossem destroços trazidos pelo mar, eles estavam fugindo dos bandidos que vinham em seu rasto como hienas perseguindo agonizantes gazelas. [...] Deviam viver há vários dias, presenciadas as trouxas e fogueiras espalhadas em múltiplas desordens (COUTO, 2007, p. 55). Alguns deles se aproximaram de Kindzu e, categoricamente, informaram-lhe: - O melhor é você desaparecer-se daqui (COUTO, 2007, p. 55). O medo ameaçava todos, não havia ninguém em quem confiar. Um funcionário chamado Assane, secretário do administrador local, foi chamado. O sujeito aconselhou Kindzu a partir. Relatou que um navio naufragara na costa recentemente e que a tripulação se perdera. Os moradores tentaram se aproximar do barco, mas foram engolidos pelo mar, quando voltavam à praia, com os barcos cheios de objetos e alimentos: 57 Espécie de fantasma que se contenta com os infortúnios de Kindzu. 58 Na cultura africana, esse pássaro indica perigo de morte para quem viaja. 90

91 UFU 2017 Contudo, a tragédia se abatera no regresso de tais barquitos, já eles vinham bastantemente carregadíssimos com vestuários, comidas e utensílios diversos. Não se sabe a certeza do motivo mas, num estrelar de olhos, todos os barquinhos foram para os fundos marinhos, desaparecendo até à corrente data (COUTO, 2007, p. 57). A fome levou a novas investidas, até o governo local proibir a prática. Assane, dias anteriores, foi acusado de corrupção, foi preso e, na cadeia, foi agredido ao ponto de perder o movimento das pernas, por isso, na ocasião, estava em uma cadeira de rodas. Antes de partir, Kindzu dançou e bebeu, em cerimônia aos espíritos, pedido a eles que mais barcos afundassem, de tal forma, que as pessoas famintas pudessem ter comida. Ébrio, Kindzu foi conduzido ao seu barco pelas pessoas. Em alto mar, viu uma fogueirinha pirilampeando: No início, duvidei. Como se acendera um fogo em plena água? Depois, confirmei: meus olhos não mentiam (COUTO, 2007, p. 59). Bastante assustado, Kindzu percebeu que um tchóti, espécie de anão, caiu em sua canoa. O anão falou que estava indo ao navio náufrago buscar coisas para levar ao céu, onde também havia carências. Aqui, nota-se uma fina ironia de Mia Couto, visto que mesmo o céu passava por dificuldades. PÉROLA-MULHER Minutos depois, chegaram ao navio. O anão caminhava no barco com certa familiaridade. Kindzu ficou só, por alguns instantes, quando, notou, subitamente, a figura de uma mulher: Foi então que encontrei a mulher. No princípio, era só um vulto no meio das cordas. Seria mais um fantasma? Depois, seu rosto apareceu mais claro. Estremeci. Me cheguei mais, espreitando na penumbra. A lua me ajudava, enxotando as brumas. - Não tenha medo, lhe disse. Suas roupas molhadas ofegavam de encontro à pele. A beleza daquela mulher era de fazer fugir o nome das coisas. Olhando o seu corpo se acreditava que nunca nele a velhice haveria de morar. Corpo sedento, olhos sedentários. Sua voz saía sem vestes, nua como se dispensasse palavras. - Me chamo Farida, disse (COUTO, 2007, p. 62). Farida é colocada no texto como símbolo do que é sublime, nas palavras acima, proferidas por Kindzu, a beleza daquela mulher era capaz de fazer fugir o nome das coisas. Farida no árabe significa pérola, beleza que se esconde numa concha no mar. Curiosamente, Farida estava escondida no mar de maneira análoga às conchas marinhas. Além dos atributos físicos, beleza inigualável, é uma mulher misteriosa que se revela como uma epifania, uma aparição, tal como o anão (tchóti) que desceu do céu para guiar a canoa de Kindzu onde estava encalhado o navio que guardava a pérola-mulher. Farida surge aos olhos de Kindzu durante uma noite bem escura, aspecto favorável para a ambivalência entre o real e o fantástico. A pérola-mulher apareceu, em um primeiro momento, metamorfoseada como a âncora do navio: - Quem é isso? Eu falava de homem para fantasma. De súbito, vi a âncora. Sobre o convés, a âncora dançava, pulava, cabritoteava. Seu ferro se moleava como se não tivesse outra substância senão carnes de peixe. Requebrava a um compasso de invisíveis tambores. Desconfiei: não podia ser a âncora que assim se despropositava. Era o xipoco, a aparição que me surgira na praia de Tandissico. Aquele barco estava espiritado, aguardado contra intrusos. Ou era mais uma vez serviço de meu pai, me mostrando que não me oferecia trégua? De repente, a âncora tombou com enorme estrondo. Por momento me pareceu que, em seu lugar, jazia estendido um corpo humano. Pé-pós-pé, me afastei. Fosse coisa ou gente aquilo era assunto da minha incompetência. Me apressei a chamar o anão para sairmos daquele barco enfeitiçado (COUTO, 2007, p ). Kindzu acreditava estar diante da presença de um fantasma. Como se vê, portanto, a anunciação de Farida parece pertencer à outra esfera. Ela resolve contar a sua história de vida a Kindzu. Farida era uma filha gêmea, condição que, em sua tribo, é sinal de grande desgraça. No dia seguinte ao seu nascimento, foi declarado chimussi: a todos estava interdito lavrar o chão. Caso uma enxada, nesse tempo, ferisse a terra, as chuvas deixariam de cair para sempre (COUTO, 2007, p. 70). A fim de minimizar os impactos da maldição, deixaram a irmã de Farida morrer de fome. A mãe das gêmeas não poderia ter mais filhos. Para Farida diziam que a sua irmã estava vivendo na casa da avó. Mãe e filha tiveram que sair da tribo, foram morar em um mato próximo. Viveram ali sem nunca receber visitas: vinham os da família mas ficavam longe, escondidos. Receavam o contágio (COUTO, 2007, p. 71). A Tia Euzinha, única pessoa da família que tinha contato com a mãe e filha, certa vez, contou toda a verdade para Farida, revelou que a irmã não tinha morrido. Na verdade, a mãe houvera cumprido a maldição pela metade, entregando a um viajante a outra filha. A Tia Euzinha mostrou o colar de Farida, pequena peça de madeira, dizendo que metade daquela peça estava com em poder da irmã: - Essa madeirinha, essa estátua é sua Irmã. Não vê está partida ao meio, é só uma metade? A outra metade quem tem é sua Irmã, num colar igual desse (COUTO, 2007, p. 71). A aldeia passou por inúmeras desgraças, a terra caiu em profunda desordem, a fome e a morte se instalaram. Todos esses infortúnios acabaram sendo vinculados ao caso do nascimento das gêmeas. Com isso, vieram buscar a mãe de Farida, colocaram-na num buraco enchendo-o, em seguida, de água. Farida se aproximou, quis ajudar a mãe, que recusou o auxílio devia ficar ali, matopar-se, pagar sua dívida com o mundo (COUTO, 2007, p. 72). A filha permaneceu próxima ao buraco, certa noite, acordou e não mais viu a sua mãe, a água a havia levado para nunca mais voltar a vê-la, o sangue da mãe já não sujava a aldeia. Desde então, infância de Farida ficou órfã. Ela cresceu, acarinhada por si mesma, na infinita espera de sua mãe (COUTO, 2007, p. 73). 91

92 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS Farida, certo dia, resolveu partir da aldeia. Após horas de caminhada desmaiou, horas depois, acordou na casa de um casal luso, Romão Pinto, dono de muitas terras, e de Dona Virgínia, generosa como não há. Os portugueses adotaram Farida. Contudo, pela primeira, ela sentiu os olhos de um homem salivando por ela. As mãos de Romão não paravam de procurá-la. O desejo do homem crescia por toda a casa, ela sentia uma mistura de nojo e receio. Virgínia dava sinais de loucura, narrava histórias de visitas de familiares que nunca tinham aparecido. Certo dia, a segunda mãe, Virgínia, disse a Farida: - Vou-te levar daqui, não podes ficar mais conosco. - Levar para onde, mãe? Farida tremia. Sem se perceber ela lhe estava chamando de mãe. Devia ser do medo que a invadia. - Farida, escuta, minha querida. A tua mãe... eu estou chegando ao fim de minhas forças. Tenho medo que, amanhã, já não mais possa cuidar de ti. É por isso que te vou levar daqui (COUTO, 2007, p. 76). As duas saíram rumo à missão católica, Farida iria morar em um novo lugar, naquele dia, começava a segunda orfandade dela. Na igreja, ela não se sentia feliz, faltava algo acontecer na vida, aquele lugar lhe deixava um frio interior (COUTO, 2007, p. 76). Por fim, ela fugiu sem prévio aviso ao padre. Estava desejosa de regressar à aldeia da infância. Mas antes, passou na casa de Virgínia, que não estava lá. Na ausência da mulher, Romão violentou sexualmente Farida: Quando seus dedos roçaram o rosto da menina ele sentiu o molhado de caladas lágrimas. Essa tristeza ainda mais lhe afiou os apetites. Foi envolvendo Farida, cada avanço dele a doidoendo. Joelhos no peito, ela se pequeninava. Lá fora, a meiguice da lua não fazia suspeitar quanto ódio fermentava naquele quarto. Os anjos demoravam, Romão ganhava vantagem. Na aflição ela se perguntava: e afinal Deus? Por que se demora tanto? Desistiu de esperar e se ergueu de um salto, escapulada, tirando o corpo do alcance das babas do Romão. Surpreso, o português trancou a voz nos dentes, soprando ameaças. Memórias antigas da raça lhe avisaram: melhor seria ela se deixar, sem menção nem intenção. O português se homenzarrou, abusando dela toda inteira. Transpirava imensos suores. Romão surgia cada vez mais peganhento, colajoso como um sapo. Aquele suor lhe surgiu como se fosse a prova: aquele homem era um estrangeiro, retirado do seu mundo. Na sua terra ele pouparia suores ao fazer amor. Mas ele estava deslocado como um sapo longe do seu charco. E como um sapo adormeceu em seus braços, roncando. Empurrou o peso daquele corpo como quem afasta uma culpa. Amanhecia quando arrumou o saco e saiu por esse cacimbo que molha tanto como a chuva menininha. Chorou, chorou. Queria atar a tristeza com o fio de suas lágrimas. Chamou todo o ódio contra aquele homem que a violara. Mas o ódio não veio. A culpa era só dela, transitando entre esses mundos, num vira-revira. Ela devia, enfim, retornar ao seu lugar de origem, a ver se o tempo ainda tinha jeito para lhe embalar (COUTO, 2007, p ). A atitude agressiva de Romão Pinto 59 sinaliza para a sua condição de branco superior: aquele que vê as negras que o cercam como parte da conquista e do domínio do território. O resultado da relação de posse é o filho de Farida, Gaspar, criança que será entregue à missão, pois a mãe não teria condições de criá-lo. Em nenhum momento da gestação, a mãe apresentou motivações afetivas para com o filho. Após entregá-lo, nunca mais o viu. FAROL Anos depois, Farida tentou recuperar o filho. Na missão, disse à freira que não teria condições de cuidar do filho, mas, também, não poderia esperar por essa condição. Marcaram para o outro dia o encontro entre o filho e a mãe. Assim, Farida chegou à igreja e descobriu que o seu filho tinha fugido. Passaram-se anos, a mãe só chorava lágrimas de leite por causa do filho. Desciam brancas na pele escura e quando as tocava, em seus dedos se arrendavam como pequeninos sóis brilhantes (COUTO, 2007, p. 82). Sem o filho, Farida decidiu sair pelo mundo, em andanças sem direção. Juntou-se a um grupo de pescadores que pretendia saquear o navio náufrago, mas, no ato do roubo, resolveram deixá-la a fim de liberar espaço no bote. A mulher resolveu permanecer no navio, acreditava que o proprietário poderia aparecer e ela partiria com ele. Pensou que o navio seria logo encontrado, pois estava atracado próximo a um farol: - Vês aquelas sombras lá? É uma pequenita ilha. Nessa ilhinha está um farol. Já não trabalha, se cansou. Quando esse farol voltar a iluminar a noite, os donos deste barco vão poder encontrar o caminho de volta. A luz desse farol é a minha esperança, apagando e acendendo tal igual a minha vontade de viver. 59 O nome desse personagem português traz inscrito uma das designações informais para pênis. Curiosamente, Romão possui ávidos apetites sexuais. 92

93 UFU 2017 Fingi ver a ilha. À minha frente só se abria os escuros panos da noite. Mas Farida punha tanta verdade em sua esperança que eu não ousei contrariar. O que ela falou, a terminar, vou pôr em suas exactas palavras. Não posso transcrever seu rosto, disposto em pétalas de luz, conforme a sinceridade da lua (COUTO, 2007, p. 83). Kindzu compreendeu que Farida desejava sair para um novo mundo, isto é, não mais permanecer na África, ao passo que ele, ao contrário, queria encontrar um novo continente dentro da África (COUTO, 2007, p ). Para os dois personagens, a África que ambos conheciam estava fadada a não existir mais, estavam cansados de tanto sangue na terra. Farida, ao final da narração de sua história de vida, disse a Kindzu que ela é um xipoco: Me ensinaram a apagar essa parte de mim, crenças que alimentaram nossas antigas raças. Agora, não é que acredite neles, nos espíritos. Sei que sou um deles, um espírito que vagueia em desordem por não saber a exacta fronteira que nos separa de vocês, os viventes (COUTO, 2007, p. 83). A fala da personagem cria uma identificação coletiva do povo africano que, em tempos de guerra, perdeu a noção de individualidade, apenas vagueia como sonâmbulos pela terra sem direção. Kindzu e Farida ficaram íntimos. Ela acabou pedindo a ele que fosse atrás de Gaspar, Kindzu disse que não poderia, pois estava atrás de seu sonho, tornar-se naparama. Contudo, ela conseguiu maltratar, temporariamente, a maior inspiração de Kindzu, ser um guerreiro da paz: Eu precisava acreditar que existia uma causa nobre, uma razão pela qual valia a pena me entregar (COUTO, 2007, p. 93). Assim, Farida tentou demover o sonho de Kindzu argumentando: Não vês que essa gente também é filha da guerra? Quando vencerem ficam iguais aos outros. Vão querer dividir as vantagens com os outros (COUTO, 2007, p. 93). Mais de 14 anos tinham se passado desde a entrega de Gaspar à missão. Mesmo frente a todas as dificuldades, Kindzu prometeu encontrar o filho desaparecido de Farida. Um elemento novo, o amor, o fez aceitar o pedido da mulher: Farida me roubava coragem do caminho, me roubava força de decidir. Cada dia que passava, meu coração semelhava mais e mais aquele barco (COUTO, 2007, p. 95). Em uma noite de setembro, o vento soprava mais forte trazendo ao mar uma chuva quente. De repente, na cabine do capitão, Kindzu viu Farida tomando banho, ela fez um convite para ele se aproximar. Eles se amaram: O mundo esvanecia e o mar já não importava. As mãos molhadas de Farida desataram as vestes, os dedos dela parecia eram de água. Ela se deitou, derramada no chão de ferro. Nos colámos em gestos de afogado. As vagas ondeavam nossos corpos, indo e vindo. Os dois éramos já só um, emergindo como uma ilha num imenso nada (COUTO, 2007, p. 96). A união amorosa foi uma pausa à concretude insuportável da guerra, momento de entrega absoluta numa espécie de ilha sem dor nem culpa. Após o amor, Farida pediu a Kindzu que fosse buscar Gaspar. MATIMATI Kindzu, apaixonadamente, seguiu para a praia de Matimati. Partiu pensando encontrar a Tia Euzinha, talvez ela soubesse do paradeiro de Gaspar. Na aldeia, contemplou um acidente de um homem descendo uma rua numa cadeira de rodas em alta velocidade. Quando se aproximou do acidentado, Kindzu percebeu que se tratava de Antoninho, o ajudante da loja de Surendra. O indiano estava com uma nova loja, agora, em Matimati. Coincidentemente, Surendra e Assane eram sócios em um empreendimento. O indiano tentava se livrar da esposa, Assma, completamente insana. Em um diálogo com Assane, Kindzu descobriu que esse perdera o cargo na administração local, pois se recusara a assassinar uma mulher, Farida. Kindzu, atônito, permaneceu calado, objetivando descobrir a motivação da tentativa sumária de assassinato. Antes de sair do navio naufragado, Farida disse a Kindzu para nunca citar o nome dela para ninguém. Mais tarde, Surendra, em estado de alheamento de quase tudo, apareceu. Ele havia colocado a mulher numa jangada, lançando-a, em seguida, no mar. Essa ação seria uma absurda tentativa de devolvê-la a Índia, local venerado por ela. Contudo, Assma foi encontrada por um pescador, perdida no mar, o corpo repleto de algas. A indiana voltou ao continente, o pescador a exibia, diariamente, nua para espantosos olhos que jamais viram semelhante criatura (COUTO, 2007, p. 108). O pescador lucrava com essa exposição. Kindzu viu naquela mulher certa familiaridade, porém, somente depois, notou se tratar de Assma, a esposa indiana. Informou a Surendra que havia visto a sua mulher presa por pescadores. O indiano resgatou a esposa, levando-a a um hospital. Kindzu passou os dias seguintes fazendo companhia a Surendra. JUNHITO Assane possuía em sua casa um tanque de guerra defeituoso que passou a servir como criadouro de galinhas, espécie de alternativa comercial para a sua sobrevivência, caso a loja de sociedade não desse certo. Assim, numa noite, Kindzu acordou transpirando, estava ouvindo uma canção de embalar de sua mãe. A melodia emanava de fora da casa. Saiu e percebeu que a canção saía do tanque: Vislumbrei então um enorme galo. O bicho me fitou surpreso. O olhar dele quase me fez cair. Aqueles olhos eram de uma tristeza que eu já conhecera. - Junhito! O galo entortou a cabeça, duvidando-me. Cócóricou, esgravatando o chão, em exibição de mandos. Agora, ele semelhava um real bicho, ave de nascimento e vocação. Não podia ser Junhito, meu Irmão (COUTO, 2007, p. 117). Nem os restos finais de humanidade, o aspecto triste no olhar, foram capazes de trazer Junhito de volta ao mundo dos homens. O processo de zoomorfização se concretizara de tal maneira que, realmente, Junhito vivia outra existência. Kindzu, diante da imagem grotesca do irmão, pensou: Eu havia esquecido meu mano. Estava dedicado a procurar Gaspar, um estranho. mas abandonara a lembrança de Junhito (COUTO, 2007, p. 117). Dias depois, Kindzu se aproximou do 93

94 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS irmão em uma despedida. E, novamente, aqueles olhos se mostraram humanos, capazes de lágrimas. Meus dedos passaram entre a rede e lhe acariciei as asas (COUTO, 2007, p. 118). Kindzu repetia para si mesmo que Junhito estava falecido. Essa condição de Junhito pode ser associada à guerra. Para reverter a desumanização ocasionada pela guerra, é necessária a morte do animal em que nos convertemos para vir nascer um novo sujeito. A loja de Surendra e Assane, finalmente, iria ser inaugurada, o local tinha sido, em tempos coloniais, a cantina de Romão Pinto. Nesse momento, Kindzu pode contemplar, novamente, a esposa do administrador, Carolinda. Tudo transcorria dentro da normalidade, quando, porém, alguns desordeiros apareceram ateando fogo ao estabelecimento. Houve tiros, gritos e muita gente correndo. Em meio à confusão, Assma morreu queimada. Surendra conservava uma estranha distância de tudo, parecia nada ter sucedido. Após passar dias na casa de Assane, Kindzu partiu à procura de Gaspar. Dirigiu-se, em companhia de Antonino, a um bar. No local numa conversa com a prostituta cega Juliana Bastiana, conheceu Quintino, bêbado que conhecia muito bem o mato e, em seguida, levaria Kindzu ao encontro de Tia Euzinha. Porém, o guia estava completamente ébrio. Portanto, não havia meios de obter informações dele. Com isso, Kindzu saiu do bar, a fim de esperar Quintino voltar à normalidade. De repente, na rua, um vulto saiu do escuro atirando Kindzu ao chão. Logo percebeu que se tratava de uma mulher: seus seios estavam colocados à minha disposição (COUTO, 2007, p. 135). Eles foram para o curral da Missão e lá mantiveram relações sexuais. No outro dia cedo, Kindzu acordou, Carolinda não estava ali. Ela havia esquecido um colar. O jovem viajante pegou o objeto e pensou em entregá-lo em alguma oportunidade. Kindzu queria falar com Quintino, finalmente, pedir-lhe que o acompanhasse pelo mato. O sujeito continuava perdido em meio à embriaguez. Um sujeito estava a arrastar Quintino, Kindzu acabou sendo obrigado a carregar o bêbado para a administração. Quando chegou ao local, encontrou-se com Estevão Jonas, o administrador da cidade. Este pediu que chamasse a sua esposa. Carolinda explicou a sua ausência à noite dizendo ter sido vítima de um feitiço: Ela contara que tinha visto um maço de notas na praia. Vergou-se para o apanhar mas não foi capaz de se endireitar. Estava presa no dinheiro, sem poder soltar-se durante horas (COUTO, 2007, p. 142). Estevão Jonas justificou: - Conheço esse xicuembo, não pode ser de alguém daqui. Foste tu que encomendaste. Mas eu não fico em obscurantismos: isto é acção política, obra do inimigo, abuso dos símbolos da Nação (COUTO, 2007, p. 142). Kindzu era o único forasteiro do lugar, por isso o administrador suspeitou que o feitiço fosse dele. Assim, Estevão determinou que Kindzu ficasse amarrado ao bêbado Quintino. Vendo-se sozinho com o bêbado, Kindzu propôs: - Conduzes-me pelo mato. Em troca, levo-te até ao barco onde está Farida. Tu tiras de lá o que quiseres. Ele aceitou. Afinal ele também queria fugir. Um fantasma lhe perseguia, confessou. Um fantasma? Sim, o espírito de seu antigo patrão colonial (COUTO, 2007, p. 142). DEFUNTO LUSO Quintino, enquanto permanecia amarrado ao Kindzu, resolveu contar uma história. Certa noite, durante uma invasão à casa de seu antigo patrão, Romão Pinto, acabou sendo surpreendido pelo defunto do português, que tinha sido enterrado ali mesmo. Romão contou-lhe a causa de sua morte: mantivera relações sexuais com uma negra casada, Salima, sem notar que estava menstruada, ação considerada um tabu para a sociedade local. Como punição ele começou a urinar sangue interminavelmente até a morte. Mas antes de morrer, investiu contra Salima, forma de represália. De madrugada, Romão foi à casa da mulher forçando-a a ter relações sexuais com o marido a fim de, também, levá-lo a óbito, porém, essa ação não teve êxito: o marido de Salima não morrera. Para consolar o homem, Quintino avançou possíveis explicações. Quem sabe era um falso sangue, esse que a mulher mostrara? Ele conhecia as manhas das mulheres quando não querem servir as urgências dos machos. Fingem, chegam a cortar-se nas virilhas (COUTO, 2007, p. 150). A condição de defunto o impedia que saísse da casa sozinho, apenas poderia sair acompanhado de um vivo, por isso, mandou Quintino levá-lo à presença de Farida. Contudo, Quintino recusou o pedido do patrão que o perseguia: Então choveram as ameaças, coisas de estarrecer. Facas e fogos, lumes e chibatas. Desfaço-te que nem daquela vez que desapareceram os talheres. Ou pior, que agora com esta passagem pela morte aprendi maldades que nem lembram ao diabo. É o fantasma do colono que me persegue até hoje (COUTO, 2007, p. 151). Quintino, mesmo após terminar o seu relato, ainda estava preso a Kindzu. Somente depois, Carolinda apareceu e soltou os dois. A mulher revelou ter mentido para o marido, Estevão Jonas, a fim de preservar Kindzu mais tempo próximo a ela. Este ainda desejou entregar-lhe o colar, mas Carolinda recusou pegá-lo, disse que seria uma recordação. TIA EUZINHA Quintino e Kindzu combinaram uma data para explorar o mato, porém Quintino não compareceu, parecia estar perdido alegando ter visto o seu antigo patrão, Romão Pinto. Com isso, Kindzu resolveu ir atrás de Virgínia a fim de obter alguma informação acerca de Gaspar. Encontrou a velha em sua casa. Horas e horas perdidas, espreitando à distância, esperando o momento certo para estabelecer um contato. Várias crianças negras lhe rondavam, ela e as crianças pareciam viver em outro patamar de existência: Dona Virgínia amealha fantasias, cada vez mais se infanciando (COUTO, 2007, p. 158). Os pais das crianças traziam comida, bons cumprimentos. O quintal da casa tinha sido tomado pelo capim. Ela nem reparava a urgência de cuidar do espaço. O seu marido, Romão Pinto, se retirou da vida vai fazer dez anos (COUTO, 2007, p. 158). Do esposo Virgínia guardava o inverso da saudade. Um de suas ocupações era a criação de sapos no quintal: 94

95 UFU 2017 De dia deixava as moscas patinharem os vidros das janelas. À tarde, juntava-as numa caixa e lhes tirava as asas, uma a uma. Chegada a noitinha ela saía de casa e espalhava as desasadas moscas pela relva. Chamava os batráquios por nomes, sortidos de sua autoria (COUTO, 2007, p. 159). Além da criação de sapos, Virgínia preenchia a sua existência narrando histórias às crianças, como a do Mucunha Curucho 60, o seu avô, homem frequente em terras do outro lado da montanha. Sua única obra havia sido o farol (COUTO, 2007, p. 160). Ao terminar as narrativas, a velha levava as crianças para o poço objetivando ver se ainda haveria água por lá. NO FUNDO DO POÇO Kindzu não resistiu à possibilidade que teve de se aproximar de Virgínia. Ele perguntou por Gaspar. A velha desconversou mostrando a língua ao outro. Sem paciência, Kindzu falou inúmeras coisas em desordem, entre elas, disse que estava ali por cauda de Farida, tinha sido ela que me pedira que procurasse seu filho dela (COUTO, 2007, p. 162). A senhora convidou Kindzu para a sua casa, poderia falar somente lá. Voltaram, então, ao antigo casarão. Virgínia revelou tudo que sabia a respeito de Gaspar. Certa vez, entrou no quintal, quase morta, uma criança. Quando melhorou a condição, o menino contou-lhe a sua história de vida. Naquele momento, ela descobriu se tratar do filho de Farida e de João Romão, seu esposo. Gaspar ficou alguns dias na casa de Virgínia e depois fugiu, talvez para encontrar a Tia Euzinha, de cuja existência tinha conhecimento. Em meio à conversa, Virgínia se calou. Os dois avistaram Estevão Jonas, que estava ali a pedido de Romão Pinto, e se esconderam. O administrador percebeu que as portas se abriram permitindo que ele visse o falecido Romão Pinto carregando às costas o seu próprio caixão (COUTO, 2007, p. 166). Estevão Jonas, com medo, saiu correndo, caindo numa valeta. O defunto se aproximou e disse: Levanta-se e ajuda- -me a carregar esta merda deste caixão (COUTO, 2007, p. 166). O português ofereceu ao moçambicano uma sociedade em um empreendimento, não explicitado por eles. Para a empresa dar certo, necessitava do dinheiro que estava em mãos de Virgínia ( a maldita estava podre de rica - COUTO, 2007, p. 167). Para que o pacto entre eles desse certo, Estevão Jonas deveria atacar os portugueses, de tal forma que ninguém desconfiasse da aliança estabelecida entre eles. Romão desapareceu no escuro da casa. Minutos depois, Carolinda apareceu na casa do português. A mulher, enciumada, pensou que o marido estivesse ali com outra mulher. O marido tranquilizou a esposa contando lhe o sucedido, acordos e sociedades com o falecido. Carolinda, vendo a estranha aliança, ofendeu o marido: - Sempre eu dei o nome certo à tua função: você é um administraidor (COUTO, 2007, p. 169). O clima se intensifica com a intolerância de Carolinda para com as posturas políticas do marido: - Você, Estevão, é como a hiena: só tem esperteza para as coisas mortas. - Essas suas palavras já são canto de sapo. - O povo vai-te apanhar. Não voltas mais a esta casa, senão te denuncio. 60 Essa expressão possui o significado de homem branco. - Como não volto? Agora eu e Romão Pinto temos negócios, somos sócios. Tenho que vir aqui. Ou não diga, mulher, que quer que ele vá até lá na administração? [...] - Não quero esse dinheiro. Nem minha família aceita dinheiro sujo. Você há-de pagar essa traição. - Mas Carolinda, se acalme. Isto são contradições no seio do povo... - Vá-se embora, Estevão. Eu não lhe quero ouvir. - Tem que me ouvir. - Vá-se, senão eu grito, grito até isto se encher de gente (COUTO, 2007, p. 169). LOUCURA PENSADA Temendo os gritos da esposa, Estevão saiu correndo da casa. Em seguida, Kindzu chamou por ela. Virgínia saiu às pressas alegando não possuir dinheiro: Não esqueça eu sou uma velha tonta, não falo com gente crescida. [...] Como é que posso assinar um papel? E dinheiro, eu sei o que é dinheiro? (COUTO, 2007, p. 170). Agora, Kindzu conseguiu entender a suposta loucura de Virgínia, na verdade, a dita loucura era um refúgio seguro para ela. Kindzu afagou Carolinda. Ele mostrou o colar que ainda guardava consigo. Em seguida, se beijaram, porém, em meio a essa ação, ele a chamou de Farida. Carolinda, de um golpe, se afastou dele, que mentiu dizendo não ter se referido a ela com tal nome. Carolinda aproveitou a oportunidade para narrar a sua história de vida. Acabou relatando o total ciúme por uma mulher, Farida, que passou a trabalhar na administração. Mas Farida, certo dia, desapareceu da Matimati, emigrara para o navio naufragado. O ciúme converteu-se em ódio: O que lhe dava tanta raiva? Era perder o objecto do ciúme? Ou seria inveja da outra estar a caminho de sair daquele inferno? Sim, Farida fugia da pequeninez daquele lugar mesmo que o fizesse pela loucura de embarcar num barco encalhado. Mas sempre era uma viagem, uma saída daquele inferno. Era essa fuga que Carolinda não podia aceitar. Assim, ela se deu a conceber uma vingança contra Farida. Incitava Estevão a tomar medidas contra o barco, inventando perigos na estada de tal mulher num tal barco. Os homens de Estevão tinham ido ao navio recolher a melhor parte dos bens? Pois Farida assistira àquele desvio, se preparava para denunciar o caso. Estevão fingia acreditar e dava desleixadas ordens para que a dita mulher fosse retirada do barco (COUTO, 2007, p. 173). MATO SONHO Após explicar a origem do ódio visceral, Carolinda deitou nos braços de Kindzu, nos degraus do casarão, e estendeu o seu corpo com a paixão do fogo e a ternura da terra (COU- TO, 2007, p. 173). Virgínia não poderia levar Kindzu à procura do filho de Farida, o estado de fantasia em que havia entrado era sem retorno. Ela se refugiara onde nunca mais nem mortos nem vivos lhe pudessem encontrar (COUTO, 2007, p. 180). Com isso, Kindzu partiu para o interior, em companhia de Quin- 95

96 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS tino, objetivando encontrar a tia Euzinha. Os dois andaram bastante, Quintino disse a Kindzu para ficar sob uma árvore, visto o cansaço, enquanto encontrasse o campo para, em seguida, buscá-lo. Kindzu resolveu sair das proximidades da árvore, dada a presença da morte lá: restos de bichos devorados, esqueletos dos pássaros que caíam já mortos dos ramos da maldiçoada árvore (COUTO, 2007, p. 180). Decidiu, então, sair do lugar, quando olhou para o pássaro que, em sonho, o seu pai preditara. Seria o mampfana 61, ave matadora de viagem, indício de morte próxima: Kindzu ou Farida estavam prontos para morrer? Kindzu ajoelhou pedindo proteção ao pai. Então, de súbito, o pássaro partiu-se em dois. De dentro da árvore, saiu uma voz: - Eu sou a última árvore. Aquele que me cortar ficará mulher, se for homem. Se tornará homem, se for mulher (COUTO, 2007, p. 181). Houve um diálogo entre pai e filho. Em seguida, Quintino voltou para conduzi-los ao campo. No campo, lugar de desolação e abandono, encontraram tia Euzinha. Os dois se apresentaram à velha, explicaram as suas intenções. Ela, por sua vez, indagou sobre Farida. Tia Euzinha ficou espantada ao ver o colar de Kindzu: Me surpreendi. Por que motivo ela me queria tirar aquela lembrança? - Você não deve mexer no destino dessas Irmãs. Nenhuma pode saber nada sobre da outra. Carolinda não pode saber eu sou tia dela. Senão, a desgraça lhes vai escolher. - Está certo, eu fico calado, disse eu, entregando o colar. - Mesmo eu penso: há um demónio que está trabalhar na alma de Carolinda. Um demónio? E como sabia Euzinha da existência de tal mau espírito? Pela maneira como Carolinda incitava o marido a tomar medidas contra o barco. Era ela que queria que Farida fosse morta. Sem nenhuma razão concreta, sem motivo entendível. O demónio se vingava de não ter sido ela a menina escolhida para a vida. - Deixe as gémeas. Se ocupa só de encontrar Gaspar. - Sim. Mas onde posso encontrar esse menino? - Gaspar foi levado para um outro campo (COUTO, 2007, p. 183). Gaspar não estava naquele campo, tinham-no levado para um lugar desconhecido por ela. Tia Euzinha sugeriu a Kindzu demorasse certo tempo ali, à espera do que decidissem os espíritos. Resolveram ficar. Quintino se envolveu com uma moça chamada de Jotinha. Kindzu foi encontrado por Carolinda. Os casais passaram a noite em um depósito de alimentos. No outro dia, viram insetos comendo os alimentos que deveriam ser distribuídos à população: 61 Esse pássaro faz parte das crenças místicas do povo tsonga, do sul de Moçambique. Eles acreditam que essa ave voa atrás do caminho com as grandes asas abertas, pois há perigo de morte, previne o caminho que não é confiável. Temos aqui uma sugestão de morte próxima, pode estar chegando ao fim a existência de Kindzu no romance. - Veja, os bichos! Em redor dos sacos, milhares de insectos roubavam comida. Os bichos vazavam o armazém com gulas de gigante. Como era possível? Tanto alimento apodrecendo ali enquanto morriam pessoas às centenas no campo? É culpa de Estevão Jonas, meu marido. É por isso que lhe chamo administraidor! (COUTO, 2007, p. 188). SEM FAROL Carolinda resolveu distribuir os alimentos à revelia do marido. A população, à noite, fez uma verdadeira festa por causa da comida distribuída. Em meio à festa, tia Euzinha dançou freneticamente até a morte: O peito dela já tinha desaguado nesse outro mar onde meu pai divagava (COUTO, 2007, p. 192). O falecimento dela fez Kindzu sair do campo: Me descaminhei pelo mato, tão absorto em mim que nem o medo me chegou (COUTO, 2007, p. 192). Voltou a Matimati. Nessa localidade, Assane se aproximou de Kindzu e lhe disse: - Já lhe deu a novidade? Que se passa? Que aconteceu com Farida? [...] - Não vale a pena você voltar lá. - Não vale a pena? - Farida já não te espera. - Como: vieram-lhe buscar? - De certa maneira... - Como de certa maneira? - Se acalma, Kindzu. Lhe vamos contar (COUTO, 2007, p. 197). A morte de Farida se deu da seguinte maneira: Antoninho pegou um barco e partiu rumo ao barco naufragado, no local, conversou com Farida sobre Kindzu referente à procura do filho dela. Então, ela disse: Não posso adiar mais. Vês aquele farol, apontou ela por entre o poente. Tenho que fazer com que aquele farol funcione (COUTO, 2007, p. 198). Antoninho se dispôs a ajudar. Assim, em seguida, as coisas se sucederam da seguinte maneira: Farida partiu na embarcação de Antoninho. Ele ainda a viu chegar ao pequeno ilhéu e entrar no farol. Ficou lá um tempo, saiu, voltou a entrar, carregando uns velhos bidões 62. De repente, a torre se sacudiu em imensa explosão. Labaredas escaparam como sôfregas línguas do edifício. Toda a ilha ficou ardendo (COUTO, 2007, p. 198). FOGO A luz do farol para essa mulher poderia sinalizar a esperança em um novo lugar, pois a sua localidade, Moçambique, tinha se tornado bastante hostil aos seus habitantes, restava, pois, a crença na esperança em um paraíso. Contudo, o sonho acabou sendo consumido pelo fogo, símbolo ambivalente. Por isso, pode ser visto como símbolo das paixões (amor e cólera); da purificação, da iluminação, do conhecimento, renovação, mas, ao mesmo tempo, como aquilo que obscu- 62 Bujão. 96

97 UFU 2017 rece e sufoca, queima, devora e destrói. No romance Terra sonâmbula, o fogo pode ser apreendido como signo de destruição, das paixões descontroladas, que levam à morte. Se observarmos na narrativa I (olhar de fora), Muidinga e Tuahir encontram um ônibus incendiado e repleto de cadáveres queimados. Outro exemplo é o incêndio da loja do indiano. Antoninho tentou resgatar Farida, queimou os braços, mas não conseguiu ajudar a mulher, que estava morta. Kindzu não queria ficar naquela cidade, por isso, resolveu partir no primeiro machimbombo de Assane. O negro estabeleceu uma empresa com o administrador: FEITICEIRO - Calha bem, meu amigo. Amanhã mesmo sai o primeiro machimbombo de nossa empresa. Fingi nem reparar. Nossa empresa? Então, o negócio já se expandira? Afinal, em guerra se pode prosperar mais rápido que em normais tempos de paz. Levantei outra, mais leve, dúvida: - Já se pode circular na estrada? - Não temos certeza. Vamos tentar. - Está certo. Amanhã eu embarco nesse machimbombo. Me deixe agora, estou de mais cansado (COUTO, 2007, p. 199). Kindzu se preparou para partir, a sua última viagem. Assim, acomodou as roupas e os cadernos na mala, que havia sido deixada por Surendra. A última parte de seu caderno é o relato de um sonho de Kindzu. Ele se viu em pleno amanhecer, parecia tratar-se da primeira madrugada do mundo. Um grupo de pessoas se dirigiu a ele, à frente notava-se um feiticeiro, que fez inúmeras previsões acerca de terrores que atingiriam a todos. Porém, após as calamidades, restará uma manhã como esta, cheia de luz nova e se escutará uma voz longínqua como se fosse uma memória de antes de sermos gente (COUTO, 2007, p. 201). Por fim, o feiticeiro propôs: Aceitemos morrer como gente que já não somos. Deixai que morra o animal em que esta guerra nos converteu (COUTO, 2007, p. 202). Colocaremos o trecho na íntegra do sonho de Kindzu, visto a sua importância simbólica: - Chorais pelos dias de hoje? Pois saibam que os dias que virão serão ainda piores. Foi por isso que fizeram esta guerra, para envenenar o ventre do tempo, para que o presente parisse monstros no lugar da esperança. Não mais procureis vossos familiares que saíram para outras terras em busca da paz. Mesmo que os reencontreis eles não vos reconhecerão. Vós vos convertêsseis em bichos, sem família, sem nação. Porque esta guerra não foi feita para vos tirar do país mas para tirar o país de dentro de vós. Agora, a arma é a vossa única alma. Roubaram-vos tanto que nem sequer os sonhos são vossos, nada de vossa terra vos pertence, e até o céu e o mar serão propriedade de estranhos. Ser mil vezes pior que o passado pois não vereis o rosto dos novos donos e esses patrões se servirão de vossos Irmãos para vos dar castigo. Ao invés de combaterem os inimigos, os melhores guerreiros afiarão as lanças nos ventres das suas próprias mulheres. E aqueles que vos deveriam comandar estarão entretidos a regatear migalhas no banquete da vossa própria destruição. E até os miseráveis serão donos do vosso medo pois vivereis no reino da brutalidade. Terão que esperar que os assassinos sejam mortos por suas próprias mãos pois em todos haver medo da justiça. A terra se revolver e os enterrados assomarão à superfície para virem buscar as orelhas que lhes foram decepadas. Outros procurarão seus narizes no vómito das hienas e escavarão nas lixeiras para resgatarem seus antigos órgãos. E há-de vir um vento que arrastar os astros pelos céus e a noite se tornar pequena para tantas luzes explodindo sobre as vossas cabeças. As areias se voltearão em remoinhos furiosos pelos ares e os pássaros tombarão extenuados e ocorrerão desastres que não têm nome, as machambas serão convertidas em cemitérios e das plantas, secas e mirradas, brotarão apenas pedras de sal. As mulheres mastigarão areia e serão tantas e tão esfaimadas que um buraco imenso tornar a terra oca e desventrada (COUTO, 2007, p ). Como se percebe, ao longo das páginas do romance, há uma necessidade de destruir para se construir algo novamente, por isso, o fragmento remete ao instante em que o velho mundo, representado pela terra oca e desventrada (COUTO, 2007, p. 201), deixará de existir a fim de dar lugar a um mundo novo. Portanto, é necessário se despir de um tempo envenenado com intuito de entrar em outro que haja o terno embalo da primeira mãe (COUTO, 2007, p. 201). Ainda entre as brumas do sonho, Kindzu viu um galo se aproximando dele, era Junhito em formas quase humanas, lhe caíam as penas, cristas e esporões (COUTO, 2007, p. 202). Em seguida, no sonho, surgiram o colono Romão Pinto junto com o administrador Estevão, Shetani, Assane, Antoninho e milicianos. Vinham armados e se dirigiram para Junhito, com ganas de lhe depenar o pescoço. Cercaram o manito, dizendo: - Teu pai tinha razão: sempre te viemos buscar (COUTO, 2007, p. 203). Junhito chamou o irmão que, de súbito, se viu portando os enfeites e armas dos naparamas. Após vê-lo com as armas do guerreiro de paz, os inimigos sumiram. Junhito ainda lutava para livrar-se do feitiço, o zoomorfismo. Kindzu cogitou que o irmão precisava de um pouco de infância para voltar a ser um homem. Assim, Kindzu pôs-se e entoar uma das cantigas de ninar pronunciadas pela mãe. Aos poucos, Junhito voltou à forma humana. A mãe deles apareceu, como se tivesse sido chamada pelo canto, segurando uma criança em seu colo. Junhito segurando a mão no peito, agradeceu pela transformação e partiu com a mãe. 97

98 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS NARRATIVAS CRUZADAS Kindzu pressentia que a noite chegava ao fim e, portanto, com ela, o sonho cessaria também, por isso, se apressou, antes que acordasse: Eu sentia que a noite chegava ao fim. Qualquer coisa me dizia que me devia apressar antes que aquele sonho se extinguisse. Porque me surgiam agora alucinadas visões de uma estrada por onde eu seguia. Mas aquela era uma muito estranha picada: não estava imóvel, esperando a viagem dos homens. Ela se deslocava, seguindo de paisagem em paisagem. A estrada me descaminhou. O destino o que é senão um embriagado conduzido por um cego? Fui sendo levado sem conta nem tempo. Até que meu coração se apertou em sombrio sobressalto. Me surgiu um machimbombo queimado. Estava derreado numa berma, a dianteira espalmada de encontro a uma árvore. De repente, a cabeça me estala em surdo baque. Parecia que o mundo inteiro rebentava, fios de sangue se desalinhavam num fundo de luz muitíssimo branca. Vacilo, vencido por súbito desfalecimento. Me apetece deitar, me anichar na terra morna. Deixo cair ali a mala onde trago os cadernos. Uma voz interior me pede para que não pare. É a voz de meu pai que me dá força. Venço o torpor e prossigo ao longo da estrada. Mais adiante segue um miúdo com passo lento. Nas suas mãos estão papéis que me parecem familiares. Me aproximo e, com sobressalto, confirmo: são os meus cadernos. Então, com o peito sufocado, chamo: Gaspar! E o menino estremece como se nascesse por uma segunda vez. De sua mão tombam os cadernos. Movidas por um vento que nascia não do ar mas do próprio chão, as folhas se espalham pela estrada. Então, as letras, uma por uma, se vão convertendo em grãos de areia e, aos poucos, todos meus escritos se vão transformando em páginas de terra (COUTO, 2007, p ). Nesse trecho do romance, espécie de momento em que as duas narrativas se cruzam, descobrimos a identidade de Muidinga: ele é Gaspar. Sendo assim, Kindzu conseguiu cumprir a promessa feita Farida. O final do romance remete ao seu início, momento que Kindzu é encontrado por Muiding/Gaspar. Segundo Ana Mafalda Leite, no final do romance, a primeira narrativa conflui na segunda, e a narrativa imaginária dos cadernos integra-se na primeira história (LEITE, 2003, 42). A identidade de Muidinga residia na desmemória de Gaspar/Muidinga. A compreensão e recuperação da memória do filho de Farida se dá por meio da história tecida por Kindzu. De um lado, esse personagem parece escrever para esquecer a sua memória ( Assim escritas estas lembranças ficam presas no papel, bem longe de mim COUTO, 2007, p. 200). De outro lado, Muidinga via na escrita uma maneira de conhecer a si mesmo por meio das memórias escritas. REFERÊNCIAS: CARPENTIER, Alejo. Prefácio. In: O reino deste mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, COUTO, Mia. Mia Couto, o poeta que escreve histórias. Entrevista concebida a Mirian Sanger. Revista da Cultura, edição 19, fevereiro de 2009, p COUTO, Mia. Terra sonâmbula. São Paulo: Companhia das Letras, JOZEF, Bella. O fantástico e o misterioso In: JOZEF, Bella. A máscara e o enigma. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A./Eduel, 2006, pp KAFKA, Franz. A metamorfose. Trad. Lourival Holt Albuquerque. São Paulo: Abril, LEITE, Ana Mafalda. Literaturas africanas e formulações pós-coloniais. Maputo: Imprensa Universitária, UEM, PEPETELA. Mayombe. Luanda: Edições Maianga, RIOS, Peron Pereira Santos de Machado, A viagem infinita: um estudo de Terra Sonâmbula. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL), da Universidade Federal de Pernambuco. Recife, março de SECCO, Carmen Lúcia Tindó Ribeiro. Alegorias em abril: Moçambique e o sonho de um outro vinte e cinco (uma leitura do romance Vinte e zinco, do escritor Mia Couto). Via Atlântica, 18, pp , ANÁLISE DA OBRA DESTINO: POESIA, ORGANIZADO POR ÍTALO MORICONI, por Henrique Landim 63 POESIA MARGINAL/GERAÇÃO MIMEÓGRAFO Enquanto o Brasil historicamente mergulhava numa ácida ditadura militar, a arte desse contexto apresentou um rico território de produções. Alguns movimentos, como o Centro Popular de Cultura (CPC), organizado pela UNE, o Tropicalismo, os festivais de música popular, Mutantes, Secos e Molhados, dentre outros, marcaram as produções artísticas desse período. É também nesse contexto que a TV surgiu no cenário nacional. 63 Graduado em Letras pela Universidade Federal de Uberlândia e mestre em Teoria Literária pela mesma instituição. 98

99 UFU 2017 O clima libertário e, paradoxalmente, repressivo dos anos 60 perpassou para a década de No Brasil, na década de 1960, houve uma crença no milagre econômico que trouxe uma grande euforia nas melhores condições de vida da população, contudo havia também o mal-estar implantado pela ausência de liberdade, sobretudo a partir de Em meados de 1966, o ânimo da população se tornou mais ácido. Houve uma perda da inocência lírica que deu lugar aos protestos juvenis contra a tenebrosa sombra autoritária do governo. Nesse contexto o feminismo ganhou força e também os movimentos civis a favor dos negros e homossexuais. Nesse mesmo cenário o movimento hippie, articulação contra cultural, se posicionou contra a Guerra do Vietnã. Em 1963, em Belo Horizonte, nasceu o Clube da Esquina, conjunto musical do que fazia parte Milton Nascimento. Um pouco adiante, em 1967, surgiu o Tropicalismo. No campo internacional, nos Estados Unidos, em 1969, ocorreu o Festival de Wookstock. Elvis e os Beathes também possuíam grande influência na cena cultural do mundo. Durante a década de 1970, o Brasil foi governado por uma ditadura militar que censurava todos os meios de comunicação, torturava, exilava e assassinava brasileiros em nome da Doutrina de Segurança Nacional. Esse contexto histórico-cultural serviu de moldura para o nascimento da geração de poetas marginais como os da produção Destino: poesia. São eles: Ana Cristina Cesar; Cacaso; Paulo Leminski; Torquato Neto; Waly Salomão. Esses artistas estavam despreocupados com o formalismo poético, utilizavam uma linguagem direta e despojada, às vezes carregada de conotações políticas e comportamentais. Trataram temas como a censura, repressão militar, os direitos das minorias (mulheres, negros, homossexuais), a própria poesia, a liberdade, a tortura, o exílio, o não lugar do sujeito no mundo, o desejo e vivência da liberdade sexual, entre outros que apresentaremos ao longo da análise de alguns poemas. Esse grupo de poetas da década de 1970 também é chamado de Geração Mimeógrafo visto o uso alternativo desse aparelho impressor como maneira de fugir ao cerco da censura implantado pela ditadura militar. Dessa maneira, essa geração é chamada de Poesia Marginal, pois estava à margem do sistema editorial tanto no que se refere à edição do objeto livro como no processo de vendas. Os poemas eram mimeografados e grampeados em pequenos livros, modelo de composição artesanal, e distribuídos pelos próprios artistas, à noite, em bares, teatros e cinemas, por exemplo. A maioria dos escritores era composta de jovens universitários que não estavam inseridos no processo oficial de edição de livros. Os textos/poemas, à maneira da geração de 1922 do modernismo, usavam uma linguagem fortemente coloquial. Com isso, a linguagem é explorada demasiadamente como arma de combate às agruras do regime militar. Tudo isso atesta a relação direta estabelecida entre a arte e a vida, uma vez que é impossível fazer arte sem pensar o cotidiano. Os versos distanciam-se do formalismo limitador e aparecem marcados pelo humor e ironia, às vezes, deixando de lado o riso usando palavrões, gírias. Os poemas possuem um desejo de pegar no ar os flashes do dia a dia, por isso o uso de poemas-diálogos. Mesmo sendo um fenômeno ocorrido em diversas partes do Brasil, como São Paulo, Belo Horizonte e Brasília, por exemplo, a poesia marginal era articulada, sobretudo, pela classe média universitária, e teve como núcleo principal a zona sul do Rio de Janeiro. Podemos enumerar as seguintes características gerais dos poemas aqui apresentados 64 : a) Uso de linguagem coloquial, muitas vezes incorporando gírias e palavras bem corriqueiras do cotidiano; b) Presença forte do poema curtinho, que pode chegar a ter apenas uma linha, como neste de Cacaso: Passou um versinho voando? Ou foi uma gaivota? ; c) Incorporação de um tom convencional e discursivo em vários poemas, recurso este que assume formas diversificadas, podendo estar presente tanto em poemas mais longos quanto nos curtos; d) Contrastando com a moda do poema curto, ocorre por outro lado uma aproximação com a prosa poética, que também assume formas diversificadas, particularmente em Ana C. e Waly; e) a utilização frequente da simples comunicação ou da repetição de palavras (à la Carlos Drummond) como recurso eficaz de expressão poética, como podemos verificar, apenas para citar dois exemplos mais ostensivos, nos poemas O fazendeiro do mar, de Cacaso, e Remix do século vinte de Waly Salomão; f) Caráter frequente e propositalmente aleatório das relações entre versos, ideias, imagens, provocando no leitor a sensação de falta de sentido na poesia, muitas vezes o significado está na aparente falta de significado. O leitor de poesia não pode ter pressa em decodificar nem achar que vai arrumar de maneira muito quadrada e certinha a interpretação de um tipo de texto (o poético) cujo primeiro objetivo é simular os processos de mentar e comunicar. Os poetas surgidos nos anos 1970 nem sempre ou quase nunca gostavam de fechar seus poemas com significados redondinhos. 64 Todos esses aspectos da poesia da década de 1970 foram retirados do prefácio do livro Destino: poesia tecidos por Ítalo Moriconi. 99

100 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS ANA CRISTINA CESAR 65 (Rio de Janeiro, 1952 Rio de Janeiro, 1983) LEITURA DO TEXTO: TRILHA SONORA AO FUNDO: PIANO NO BORDEL, VOZES BARGANHANDO 66 Poeta desde sempre, sua estreia literária ocorreu em 1959, aos 7 anos, nas páginas do Suplemento Literário do jornal carioca Tribuna da Imprensa. Ana Cristina teve brilhante trajetória escolar e acadêmica. Em 1969, em um programa de intercâmbio, morou e estudou em Londres, e percorreu a Europa a passeio. Fez também viagens pela América Latina. Formou-se em letras pela PUC-Rio, fez mestrado em Comunicação na UFRJ (1979) e em Tradução Literária na Universidade Essex, Inglaterra (1980). A partir dos 20 anos, desenvolveu intensa atividade profissional como professora, crítica literária, tradutora. Participou da imprensa alternativa na segunda metade dos anos 1970 e início dos 1980, destacando-se: Opinião, Beijo (de que foi cofundadora), Versus, Almanaque, Leia Livros. Como poeta, esteve integrada à geração mimeógrafo : produziu artesanalmente seus dois primeiros livros, ambos em 1979: Cenas de abril e Correspondência completa, que depois foram incluídos em A teus pés. Em 1980, em Londres, publicou outro livro artesanal, que ganharia edição brasileira em 1981 Luvas de pelica, uma prosa poética. Lançando em dezembro de 1982 na coleção Cantadas Literárias da Editora Brasiliense, o sucesso de A teus pés consagrou Ana Cristina entre os grandes poetas de sua geração, ao lado de Chacal, Francisco Alvim e Paulo Leminski. No ano seguinte, porém, a depressão surgiu com força, depois da ansiedade trazida pela repentina visibilidade. O sucesso vinha misturado a crises existenciais, amorosas, profissionais, vividas por Ana naquele momento. Entre viagens, internações em clínicas e tentativas de suicídio ao longo de 1983, Ana Cristina acabou com a própria vida atirando-se da janela dos fundos de seu apartamento, em outubro desse ano. O testemunho dos seus últimos meses de vida ficou registrado em poemas excepcionais, publicados postumamente em Inéditos e dispersos, coletânea organizada pelo poeta, amigo e confidente Armando Freitas Filho, outro expoente da geração de 1960/70. A produção crítica de Ana Cristina Cesar encontra-se hoje reunida no volume Crítica e tradução, igualmente organizado por Armando Freitas Filho e lançado em Nesse mesmo ano, a editora Aeroplano, do Rio de Janeiro, publicou um volume de Correspondência incompleta. Atualmente, a parte tornada pública do acervo documental de Ana C. encontra-se no Instituto Moreira Salles, do Rio de Janeiro. 65 Todas essas pontuações biográficas da autora foram retiradas do livro Destino: poesia tecidas por Ítalo Moriconi. Trilha sonora ao fundo: piano no bordel, vozes barganhando uma informação difícil. Agora silêncio; silêncio eletrônico, produzido no sintetizador que antes construiu a ameaça das asas batendo freneticamente. Apuro técnico. Os canais que só existem no mapa. O aspecto moral da experiência. Primeiro ato da imaginação. Suborno no bordel. Eu tenho uma ideia. Eu não tenho a menor ideia. Uma frase em cada linha. Um golpe de exercício. Memórias de Copacabana. Santa Clara às três da tarde. Autobiografia. Não, biografia. Mulher. Papai Noel e os marcianos. Billy the Kid versus Drácula. Drácula versus Billy the Kid. Muito sentimental. Agora pouco sentimental. Pensa no seu amor de hoje que sempre dura menos que o seu amor de ontem. Gertrude: estas são ideias bem comuns. Apresenta a jazz-band. Não, toca blues com ela. Esta é a minha vida. Atravessa a ponte. É sempre um pouco tarde. Não presta atenção em mim. Olha aqueles três barcos colados imóveis no meio do grande rio. Estamos em cima da hora. Daydream 67. Quem caça mais o olho um do outro? Sou eu que admito vitória. Ela que mora conosco então nem se fala. Caça, caça. 66 Usualmente, no campo literário, quando o texto poético não possui título, convencionamos utilizar o primeiro verso como sendo o título do texto. 67 Essa expressão cujo significado é sonho acordado é o título de uma música, Daydream, de 1969, de uma banda belga nomeada de Wallace Collection. A referida música possui uma tônica bastante relacionada ao contexto da poesia marginal a que Ana Cristina Cesar se associa. 100

101 UFU 2017 E faz passos pesados subindo a escada correndo. Outra cena da minha vida. Um amigo velho vive em táxis. Dentro de um táxi é que ele me diz que quer chorar mas não chora. Não esqueço mais. E a última, eu já te contei? É assim. Estamos parados. Você lê sem parar, eu ouço uma canção. Agora estamos em movimento. Atravessando a grande ponte olhando o grande rio e os três barcos colados imóveis no meio. Você anda um pouco na frente. Penso que sou mais nova do que sou. Bem nova. Estamos deitados. Você acorda correndo. Sonhei outra vez com a mesma coisa. Estamos pensando. Na mesma ordem de coisas. Não, não na mesma ordem de coisas. É domingo de manhã (não é dia útil às três da tarde). Quando a memória está útil. Usa. Agora é a sua vez. Do you believe in love...? 68 Então está. Não insisto mais. ANÁLISE DO TEXTO: (MORICONI, 2016, p ). Principalmente, a parte inicial do poema poderia ser lida como uma espécie de prosa poética. Temos, nesse caso, uma tentativa de caracterização espacial e sonora do ambiente bordel: Trilha sonora ao fundo. Piano no bordel. Vozes barganhando/ uma informação difícil (MORICONI, 2016, p. 23). Em seguida, há uma demarcação temporal que parece sugerir a passagem do tempo: Agora silêncio grifo meu - (MORICONI, 2016, p. 23). Assim, ao certo, o bordel, onde havia sons e vozes de pessoas, é ocupado por uma música eletrônica (... silêncio eletrônico, produzido no sintetizador que antes construiu a ameaça das/asas batendo freneticamente... (MORICONI, 2016, p. 23) que é caracterizada, ao meu ver, de maneira irônica, visto o ritmo vazio do bate- -estaca da música eletrônica. Como se nota, o som do piano foi substituído pelo da música sintetizada. Não podemos esquecer que nesse primeiro texto do livro Destino: poesia, iremos encontrar marcas altamente experimentais de uma poesia vanguardista da década de Possível tradução: Você acredita no amor?. Dessa maneira, os cortes abruptos nas imagens, a ausência de versos simétricos e metrificados e a quebra da linearidade discursiv, atestam o caráter inovador que o distancia da essência clássica formal. O poema de Ana Cristina Cesar se compõe de eventos e significados movediços, isto é, ao mesmo tempo, compõe e descompõe sentidos. Essa condição fragmentada poderia ser lida como uma representação da fragmentação do sujeito na pós modernidade ou, quem sabe, sinalizar para a fragilidade de qualquer mensagem. Sendo assim, o sujeito não pode ser lido como lugar de identidade fixa, pois se mostra no sentido processual. Nas palavras de Annita Costa Malufe, em seu ensaio Territórios Dispersos: A poética de Ana Cristina Cesar : Dessa ideia decorre que o texto não é, em si, bloco fechado de sentidos já feitos, mas sim um campo em que flutuam situações, estados, sentidos, linhas de conexões infinitas, um real-virtual, que se torna real-atual no embate com o leitor. É no ato de leitura, e em cada ato, que o sentido do texto é construído, em um movimento de vasculhar as palavras e ao mesmo tempo invadi-las de nossa experiência pessoal, de nosso entorno. Uma via de mão dupla intermitente. Ao lermos, esburacamos o texto (...), vamos fragmentando-o para depois dobrá-lo sobre si mesmo, costurando partes para montar nosso sentido próprio. (...) E assim, enquanto construímos o sentido do texto, ele participa da nossa própria construção: ali também nossa subjetividade é remexida, revista (MALUFE, A. C. op. cit., p. 101). No texto de Ana Cristina Cesar os blocos de ideias flutuam dispersos sem conexões definidas. Essa particularidade da autora pode ser vista um pouco adiante no poema que analisamos: [...] Apuro técnico. Os canais que só existem no mapa. O aspecto moral da experiência. Primeiro ato da imaginação. Suborno no bordel. Eu tenho uma ideia. Eu não tenho a menor ideia. Uma frase em cada linha. Um golpe de exercício. Memórias de Copacabana. Santa Clara às três da tarde. Autobiografia. Não, biografia. Mulher. [...](MORICONI, 2016, p. 23). Cada verso funciona como um flash ou uma conversa entreouvida, condição utilizada em outro importante poema de Ana Cristina Cesar, Conversa de senhoras. Ao certo, o eu lírico se coloca no texto como um voyeur 69 a contemplar, mas, sobretudo, ouvir as inúmeras vozes das pessoas que estão no bordel. Com isso, a escritora incorpora à sua poesia a dinâmica da conversação, tal como absorvida nos vertiginosos ambientes contemporâneos e tendo em vista os voláteis e incertos sentimentos que eles despertam, de acordo com prefácio de Ítalo Mariconi (2016) no livro Destino: poesia. Esses enunciados soltos poderiam ser lidos como a representação da ambivalência que envolve o sujeito. 69 No idioma francês, a palavra voyeur significa "aquele que vê", e por isso descreve uma pessoa que gosta de observar os outros sem participar, tirando fotos ou gravando momentos íntimos ou privados de outros indivíduos. 101

102 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS Na parte final do trecho acima ( Uma frase em cada linha. Um golpe de exercício. - MORICONI, 2016, p. 23), seria uma tentativa de sintetizar o fazer poético de Ana Cristina no texto selecionado. Em cada verso temos um mundo de sentidos soltos que bem expressam o exercício poético da autora. Já que o poema Trilha sonora ao fundo: piano no bordel, vozes barganhando, quebra com a unidade poética de um texto tradicional marcado pelo começo, meio e fim, não faz sentido buscarmos uma unidade semântica do todo, visto que o texto se articula num nível da fragmentação dos sentidos. Sendo assim, vamos à parcela final do poema: [...] Sonhei outra vez com a mesma coisa. Estamos pensando. Na mesma ordem de coisas. Não, não na mesma ordem de coisas. É domingo de manhã (não é dia útil às três da tarde). Quando a memória está útil. Usa. Agora é a sua vez. Do you believe in love...? Então está. Não insisto mais. (MORICONI, 2016, p. 25). Nesse final, de acordo com Ítalo Moriconi (2016), o poema tematiza a incerteza do sujeito sobre os seus próprios sentimentos, por isso a pergunta feita em língua inglesa ( Do you believe in love...? - MORICONI, 2016, p. 25). Assim, podemos reler o poema selecionado como uma desconstrução do sentimentalismo na contemporaneidade da escritora. Esse conjunto de vozes que compõem o poema de Ana Cristina Cesar é marcado pelo procedimento da colagem, aspecto bastante utilizado pelos escritores da década de 70. Cada verso atua como índice autônomo. Tudo isso nos faz pensar no fazer poético da autora: [...] poesia, para Ana Cristina, é uma verdadeira construção do real: o texto é um universo autônomo, independente do mundo de carne e osso, distinto de seu autor, um objeto a ser manuseado e recriado pelo leitor. Logo, não há segredos íntimos escondidos por detrás dele, não há uma verdade inefável a ser descoberta. (...) [Ou como diria] Blanchot: a escrita poética deixa de ser a fala de uma pessoa para ser tão somente o lugar em que apenas a linguagem se fala (MALU- FE, A. op.cit., p. 35). A leitura do poema Trilha sonora ao fundo: piano no bordel, vozes barganhando é uma contundente tentativa de reconstrução do real por meio da palavra, relato cru de conversas dispersas entre seres não identificados. LEITURA DO TEXTO: SAMBA-CANÇÃO Tantos poemas que perdi. Tantos que ouvi, de graça, pelo telefone - taí, eu fiz tudo pra você gostar, fui mulher vulgar, meia-bruxa, meia-fera, risinho modernista arranhando na garganta, malandra, bicha, bem viada, vândala, talvez maquiavélica, e um dia emburrei-me, vali-me de mesuras (era uma estratégia) fiz comércio, avara, embora um pouco burra, porque inteligente me punha logo rubra, ou ao contrário, cara pálida que desconhece o próprio cor-de-rosa, e tantas fiz, talvez querendo a glória, a outra cena à luz de spots 70, talvez apenas teu carinho, mas tantas, tantas fiz... (MORICONI, 2016, p ). ANÁLISE DO TEXTO: Esse é um poema de caráter metapoético, isto é, o eu lírico atenta-se ao processo construtivo da própria feitura do texto. A princípio, há uma revelação acerca do árduo trabalho de escritura de um texto poético: Tantos poemas que perdi. /Tantos que ouvi, de graça / pelo telefone - taí (MO- RICONI, 2016, p. 31). O eu lírico, em busca da perfeição estética, deixou de escrever inúmeros textos, leu tantos outros até chegar ao ponto de oferecer ( taí ) um produto final que atendesse às expectativas do seu público. A leitura do poema nos leva a notar que o eu lírico coloca- -se de maneira subjugada diante de um suposto você. Com isso, ela enumera inúmeros recursos/estratégias para conquista daquele que deseja ( você ). Esse inteligível interlocutor do eu lírico pode ser o próprio leitor, destinatário da poesia. 70 Anúncio publicitário que não contém música, apenas voz ou efeitos sonoros. 102

103 UFU 2017 A partir do quinto verso, o eu poético lista diferentes personas que diz ter assumido a fim de fazer o leitor gostar de sua produção literária como, por exemplo:... fui mulher vulgar,/meia-bruxa, meia-fera,/risinho modernista/arranhando na garganta,/malandra, bicha (MORICONI, 2016, p. 31). Por meio dessas alusões de um amor romântico a fim de representar a relação entre o eu poético e o seu leitor, o poema revela, de maneira criativa e inusitada, o tom do relacionamento entre ela e o leitor. Em vali-me de mesuras/(era uma estratégia) (MO- RICONI, 2016, p. 31), o eu lírico, brevemente, invoca a voz confessional de maneira mais intensa, expressando todos os momentos em que mostra o coração de sua busca poética em prol da satisfação do leitor. Para isso, o eu poético não cessa de multiplicar-se em várias formas femininas à maneira de Fernando Pessoa, o fingidor, a fim de atingir o sublime, se é que ele existe. Curiosamente, a busca pela forma poética perfeita não cessa, pois o texto Samba-Canção termina em aberto por meio do uso de reticências: talvez apenas teu carinho,/mas tantas, tantas fiz... (MORICONI, 2016, p. 32). LEITURA DO TEXTO: CONVERSA DE SENHORAS Não preciso nem casar Tiro dele tudo que preciso Não saio mais daqui Duvido muito Esse assunto de mulher já terminou O gato comeu e regalou-se Ele dança que nem um realejo 71 Escritor não existe mais Mas também não precisa virar deus Tem alguém na casa Você acha que ele aguenta? Sr. ternura está batendo Eu não estava nem aí Conchavando 72 : eu faço a tréplica Armadilha: louca pra saber Ela é esquisita Também você mente demais Ele está me patrulhando Para quem você vendeu seu tempo? Não sei dizer: fiquei com o gauche Não tem a menor lógica Mas e o trampo? Ele está bonzinho Acho que é mentira Não começa 71 Instrumento mecânico movido a manivela. 72 O mesmo que: ajustando, combinando, conluiando, conspirando. (MORICONI, 2016, p ). ANÁLISE DO TEXTO: Esse é um dos textos mais conhecidos da autora. Ele focaliza um suposto diálogo confessional entre mulheres. Os dois versos de abertura podem ser vistos como um convite- -clichê a uma conversa de senhoras: Não preciso nem casar / Tiro dele tudo que preciso (MORICONI, 2016, p. 28). A uma profunda hostilidade expressa pela enunciação acima, pois, ao certo, o possível relacionamento da referida senhora baseia-se em aspectos materiais da existência. Na verdade, não dá para dizer com precisão se ela se utiliza das condições materiais de seu parceiro a fim de segurá-lo na relação, caso contrário iria fazer com que o homem perdesse bens. Em seguida, temos a demarcação da fala de uma interlocutora: Duvido muito/esse assunto de mulher já terminou (MORICONI, 2016, p. 28). Na verdade, temos uma afirmativa contrária daquilo que ocorre no texto, pois a conversa das senhoras se estica. Contudo, após prévia negativa anterior, temos uma sequência de três versos bastante deslocados: O gato comeu e regalou-se /Ele dança quem nem um realejo/escritor não existe mais (MORICONI, 2016, p. 28). O gato referido seria apenas um elemento do espaço onde as mulheres se encontram ou apresenta uma espécie de conotação sexual? Na clave da questão sexual o gato seria uma alusão à voracidade sexual masculina. Outra possibilidade de compreensão ao elemento gato seria uma referência ao dito popular, o gato comeu a sua língua, demarcando uma censura oral. Mais um questionamento podemos fazer sobre essa parte do poema: temos algumas vozes não bem delimitadas. Seriam essas vozes de outras mulheres próximas às duas que dialogam? Algo à maneira do primeiro poema analisado que se passa em um bordel. Adiante no texto, um possível adultério masculino é retratado pelas mulheres: Você acha que ele aguenta?/sr. Ternura está batendo/eu não estava nem aí/conchavando: eu faço a tréplica/armadilha: louca para saber/ela é esquisita/também você mente demais (MORICONI, 2016, p. 28). O diálogo é muito lacônico/elíptico, condição que desencadeia no leitor uma posição de contínua expectativa. LEITURA DO TEXTO: VACILO DA VOCAÇÃO Precisaria trabalhar afundar como você saudades loucas nesta arte ininterrupta de pintar A poesia não telegráfica ocasional me deixa sola 73 solta à mercê do impossível do real. 73 Qualquer coisa dura e espessa como sola. (MORICONI, 2016, p. 30). 103

104 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS ANÁLISE DO TEXTO: No título do texto, de antemão, podemos notar uma ligeira alusão ao ofício da escrita, pois o eu lírico fala de sua vocação, isto é, da sua capacidade de escrever. Na verdade, o eu lírico produzirá um discurso voltado para os deslizes / hesitação da escrita, o vacilo. Vocação é a capacidade natural de um indivíduo que o conduz à realização de uma função. Nesse caso, vemos no título um vacilo às forças naturais destinadas ao ato de escrever. Sendo assim, a expressão equívoca está vinculada a noção de liberdade, condição muito próxima ao seguinte texto de Paulo Leminski: ERRA UMA VEZ nunca cometo o mesmo erro duas vezes já cometo duas três quatro cinco seis até esse erro aprender que só o erro tem vez (LEMINSKI, Paulo. La vie en close. São Paulo: editora brasiliense, 1994, p. 42). Nesse texto de Paulo Leminski, a noção associada ao ato de errar está vinculada à ideia de vir a ter a possibilidade criativa de fazer novamente sem determinações. Assim, vamos ao texto de Ana Cristina Cesar, Vacilo de Vocação : Precisaria trabalhar afundar como você saudades loucas nesta arte ininterrupta de pintar (MORICONI, 2016, p. 30). Temos, novamente, o resultado de um discurso fragmentado marcado pela descontinuidade semântica, aspecto bem delimitado pelo uso de inúmeros hifens ao longo do texto. No primeiro verso, temos uma espécie de antítese que tenta conciliar dois elementos díspares, isto é, trabalhar (vocábulo associado ao rigor, disciplina) e afundar (palavra relacionada ao caos, liberdade). Essa oposição parece dizer muito sobre o trabalho poético de Ana Cristina Cesar e ao de todos os escritores da geração de 1970, pois, ao mesmo tempo, os seus textos são pautados num poética simples e também se nutrem de um profundo saber erudito. No segundo verso, o eu lírico dirige-se a um interlocutor, você, que pode ser lido como sendo a própria poesia ou mesmo o leitor. A poesia necessita do leitor para que ela se cumpra enquanto arte, pois é ele que poderá vir a dar sentido a ela. O eu lírico denomina a sua poesia como sendo interrupta ( Nesta arte interrupta / de pintar ). Isso nos remete ao título do texto, pois se relaciona à noção de vocação. A última palavra da primeira estrofe é remover pintar, interessante nomeação do processo poético. Manoel de Barros, em Menino do mato (2010), diz sobre o seu fazer poético: escrever é pintar com as palavras (BARROS, 2010, p. 35). A segunda estrofe apresenta um aspecto típico de Ana Cristina Cesar, a linguagem telegráfica/elíptica que consiste em eliminar alguns aspectos da sintaxe tradicional. Com isso, alguns elementos linguísticos são suprimidos dando-nos a noção da falta de algumas palavras: A poesia não telegráfica ocasional me deixa sola solta à mercê do impossível do real. (MORICONI, 2016, p. 30). A poesia da década de 1970 é bastante rica em possibilidades de leitura, sendo assim, podemos ver essa segunda estrofe como sendo uma tentativa de definição da própria poesia. Desse modo o início do texto seria o objeto de predicação de todas as expressões que vem após o hífen. Com isso, iremos reescrever o texto da seguinte maneira: A poesia não telegráfica A poesia não ocasional A poesia não me deixa sola A poesia não solta A poesia não à mercê do impossível A poesia não do real. O procedimento acima é uma possibilidade para a compreensão do texto, recurso didático usado a fim de decifrá- -lo. Contudo, a verdadeira obra literária está além desses mecanismos de explicação. Dessa maneira, nessa nova estruturação do texto poético de Ana Cristina Cesar,temos o parecer negativo de tudo aquilo que o eu lírico nega enquanto arte. Porém, nem todas as declarações sobre o ofício de escrever podem ser lidas ingenuamente. Por exemplo, no primeiro verso, o eu lírico diz defender uma poesia não telegráfica, aspecto errôneo frente aos textos da autora que lança mão de uma linguagem elíptica. CACASO 74 (Uberaba, 1944 Rio de Janeiro, 1987) 75 Poeta e letrista. Publicou seu primeiro livro do poesia, A palavra cerzinha, em Dois anos depois formou-se em Filosofia na URRJ. Lecionou Teoria Literária na PUC-Rio durante dez anos, de 1965 a Em 1974 e 1975 integrou-se dois grupos definidores do que viria a ser conhecido como poesia marginal: o Frenesi e o Vida Artista. Esses grupos produziram coleções de poesia, revistas, antologias e transformaram lançamentos de poesia em eventos performáticos. Do primeiro participaram, com Cacaso, Roberto Schwarz, Francisco Alvim, Geraldo Carneiro, João Carlos Pádua. Do se- 74 O nome real: Antonio Carlos Ferreira de Britto. 75 Todas essas pontuações biográficas do autor foram retiradas do livro Destino: poesia tecidas por Ítalo Moriconi. 104

105 UFU 2017 gundo participaram Eudoro Augusto, Carlos Saldanha (Zuca Sardan), Chacal, Luís Olavo Fontes. Cacaso escreveu crítica literária de poesia em jornais da imprensa alternativa. Essa produção foi reunida postumamente pelas editoras da UFRJ e da Unicamp. Depois de A palavra cerzida livro de alta qualidade poética, mas que ainda não traz os traços que se tornarão mais característicos de sua obra como um todo, ao incorporar a ironia como eixo de sua perspectiva poética Cacaso publicou seis livros de poesia ao longo dos anos de 1970 e Hoje, a obra poética completa está reunida no volume Lero-lero, publicado em esmerada edição no ano de 2002, pelas editoras 7Letras e Cosac&Naify. Personagem polêmico, Cacaso notabilizou-se nos anos 1970 por criticar as vanguardas, tanto a engajada, de esquerda, ligada ao Parido Comunista, quanto a vanguarda concretista. Assumiu uma postura de pós-vanguarda. Sua poesia busca retomar o coloquialismo e a poética da continuidade do modernismo de 1922, inspirando-se em Murilo Mendes, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Oswald de Andrade. Dentre os poetas dos anos de 1970, foi daqueles, juntos com Francismo Alvim principalmente, que fez questão de poetizar a experiência dos chamados anos de chumbo, os anos mais duros do regime militar, correspondentes ao período que vai de 1969 a Cacaso casou-se duas vezes e teve dois filhos, um menino (Pedro) no primeiro casamento, e uma menina (Paula) no segundo. Morreu de enfarte aos 43 anos de idade. LEITURA DO TEXTO: I Um telegrama urgente anuncia a bem-amada para o século vindouro 76. CINEMA MUDO Arfando 77 diante do espelho principio 78 a pentear os cabelos. O oceano se banha nas próprias águas (MORICONI, 2016, p. 65). ANÁLISE DO TEXTO: O poema Cinema mudo I, de Cacaso, é dividido em blocos articulados por meio da parataxe 79. O texto é aberto da seguinte maneira: Um telegrama urgente/anuncia a bem-amada / para o século vindouro (MORICONI, 2016, p. 65), apresenta dois elementos antagônicos em suas ideias, a urgência do telegrama e a longínqua distância temporal aludida pelo século vindouro. O elemento telegrama associa-se à modernidade, visto que procura estabelecer uma comunicação entre sujeitos, o que representaria uma redução temporal e simbólica aproximação espacial. Contudo, o fragmento para o século vindouro (MORICONI, 2016, p. 65), sugere, ironicamente, uma impossibilidade de comunicação entre os seres, condição que deixa transparecer o isolamen- 76 Que está por vir ou por acontecer; venturo, porvindouro. 77 O mesmo que: arquejando, esbaforindo, ofegando. 78 Essa palavra é um verbo e não um substantivo (princípio). 79 Sequência de frases justapostas sem conjunção. to do sujeito ante a multidão. Arfar diante do espelho deixa transparecer uma relação narcisista, que evidencia, novamente, a noção de solidão do sujeito. Por fim, a primeira parte do poema é finalizada com um verso isolado, condição alegórica do sujeito: O oceano se banha nas próprias águas (MORICONI, 2016, p. 65). Esse verso remete aos anteriores, pois, de novo, traz a ideia do eu voltando-se sobre si mesmo como um oceano que banha a si próprio. LEITURA DO TEXTO: II Acordei grávido e uma dúvida dilacera minhas partes: quem seria a mãe de meu filho? Demônios graduados me visitam enquanto retoco para a posteridade a maquiagem do arco-íris (MORICONI, 2016, p. 65). ANÁLISE DO TEXTO: Enquanto no poema Cinema mudo I o eu lírico refere-se a outro sujeito ( a bem-amada ), no poema Cinema mudo II, temos revelação da interioridade do eu lírico. Primeiramente, o eu lírico afirma algo que está além da nossa experiência empírica, isto é, a gravidez masculina: Acordei grávido e uma dúvida/dilacera minhas partes: quem seria a mãe/de meu filho? (MORICONI, 2016, p. 65). Vale dizer que, no campo literário, um homem poderia gestar inúmeras vezes. Na verdade, o eu lírico lança uma reflexão sobre os papéis sociais estabelecidos para os gêneros (mulher/homem). Nesse caso, ocorre uma inversão cabendo ao homem, e não mais à mulher, o estabelecimento da maternidade. Vale lembrar que, na década de 1970, o tema da liberdade sexual estava em alta. Com isso, Cacaso toca em um tema emblemático à sua geração a fim de ressignificar os valores sociais típicos. Sendo assim, talvez ele estivesse esperando nascer uma filha cujo nome é liberdade. A noção da liberdade é bem expressada pelo final dessa estrofe: Demônios graduados me visitam/enquanto retoco para a posteridade/a maquiagem do arco-íris (MORICONI, 2016, p. 65). Os referidos demônios poderiam ser lidos como os defensores de uma sociedade reacionária. Contudo, o grau de liberdade existencial/poética é revelado pela ação ilógica de reparar a maquiagem do arco íris, postura nonsense que expressa uma ânsia por voos livres. LEITURA DO TEXTO: Minha pátria é minha infância: LAR DOCE LAR 80 para Maurício Maestro 81 Por isso vivo no exílio (MORICONI, 2016, p. 60). 80 Cacaso nesse poema retoma outro de título Fábula, do livro A palavra cerzida, e dele aproveita os dois primeiros versos com outro título. 81 Carlos Maurício Mendonça Figueiredo é um significativo cantor, arranjador, instrumentista e compositor do Rio de Janeiro. 105

106 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS ANÁLISE DO TEXTO: Cacaso nesse texto faz uma espécie de atualização do poema Canção do Exílio, de Gonçalves Dias. Primeiramente, devemos observar o tom irônico do título, pois o eu lírico parece viver na pátria e não possui nenhum laço de afetividade em relação ao lar. No texto em questão não há um deslocamento espaço-temporal do eu lírico, que vive fisicamente em sua pátria, contudo não se vê pertencente a ela. Por isso, o verbo ser ( é ) marca o momento presente, condição que causa um estranhamento duplo, pois nem a pátria tampouco o lar são registrados como exemplos de bonança. Essa condição nefasta relacionada ao Brasil pode ser uma sutil ironia ao momento histórico, regime militar. O texto possui um ínfimo tamanho, pois parece sugerir que o eu lírico habita a infância, reino onde, às vezes, impera a precariedade vocabular. LEITURA DO TEXTO: Minha terra tem palmeiras onde canta o tico-tico. Enquanto isso o sabiá vive comendo o meu fubá. Ficou moderno o Brasil ficou moderno o milagre: a água já não vira vinho, JOGOS FLORAISI 82 vira direto vinagre (MORICONI, 2016, p. 71). ANÁLISE DO TEXTO: Na primeira estrofe do poema Jogos florais I é bem demarcada a paródia feita à famigerada Canção do Exílio, de Gonçalves Dias. Especificamente em Cacaso, temos uma veia irônica ao lúgubre processo da ditadura militar que vigorava no Brasil na década de Sendo assim, na época não se podia pensar em qualquer possibilidade de ufanismo, dadas as práticas da ditadura que cerceava a liberdade civil do cidadão. A natureza romântica aparece no primeiro verso, mas, no segundo, o sabiá é substituído pelo tico-tico, pássaro bastante comum em nossa pátria e que no texto pode ser a representação do povo brasileiro. Vale dizer que, nessa parte do poema, temos uma alusão à música Tico-tico no fubá, de Zequinha de Abreu. Nos dois próximos versos da primeira estrofe temos: Enquanto isso o sabiá/vive comendo o meu fubá (MORICONI, 2016, p. 71). A imagem do sabia ganha um aspecto metafórico ligado ao militarismo, os poderosos, que exploram o povo subtraindo-os mesmo o alimento/vida. Há um interessante jogo de oposição entre o sabiá e o tico-tico. Enquanto o primeiro, ave-símbolo do Brasil, expressa no imaginário nacional a ideia de beleza paradisíaca, o outro, o tico- -tico, é uma ave desfavorecida que habita qualquer lugar e alimenta-se de qualquer coisa. Cacaso nesse texto lança mão da paródia, estratégia literária que afirma e nega um passado nacional. Sobre a paródia, comenta Sant Anna (1985, p. 32): 82 Esse título nos remete a uma competição de trovas, poemas compostos de estrofes de quatro versos, todos em redondilha maior, com rimas cruzadas e alternadas. Contudo, temos uma subversão da forma: trova é apenas uma estrofe e em Cacaso temos quatro estrofes. é o texto o filho rebelde, que quer negar sua paternidade e quer autonomia e maioridade. A paródia não é um espelho. Ou, aliás, pode ser um espelho, mas um espelho invertido. Mas é melhor usar outra imagem. E, ao invés do espelho, dizer que a paródia é como a lente: exagera os detalhes de tal modo que pode converter uma parte do elemento focado num elemento dominante, invertendo, portanto, a parte pelo todo, como se faz na charge e na caricatura. Na segunda estrofe, a acidez crítica é evidenciada ao fazer uma alusão ao processo histórico brasileiro nomeado de milagre econômico, momento que o PIB superou 10% e houve bastante geração de emprego: Ficou moderno o Brasil/ficou moderno o milagre:/a água já não vira vinho,/vira direto vinagre (MORICONI, 2016, p. 71). Contudo, a água tornou-se ácida e intragável como vinagre, pois além de o Brasil ter contraído uma grande dívida externa, a maioria da população não pode usufruir do famigerado milagre. É interessante esse trecho, dada a menção ao texto bíblico na referência ao vinho. No caso bíblico, Jesus transformou água em vinho, veio para salvar os homens, enquanto que os militares transformaram água em um ácido vinagre e vieram para escravizar o povo ao consumismo infértil. LEITURA DO TEXTO: Minha terra tem Palmares memória cala-te já. Peço licença poética Belém capital Pará. JOGOS FLORAIS II Bem, meus prezados senhores dado o avançado da hora errata 83 e efeitos do vinho o poeta sai de fininho. (será mesmo com 2 esses que se escreve paçarinho?)(moriconi, 2016, p. 71). ANÁLISE DO TEXTO: Esse outro poema, Jogos florais II, possui uma presença marcante da obra do modernista Oswald de Andrade no primeiro verso: Minha terra tem Palmares (MORICONI, 2016, p. 71). Assim como Oswald de Andrade, Cacaso substitui palmeiras por Palmares. Essa substituição da matriz romântica produz um efeito crítico funcionando como uma forma de resistência ao regime vigente que procura calar qualquer alusão a um passado histórico relacionado à resistência do povo brasileiro, no caso específico ao Zumbi dos Palmares, por isso, o verso seguinte: memória cala-te já (MORICONI, 2016, p. 71). Esse verso tem vínculo direto com a censura do regime militar. A fim de atenuar a sua ousadia dos versos anteriores, o eu lírico apela para uma rima simples e lúdica: Peço licença poética/belém capital Pará (MORICONI, 2016, p. 71). Magistralmente, Cacaso nessa estrofe concilia dois universos contraditórios: a gravidade lúgubre do regime 83 Documento, feito para acompanhar uma obra posteriormente à sua publicação, em que estão elencados os erros desta, bem como a sua correção; corrigenda. 106

107 UFU 2017 militar e a jocosa rima presente entre os dois últimos versos. A quem seria destinado o pedido de licença poética? Possivelmente, esse pedido seria feito a Carlos Drummond de Andrade que no Poema de sete faces afirma: Mundo mundo vasto mundo,/se eu me chamasse Raimundo/seria uma rima, não seria uma solução (2003, p. 58). Cacaso à maneira drummondiana suaviza o impacto subversivo de seus versos com essa rima. Cacaso tem como inspiração poética para a construção da segunda estrofe a figura de Drummond: mas essa lua/ mas esse conhaque/botam a gente comovido como o diabo (2003, p. 58). A bebida possui a capacidade de deixar o indivíduo mais livre nas manifestações de suas convicções por meio da palavra, mesmo o momento sendo de forte opressão. Sendo assim, vamos às palavras de Cacaso: Bem, meus prezados senhores/dado o avançado da hora/errata e efeitos do vinho o poeta sai de fininho (MORICONI, 2016, p. 71). Toda a culpa de sua livre expressão poética é da embriaguez que liberta a palavra. Mesmo a água não virando vinho, o vinho conseguiu tornar a arte poética numa poderosa arma de combate. Como anunciado na penúltima estrofe, o eu lírico deixaria de lado o sarcasmo à ditadura, contudo, ainda há tempo para abordar o cotidiano e seus impasses. Por isso, o eu lírico se coloca a criticar o seu contemporâneo ministro da educação, Jarbas Passarinho: (será mesmo com 2 esses/que se escreve paçarinho?) (MORICONI, 2016, p. 71). Aqui esse erro ortográfico serve para alertar sobre a deficiência do ensino público no Brasil. PAULO LEMINSKI 84 (Curitiba (PR), 1944 Curitiba (PR), 1989) Poeta, redator publicitário, letrista, biógrafo, tradutor literário, autor de livros infanto-juvenis, faixa preta de judô: múltiplas foram as faces da personalidade e atuação de Leminski. Esteve desde muito jovem ligado ao grupo concretista dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari, com quem travou contato ao participar do I Congresso Brasileiro de Poesia de Vanguarda, realizado em Belo Horizonte, em Estreou como poeta na revista Invenção, órgão de divulgação do Concretismo. Porém, independente da relação original e profunda mantida com esse movimento de vanguarda, Leminski acabou por desenvolver trajetória com luz própria e veio a ser tornar um dos mais populares poetas do 84 Todas essas pontuações biográficas do autor foram retiradas do livro Destino: poesia tecidas por Ítalo Moriconi. Brasil. Dentre os poetas surgidos nos anos de 1970, é certamente o mais amplamente conhecido, junto com Adélia Prado. Sua popularidade está diretamente ligada a uma imagem de vanguarda, de espírito inquieto. Não se trata, portanto, de uma popularidade de poeta oficial. Porém, desde sua morte, Leminski tem sido venerado no Paraná também em função de um orgulho local, inteiramente justificado. Sua marca registrada, desde o início, são os poemas curtos, os quais em seu caso remetem a toda uma valorização e apropriação do haicai, dentro de seu interesse mais amplo pela cultura japonesa como um todo. Praticou um pouco a poesia visual, na linha do Concretismo, mas não de maneira tão intensa quanto os criadores do movimento. Com a força adquirida pelo advento da poesia marginal, que trouxe a revalorização do verso modernista livre, Leminski mostrou tendência a adaptar sua poesia a formas metrificadas clássicas, com largo uso da redondilha (verso de sete sílabas, de grande apelo mnemônico). Diferentemente de dois outros poetas também muito emblemáticos dos anos de 1970, Cacaso e Francisco Alvim, que se alimentaram, como criadores basicamente, do legado modernista da geração de Drummond-Cabral-Bandeira, Leminski construiu sua poética a partir da apropriação de modelos de grandes poetas estrangeiros, como Ezra Pound e o clássico japonês Bashô, buscando um lirismo essencial e universal, despojado de referências históricas ou geográficas de cunho nacionalista ou regional. Leminski é também autor de uma das mais importantes obras em prosa experimental de vertente contracultural no Brasil: o romance-fluxo histórico Catatau, publicado em 1975, depois de oito anos de elaboração, período em que trechos do romance iam sendo publicados em revistas e periódicos alternativos. Em 1984, Leminski lançaria outro romance, intitulado Agora é que são elas. Apesar de muito ligado aos movimentos e periódicos poéticos dos anos de 1960 e 1970, só começou a reunir seus poemas em livros nos anos de 1980: Caprichos e relaxos, de 1983 e Distraídos venceremos, de Postumamente, foram publicados La vie en close, em 1991, Winterverno, em 1994, e O ex-estranho, em A obra publicada do poeta inclui ainda ensaios literários, biografias e correspondências. Leminski foi casado durante 21 anos com a poeta Alice Ruiz, com quem teve três filhos. Morreu de cirrose hepática. LEITURA DO TEXTO: a noite me pinga uma estrela no olho e passa (MORICONI, 2016, p. 80). ANÁLISE DO TEXTO: Esse texto poético acima é um haikai/haicai, poesia de origem japonesa. O haicai é um poema de 17 sílabas poéticas distribuídas ao longo dos três versos. A disposição métrica é feita da seguinte maneira: o 1º e o 3 verso possuem cinco sílabas poéticas, o verso do meio sete. O haicai obedece a certo esquema para ter o sentido: o primeiro verso geralmente expressa o cosmo, uma circunstância eterna, absoluta; o segundo exprime o evento, o acontecimento, o acidente casual; o terceiro é o resultado, a interação entre o cósmico e o fato. Contudo, o haicai de Leminski foi tropicalizado, isto é, ele não segue essa rigidez original da forma. 107

108 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS Sendo assim, vamos à compreensão do haicai anterior. O texto se constrói a partir de elementos extremamente simples: noite, olho, estrela. Outro importante aspecto de um haicai é que nele deve haver a simples observação objetiva de um elemento da natureza. Essa contemplação, às vezes, funde o eu e o objeto contemplado. A noite aparece, no texto, personificada: a noite/me pinga uma estrela no olho/e passa (MORICONI, 2016, p. 80). Outra maneira de ler esse haicai seria que ele poderia ser lido apenas como uma espécie de projeção do eu poético que, ao abrir os olhos, vê, num relance, uma estrela no céu para, em seguida, fechá-los e deixar de ver o brilho das estrelas. LEITURA DO TEXTO: LEITURA DO TEXTO: SINTONIA PARA PRESSA E PRESSÁGIO Escrevia no espaço. Hoje, grafo no tempo, na pele, na palma, na pétala, luz do momento. Soo na dúvida que separa o silêncio de quem grita do escândalo que cala, no tempo, distância, praça, que a pausa, asa, leva para ir do percalço ao espasmo. Eis a voz, eis o deus, eis a fala, eis que a luz se acendeu na casa e não cabe mais na sala (MORICONI, 2016, p. 93). ANÁLISE DO TEXTO: O título é construído por meio de uma estrutura denominada de palavra-puxa-palavra, fazendo com que presságio derive de pressa. A escrita que se desloca do espaço para o tempo diz da ruptura de Leminski com o Concretismo. O curitibano que fizera em livros anteriores vários poemas gráficos volta, a partir dos anos 80, para uma poética discursiva, e, portanto, temporal, que permitisse a indagação existencial: Escrevia no espaço./hoje, grafo no tempo (MORICONI, 2016, p. 93). Leminski, nessa nova fase, volta a sua poética para a realidade: na pele, na palma, na pétala,/ luz do momento (MORICONI, 2016, p. 93). A poesia que se grafa na pele, na palma, na pétala, diz do imbricamento em Leminski entre poesia e vida. O poeta em tempos de uso e usura só pode ser esse ente que vive de forma intervalar, que soa entre o silêncio e o grito: Soo na dúvida que separa/o silêncio de quem grita/ do escândalo que cala, (MORICONI, 2016, p. 93). Seu lema é o da eterna busca (percalço), mas, porque humanista, já sabedor de que a única certeza é a da surpresa, do inacabado/ inesperado (espasmo). Na última parte do poema, o eu lírico professa sua fé na palavra poética. Voz de vate 85, na sua profana sacralidade ela é instauradora de uma verdade luminosa que inunda, que arrebata, que se expande de forma epifânica ( não cabe na sala ). 85 Poeta. ANÁLISE DO TEXTO: Esse é um poema de Paulo Leminski que apresenta uma tônica concretista, dada a não preocupação com uma linguagem discursiva tradicional, além de explorar, significativamente, aspectos não verbais, o uso de dois círculos visuais. Sendo assim, a fim de nos auxiliar na compreensão do texto poético, iremos usar o significado simbólico do círculo, segundo Chevalier e Gheerbrant: O movimento circular é perfeito, imutável, sem começo e fim, e nem variações [...] A figura do círculo simboliza igualmente as diversas significações da palavra: um primeiro círculo simboliza o sentido literal; um segundo círculo, o sentido alegórico; um terceiro, o sentido místico (2006, p ). O círculo é um movimento circular que sinaliza o processo de ir e vir da produção da arte em busca da perfeição estética. Talvez por isso, Leminski subscreva duplamente esse símbolo visual e escreva a palavra círculo duas vezes dentro das circunferências. O círculo é o eterno debruçar do artista sobre a sua própria produção em busca de um ideário estético. Paulo Leminski possui outro importante texto que nos ajudará a compreender esse que estamos analisando: o bicho alfabeto tem vinte e três patas ou quase por onde ele passa nascem palavras e frases com frases se fazem asas palavras o vento leve o bicho alfabeto passa fica o que não se escreve (1994. p. 68). Bicho de vinte e três patas (metáfora da linguagem em estado de dicionário como diria Drummond), estranho e selvagem precisa ser domado, domesticado (no sentido de se tornar mais próximo, íntimo) pelo artista. Por vezes, é como se as palavras ganhassem vida própria e elas é que possuíssem o artista (por onde passam nascem asas, poe- 108

109 UFU 2017 mas). A poética de Leminski, tentando abrir portas/janelas numa vida em close fala sempre de vento, asa, leveza, imagens que remetem à ânsia de liberdade. Na última estrofe valoriza-se outra marca da palavra poética, ela cria/inventa, potencializa sentidos para além do que está escrito, pois incita a imaginação do leitor. O inseto do poema analisado poderia ser lido como a palavra poética que é autônoma, isto é, possui vida própria após lançada ao papel: O inseto no papel/insiste (MORI- CONI, 2016, p. 83). Essa é uma condição da obra de arte que após ser publicada possui vida própria, mesmo porque está associada ao subjetivismo de quem a traduz. O papel da arte não é explicar, oferecer respostas, mas suscitar estados de alma, aguçar a sensibilidade, causar estranhamento, problematizar os conceitos do leitor/espectador. A poesia é uma forma de conhecimento, mas que trabalha no sentido de desautomatizar o olhar, de incitar a novas buscas, de rejeitar o pronto e o acabado. Por isso, a imagem do círculo, isto é, o eterno retorno ao texto em busca de um sentido, se é que a obra literária deva conter algum sentido. Enquanto isso, o inseto insiste livre, mesmo que o eu poético, um círculo em volta à compreensão/sentido da palavra poética escape a qualquer determinação. Por isso, no final do texto, o eu lírico magistralmente afirma sob a forma circular: só o círculo existe (MORICONI, 2016, p. 83). Essa parcela final do texto está escrita sob um formato que lembra a imagem do círculo explorada/grafada ao longo do texto. Toda a articulação está pautada na ideia do círculo que, segundo Chevalier e Gheerbrant (2006) simboliza igualmente as diversas significações da palavra (p. 254), isto é, a palavra apresenta um significado movediço/não fixo. O próximo texto de Paulo Leminski é o seguinte, produção fortemente marcada pela presença de inúmeras aliterações 86 da letra s : de som a som ensino o silêncio a ser sibilino 87 de sino em sino o silêncio ao som ensino (MORICONI, 2016, p. 83). A poesia é a arte da linguagem. Contudo, a performance poética é formada pelo corpo e voz que têm como objetivo conferir à poesia a totalidade de sentido. Anteriormente à voz há algo que é anterior a ela, o silêncio, isto é, entre o eu lírico e o objeto da poesia há um vazio decorrente da impossibilidade do sujeito poético de apreender o outro completamente e de transmitir verbalmente o enunciado, por isso que se diz: a poesia é anterior à linguagem (ZUMTHOR, 2005, p.139). Levando em consideração a relação entre a voz e o silêncio, temos a primeira estrofe do poema de Leminski: de som a som/ensino o silêncio/a ser sibilino (MORICO- NI, 2016, p. 83). Entre a voz sentenciada ( som ), a própria poesia, há pausas e ritmos marcados pelo silêncio, isto é, a 86 Figura de linguagem que consiste na repetição de sons consonantais. 87 Difícil de entender; obscuro, enigmático. poesia é a recriação entre o som e o silêncio. Esses dois fatores quanto combinados podem vir a tornar-se sibilinos, ou seja, um conjunto que precisa ser decifrado pelo leitor. Ser ou não ser compreensivo faz parte da condição do texto poético. Nem sempre o escritor consegue transmitir verbalmente o que deseja, por isso, no processo da leitura, o silêncio também faz parte do sentido global do texto. Magistralmente, o eu lírico, na segunda estrofe, nos diz: de sino em sino/o silêncio ao som/ensino (MORICONI, 2016, p. 83). Entre rimas, vozes, ritmos e silêncio, o eu lírico consegue transmitir ( ensino ) os seus anseios/ensinamentos aos leitores. Para Octávio Paz: Contra vento e maré, a poesia circula e é lida. Rebelde ao mercado, quase sem preço; não importa: vai de boca em boca, como o ar e a água. Sua valia e utilidade não são mensuráveis: um homem rico em poesia pode ser um mendigo (1993, p.143). Em tempos de silêncio ditatorial, os silêncios e sons de Paulo Leminski conseguem transmitir ensinamentos imensuráveis aos leitores da década de 1970 e às gerações futuras. TORQUATO NETO (Teresina (PI), 1944 Rio de Janeiro (RJ), 1972) Poeta, prosador, jornalista, letrista de música, expoente do Tropicalismo e da contracultura da virada dos anos 1960 para Sua obra completa até agora documentada está reunida nos dois volumes de Torquália (Rio de Janeiro, Ed. Rocco, 2003). Começou como jornalista no Rio aos 19 anos, mas em 1964 estava de volta à sua cidade natal, com programa de rádio. De 1965 em diante, dividiu entre diversas atividades profissionais no eixo Rio-São Paulo. Casou-se em 1967 com Ana Maria Duarte. Como letrista, Torquato fez parcerias com Gilberto Gil, Edu Lobo, Jards Macalé. Em fins de 1968, depois de sua primeira internação, Torquato embarcou para a Europa com o artista visual Hélio Oiticica. A eles juntou-se Ana Maria em janeiro do ano seguinte. Viajaram vários meses por Londres, Holanda e Paris e conheceram Espanha e Portugal antes de voltar ao Brasil. Em 1970, nasceu o filho de Torquato e Ana Maria. Nesse mesmo ano, ocorreu a segunda de suas quatro internações por razões psiquiátricas. Torquato manteve na imprensa carioca colunas que estiveram entre os referenciais de maior repercussão tanto no movimento tropicalista de 1968 e 1969 quanto, depois, nos movimentos marginais e udigrudi do momento contracultural pós- -tropicalista dos primeiros anos da década de Como porta-voz e arauto da contracultura na imprensa, destacou- -se no jornalismo de Torquato a coluna Geleia Geral, publi- 109

110 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS cada no Última Hora de agosto de 1971 a março de 1972 e republicada na íntegra no segundo volume de Torquália. Em 1971 e 1972, Torquato passou rapidamente pela televisão e se aproximou decisivamente do cinema. Mas a depressão venceu e ele tirou a própria vida no dia de seu vigésimo oitavo aniversário, em novembro de Durante esse ano, ainda participara da elaboração de Navilouca, revista que, no dizer de Paulo Roberto Pires (organizador de Torquália), foi uma espécie de resumo do movimento alternativo da época e que só sairia em 1974, reunindo Waly Salomão, Haroldo de Campos e Hélio Oiticica, entre outros. LEITURA DO TEXTO: COGITO eu sou como eu sou pronome pessoal intransferível do homem que iniciei na medida do impossível eu sou como eu sou agora sem grandes segredos dantes sem novos secretos dentes nesta hora eu sou como eu sou presente desferrolhado 88 indecente feito um pedaço de mim eu sou como eu sou vidente e vivo tranquilamente todas as horas do fim (MORICONI, 2016, p. 97). ANÁLISE DO TEXTO: O poema Cogito data do dia 20 de outubro de 1970, momento que Torquato passava por uma internação em um sanatório. Esse texto é um dos mais belos poemas da literatura brasileira. O título dialoga com a fórmula cogito ergo sum (penso, logo existo), de Descartes, princípio que elege o pensamento e não a presença na realidade como consciência do existir. Na verdade, seria pensarmos o texto de Torquato Neto como um combate ao pensamento cartesiano. Com isso, veremos uma desconstrução da ideia humanista e cartesiana de sujeito dotado de uma consciência lógica e equilibrada. O poeta marginal, em seu texto, nos mostrará uma existência fragmentada e contraditória que vive entre o existir e não existir, isto é, entre a vida e morte. Diversamente de Descartes, o eu lírico situa a sua individualidade no campo movediço, na incerteza. Na verdade, na única certeza do agora enquanto existe: eu sou como eu sou Pronome pessoal intransferível do homem que iniciei na medida do impossível (MORICONI, 2016, p. 97). 88 É o mesmo que desaferrolhar ou abrir. Nomear-se enquanto um pronome pessoal intransferível (eu) é uma tentativa de dar solidez ao impossível e, ao mesmo tempo, apresentar o intransferível. O sujeito possui uma existência que não cessa de derivar, embora tenha um começo: do homem que iniciei/na medida do impossível (MORICONI, 2016, p. 97). Ter uma existência na medida do impossível é darmo-nos diariamente com a liberdade inerente ao ser humano que se projeta rumo ao infinito. Na segunda estrofe, o sujeito continua no processo de revelação de seu processo construtivo inacabado/aberto: eu sou como eu sou agora sem grandes segredos dantes sem novos secretos dentes nesta hora (MORICONI, 2016, p. 97). Temos, novamente, o confronto com a temporalidade humana, há uma existência no presente, agora, nesta hora, presente, articulada com uma percepção lacônica do passado e a dificuldade de apreensão do futuro. Em Torquato Neto, parece existir uma perturbadora atenção ao presente, em que passado e futuro não garantem atribuição de sentido à experiência. As reflexões sobre a identidade do sujeito, sobre presente, perpassa a terceira estrofe. Há certa obsessão do eu com o agora, condição que reforça a ideia da própria consciência sobre a fatalidade da vida: eu sou como eu sou presente desferrolhado indecente feito um pedaço de mim (MORICONI, 2016, p. 97). O sujeito se classifica como sendo um presente indecente aberto no agora, pedaço de si mesmo exposto ao mundo, aspecto vinculado à noção de liberdade. Contudo, para o poeta mexicano Otávio Paz, abrir o caminho da liberdade é andar em direção à morte: viver no agora é viver com o rosto voltado para a morte (PAZ, 1984, p. 74). De acordo com Octávio Paz, o homem se engana ao inventar conceitos abstratos para fugir da morte, pois o próprio presente confere-lhe a finitude do ser. Apenas diante da morte nossa vida é realmente vida. No agora, nossa morte não está separada de nossa vida: são a mesma realidade, o mesmo fruto (PAZ, 1984, p.76 ). Ao certo, o eu lírico do poema Cogito possui a alma ferida de morte e, por isso, ele persegue um ponto de origem vivendo tranquilamente/todas as horas do fim (MORICONI, 2016, p. 97). Na última estrofe, o sujeito poético procura sugerir certa tranquilidade sobre o viver, procura ainda indicar que é vidente de seu próprio fim: eu sou como eu sou vidente e vivo tranquilamente todas as horas do fim (MORICONI, 2016, p. 97). No poema Cogito, Torquato Neto lança um criativo esforço com a linguagem para fugir da noção social que procura investir na captura de uma subjetividade fixa, por meio de um padrão estável. 110

111 UFU 2017 LEITURA DO TEXTO: LITERATO 89 CANTABILE 90 agora não se fala mais toda palavra guarda uma cilada e qualquer gesto é o fim do seu início agora não se fala nada e tudo é transparente em cada forma qualquer palavra é um gesto e em sua orla os pássaros de sempre cantam assim, do precipício: a guerra acabou quem perdeu agradeça a quem ganhou não se fala. não é permitido mudar de ideia. é proibido. não se permite nunca mais olhares tensões de cismas crises e outros tempos está vetado qualquer movimento do corpo ou onde quer que alhures 91. toda palavra envolve o precipício e os literatos foram todos para o hospício e não se sabe nunca mais do mim. agora o nunca. agora não se fala nada, sim. fim. a guerra acabou e quem perdeu agradeça a quem ganhou (MORICO- NI, 2016, p ). ANÁLISE DO TEXTO: Em Literato cantabile, notamos a reflexão sobre conturbado momento histórico do Brasil se dando por meio da articulação de passagens metapoéticas. Previamente, vale a pena observarmos a ironia contida no título do texto, temos um literato que canta a sua impossibilidade de cantar (fazer poético): Agora não se fala mais toda palavra guarda uma cilada e qualquer gesto pode ser o fim do seu início (MORICONI, 2016, p. 100). Toda palavra guarda a possibilidade da censura, prisão ou o fim, isto é, a morte. O momento histórico e as circunstâncias que o orbitam acabam por gerar na consciência do poeta a perda da utopia. A produção de Torquato Neto, e de grande parte dos poetas marginais, está inserida dentro de três fases: a primeira guarda a esperança na mudança sócio-política por meio da juventude esquerdista; a segunda fase, dentro da estética tropicalista, revela as contradições da cultura nacional e, por fim, a última fase, aqui aparece a revisão dolorosa para quem perdeu a guerra e não restava outra opção a não ser curvar-se frente ao vencedor:...a guerra/acabou/e quem perdeu agradeça a quem ganhou 89 Aquele que, por ofício, escreve obras literárias; escritor. 90 Cantante. 91 Em outro lugar, em outra parte. (MORICONI, 2016, p. 101). Esse trecho também é escrito por meio de um viés irônico, pois é um agradecimento coagido, visto o poder político brasileiro ser pautado na coerção. Resta aos pássaros cantarem do precipício, isto é, aos artistas/ intelectuais sobrou o protesto próximo à morte. Adiante no texto, temos a grafia significativa do uso do ponto final, espécie de sugestão alegórica do silêncio imposto pelos militares, as falas aparecem entrecortadas por esse sinal de pontuação: não se fala. não é permitido/mudar de ideia. é proibido (MORICONI, 2016, p. 100). Resta às vozes contrárias à ditadura o precipício (morte) e o hospício (anulação dos esquerdistas por meio de uma suposta loucura): toda palavra envolve o precipício/e os literatos foram todos para o hospício (MORICONI, 2016, p. 100). O trecho a guerra acabou e quem perdeu agradeça a quem ganhou aparece como um bordão, pois, ao longo do poema, é escrito duas vezes. Essa repetição parece interferir como uma espécie de constrangimento sarcástico. LEITURA DO TEXTO: LET S PLAY THAT quando eu nasci um anjo louco muito louco veio ler a minha mão não era um anjo barroco era um anjo muito louco, torto com asas de avião eis que esse anjo me disse apertando a minha mão com um sorriso entre os dentes vai bicho desafinar o coro dos contentes vai bicho desafinar o coro dos contentes let s play that (MORICONI, 2016, p. 111). ANÁLISE DO TEXTO: Nesse texto Torquato Neto dialoga com Carlos Drummond de Andrade por meio do Poema de sete faces : Quando nasci, um anjo torto/desses que vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida (2003, p. 58). À maneira drummondiana, o eu lírico procura revelar o seu caráter desviante/torto até na escolha da linguagem, por isso, recorre ao uso de gírias próprias da linguagem contra cultural brasileira da década de É próprio da função do eu lírico desafinar o coro dos contentes (MORICONI, 2016, p. 111). Aqui a caracterização do anjo também remete ao aspecto marginal: um anjo louco muito louco [...] não era um anjo barroco/era um anjo muito louco, torto (MORICONI, 2016, p. 111). Há certa cumplicidade/proximidade entre o anjo e o sujeito poético: eis que esse anjo me disse/apertando a minha mão (MORICONI, 2016, p. 111). Assim, o humano e o sagrado se colocam no mesmo nível de profanação da ordem estabelecida. Talvez ambos estivessem cansados das arbitrariedades que ocorriam numa terra chamada Brasil. As duas figuras, o anjo e o humano, aparecem no texto numa suposta contradição que intensifica o processo de carnavalização. 111

112 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS A fala/conselho do anjo ao eu lírico é um dos pontos altos do poema Let s play that : [...] vai bicho desafinar o coro dos contentes vai bicho desafinar o coro dos contentes let s play that 92 (MORICONI, 2016, p. 111). Temos na fala do anjo o lema central da composição: desafinar o coro dos contentes. A construção desse poema pode ter sido inspirada numa conversa entre Torquato e Augusto de Campos sobre Sousândrade. Para Torquato, o coro dos contentes é uma alusão às pessoas que cantavam em exaltação aos poderosos a fim de obter facilidades e benefícios (Machado, 2005, p. 107). Tudo isso dá à composição um caráter de manifesto bem à maneira da postura contracultural da década de WALY SALOMÃO (Jequié (BA), 1943 Rio de Janeiro (RJ), 2003) quem compôs Vapor Barato e Mal Secreto, entre outras. Foi também diretor de discos e shows como Mel, de Maria Bethânia, Plural, de Gal Costa, além de Cássia Eller. No final da década de 1980, foi coordenador do carnaval de Salvador. A partir dos anos de 1990, Waly publicou uma sequência de excelentes livros de poesia: Algaravias (1996), vencedor dos prêmios Jabuti e Alphonsus de Guimarães da Biblioteca Nacional; Lábia (1998); Tarifa de embarque (2000) e o póstumo Pescados vivos (2004). Quando morreu, vitimado por um câncer no fígado, Waly ocupava a Secretaria do Livro e da Leitura do Ministério da Cultura, capitaneado por Gilberto Gil, e era um dos principais impulsionadores do grupo AfroReggae. LEITURA DO TEXTO: HOJE O que menos quero pro meu dia polidez, boas maneiras. Por certo, um Professor de Etiquetas não presenciou o ato em que fui concebido. Quando nasci, nasci nu, ignaro da colocação correta dos dois pontos, do ponto e vírgula, e, principalmente, das reticências. (Como toda gente, aliás...) para Chico Alvim 93 Hoje só quero ritmo. Ritmo no falado e no escrito. Ritmo, veio-central da mina. Ritmo, espinha-dorsal do corpo e da mente. Ritmo na espiral da fala e do poema. Além de poeta, Waly Salomão atuou em diversas áreas da cultura brasileira. Seu livro Me segura que eu vou dar um troço, lançado em 1972, é a primeira obra poética pós-tropicalista. Escrito durante a prisão do autor no Carandiru, é hoje considerada um clássico dos movimentos contraculturais que desenharam a cena literária e artística brasileira da década de Anárquico, iconoclasta, fragmentário, construído em flashes e mosaicos, o livro é um marco da poesia experimental. Do convívio nesse período com o artista plástico Hélio Oiticica, Waly escreveria em 1996 a biografia intitulada Hélio Oiticica: Qual é o parangolé? Entre seus trabalhos marcantes está o seminal show Fa-tal, de Gal Costa (1972), e a revista Navilouca, que, com sua edição única, sintetizou as propostas estéticas da vanguarda contracultural que se seguiu ao Tropicalismo e polarizou os debates literários dos primeiros anos da década de Nessa fase, Waly adotaria o pseudônimo Waly Sailormoon. Após o suicídio de Torquato Neto, Waly reuniu e organizou, junto com Ana Duarte, a primeira coletânea de escritos do poeta, Os últimos dias de paupéria, em Em 1974, foi morar em Nova York, onde iniciou a série de trabalhos poético-visuais, Babilaques. Importante letrista, fez parcerias com diversos compositores como Caetano Veloso, Gilberto Gil, João Bosco, Adriana Calcanhoto, Lulu Santos e, principalmente, Jards Macalé, com 92 Possível tradução: Vamos jogar isso. Não está prevista a emissão de nenhuma Ordem do dia. Está prescrito o protocolo da diplomacia. AGITPROP 94 Agitação e propaganda: Ritmo é o que mais quero pro meu dia-a-dia. Ápice do ápice Alguém acha que ritmo jorra fácil, pronto rebento do espontaneísmo? Meu ritmo só é ritmo quando temperado com ironia. Respingos de modernidade tardia? E os pingos d água dão saltos bruscos do cano da torneira e passam de um ritmo regular para uma turbulência aleatória. Hoje. (1995)(MORICONI, 2016, p ). 93 Escritor original de Araxá MG. Viveu um período em Brasília, onde participou de movimentos de poesia marginal. 94 Esse termo abreviativo de agitação e propaganda é uma sigla criada pelo marxismo-leninismo. Essa abreviatura relaciona-se às ideias e princípios disseminados entre os trabalhadores, camponeses, intelectuais, por exemplo. 112

113 UFU 2017 ANÁLISE DO TEXTO: O poema Hoje, de Waly Salomão, é uma espécie de ode ou manifesto à vida/poesia livre, aqui, as amarras da tradição devem ser suprimidas em prol da liberdade existencial e poética: O que menos quero pro meu dia/polidez, boas maneiras (MORICONI, 2016, p ). Toda a valorização das liberdades humanas sinaliza para o contexto de contracultura da década de Em seguida, ainda na primeira estrofe do poema, as farpas do sujeito poético se voltam às convenções da gramática: Quando nasci, nasci nu, ignaro da colocação correta dos dois pontos, do ponto e vírgula, e, principalmente, das reticências. (Como toda gente, aliás...) (MORICONI, 2016, p ). Principalmente, no trecho anterior, é possível estabelecer um diálogo com o poema Poética, de Manuel Bandeira: Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo./abaixo os puristas/ Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais/ Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção/ Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis (Bandeira, 1973p. 65). A verve crítica de ambos os autores volta-se às limitações da gramática. No caso de Waly Salomão, temos uma sutil ironia, no final da estrofe acima, ao se referir ao uso de reticências. Dessa maneira, o eu lírico, no final da primeira estrofe, afirma que ninguém, inclusive ele, não é capaz de usar reticências, mesmo usando-as em seguida: (Como toda gente, aliás... ) / (MORICONI, 2016, p ). Ao certo, as reticências e o ponto final sejam os elementos gramaticais mais acessíveis aos usuários da língua. A reação contrária às limitações impostas pela gramática normativa pode ser lida também como um protesto às imposições no campo social marcado por inúmeras censuras ao sujeito poético que vê a arte poética como uma maneira de erguer a sua voz. A segunda estrofe mostra o ritmo da batida perfeita buscada pelo eu lírico em seu hoje/presente. O ritmo almejado para texto poético ilustra o ritmo ansiado na existência individual/coletiva ( Ritmo, veio-central da mina./ritmo, espinha-dorsal do corpo e da mente (MORICONI, 2016, p ). Dar ritmo à vida é poder ser e escolher o próprio destino, é ser dono do sim e do não. O desejo de romper com protocolos formais, aspecto que remete, novamente, ao texto Poética, de Manuel Bandeira, perpassa toda a terceira estrofe. Para isso, o eu lírico brinca com um termo associado ao comunismo, o Agitprop, criando a sua própria agência de propaganda: AGI- TPROP Agitação e propaganda:/ritmo é o que mais quero pro meu dia-a-dia./ápice do ápice (MORICONI, 2016, p ). Cantar o ritmo individual é o mesmo que elevar a liberdade ao topo/ápice da relevância do sujeito enquanto aspecto essencial à vida e à poesia. Na estrofe seguinte, o tamanho disforme dos versos alegoriza o desejo alimentado pela liberdade existencial e poética. Nem o próprio ritmo do eu lírico pode ter uma constância, pois isso, a constância rítmica seria um distanciamento da liberdade. Para tanto, o eu lírico lança mão de uma criativa ideia para expressar o seu desejo, nem mesmo os pingos da água ao cair da torneira possuem uma uniformidade. Sendo assim, o eu lírico é volúvel como água a fim de preservar o seu bem maior, a liberdade existencial/poética: Alguém acha que ritmo jorra fácil, pronto rebento do espontaneísmo? Meu ritmo só é ritmo quando temperado com ironia. Respingos de modernidade tardia? E os pingos d água dão saltos bruscos do cano da torneira e passam de um ritmo regular para uma turbulência aleatória. Hoje (MORICONI, 2016, p ). Essa última estrofe é aberta por uma pergunta de caráter metapóetico. Seria a poesia fruto da espontaneidade? A resposta a esse questionamento nos é dada: Meu ritmo só é ritmo/quando temperado com ironia (MORICONI, 2016, p ). O relato sobre o seu ritmo compõe a lógica da escrita do eu lírico que cai no papel numa articulação regular indo para uma cadência aleatória. Contudo, se a poesia de Waly Salomão é temperada na ironia, essa afirmação de que estamos frente a uma construção poética aleatória pode ser relativizada. LEITURA DO TEXTO: AMANTE DA ALGAZARRA Não sou eu quem dá coices ferradurados no ar. É esta estranha criatura que fez de mim seu encosto 95. É ela!!! Todo mundo sabe, sou uma lisa flor de pessoa, Sem espinho de roseira nem áspera lixa de folha de figueira. Esta amante da balbúrdia 96 cavalga encostada ao meu sóbrio ombro Vixe!!! Enquanto caminho a pé, pedestre-peregrino atônito 97 até a morte. Sem motivo nenhum de pranto ou angústia rouca ou desalento: Não sou eu quem dá coices ferradurados no ar. É esta estranha criatura que fez de mim seu encosto E se apossou do estojo 98 de minha figura e dela expeliu o estofo Espírito perturbado que se presume estar ao lado de alguém para prejudicar. 96 Desordem barulhenta; vozearia, algazarra, tumulto. 97 Tomado de assombro ou de grande admiração; espantado, pasmo. 98 Capa, bainha, ou qualquer tipo de invólucro que conserve em segurança objetos delicados, frágeis, ou instrumentos de precisão. Na verdade, o estojo, no contexto do poema, pode ser o próprio corpo do eu lírico. 99 Tecido encorpado de algodão, lã, seda. 113

114 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS Quem corre desabrida 100 Sem ceder a concha do ouvido A ninguém que dela discorde É esta Selvagem sombra acavalada que faz versos como quem morde. (2000) / (MORICONI, 2016, p. 127). ANÁLISE DO TEXTO: No texto Amante da Algazarra, o eu lírico revela um pouco o teor de sua intimidade, contudo, essa confissão se dá pelo viés da negação. O eu poético atribui as suas ações a um espírito do mal: Não sou eu quem dá coices ferradurados no ar./é esta estranha criatura que fez de mim seu encosto (MORICONI, 2016, p. 127). Esse eu gauche é um verdadeiro amante da algazarra, porém nega esse lado libertário, para isentá-lo das responsabilidades de seus atos. Se o eu lírico nega as algazarras, cria, humoristicamente, uma identidade amena/tranquila: Todo mundo sabe, sou uma lisa flor de pessoa,/sem espinho de roseira nem áspera lixa de folha de figueira (MORICONI, 2016, p. 127). Essa criação de uma falsa personalidade nos remete a um importante poema de Fernando Pessoa (1995), o Autopsicografia : O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. (PESSOA, 1995, p. 49). O fingir é colocado no texto de Fernando Pessoa como sendo o trabalho de ficção criado pelo artista, isso revela o caráter multifacetário do eu poético/ser humano. Em meio a esse trabalho de ficcionalização da identidade, quem ganha é o leitor com a simulação das múltiplas faces mostradas. Nessa segunda e última estrofe do poema, o eu lírico procura revelar que a Amante da algazarra não dá ouvidos a ninguém que porventura discorde dela: Quem corre desabrida/sem ceder a concha do ouvido/a ninguém que dela discorde (MORICONI, 2016, p. 127). Finalmente, descobrimos que a Amante da algazarra é a criativa capacidade do eu poético de fazer poesia: É esta/selvagem sombra acavalada que faz versos como quem morde (MORICONI, 2016, p. 127). A associação entre a atitude de morder com a ação de fazer poesia, primeiramente, deixa transparecer a relação entre a vida e a arte, além disso, mostra a intensa vontade/ pujança expressa na ação criativa de fazer o poema. Esse último verso possui um diálogo com o famigerado poema Desencanto, de Manuel Bandeira, sobretudo com o final do texto do escritor modernista: [...] E nestes versos de angústia rouca Assim dos lábios a vida corre, Deixando um acre sabor na boca. - Eu faço versos como quem morre (BANDEIRA, 1980, p. 28). 100 Destemperado, rude, cáustico, violento. O tom do poema de Bandeira é sombrio e lúgubre, aspecto diferente do texto de Waly Salomão que sobressai uma nuance jocosa. Fazer versos como quem morre seria o mesmo que escrever como alguém que nada espera a não ser a própria morte. LEITURA DO TEXTO: Entra mar adentro GRUMARI 101 Deixa o marulho das ondas lhe envolver Até apagar o blá-blá-blá humano. Maré que puxa com força, hoje. É lua cheia, talvez... As retinas correm a cadeia de montanhas que circunda a praia. ANÁLISE DO TEXTO: (2004) / (MORICONI, 2016, p. 142). Simbolicamente, o mar é visto como a ambivalência da existência humana: a vida (fertilidade) e a morte (perigo do desconhecido). No caso do texto de Waly Salomão, o mar associa-se à positividade. Há no texto o uso de alguns verbos no imperativo exigindo do leitor o mergulho nas águas marinhas de tal forma que o turbilhão de vozes humanas seja dissipado. Por isso, o mar, especificamente, não é articulado de maneira negativa, mas como forma de autoconhecimento. Nos dois primeiros versos notamos um tom sóbrio que é quebrado pela lúdica onomatopeia: Entra mar adentro/ Deixa o marulho das ondas lhe envolver/até apagar o blá- -blá-blá humano grifo meu (MORICONI, 2016, p. 142). O movimento agressivo das marés aparece na segunda estrofe, condição que permite pensar o mar como elemento negativo, pois, em fase de lua cheia, as ondas do mar tornam- -se perigosas. Curiosamente, o vocábulo maré apresenta certa ambiguidade: podemos lê-lo com sendo a água do mar e a maré humana que pode nos tragar na luta diária. Um bom texto literário apresenta essas possibilidades de leitura. No último verso, temos uma espécie de contemplação (fruição espacial) da natureza por parte do eu lírico: As retinas correm a cadeia de montanhas que circunda a praia (MORICONI, 2016, p. 142). REFERÊNCIAS: ANDRADE, Carlos Drummond de. Carlos Drummond de Andrade: poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, BANDEIRA, Manuel Estrela da vida inteira: poesias reunidas. Rio de Janeiro: José Olympio. BARROS, Manoel de. Menino do mato. São Paulo: Leyla, BRITO, Antonio Carlos de. A palavra cerzida. Rio de Janeiro: José Alvaro Editor, CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 20. ed. Rio: José Olympio, LEMINSKI, Paulo. La vie en close. São Paulo: editora brasiliense, 1994, p Praia no litoral ocidental do RJ entre a barra de Guaratiba e o pontal de Sernambitiba. 114

115 UFU 2017 MACHADO, Gláucia Vieira. Todas as Horas do Fim: Sobre a Poesia de Torquato Neto. Maceió, Educal, MALUFE, Annita Costa. Territórios Dispersos: a poética de Ana Cristina César. São Paulo: Annablume / FAPESP, PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, PAZ, Octávio. Signos em rotação. 2.ed. Trad. de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Perspectiva, PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A., SANTA NNA, Affonso Romano de. Paródia, paráfrase & Cia. São Paulo: Ática, ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Tradução de Jerusa Pires Ferreira. Belo Horizonte: Editora UFMG, BRUTALMENTE AUTOBIOGRÁFICO ANÁLISE DA OBRA O FILHO ETERNO, DE CRISTOVÃO TEZZA, O FILHO ETERNO por Henrique Landim 102 Cristovão Tezza nasceu, em 1952, na cidade de Lages, em Santa Catarina. Contudo, grande parte de sua existência se deu em Curitiba. Desde muito jovem, relacionava-se com o universo artístico literário. Em 1968, por exemplo, integrou-se ao Centro Capela de Artes Populares (CECAP). Nesse mesmo ano, participou da primeira peça de Denise Stoklos. Após concluir o ensino médio no Colégio Estadual do Paraná, ingressou na Escola de Formação de Oficiais da Marinha Mercante, no Rio de Janeiro, mas desligou-se em agosto do mesmo ano. Por meio de um convênio com a Universidade de Coimbra, foi cursar Letras em Portugal, mas a universidade permaneceu certo tempo fechada por causa da Revolução dos Cravos. Com isso, o escritor passou um ano perambulando pela Europa. Curiosamente, essa nota biográfica aparece no romance O filho eterno, como experiências narradas entremeio às do filho, Felipe. 102 Graduado em Letras pela Universidade Federal de Uberlândia e mestre em Teoria Literária pela mesma instituição. Casou-se em janeiro de Anos depois, mudou-se para Florianópolis, em Santa Catarina, onde trabalhou como professor de língua portuguesa na UFSC. A cidade inventada e os romances Gran Circo das Américas e O terrorista lírico foram os seus primeiros livros, todos eles publicados entre 1979 e Contudo, apenas em 1988, com a publicação da obra Trapo, o nome de Cristovão Tezza começou a se tornar conhecido no Brasil. Dez anos depois em 1998, o romance Breve espaço entre cor e sombra recebeu o Prêmio Machado de Assis (classificado como o melhor romance do ano). Em seguida, o livro O fotógrafo, datado de 2004, recebeu o Prêmio da Academia Brasileira de Letras de melhor romance do ano. No ano de 2006, assinou o contrato com a Editora Record, condição que possibilitou o relançamento de inúmeras obras do autor. Em 2007, ocorreu a publicação do romance O filho eterno, que recebeu inúmeros prêmios: Prêmio da APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) de melhor obra de ficção do ano. Em 2008, esse livro recebeu os prêmios Jabuti de melhor romance, Bravo! de melhor obra, Portugal-Telecon de Literatura em Língua Portuguesa e Prêmio São Paulo de Literatura, de melhor livro do ano. Cristovão Tezza, Pediu em 2009 o desligamento das aulas na UFPR para dedicar-se exclusivamente à literatura. O sucesso das vendas do livro O filho eterno possibilitou que o autor voltasse ao espírito das utopias dos anos 70. Tezza exerceu a função de professor durante vinte e três anos. Sobre sua carreira no campo educacional, ele comentou: Estava cansado da sala de aula, sentia que já me repetia. Queria mudar de vida desde O fotógrafo e O filho eterno me permitiu isso (ALMEIDA apud TEZZA, 2010). Como se nota, a obra O filho eterno foi a carta de alforria do escritor. Contudo, a construção do livro deu-lhe bastante trabalho: De repente, mais de 20 anos depois de o Felipe nascer, pensei em escrever sobre o assunto. Essa ideia jamais havia me ocorrido, e hoje percebo psicanaliticamente esse buraco negro. Isto é a ideia simplesmente não existia não se tratava de uma consciência de que eu não estava pronto, ou maduro, nada disso. A hipótese do livro não me ocorria. Súbito, ocorreu e fiquei tateando um bom tempo atrás de um modo de mergulhar no tema sem ser destruído por ele. Era um risco medonho. Quando a ideia surgiu tive apenas de vencer o meu medo (CHAVES apud TEZZA, 2009). O romance O filho eterno teve a sua tradução para o francês (Le fils du Princitemps), sendo lançado na Itália, Inglaterra, Portugal, França, Holanda, Espanha, México, Estados Unidos, Austrália, China e Eslovênia. Um pouco adiante, em abril de 2012, O filho eterno entrou na lista dos 10 finalistas do Prêmio Internacional IMPA- C-Dublin de literatura. Em dezembro de 2016, o livro O filho eterno consolidou a sua qualidade literária sendo levado à tela do cinema, após o lançamento de um filme, de mesmo nome. 115

116 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS O TÍTULO DO ROMANCE Numa acepção imediata, associamos de antemão o título do romance à figura de Felipe, que seria o filho eterno. A palavra eterno qualifica o substantivo filho. Nesse caso, de acordo com o narrador, o adjetivo sinalizaria a dificuldade de compreensão da noção de tempo/maturidade experimentada pelo garoto, que, ao certo, parece viver um eterno presente. Além disso, o termo eterno vincula-se ao pai, que vê Felipe numa eterna condição de filho. Sendo assim, o adjetivo eterno remete a aspectos associados à condição genética da criança, colocada como limitante, isto é, vista como um desvio daquilo denominado de normal. Com isso, Felipe não conseguiria transcender à sua condição de filho e, por conseguinte, inserir-se ao mundo do adulto. Nesse caso, essa possibilidade de leitura deixa transparecer o olhar negativo/preconceituoso do pai para com o filho. Além dessa clave de leitura, o título poderia ser apreendido de outra maneira: o eterno filho seria o pai, não mais o Felipe, criança dotada de síndrome de Down. Dessa maneira, no primeiro capítulo, a esposa, futura mãe de Felipe, tem que, enfaticamente, chamar o marido por duas vezes para irem à maternidade, pois pressentia que o filho estava prestes a vir ao mundo: - Acho que é hoje ela disse. Agora completou, com a voz mais forte, tocando-lhe o braço, porque ele é um homem distraído (TEZZA, 2007, p. 9). Essa distração e falta de ação diante de um fato urgente poderiam sugerir certa ausência de amadurecimento do pai de Felipe. Um pouco adiante no romance, o narrador diz, de acordo com a maneira de pensar do pai de Felipe, que um filho é a ideia de um filho (TEZZA, 2007, p. 14). Essa constatação sinaliza certa resistência ao amadurecimento e aos compromissos envolvidos na paternidade. Um dito popular afirma que quando um filho vem ao mundo, nasce um novo pai também, condição que implica deixar de ser o centro das atenções, pois o novo ente ocupará esse posto. Nesse sentido, o pai de Felipe poderia ser visto como um filho eterno, pois o nascimento de um filho especial impede que ele se reconheça no papel de pai, permanecendo assim, sob o eterno papel de filho. A própria orfandade do pai de Felipe tira-o da normalidade dos papéis familiares. Nem ele pode usufruir integralmente da condição de filho, visto a ausência da figura do pai, que morrera, como consta no capítulo seis do romance: Desde que o pai morreu, muitos anos antes, o seu padrão de normalidade se quebrou. Tudo o que ele fez desde então desviava-o de um padrão de normalidade ao mesmo tempo, desejava ardentemente ser reconhecido e admirado pelos outros (TEZZA, 2016, p. 40). AS EPÍGRAFES A primeira epígrafe do romance O filho eterno pertence ao descritor austríaco Thomas Bernhard: Queremos dizer a verdade e, no entanto, não dizemos a verdade. Descrevemos algo buscando fidelidade à verdade e, no entanto, o descrito é outra coisa que não a verdade (BERNHARD apud TEZZA, 2007, p. 5). A vida, quando capturada pela linguagem literária, não pode mais ser classificada como verdade ou mentira, de autenticidade ou falsidade. É, na verdade, somente, literatura. Tudo isso nos remete à condição de escritura do romance de Cristovão Tezza que, superficialmente, para muitos, mistura realidade e ficção, quando está além desse jogo antitético, condição típica de um verdadeiro texto literário. A compreensão dessa epígrafe nos remete ao texto de Roland Barthes (2004), A morte do autor. Nesse texto, o estudioso desloca o texto de sua suposta origem escritural, isto é, para Barthes o escritor é um produto do ato de escrever, ou seja, o ato de escrever é que faz o autor e não o contrário: [...] pela boa razão de que a escrita é destruição de toda a voz, de toda a origem. A escrita é esse neutro, esse compósito, esse oblíquo para onde foge o nosso sujeito, o preto-e-branco onde vem perder-se toda a identidade, a começar precisamente pela do corpo que escreve (2004, p. 12). Essas colocações de Barthes conferem ao texto O filho eterno, por exemplo, como todas as outras produções do mundo, um caráter independente da realidade. Caso contrário, o texto seria um mero reflexo das experiências biográficas do escritor. Há outra epígrafe no início do romance O filho eterno, nesse caso, do filósofo dinamarquês Soren kierkegaard, que sinaliza para uma possibilidade de leitura da obra do escritor brasileiro por meio de uma tonicidade parental: Um filho é como um espelho no qual o pai se vê, e, para o filho, o pai é por sua vez um espelho no qual ele se vê no futuro (KIERKE- GAARD apud TEZZA, 2007, p. 5). Em tese, o pai de Felipe deveria ter a expectativa de que seu filho se espelhasse em suas melhores qualidades e, com isso, quiçá, o superasse. A síndrome do filho também impede uma identificação do filho com o pai, que temia a não humanização de Felipe. Assim, o espelho parece refletir aquilo que o pai gostaria que não existisse no filho. AUTOBIOGRAFIA FICCIONALIZADA Na internet, é possível encontrarmos informações de leitores que conseguiram ler poucos capítulos do romance, interrompendo a leitura em seguida, condição gerada, sobretudo, pelo início do livro que é, para alguns, bastante cruel quanto à exposição de um aspecto tão íntimo da criança e do pai. Porém, o escritor, numa entrevista à revista Veja, comenta: o personagem é uma versão exacerbada de mim mesmo. Não sou esse monstro (TEIXEIRA apud TEZZA). Os leitores menos afoitos podem notar, nos capítulos finais do romance, que o rude sentimento do pai dá lugar a imensurável carinho e desejo de ver a bonança da vida de Felipe. Se notarmos o capítulo 20, por exemplo, momento que Felipe 116

117 UFU 2017 desaparece da residência, vemos a profunda angústia do pai frente à concreta perda do filho. Todo esse incômodo da narrativa é originário na condição muito próxima entre aquilo que é narrado, a ficção, com aquilo que foi vivido pelo escritor, a realidade. Essas duas pontas supostamente díspares, no romance de Cristovão Tezza aparecem muito semelhantes. Talvez por isso, vemos um romance como sendo um texto da modalidade narrativa autobiográfica. A autobiografia, normalmente, é um relato oral ou escrito que alguém faz de seu passado. Em grande parte dessas formas de contar histórias, o narrador se dispõe a narrar a sua própria vida, e isso sugere que o texto deve ser escrito em primeira pessoa. Para que haja uma narrativa autobiográfica deve haver a identidade entre o autor, narrador e o personagem. Contudo, o romance O filho eterno é narrado em terceira pessoa, aspecto que expressa o desejo do autor de afastar-se do gênero autobiográfico. Sobre essa forma de narrar do escritor brasileiro, comenta o estudioso Gilberto Prujanski (2016): O autor de O filho eterno se enquadra na categoria dos que falam de si próprios na terceira pessoa por outro motivo: o excesso de pudor na hora de subir à ribalta 103 para se expor aos olhos do público. É compreensível. O fato de a narração ser feita na terceira pessoa é, provavelmente, o único detalhe que impede O filho eterno de se enquadrar na categoria de autobiografia (2016, p. 33). Contudo, cabe salientar que a forma narrativa em terceira pessoa do romance O filho eterno não é, por si só, capaz de distanciá-la da narração autobiográfica. Se nos atentarmos ao texto, em várias passagens do romance, temos fragmentos com forte tônica do relato em primeira pessoa: Ele sorri diante daquele pequeno joelho respirante e empacotado do outro lado do vidro: isso parece bom e bonito, o filho da primavera. Relembrou a data: madrugada do dia 3 de novembro de 1980 (TEZZA, 2016, p. 21). Em janeiro de 1972 ele e o amigo participaram de um festival de teatro em Caruaru, Pernambuco, e voltaram os dois de carona, mochila nas costas (TEZZA, 2016, p. 80). Para Costa Lima (1986), não pode se ver a autobiografia como um documento histórico, pois considere-a apenas o testemunho do modo como alguém via a si mesmo, de como formulava a crença de que eram outro que atendia pelo nome de eu (p. 26). Na exposição das experiências narradas, o leitor não consegue estabelecer o que seriam os fatos comprováveis e os ficcionais, isto é, não tem como situar onde terminam os fatos e quando começa a ficção. Vale lembrar que a Literatura é uma representação da vida, não se confundindo com esta. Sobre isso, comenta Tezza: Há sempre um abismo entre o evento da vida, que é o acontecimento aberto do cotidiano, o nosso dia a dia, e a representação literária. Nesta, a vida é caprichosamente recortada, selecionada, escolhida e emoldurada, transformando-se em objeto, em algo que se vê de todos os lados, com uma nitidez que o simples viver jamais nos dá. E, é claro, esse objeto literário não é em si a vida, mas a sua representação reflexiva é na verdade um olhar (entre milhares de outros possíveis) sobre a vida. Assim, o desenvolvimento do personagem tem um grande grau de autonomia, obedece à lógica interna que a própria narrativa foi criando Parte dianteira do palco, que se estende para fora do pano de boca, e onde ficam os refletores. 104 Entrevista a Ronaldo Augusto, no site Sibila. Disponível em: Essa dificuldade estabelecida no romance entre a realidade e a ficção se dá, principalmente, pelo uso do narrador em terceira pessoa. Certamente, não caminhamos no suposto território estável da autobiografia. Assim, Tezza parece sugerir que não devemos ler os episódios narrados apenas como uma rememoração dos eventos vividos, mas como um relato em que o substrato biográfico aparece sempre filtrado, ampliado, distorcido, transformado pela ótica literária. Ainda sobre a confecção do romance, comenta Tezza: O filho eterno é diretamente biográfico, um tema extremamente difícil, que coloca muitas armadilhas em torno de mim para que eu caia nelas. É um perigo. O discurso que envolve a questão da criança especial já é mediado pela sociedade e pela religião. Há uma série de cascas de bananas pelo caminho para você se arrebentar e destruir a literatura possível. Inicialmente, pensei em fazer um ensaio. Tanto que, curiosamente, sempre escrevi minha ficção à mão. Quando comecei O filho eterno, fui direto para o computador, que é onde escrevo ensaios, textos teóricos, resenhas, material para os alunos. Minha intenção era fazer um ensaio. Mas percebi que não me acertei - a linguagem não dava certo. Pensei: eu não posso fingir que isso aqui não é comigo. Sentia fraqueza teórica para enfrentar o tema. Num segundo momento, pensei numa autobiografia tradicional. Comecei a escrever como um depoimento. Mas também não estava conseguindo me afastar do tema. Até que me deu o estalo de transformar a mim mesmo num personagem, de tratar em terceira pessoa. Quando dei esse salto - eu me transformei em personagem, eu me afastei -, fiquei à vontade porque eu sou um narrador naturalmente impiedoso. Então, eu podia bater em mim mesmo sem pena, pois era um personagem - não era eu ali. Quando se olha para o próprio passado, você se vê como um personagem. Se você for descrever o que fez ontem, vai ver uma pessoa que não é você. É o olhar de fora que dá o acabamento [...]. O fato de eu estar falando de mim mesmo em terceira pessoa deu uma força narrativa que nem o depoimento nem o ensaio teriam. Sinto a força desse livro porque estou inteiro ali, e ao mesmo tempo olhando de fora [...]. Quando acabei de escrever O filho eterno e fui olhá-lo, fiquei apavorado: mas o que foi que escrevi?. É uma alta exposição. Mas por outro lado, eu pensava: para quem não me conhece como escritor, o aspecto biográfico é totalmente irrelevante. E tem a questão do gênero, do romance (JORNAL RASCUNHO, 2007, online). Mesmo o narrador olhando o protagonista (pai) com certa objetividade, às vezes temos uma convergência entre aquele que narra e o objeto narrado (pai de Felipe). O narrador propõe o contrário, contudo a proximidade entre essas duas vozes atesta o inverso. Assim, o futuro escritor, pai de Felipe, e o narrador se entrelaçam, uma vez que o autor tenta contar a sua história por meio de uma suposta figura neutra, o narrador, que, às vezes, se transforma em personagem buscando no outro a si mesmo. Tudo isso nos mostra que a obra O filho eterno rompe com os modelos clássicos do que seria uma obra autoficcional. Nesse caso, o romance cria um simulacro para o eu do autor e, mesmo sem nome o personagem central, percebemos a identificação entre o escritor aspirante e a voz narrativa, o narrador. php/critica/107-romancistas-contemporaneos-mascam-cliches. Acesso em 31/05/

118 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS ENREDO PHÍLIPPOS A narrativa é aberta por meio de um tenso diálogo dos personagens: - Acho que é hoje ela disse. Agora completou, com voz mais forte, tocando-lhe o braço, porque ele é um homem distraído (TEZZA, 2016, p. 9). A esposa tentou chamar a atenção do marido para um fato prático de suas vidas, o nascimento do primeiro filho. Nesse primeiro diálogo do romance, notamos certa ausência de senso prático da parte do marido: Sim, distraído, quem sabe? Alguém provisório, talvez; alguém que, aos 28 anos, ainda não começou a viver (TEZZA, 2016, p. 9). Instantes depois, o marido ateve-se à condição de grávida da mulher entendendo a extensão do fato: um filho. Dessa maneira, o casal saiu de casa à meia-noite. A mulher, que há quatro anos sustentava o marido, agora era sustentada por ele enquanto aguardavam o elevador [...] (TEZZA, 2016, p. 9). Seguiram para o hospital, em seguida. O marido levou consigo uma garrafinha de uísque e cigarros. Ele deu partida em seu fusca atentando-se para não raspá-lo, como tantas vezes, à viga do prédio. Os papéis sociais atribuídos aos pais deveriam ser exercidos dentro de certa normalidade: [...] o pai angustiado, a mãe feliz, a criança chorando, o médico sorridente, o vulto desconhecido que surge do nada e nos dá parabéns [...], tudo girando veloz e inapelavelmente em torno do bebê (TEZZA, 2016, p. 10). Nesse trecho, ao certo, estamos diante de monólogos interiores do pai, que se sente inserido em outra esfera, não a mundana: Ele é um predestinado à literatura - alguém necessariamente superior, um ser para o qual as regras do jogo são outras. [...] Ele vive à margem: isso é tudo (TEZZA, 2016, p. 10). Esse tom avesso à realidade pragmática perpassa grande parte do romance. O marido mal conseguiu preencher as fichas necessárias para dar entrada de sua esposa no hospital. Instantes depois, encontrou a mulher pálida numa maca, ela sorriu para ele, e eles tocaram as mãos. O pai dirigiu-se a um corredor a fim de acender um cigarro e tomar um trago de uísque. Ele teve tempo para pensar nas obras literárias que sempre escrevera desde os treze anos. Agora, aos vinte e oito, não acabou o curso de Letras, que despreza, bebe muito, dá risadas prolongadas e inconvenientes, lê caoticamente e escreve textos que atafulham a gaveta (TEZZA, 2016, p. 12). Nesse primeiro capítulo do romance, temos importantes caracterizações acerca do pai. Ao certo, ele é um típico jovem de formação ideológica da década de 1970, na verdade, segundo o narrador, um filhote retardatário dos anos 70 (TEZZA, 2016, p. 12), condição que sugere a controvérsia ao sistema, a busca pela liberdade, o sonho de ser escritor. Um pouco adiante no livro, por meio de um discurso indireto livre, percebemos reflexões sobre essa condição alternativa do pai: O empreendimento irracional das utopias: cabelos compridos, sandálias franciscanas, as portas da percepção, vida natural, sexo livre, somos todos autênticos (TEZZA, 2016, p. 15). O protagonista, na tentativa de sobrevivência, dava aulas particulares de redação e revisava teses e dissertações sobre qualquer tema. Sozinho, no corredor, toma outro gole de uísque e começa a ser tomado pela euforia do pai nascente (TEZZA, 2016, p. 13). Sente uma súbita necessidade de criar a solenidade de um ritual íntimo para o nascimento do filho: Seria agora um pai, o que sempre dignifica a biografia. Será um pai excelente, ele tem certeza: fará de seu filho a arena de sua visão de mundo. [...] O filho será a prova definitiva das minhas qualidades, quase chega a dizer em voz alta, no silêncio daquele corredor final, poucos minutos antes de sua nova vida (TEZZA, 2016, p ). O filho, a princípio, seria a encarnação de utopias não vividas pelo pai, o infante concentraria a possiblidade de um mundo não efetivamente vivenciado pelo pai. Há uma crença desmedida nas qualidades da criança. Enquanto o pai pensava em seu mundo à parte, a fictícia realidade de papel da literatura, textos que ele ainda escrevia, o médico, inesperadamente, apareceu à porta e anunciou o nascimento de uma criança do gênero masculino. Pela madrugada, os enfermeiros trouxeram a mãe para o quarto. A criança recém-nascida ficou no berçário, espécie de gaiola asséptica, aspecto que fez o pai lembrar-se do livro Admirável mundo novo: todos aqueles bebês um ao lado do outro, atrás de uma proteção de vidro, etiquetados e cadastrados para a entrada no mundo, todos idênticos, enfaixados na mesma roupa verde, todos mais ou menos feios, todos amassados [...] (TEZZA, 2016, p. 19). Essa citação ao romance Admirável mundo novo, lançado em 1932, pelo visionário escritor e filósofo Aldous Huxley, sugere certa relação com o contexto histórico da ditadura militar brasileira, contexto histórico de pano de fundo da linha narrativa associada à vida do pai. O romance do escritor inglês relata uma civilização onde os sujeitos eram excessivamente controlados pelo Estado. Todos os seres viviam sub um condicionamento social, genético, mental, sexual, existencial, por exemplo. Esse livro denuncia o pesadelo de uma sociedade totalitária fascinada pelo progresso científico. Sendo assim, o monólogo interior do pai diante do filho deixa transparecer ares críticos à sociedade brasileira. Temos uma criança no berçário à maneira de um brinquedo feito em série, na indústria, aspecto sugestivo de uma alegoria da ausência de liberdade do cidadão brasileiro nos anos de chumbo: o Brasil está nos últimos minutos de uma ditatura, subjetivamente, em outra esfera, nos dá o dom da ilusão (TEZZA, 2016, p. 20). Assim, diante do filho que está na gaiola asséptica, o pai tece reflexões sobre a liberdade humana: Como conciliar a ideia fundamental de liberdade individual, que move a fantástica roda do Ocidente, ele declama, com selvageria da natureza bruta, que por uma sucessão inextricável de acasos me trouxe agora essa criança? (TEZZA, 2016, p. 20). 118

119 UFU 2017 Finalmente, na noite intranquila do parto que chega ao fim, o casal trocou poucas palavras, a mulher pediu ao marido que ligasse aos familiares. Ao sair do quarto, tudo estava em harmonia com o episódio do nascimento da criança: [...] descobre que já penduraram na porta um bonequinho azul, e absurdamente ele pensa em dinheiro, tranquiliza-se em seguida (TEZZA, 2016, p. 24). Na rua, utiliza-se de um telefone público para comunicar, a contragosto 105, a todos da boa nova: Sim, nasceu ainda há pouco! É homem! Não sei o peso ainda! Ele parece parrudo! Não avisei ninguém porque não precisava. Quase diz, numa pré-irritação: Só o que faltava eu esperar meu próprio filho com a parentalha toda em volta! Basta a ideia para satisfazê-lo, e ele prossegue gentil: Era de madrugada, para que incomodar vocês? Sim. Sim! Venham! Felipe! Bonito, não? Ela está ótima! Obrigado! Precisamos festejar! (TEZZA, 2016, p. 26). TRISSOMIA 21 O rito do nascimento, como se vê, até então, seguia dentro da normalidade, ainda nada havia subtraído do casal a alegria da boa nova. Contudo, os familiares chegaram interrompendo o sono do pai, todos falavam ao mesmo tempo, a alegria transbordava no apartamento do hospital. Todos têm algum conselho fundamental sobre a criança recém-nascida: [...] chás, ervas, remedinhos, infusões, cuidados com o leite -, é preciso dar uma palmada para que ele chore alto, assim que nasce, diz alguém, e alguém diz que não, que o mundo mudou, que bater em bebê é uma estupidez (mas não usa essa palavra) eles não vão trazer a criança? (TEZZA, 2016, p. 26). Os familiares questionaram-se sobre qual seria a motivação para os médicos não terem apresentado a criança. Instantes depois, de súbito, a porta se abriu e entraram dois médicos, estavam com a criança que fora entregue à mãe. A entrada médica foi abrupta, violenta, por meio de passos rápidos, chegaram como sacerdotes. Houve cinco segundos de silêncio. Uma forte tensão elevou-se ao nível do incômodo perpassando todas as almas ali presentes. Finalmente, um dos médicos pronuncia:...algumas características... sinais importantes... vamos descrever. Observem os olhos, que têm a prega nos cantos, e a pálpebra oblíqua... o dedo mindinho das mãos, arqueado para dentro... achatamento da parte posterior do crânio... a hipotonia muscular... a baixa implantação da orelha e... (TEZ- ZA, 2016, p. 30). O pai lembrou-se, imediatamente, de uma dissertação que havia dois meses tinha revisado. O texto era de um amigo da área médica, sobre traços apontados pelos médicos sobre o seu filho. Não houve dúvidas, havia uma alteração genética que levou a apresentar traços da síndrome de Down. A condição de seu filho era irremediável, um nítido 105 Note o incômodo do protagonista frente à possível chegada da família: Daqui a pouco começa a aporrinhação dos parentes (TEZZA, 2016, p. 26). sentimento de desamparo invadiu o pai. Para ele, até ali, tudo poderia ser recomeçado, recriado, reinventado, mas agora não, a experiência com a doença do filho era algo granítico e intransponível: Ele recusava-se a ir adiante na linha do tempo; lutava por permanecer no segundo anterior à revelação, como um boi cabeceando no espaço estreito da fila do matadouro; recusava-se mesmo a olhar para a cama, onde todos se concentravam num silêncio bruto, o pasmo de uma maldição inesperada. Isso é pior do que qualquer outra coisa, ele concluiu nem a morte teria esse poder de me destruir. A morte são sete dias de luto, e a vida continua. Agora, não. Isso não terá fim. Recuou dois, três passos, até esbarrar no sofá vermelho e olhar para a janela, para o outro lado, para cima, negando-se, bovino, a ver e a ouvir. Não era um choro de comoção que se armava, mas alguma coisa misturada a uma espécie furiosa de ódio. Não conseguiu voltar-se completamente contra a mulher, que era talvez o primeiro desejo e primeiro álibi (ele prosseguia recusando-se a olhar para ela); por algum resíduo de civilidade, alguma coisa lhe controlava o impulso da violência; [...] (TEZZA, 2016, p. 31). O conflito gerador do resgate da memória desse aspirante escritor está posto, a deficiência de Felipe revelou a profunda intolerância do pai, condição que se estende à sociedade. Em meio à vertigem de dor, de inconformismo e de desamparo que o pai vivenciou, um sentimento tornou- -se mais forte, espécie de salvo-conduto, a possibilidade da morte do filho. A obsessão pela morte era o único pensamento capaz de consolar o jovem pai. Enquanto o lúgubre pensamento não se materializa, resta ao pai: Recusar: ele não olha para a cama, não olha para o filho, não olha para a mãe, não olha para os parentes, nem para os médicos sente uma vergonha medonha de seu filho e prevê a vertigem do inferno em cada minuto subsequente de sua vida. Ninguém está preparado para um primeiro filho, ele tenta pensar, defensivo, ainda mais um filho assim, algo que ele simplesmente não consegue transformar em filho (TEZZA, 2016, p. 32). Com o nascimento do filho, a manhã de 3 de novembro de 1980permanecerá, indelevelmente, marcada na memória do pai. Aquela manhã foi a mais brutal de toda a sua vida, momento que fez esse homem sentir-se como um boi cabeceando inutilmente contra as paredes do corredor do matadouro. A experiência brutal para o pai que não aceita a figura do filho é mostrada por meio de uma linguagem brutal a que se ajusta, sob medida, para explicar todo o desencanto e desconforto daquele que esperava um ideal de filho, porém acaba tendo outro. Há nesse caso, uma quebra na expectativa do pai. Todos os familiares foram embora, restaram no quarto um pai desencantado e a mãe com a criança no colo. 119

120 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS Uma rede de solidariedade de pessoas próximas surgiu diante do pai, porém não queria ouvir ninguém, se recusava a dar continuidade à existência frente ao nascimento de Felipe: [...] aquela criança horrível já ocupava todos os poros de sua vida. Haveria, para todo o sempre, uma corda invisível de dez ou doze metros prendendo os dois (TEZZA, 2016, p. 35). Então iluminou uma breve senda em seu espírito, lembrou- -se da dissertação de mestrado que tratava da síndrome de Down, evidências científicas que pudessem fundamentar a morte do filho e, em consequência, a liberdade do pai: [...] as crianças com síndrome de Down morrem cedo [...] são normalmente indefesas de infecções [...] E há mais, entusiasmou-se: quase todas têm problemas graves no coração [...] há milhares de outros pequenos defeitos de fabricação. Um carro não conseguiria andar assim (TEZZA, 2016, p. 35). Maus pensamentos invadiam o espírito do jovem pai, que se recusava, veementemente, a aceitar a existência do filho. O pai também buscou refúgio em exemplos culturais sobre o desaparecimento prematuro do filho, observa, então, que os mongoloides não existem na história, são seres ausentes nas obras clássicas, o que atestaria, em regras gerais, que não chegam a atingir a vida adulta: Leia os diálogos de Platão, as narrativas medievais, Dom Quixote, avance para a Comédia humana de Balzac, chegue a Dostoiévski, nem esse comenta, sempre atento aos humilhados e ofendidos; os mongoloides não existem. Não era exatamente uma perseguição histórica, ou um preconceito, ele se antecipa, acendendo outro cigarro o dia está muito bonito, a neblina quase fria da manhã já se dissipou, e o céu está maravilhosamente azul, o céu azul de Curitiba, que, quando acontece (ele se distrai), é um dos melhores do mundo simplesmente acontece o fato de que eles não têm defesas naturais. Eles só surgiram no século XX, tardiamente. Em todo o Ulisses, James Joyce não fez Leopold Bloom esbarrar em nenhuma criança Down, ao longo daquelas 24 horas absolutas. Thomas Mann os ignora rotundamente. O cinema, em seus 80 anos, ele contabiliza, forçando a memória, jamais os colocou em cena. Nem vai colocá-los. Os mongoloides são seres hospitalares, vivem na antessala dos médicos. Poucos vão além dos... quantos anos? Ele pensou em 10 anos, e calculou a própria idade, achando muito; (...) (TEZZA, 2016, p ). O pai tentava sustentar a sua lúgubre fantasia no cânone literário, condição que sugere uma devoção a esse modelo de arte, aspecto que sinaliza para uma visão de mundo enrijecida, isto é, uma crença inabalável em verdades imutáveis e absolutas e, consequentemente, certa incapacidade de relativização das vicissitudes existenciais. Sendo assim, não cabe espaço no espírito do pai à diversidade do outro que foge à regra. Ironicamente, a síndrome de Down, que não serviu aos clássicos da cultura, no romance de Cristovão Tezza ganha força e torna-se um dos temas mais caros do livro ao ponto de, no futuro, fazer com que ele se torne um renomado escrito no mundo. A obsessão pela morte de Felipe é tamanha ao ponto de o pai criar, imaginariamente, o funeral do próprio filho: Voltariam do cemitério com o peso da tragédia na alma, mas, enfim, a vida recomeça, não é? Viu-se caminhando no parque Barigui, quem sabe uma manhã bonita e melancólica como esta, repensando aqueles cinco aqueles três anos, talvez dois. A têmpera da alma: eis a expressão certa para começar seu discurso de orador. Colegas! Precisamos da têmpera da alma! Por que se preocupar? Refugiado na verdade cristalina de que seu filho não viveria muito era apenas uma espécie de provação que Deus, se existisse, teria colocado na sua vida para testar a têmpera de sua alma, como fez a Job o mundo parece que se reorganizou inteiro [...] mas esse fato, essa morte anunciada, parecia-lhe, nesse momento, o único lado bom de sua vida (TEZZA, 2016, p ). A família saiu do hospital, voltaram para a casa onde se tentou criar um simulacro de normalidade. O pai e a mãe conversaram como se nada de diferente tivesse ocorrido. A ideia de que a criança iria morrer logo tranquilizou o pai secretamente. Jamais partilhou com a esposa essa revelação. Enquanto o pai ansiava pela morte do filho, a mãe trabalhava no sentido contrário. Nesses poucos dias estava, permanentemente, atenta a cada mínimo gesto da criança que pudesse ameaçá-la. O pai, aos poucos, parecia iniciar o processo de aceitação da condição do filho, mas isso se dá por meio de negativas constatações: Não, nada mais será normal na sua vida até o fim dos tempos. Começa a viver pela primeira vez, na alma, a angústia da normalidade (TEZZA, 2016, p. 40). A normalidade sempre foi uma condição avessa à vida do jovem escritor, dado justificado por meio da perda de seu pai no passado: Desde que o pai morreu, muitos anos antes, o seu padrão de normalidade se quebrou. Tudo o que ele fez desde então desviava-o de um padrão de normalidade ao mesmo tempo, desejava ardentemente ser reconhecido e admirado pelos outros (TEZZA, 2016, p. 40). Nesse sentido, o pai de Felipe pode ser visto como um filho eterno, pois o nascimento de um filho especial impede que ele se reconheça no papel de pai, permanecendo, assim, sob o eterno papel de filho. A própria orfandade do pai de Felipe tira o da normalidade dos papéis familiares. Nem ele pode usufruir integralmente do papel de filho, visto a ausência da figura paterna que morrera, como consta no capítulo sete do romance. Com isso, há uma indicação de relutância em romper com o passado, o que compromete a relação com o filho recém-nascido, talvez, por isso: é preciso enfrentar as coisas como elas são, é preciso desarmar-se, ele sonhava. Não fugir do peso medonho do instante presente (TEZZA, 2016, p. 41). Contudo, ao certo, o tempo e o convívio com o filho poderão resolver questões inerentes à inadaptação do sujeito. Felipe tinha bastante dificuldade durante a amamentação, tiveram que arrumar uma traquitana para retirar o leite da mãe, era uma espécie de funil de vidro com uma bombinha de borracha. Os dias eram difíceis para a mãe que, certa vez, afirmou ao marido: Eu acabei com a tua vida. E ele não respondeu, como se concordasse a mão que estendeu aos cabelos dela consolava o sofrimento, não a verdade dos fatos. Talvez ela tenha razão, ele pensa agora, no escuro da sala é preciso não falsificar nada. Ela acabou com a minha vida refugia-se no oco da frase, sentindo-lhe o eco, e isso lhe dá algum conforto (TEZZA, 2016, p. 42). 120

121 UFU 2017 Indiretamente, ao gestar e dar à luz, a mulher acaba com a vida do marido (existência aos moldes que o pai acreditava ser a conduta certa) para dar a vida a outro. O surgimento de uma vida implica a morte de algo ou alguém, esse é o paradoxo da existência. O nascimento de Felipe exige que o seu pai eleve-se a essa condição. Adiante no romance, o narrador, identificado com o ponto de vista do pai, faz importantes reflexões sobre a origem do nome dado à particularidade genética de Felipe. Essa passagem do livro se assemelha a um trecho de enciclopédia, relatório científico ou a uma palestra médica: Já viu na enciclopédia que o nome da síndrome se deve a John Langdon Haydon Down ( ), médico inglês. À maneira da melhor ciência do império britânico, descreveu pela primeira vez a síndrome frisando a semelhança da vítima com a expressão facial dos mongóis, lá nos confins da Ásia; daí mongoloides. Que tipo de mentalidade define uma síndrome pela semelhança com os traços de uma etnia? O homem britânico como medida de todas as coisas. O príncipe Charles, aquela figura apolínea, será o padrão de normalidade racial, e ele começa a rir no escuro, acendendo outro cigarro. E como essa denominação durou mais de um século, como algo normal e aceitável? (TEZZA, 2016, p ). A indicação do nome completo do médico acima e de sua data de nascimento e morte soa como algo deslocado em meio ao romance, obra ficcional. Um dado interessante a ser ressaltado, e que é ironizado pelo narrador, é o caráter etnocêntrico dos ingleses ao criarem o termo mongoloide. Após dois dias do nascimento de Felipe, o pai criou mais um refúgio psicológico para tentar escapar do peso do momento presente: talvez pudesse ter ocorrido um erro no diagnóstico, de fato, a criança poderia ter algum problema de outra natureza. Para isso, o jovem escritor resolveu tirar a dúvida por meio de um exame de cariótipo. Contudo, todos sabiam que essa hipótese era remota, visto que o menino parece uma demonstração viva de todas as características mais óbvias da síndrome, praticamente um exemplo didático para usar em sala de aula (TEZZA, 2016, p. 47). Com isso, o pai e a mãe avançam com o filho rumo ao prédio da genética, na universidade. A ciência tentaria organizar o que veio embaralhado pela natureza dando a certeza sobre a real condição genética de Felipe. Tiraram amostras de sangue, restava aguardar os resultados. SÍSIFO DE 1970 Diante da perspectiva de que Felipe não morra, o pai se imagina como um pequeno Sísifo do vilarejo (TEZZA, 2016, p. 53), arrastando até o fim dos tempos a sua pedra inútil montanha acima. Sísifo é um personagem mitológico bastante conhecido pela sua inteligência e o castigo que recebeu após a morte. Ele denunciou Zeus sobre o rapto de uma ninfa em troca de uma fonte de água pura para a sua cidade. Assim, Zeus enviou Tânatos (deus da morte) para levar Sísifo ao submundo, contudo este conseguiu enganar a divindade amarrando-a, em decorrência disso, não sendo levado ao mundo dos mortos. Em seguida, Ares desamarra Tânatos e leva Sísifo ao mundo dos mortos. Antes de partir, Sísifo pedira a sua esposa que não enterrasse o seu corpo. Com isso, no mundo dos mortos, Sísifo pediu a Hades que o deixasse voltar à terra para vingar-se de sua esposa, que não havia enterrado o seu corpo. O deus sombrio autorizou a viagem. Porém, todo esse movimento era uma articulação de Sísifo, que não voltou ao mundo dos mortos, regressando apenas no futuro com a sua morte por velhice. Por conseguinte, como punição por enganar os deuses, Sísifo é colocado numa montanha com uma pedra pesada sobre ele, que deveria levar o objeto para o outro lado da encosta para não morrer esmagado por ele. Não obstante, toda vez que ele chegava ao cume, a pedra rolava de volta para o início, forçando Sísifo a recomeçar. Por isso, a expressão trabalho de Sísifo remete a qualquer árduo trabalho repetido indefinidamente sem esperança de conclusão. O pai de Felipe se coloca na condição de Sísifo, pois acreditava que, diariamente, teria de exercer atividades com o filho, as quais não resultariam em uma evolução na existência da criança, metaforizada por meio da pedra do mito. Em seguida o casal levou Felipe ao Hospital das Clínicas a fim de realizar exames cardiológicos no filho, visto que crianças com a síndrome de Down, normalmente, apresentam alguns problemas no coração. No hospital, o pai volta a ter esperança que o filho venha a falecer: O que o ampara agora, no vaivém desses dias medonhos, é a perspectiva justamente da cardiopatia do seu filho, que acabará logo com o pesadelo, ele sonha, e mais uma vez se antevê recebendo abraços e condolências sentidas. Pensa vagamente na imagem de um filme inglês, um enterro sob uma árvore, num fim de tarde melancólico, todos de preto. Mas não haverá serviço religioso. Uma cerimônia limpa e tranquila. Um recomeço: o mundo começa com um suspiro de alívio. O desejo estúpido de morte não deixa há um esforço de derrotá-lo (primeiro a miragem de um engano genético, que faria desse nascimento só um pequeno trote do destino), depois a vergonha do próprio sentimento, a estupidez de sua frieza oculta ele não consegue ocultá-lo; em lapsos, esse desejo volta irresistível, e é como um sonho (TEZZA, 2016, p ). O pai e a mãe, em meio aos exames médicos do filho, presenciaram um desacordo de opiniões no diagnóstico sobre um suposto problema cardíaco de Felipe. A médica não concordou com o laudo, um sopro no coração da criança, atestado pelo velho médico. Ao sair do consultório, a médica informou ao casal: Ao que a jovem senhora, sorridente, responde com o olhar, enquanto os encaminha de volta ao corredor: Fiquem tranquilos, não é nada, ela parece dizer. Na volta ao mundo real, um simples exame com outro especialista constata: não há nada de errado com o coração do Felipe (TEZZA, 2016, p. 61). 121

122 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS BOI CABECEANDO A saída para o pai frustrado seria escrever, isto é, fingir que nada estava acontecendo, refugiando-se no silêncio das palavras, à maneira de antigamente, quando não havia um filho pedra para cuidar. Dias depois, finalmente, a comprovação: Nenhuma dúvida. O cariótipo deu mesmo a trissomia do 21 (TEZZA, 2016, p. 65). Diante da confirmação, é necessário fazer uma avaliação com especialistas, preparar-se à estimulação precoce. Sendo assim, decidem levar o filho a São Paulo a uma consulta e avaliação. Porém, o pai Continua cabeceando ainda não saiu da maternidade; ainda não tirou a criança de lá. Ele mesmo ainda não começou a viver essa teia prendendo-lhe os gestos, esse futuro incerto, esse filho silencioso nas mãos. A inteligência é o único valor importante da vida, ele imagina mais nada (TEZZA, 2016, p. 68). O sofrimento do pai se estende por labirintos infinitos. A não aceitação do filho se dá pela quebra do paradigma: Felipe não se enquadra estética e cognitivamente aos moldes. A racionalidade é uma condição bastante cultuada pelo pai. Antes de chegar a São Paulo, o jovem pai, finalmente, voltou o seu olhar para si próprio numa importante reflexão: O problema não é o filho; o problema é ele (TEZZA, 2016, p. 68). Aqui, nesse caso, começamos a ver resquícios de uma possibilidade de tentativa de compreensão do problema com outro olhar, condição análoga a outra situação em São Paulo: Sou eu que preciso de avaliação, não a criança (TE- ZZA, 2016, p. 71). Esse deslocamento do eixo da culpa pode ser produtivo ao pai. O consultório médico, em São Paulo, trouxe ao pai o senso de uma realidade mais dura. A médica gentil e gelada informou-lhes tudo que já sabiam sobre o caso da trissomia 21. Essa consulta nos remete à outra feita por um casal de médicos (senhor e a jovem médica), dadas a frieza e impessoalidade dos médicos / cientistas: Ela é uma porta-voz impessoal da ciência, e tem a obrigação de dizer as coisas exatamente como elas são, e as coisas não são boas, porque não são normais e fogem de todas as medições padrão em todos os aspectos: uma trissomia do cromossomo 21, que se manifesta, agressiva, em cada célula do bebê. É isso. Levem o seu pacote, ela parece dizer, quando enfim sorri o seu sorriso profissional. Dizer as coisas como elas são: não reclame, ele se vê pensando. Você quer ouvir uma mentira, e isso a médica não tem para dar. Você quer um gesto secreto de piedade, disfarçado pela mão da ciência, e isso também está em falta (TEZZA, 2016, p. 72). A família gostaria de algumas palavras de consolo, mas, sobretudo, queriam ter uma solução para o problema do filho. Certo dia, um recorte de jornal caiu nas mãos da família, duas semanas após a infrutífera ida à clínica de São Paulo. Agora, neste caso, uma clínica do Rio de Janeiro oferecia um programa completo de estimulação precoce para crianças com síndrome de Down. No tratamento, seriam aplicadas técnicas tradicionalmente usadas para afetados por lesão cerebral. A família seguiu para o Rio de Janeiro. A clínica ficava no alto de um morro, rodeada de verde, prédio com linhas azuis, imponente como um colégio velho. O pai estava ansioso com a metodologia do tratamento. No interior da clínica, o pai sentia e bastante incomodado com a imagem que viu Mais alguns passos e ele para diante de uma porta aberta que dá para um salão onde vê a sua mais inesquecível imagem não consegue conter o choque, e, lá na última camada da alma, a certeza de que até o fim dos tempos será esse o seu mundo, e não outro. São dezenas de pessoas, crianças, jovens, adultos todos irremediavelmente lesados, um pátio dos milagres de deformações, braços que não obedecem, bocas que se abrem e não se fecham, olhos incapazes, ríctus de desejos exasperantes que o gesto não consegue cumprir, dedos espalmados, sempre a meio caminho; e, em tudo, como que a sombra de um universo duplo esmagado por um intransponível instante presente. Estão em lugar nenhum (TEZZA, 2016, p ). A clínica é localizada no alto de um morro, elevação que pode sugerir algo dentro do texto, as próprias experiências ali vividas dão um novo status ao pai, que não aceitou essa condição. Sobre a simbologia do(a) morro/montanha comentam Chevalier e Gheerbrant (2006): O simbolismo da montanha é múltiplo: prende-se à altura e ao centro. Na medida em que ela é alta, vertical, elevada, próxima do céu, ela participa do simbolismo da transcendência; [...] (p. 615). Ao certo, após a dolorosa experiência com inúmeros casos graves de saúde, o futuro escritor parece sensibilizar-se com a condição do filho. Curiosamente, a gravidade dos pacientes da clínica mexe com o pai. As deformidades vistas na clínica parecem alterar a percepção limitada do sujeito. Normalmente, a anomalia vista é um sinal de mistério, seja maléfico, seja benéfico. Como qualquer anomalia, ela comporta uma primeira reação de repulsa; mas é o lugar ou o signo de predileção para esconder coisas muito preciosas, que exigem um esforço para serem conquistadas (CHE- VALIER & GHEERBRANT, 2006, p. 328). O pai, até o momento, apresentava o primeiro quadro descrito acima sobre a anomalia do filho, isto é, a repulsa. A próxima etapa será a compreensão e admiração do objeto odiado, mas, enquanto isso, é necessário um tempo de gestação interior, de aceitação do diferente, e, sobretudo, de aceitação dos próprios condicionamentos, que limitam a conquista de coisas muito preciosas. Dessa maneira, o jovem pai, inicialmente, na clínica, no Rio de Janeiro, tem um pensamento mesquinho: o caso do meu filho é diferente; ele não tem lesão cerebral; ele é vítima de uma síndrome genética. Ele não precisará se arrastar para mover o braço (TEZZA, 2016, p. 85). Esse pequeno degrau de superioridade foi o seu breve refúgio quando entrou na sala para a primeira avaliação. Aqui, há a eterna ânsia de superioridade humana, que cria competições, a fim de nos hierarquizarmos mesmo em situações limítrofes, como as observadas na clínica. Pela 122

123 UFU 2017 primeira vez, o pai sentiu-se animado, sendo dominado por um otimismo mais ou menos visível, uma empatia nos rostos. Pela primeira vez, sente que seu filho éum indivíduo, o que o surpreende, como se mentissem (TEZZA, 2016, p. 86). A clínica fez o pai cogitar uma proximidade do filho à normalidade, condição não pensada anteriormente, mas o lugar veio como um combustível para isso. Essa parte do romance é uma fagulha de esperança depositada no filho: Ainda não existe um filho na sua vida; existe só um problema a ser resolvido, e agora lhe deram um mapa interessantíssimo, quase um manual de instruções. Por trás desse pequeno milagre, começa a aparecer um detalhe sutil sobre o qual ele não pensou ainda: motivação (TEZZA, 2016, p. 86). ESTÍMULO PRECOCE Se antes o jovem pai sentia-se como [...] um boi cabeceando no espaço estreito da fila do matadouro [...] (TEZ- ZA, 2016, p. 31), agora, há um sujeito motivado, procurando meios para ajudar o filho. Na verdade, começa a ser tomado pela ideia de normalidade: É uma corrida, ele pensa prosaicamente, entrando de cabeça no lugar-comum em que se encontra: é uma corrida e nós saímos lá de trás, mas, com um bom trabalho, o menino vai alcançar os outros (TEZZA, 2016, p. 89). As experiências clínicas fazem o pai reformular, continuamente, a sua concepção sobre o psiquismo humano. A enfermeira mostrou para a família o método para estimular o sistema nervoso da criança, o processo consistia em repetições movendo os braços e pernas de Felipe seguindo o mesmo ritmo cruzado natural de um ser humano andando. De acordo com a clínica, pela deficiência da criança (genética ou adquirida por lesão cerebral, não importa), esse padrão inato de movimento cruzado de pernas e braços estabelecido poderia trazer outros movimentos, reflexos e cognições, seria uma espécie de recuperação daquilo que estava afetado na criança. O pai gostou das orientações, pois, ali, havia um método: Por mais absurdo ou inútil, como às vezes lhe dirão anos depois é sempre um modo de ele tocar fisicamente o seu filho, fazer dele uma extensão sensorial e afetiva sua, fundar uma cumplicidade por osmose que ele, naquele primeiro momento, jamais imaginaria possível, ainda cabeceando para sair da jaula mental (TEZZA, 2016, p. 90). A experiência da clínica é um rito de aproximação entre o pai e Felipe. Com isso, começam a ser estabelecidas as relações afetivas entre os dois, por menores que sejam. Vemos aqui o papel de pai e o de filho começando a ser estabelecidos. Com isso, o processo de amadurecimento neurológico passa a ser diariamente aplicado pelo pai: Reflexo condicionado é o do pai a todo instante que se lembra, estende o dedo para que o filho ali se agarre, sem pensar (TEZZA, 2016, p. 95). O pai anseia que o seu filho cumpra o papel de filho: À noite, no bar, o pai se transfigura sob a cerveja e o cigarro, num otimismo romanesco (TEZZA, 2016, p. 95). Tudo isso, objetivando que em dois ou três anos, Felipe seja uma criança normal. Várias vezes por dia, em sessões de cinco minutos, Felipe era colocado sobre a mesa da sala de bruços: De um lado, ele; de outro, a mulher; segurando a cabeça, a empregada, uma moça tímida, silenciosa, que agora vem todos os dias. Três figuras graves numa mesa de operação. De bruços, a face diante da mão direita, que avança ao mesmo tempo em que a perna esquerda também avança; braço esquerdo e perna direita fazem o movimento simétrico de lagarto, sob o comando das mãos adultas, que são os fios da marionete, quando a cabeça é voltada para o outro lado (TEZZA, 2016, p. 96). A figura dos adultos parece modelar/criar a criança para o mundo, vale dizer que esse processo é mútuo, sobretudo, para a figura do pai. Ali pai e filho parecem vir ao mundo. O pai instalou uma rampa de madeira, na sala, que tem a forma de um escorregador de criança. A casa parece aos poucos uma extensão da clínica: Coloca o bebê no topo da rampa, com a cabeça para baixo. Vamos lá, pitusco! (TEZZA, 2016, p. 99). Nessa etapa do treinamento, Felipe é colocado no alto da rampa, na qual deve deslizar com o esforço de seus movimentos até atingir a parte baixa. Depois, é colocado, novamente, no ponto alto para iniciar a operação de descida. Para incentivar a descida do filho, o pai colocava, na parte baixa da rampa, um despertador intermitente cujo som servia de estímulo à criança. Enquanto Felipe descia a rampa, o pai ia ao quarto escrever um trecho a mais de seu livro. O pai, em outra etapa, coloca uma máscara sobre o nariz e a boca de Felipe objetivando atrapalhar a respiração da criança. Basta um pequeno gesto do bebê para que a máscara se desloque e ele volte a respirar, contudo essa ação é difícil para o filho, que vive o desespero da asfixia. Supostamente, o que torna tão difícil a empreitada é a desorganização neurológica da criança, e, de acordo com o narrador, não somente o esforço de tirar a máscara, mas também o ar inspirado com urgência seriam benefícios à saúde do bebê e à superação das limitações impostas pela síndrome. Ao mesmo tempo que o pai se solidariza com as circunstâncias do filho, a fim de livrar-se da máscara, o narrador assinala: Sim, essa brutalidade faz sentido, ele pensa talvez (isso ele não pensa) de fato a criança tenha de conquistar o seu direito de se tornar um filho (TEZZA, 2016, p. 105). Curiosamente, ele ia, aos poucos, se tornando pai. Temos mais uma etapa realizada pelo pai para com o filho a fim de organizar as funções neurológicas de Felipe. Agora, o pai inicia as sessões de multiestímulo. Ele lembrou-se que o irmão dera lhe um projetor de imagens, equipamento que é usado em um quarto escuro onde são projetadas fotografias de formas, cada uma delas com legendas maiúsculas: No quarto escuro, súbito se ilumina a parede com a imensa laranja em close, o texto em maiúsculas, e a voz do pai, como um sargento fazendo a ordem-unida, repete laranja clact, clact, outra foto, árvore clact, clact, outra foto, chaveiro clact, clact, outra foto, livro. Sentado na cadeirinha com cinto de segurança, o bebê se distrai com as súbitas iluminações, as figuras gigantes na parede, a voz do pai, entre uma escuridão e outra. Nada daquilo significa nada, apenas brilhos coloridos e súbitos diante dele, mas é preciso insistir, várias vezes por dia, as palavras avulsas recitadas como num poema dadaísta (TEZZA, 2016, p. 106). 123

124 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS O jovem pai, à frente, começará a sentir a inutilidade e a irracionalidade da exposição mecanicista de Felipe às palavras avulsas e descontextualizadas. Em intervalos de uma hora, o aspirante a escritor voltava ao treinamento mecânico do filho. Em meio às palavras prosaicas projetadas à parede ( laranja, copo, livro, dentes, por exemplo) estava a palavra pai. Em quase nenhum momento do livro, pelo menos não notamos, vislumbra-se a possibilidade de apropriação do sentido da palavra pai pela criança na interação pai-filho. A associação do significante pai a todo o repertório semântico contido nessa figura fundamental para constituição do sujeito parece, assim, subtraída da narração. Coincidentemente, no capítulo vinte e um, o narrador assinalará o fato de Felipe nunca referir-se a ele por meio desse substantivo, chamando- -o sempre pelo nome próprio. De outro lado, a mãe é sempre referida pela criança como mãezuca (a palavra mãe, destaca-se, nunca foi mencionada pelo narrador entre aquelas que o pai apresentava a Felipe nas sessões de imagens). Anos depois, a família mudou-se para um sobradinho da periferia. Eram 54 metros quadrados, na verdade, o lugar é visto como uma miniatura de casa. Para a mulher ir ao trabalho tinha que pegar dois ônibus para chegar ao outro lado da cidade. Ela tinha se colocado contra a aquisição do imóvel, contudo o marido insistiu na compra. O pai de Felipe debruçava-se, havia meses, sobre um novo romance, Trapo. Enquanto isso, se desligava do mundo externo, apenas escrevia em sua minúscula torre de marfim. Inúmeras foram as cartas de recusa das editoras, não viam a qualidade das obras produzidas por ele: Vai pondo na gaveta as cartas de recusa das editoras e engolindo em seco as derrotas dos concursos literários, mas nada disso o incomoda de fato (TEZZA, 2016, p. 115). Neste trecho, como em outros, vemos o protagonista do romance como o alter ego de Cristovão Tezza, podemos constatar certo amargor crítico, no trecho acima, referente às editoras, que não aceitavam os textos produzidos por ele. Tudo isso não deixa de ser uma crítica ao meio editorial, que, hoje, o vê como um dos maiores escritores do Brasil. Entretanto, antes, ele experimentou o dissabor das recusas. A família, anos depois, passou a ter um novo integrante, a mãe de Felipe estava grávida novamente. Fizeram exames e constataram que a nova criança não apresentava nenhuma alteração genética. Enquanto isso, em meados de 1982, o pai via, com profundo descrédito, o tratamento de Felipe: Está há mais de um ano seguindo à risca o tratamento da clínica: exercícios de braços e pernas de padrão cruzado, várias vezes ao dia; sessão de palavras e imagens; máscara para respirar; deixar o máximo de tempo a criança no chão; estímulos de todo tipo. Mas o pai começa a desabar. Não está aguentando. Desistiu de perseguir as metas da formação da inteligência segundo Piaget de um momento em diante, como os chimpanzés de pesquisa, que brilham nos primeiros meses de vida humilhando bebês humanos de mesma idade e em seguida estacionam para sempre, seu filho começou a ficar irremediavelmente para trás (TEZZA, 2016, p. 117). Aqui, há uma descrença no método científico do programa aprendido no Rio de Janeiro, condição que deixa transparecer um tom crítico à soberania da medicina, pois ela não consegue atender a todas as demandas das doenças. O pai continuava com muita vergonha de falar do filho em público. Quando questionado sobre as condições de saúde do filho, automaticamente respondia: ele está ótimo (TEZZA, 2016, p. 118). Mesmo muito tempo depois, durante muitos anos, já escritor conhecido, relutará em falar do filho já não é mais, ele sabe, uma fuga, o adolescente cabeceando para negar a realidade pura e simples; é a brutalidade da timidez, que exige explicações que, inexoráveis, se desdobram até o fundo de um fracasso (TEZZA, 2016, p. 119). Somente dois anos após o nascimento, Felipe começava a dar os primeiros passos. A capacidade linguística do filho ia de mal a pior. O pai sentia a inutilidade das palavras gravadas na cartolina e projetadas na parede: Alfabetizar uma criança que não fala? Estúpido pragmatismo americano, ele pensa, lembrando do frágil aparato teórico que sustenta o programa [...] (TEZZA, 2016, p. 122). Novamente, a descrença às técnicas científicas, que procuram solucionar os problemas médicos das pessoas. O narrador, ao longo dos anos, vai pontuando a relação entre linguagem, literatura, a vida e sua estetização, mostrando que se trata de coisas distintas que não podem ser confundidas: Só a frieza do olhar de fora pode dar essa dimensão à vida aqui, agora, ele está no olho do furacão de si mesmo, e a vida jamais pode ser estetizada, ela não é, não pode ser um quadro na parede (TEZZA, 2016, p. 129). Esse fragmento está inserido em um grande parágrafo no qual o pai reflete enquanto vê Felipe entrar no carro familiar (um fusca amarelo muito desejado pela criança) e tenta a melhor forma de subir no banco do motorista. Adiante, a criança começará a buzinar e provocará um acesso de ira no pai. É no décimo sexto capítulo do livro, um dos primeiros em que a presença de Felipe começa a se impor, revelação de que ele é um sujeito, que tem desejos, interesses, que sente e age em nome próprio. PLANO HABITACIONAL Havia uma profunda necessidade de adquirir recursos financeiros para a existência da família. Para isso, pensou em prestar um concurso em Florianópolis: [...] talvez o trabalho de professor seja o único decente que ainda resta no país, ele fantasia, em causa própria (TEZZA, 2016, p. 133). Porém, no fundo, ele queria uma mudança radical em sua existência: viver à deriva da vida, isto é, deixar a mulher, o filho, o sobradinho, recomeçar a vida, passando-a a limpo, mais uma vez. A família viveu duras dificuldades financeiras que a impedia de pagar os valores do financiamento do sobrado onde habitavam. Aqui, nesta parte, temos uma sutil ironia feita às políticas econômicas brasileiras dada a extorsão às classes baixas: O que era para ser um plano habitacional destinado à população de baixa renda foi se transformando numa extorsão em favor da classe média alta, num golpe destinado a arrancar do Estado o subsídio de promoção do abismo social, que agora, no século XXI, cobra a conta, ele pensará anos depois, tentando entender o imbróglio brasileiro. Não vou pagar essa merda, ele diz à funcionária do banco, que, zelosa, esquece o palavrão e lembra a ameaça: 124

125 UFU 2017 O senhor vai perder sua casa. Pode levar. (TEZZA, 2016, p. 134). As prestações tinham subido quase 200 por cento, por isso tornava-se insustentável o pagamento dos valores. A relação com o banco deixa transparecer a forma um tanto quanto libertária do jovem escritor conduzir a família. Tentou vender o imóvel, mas o máximo que conseguiu foi um Chevette de suspensão rebaixada, tala larga, rodas de alumínio, uma Nossa Senhora pendurada no retrovisor. As cartas do banco empilhavam na gaveta. Resolveram deixar o sobrado a um amigo que vendia pôsteres na rua com a mulher e filha. Esse amigo poderia ficar ali até o banco o despejar. Por fim, o sobrado acabou sendo doado ao banco. O pai da família se mudou para Florianópolis, pois tinha passado em um concurso para o cargo de professor. A família viveu dois anos dividida, encontrando-se apenas no final de semana. O pai, pela primeira vez, em 34 anos, teve uma carteira de trabalho assinada e recebia dinheiro fixo, ao final do mês. Finalmente, ele se entregou ao sistema vivendo um breve clima de estabilidade profissional que durou pouco, pois os funcionários públicos entraram em greve. Com isso, o pai aproveitou o tempo para escrever mais um livro: Aventuras provisórias. Os dias vividos pelo pai em Florianópolis, local onde estava sozinho, puderam ajudá-lo a pensar na sua condição de pai-escritor-professor. Ele precisará atravessar a linguagem da norma, da cultura erudita, a fim de alcançar a condição de dar conta de uma outra linguagem, que é a do filho, e, assim, talvez, aproximar-se da criança, experimentar uma forma de linguagem que os acolha simultaneamente, que seja uma maneira de interação, de troca, de contato. A relação entre o pai e o filho será bastante explorada pelo narrador, que faz incursões ao passado do pai, relembrando episódios de sua juventude, que se entrelaçam ao tempo presente de Felipe. No tecido estabelecido entre passado e presente, o pai percebeu os seus próprios limites, limitação literária e existencial: Eu não posso ser destruído pela literatura; eu também não posso ser destruído pelo meu filho eu tenho um limite: fazer, bem-feito, o que posso e sei fazer, na minha medida (TEZZA, 2007, p. 159). Com isso, o sentimento de onipotência do pai vai se fragmentando. Na verdade, aqui, percebemos ligeiras transformações de um sujeito, que começa a se ver com outro olhar. Na outra cidade, o pai, praticamente, esquece que tinha um filho, parece, superficialmente, viver boas sensações distante da família. Mas, na verdade, [...] se sente num limbo estranho, vivendo em lugar nenhum: todos os projetos vão dando em nada (TEZZA, 2007, p. 144). A sua alma já sabe que não é a solidão de Florianópolis que ele deseja, sentia tudo a seu redor como sendo algo falso, por isso, [...] o único foco real de sua vida é escrever, já como um escapismo, um gesto de desespero para não viver; começa lentamente a ser corroído pela literatura, que tenta lhe dar o que ele não pode ter por essa via, que é um lugar no mundo; cada livro é um álibi, um atestado de substituição [...] (TEZZA, 2007, p ). A literatura é outro sonho falso, pois nem ela é capaz de trazer ao sujeito paz existencial, uma vez que, para isso, necessitaria de reconhecimento, fama, originários de seus textos, condição não experimentada, dadas as reiteradas recusas das editoras. FUSCA AMARELO Temos uma passagem em que o narrador faz menção a uma briga de trânsito, que se inicia quando alguém buzina atrás do carro do escritor, para que ele atravesse rapidamente uma preferencial: Numa passagem adiante, de uma pista para outra, antes de avançar, espera que passem os carros da preferencial. Alguém buzina atrás, uma buzina um breve tempo mais longa do que seria razoável ele fecha os olhos e se debruça sobre a direção. Eu vou matar esse filho-da-puta. Ouve de novo a buzina, agora ostensivamente agressiva. Respira fundo os carros continuam passando na preferencial; não há como ele avançar. Abre-se uma brecha, mas insuficiente; o seu fusca não tem torque e ele sempre calcula um largo espaço para avançar com segurança em situações semelhantes. Agora a buzina é frenética. Ele abre a porta do carro a mulher diz algo certamente sensato que ele não ouve e avança para o carro da buzina. Descobre que é um senhor engravatado e, agora, visivelmente assustado com o jovem marginal que surgiu ofensivo diante dele. Ele não vê, mas seu filho tem a cara grudada no vidro de trás, contemplando com profunda atenção a obra do pai. (TEZZA, 2007, p ). Felipe estava no banco de trás, de lá contemplava a dantesca cena, que o pai insultava o senhor, motorista do outro veículo: Por que o senhor não pega essa buzina e enfia... e segue-se uma fileira de ofensas inacreditáveis, em voz muito alta, para que aquele filho-da-puta saísse do carro; venha aqui, seu porra! ele queria matá-lo; pensou em puxar o velho pelo colarinho, arrancá-lo pela janela, como num desenho animado, também para matá-lo (TEZZA, 2007, p. 147). Em meio a briga de trânsito, Felipe grita a primeira palavra: puta, para vergonha do pai: Súbito, percebe que seu filho passa a gritar puta, com uma eficácia articulatória que a fonoaudióloga foi incapaz de arrancar dele, a quem quer que esteja ao lado de sua janela, motorista ou passageiro, na sequência de engarrafamentos daquela avenida (TE- ZZA, 2007, p. 148). 125

126 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS Sobre esse episódio insano, numa entrevista, o repórter questionou o escritor se essa cena ocorreu de fato, e ele respondeu da seguinte maneira: [...] aconteceu. Aquele é um dos fatos biográficos do livro. Eu fiz uma moldura ali, mas aconteceu. A briga no trânsito e o Felipe repetindo o palavrão que viu o pai dele gritar tão furiosamente lá fora (risos). São aqueles momentos limites da vida em que você demora quinze minutos para cair a ficha e ver que você é capaz de fazer coisas absolutamente estúpidas, num estado emocional alterado, fora de si. E ali, juntava várias coisas, o pai e o filho. O pai, que é o grande personagem do livro, até porque o Felipe não tem voz, ele só é visto. E essa relação percorre o livro todo. O pai voltou ao carro e, somente certo tempo depois, conseguiu acalmar o filho, que estava em êxtase com a confusão do trânsito. Essa situação limite se revela importante para o filho, que pronunciou a primeira palavra, e para o pai, o qual passou a conhecer-se com mais completude. Esse episódio se revela como inesquecível, pois pela falta de sentido, está, indelevelmente, na memória daquele que o viveu. As dificuldades linguísticas de Felipe são vividas pelo pai como um fracasso. Com isso, o futuro vai sendo pressentido de forma dolorosa, a ausência de linguagem poderia, segundo a concepção do pai, dificultar ao filho a conquista de seus próprios espaços. Para o aspirante a escritor, a noção de não conquistar a linguagem equivale a permanecer em uma condição primitiva, não civilizada, não humana. CRECHE Felipe, aos seis anos, passou a frequentar uma creche junto à irmã. A vida parecia encontrar o ponto de estabilização, o pai voltou a Curitiba. Seis anos depois de escrito, o livro Trapo é finalmente editado em São Paulo por uma grande editora, tem boa recepção crítica, as condições turbulentas em que foi escrito não existem mais. A rotina deu a Felipe um eixo tranquilizador passando, assim, a educar-se e a descobrir-se. Diz o narrador: Mas é preciso conhecê-lo, senti-lo. O pai, sempre que pode, nos encontros mais raros desses dois anos, fala incansavelmente com o filho, verbalizando tudo o que faz, a todo momento talvez, ele desconfia, pela mágica do som das palavras que ouve, a criança absorva alguma semente da linguagem que a natureza ainda não lhe deu [...] (TEZZA, 2007, p ). Esse trecho deixa transparecer a necessidade do pai em conhecer o filho, contudo, para que isso se efetive, ele esbarra na onipotência da linguagem verbal, tomando-a como meio privilegiado de conhecimento e deixando em segundo plano os afetos e sensações. Felipe, aos poucos, vai tornando-se mais autônomo e consciente de suas decisões e ações cotidianas. O pai se contenta com as boas escolhas diárias do filho: Um eixo de medida dos próprios passos, aliás cada mais equilibrados (TE- ZZA, 2007, p. 153). As decisões de Felipe, coincidentemente, são análogas às do pai, que se tornou professor universitário, isto é, aos poucos deixa de lado as concepções libertárias inserindo-se no mundo do adulto. Nas competições de natação, Felipe, ingenuamente, sem conseguir compreender as regras e objetivos de uma competição, nunca chegava em primeiro lugar, mas comemorava como se fosse o primeiro do pódio: Terminada a corrida em último lugar que seja, Felipe faz a festa do vencedor, levantando os braços, feliz da vida: é o Campeão. Nas primeiras vezes, o pai tenta lhe explicar, paciente: Filho, você tirou quarto lugar; veja, são seis raias; só o primeiro é o campeão mas na metade da explicação o ridículo daquilo vai contaminando a voz. Se o filho não consegue contar até dez (a rigor, não conta conscientemente até cinco apenas repete nomes decorados, às vezes acertando a sequência), que sentido tem para ele quarto lugar? Trata-se apenas de um jogo, ou, antes ainda, trata-se da encenação de um jogo, no qual o filho reproduz o que se espera dele nadar daqui até ali e o mundo lhe dará a taça de campeão. Não é assim? Se ele nadou o percurso, por que não? (TEZZA, 2007, p ). Há uma profunda ilusão de normalidade em curso na vida da família, o que impede o pai de pensar detidamente no filho. Sem prestar atenção, parece-lhe que a criança corresponde perfeitamente ao que se espera dela. Contudo, quando Felipe está para fazer oito anos na creche [...] começa a mandar sinais velados de fumaça (TEZZA, 2007, p. 156), símbolos de que as coisas não estavam bem, talvez fosse necessário excluir a criança do local: O território da normalidade imaginária chegou ao fim o pai já teve as férias dele, mas não sabe ainda. Convenientemente autista, não entende bem quando a diretora diz que quer conversar face a face com ele, a voz grave. Ela já deu várias dicas, mas ele parece que não compreende o que ela quer dizer e ela não quer dizer a coisa em si, porque talvez não seja politicamente correto. (Quem sabe ela tenha medo de um processo judicial, ele imaginou, anos depois, caindo uma ficha fantasma na cabeça.) Seria melhor para ela se o pai entendesse e, de bom grado, com mesuras e agradecimentos, levasse o filho para bem longe dali; como ele não entende, ela terá de lhe dizer, com toda a clareza (TEZZA, 2007, p. 156). SEGREGAÇÃO O território onde Felipe viveu durante sete anos tornou- -se insólito para ele. Seria preciso passar para o outro lado da cerca de arame farpado. A criança não poderia mais fazer parte da creche. Esse processo de exclusão sugere a falta de preparação dos sistemas de ensino para lhe dar com crianças especiais. A partir de agora, vemos então certo despertar do pai por conhecer seu filho e buscar caminhos para chegar até ele. Além disso, há um reconhecimento, da parte do pai, de que Felipe é capaz de fazer interessantes escolhas. O final desse capítulo é concluído com uma ação bastante poética e significativa no que se refere aos laços afetivos estabelecidos entre pai e filho: Sem pensar, pega a criança no colo, que se larga saborosamente sobre o pai, abraçando-lhe o pescoço, 126

127 UFU 2017 e assim sobem as escadas até a porta de casa (TEZZA, 2007, p. 159). Para o pai, levar o filho à escola especial foi o mesmo que reviver as experiências da clínica do Rio de Janeiro. Felipe também sentiu a diferença nos primeiros meses na escola especial reagindo, negativamente, pelo isolamento e pelo silêncio. Não reconhecia os outros que estavam ao seu redor. Durante certo tempo teria a relativa dificuldade em conviver com os seus iguais, [...] aquele conjunto disparatado de casos a um tempo semelhantes e muito diferentes que partilham a escola com ele (TEZZA, 2007, p. 167). Assim, o pai começou a perceber que [...] todas as crianças especiais são diferentes umas das outras de um modo mais radical do que no mundo do padrão de normalidade. Os estímulos sobrecarregados que recebem (elas ouvem a palavra não milhares de vezes a mais do que qualquer pessoa normal), o nível sempre diferente do aparato neurológico de recepção e a falta de referências ao longo da vida cotidiana, tudo isso vai criando essa solidão especial, a um tempo derramada, afetiva e inexpugnável, que às vezes explode em agressividade surda. No caso dele, é como se o desespero de normalidade que assombrava o pai passasse também ao filho, cujas únicas balizas eram as do pai, não as dele mesmo, em nenhum momento. Como se o filho não tivesse nenhuma medida própria; como se ele não tivesse cabeça para desenvolvê-la, o que é absurdo (TEZZA, 2007, p. 167). O narrador revela que o pai transmitiu ao filho o anseio pela normalidade, talvez, por isso, a dificuldade de adaptação à nova escola. O narrador resgata um sonho de juventude do pai, o de estudar numa escola inglesa onde seria permitido fazer tudo o que quisesse, criando seu próprio currículo. Dessa maneira, vê-se a recusa do pai e do filho ao tipo de escola em que deveriam se enquadrar de acordo com os seus respectivos contextos socioculturais. Assim, ambos se aproximam em seu sentimento de inadequação em relação aos padrões educacionais que lhe foram impostos. LUZES VERDADEIRAS O pai começou a sentir, conscientemente, o peso do sentimento pelo filho quando, pela primeira, Felipe desapareceu: É, talvez, ele refletirá logo depois, ainda em pânico, dando corda à sua rara vocação dramática, que agora lhe toma por inteiro, a pior sensação imaginável na vida quase a mesma sensação terrível do momento em que o filho se revelou ao mundo, da qual ele jamais se recuperará completamente, repete-se agora ao espelho, com intensidade semelhante, mas não se trata mais do acaso. Desta vez, ele não tem álibi: o filho está em suas mãos. E há que preencher aquele vazio que aumenta segundo a segundo, com alguma coisa, qualquer coisa mas estamos despreparados para o vazio (TEZZA, 2007, p. 161). Enquanto procura o filho pelas ruas da cidade, o pai também tenta mentalmente, encontrar os talentos de Felipe, questionando-se sobre aquilo que o individualiza, que constitui a sua marca essencial. Por fim, encontraram a criança, uma viatura da polícia o trouxe para casa. Felipe, como sempre, não parava de teatralizar o seu retorno, aspecto que acaba revelando o ridículo que se esconde por detrás de algumas pretensões grandiosas do pai, como, por exemplo, a busca pelo verdadeiro e pelo autêntico. Felipe se sentiu feliz por ser escoltado por um carro da polícia verdadeiro (uma palavra que ele aprendeu de repente com freqência) (TEZZA, 2007, p. 179). Ao voltar para casa e reencontrar o pai a criança comenta: -Olhe [...] Veja! As luzes verdadeiras (TEZZA, 2007, p. 180). A inocente fala de Felipe acabou por demolir a suposta grandiosidade do caráter verdadeiro das coisas, aspecto que faz ressoar na memória do leitor as inúmeras alusões do pai a tais noções, mas, que no fundo, não trouxeram alegria a ele. No capítulo 22, o narrador transmite uma importante constatação temporal: Passaram-se anos (TEZZA, 2007, p. 184). Pela primeira vez, tem-se a sensação de que o estado de circularidade (repetição de ações) a que pai e filho estavam condenados ficou, de certa maneira, para trás. Porém, isso não quer dizer que o pai não continue contestando as limitações várias do filho, ainda há importante reflexões sobre as limitações do filho e do pai. As mudanças, contudo, são mais nítidas: até o final do romance, a imagem de Felipe vai sendo amorosamente ressignificada pelo olhar do pai e pela voz do narrador como alguém que, finalmente, possui contornos definidos, isto é, apresenta, também, qualidade e talentos. Sendo assim, o pai começa a descobrir sinais de maturidade no seu Peter Pan e eles existem, mas sempre como representação (TEZZA, 2007, p. 218). Dessa maneira, Felipe passou a frequentar as aulas de música, maneira indireta de apresentar uma identidade criativa e integrar-se no mundo artístico, algo à maneira do pai: A aula de música. Durante um tempo, testaram-se as habilidades musicais do menino, seguindo a lenda de que crianças com síndrome de Down teriam uma sensibilidade especial para a música. Para compensar o problema, o pai pensa, sempre se esforçando para andar na direção contrária, como um destro que insiste em escrever com a mão esquerda, criam-se territórios mágicos especiais, nos quais as crianças Down, ao modo de certas cosmogonias medievais com relação aos loucos e pródigos, veriam, sentiriam e viveriam o que outros não veem, sentem ou vivem, o que é verdade, na mesma medida que esse diferencial existe para todo mundo isto é, somos seres intransferíveis, para o bem e para o mal. São maneiras gentis de lidar com a diferença (TEZZA, 2007, p. 185). Além da positiva relação com a música, o pai descobriu que Felipe tem uma profunda habilidade em relação ao mundo dos sentimentos: A afetividade é a sua compreensão e, agora sim, a ideia bateu fundo na cabeça do pai. Há um toque de verdade nisso, ele pensou o mundo dos afetos é o talento dessa criança, ele pensou, tentando formular um quadro (TEZZA, 2007, p. 186). 127

128 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS MÁSCARA CÊNICA Felipe, no campo musical, executava as notas com certa brutalidade, de acordo com o pai, sem nenhuma concentração, sofrendo como Bolinha indo à aula de violino. A mão não obedece a alma, que não ouve o som, que está em outra frequência (TEZZA, 2007, p. 186). A criança desistiu das aulas de música, que se tornaram uma verdadeira tortura para ele. De outro lado, Felipe passou a ter uma imensurável alegria no palco, ação artística que lhe incutiu o senso de responsabilidade, ele aprendeu (e aprendeu) que tudo é preciso fazer benfeito, e se põe inteiro na tarefa que assume (TEZZA, 2007, p. 188). Felipe se divertia nos espetáculos cênicos promovidos por sua escola: Como a plateia está sempre pronta a perdoar os pródigos, ele sente que no palco está o território de sua festa: ao final, durante os aplausos, quer aparecer mais, ir à boca de cena, fazer palhaçada, exigir mais aplausos, até que alguém o arranque dali, como numa comédia involuntária de Jerry Lewis ou de Peter Sellers recusando-se a morrer na primeira cena de Um convidado bem trapalhão (TEZZA, 2007, p. 188). O pai passou a gravar, por meio de uma filmadora, os gestos do filho exibindo-os várias vezes a Felipe a fim de lapidar-lhe os gestos e os excessos, até que o próprio filho se veja na televisão como um artista. Felipe vivia mergulhado no próprio teatro existencial imaginário e, às vezes, ele tinha que ser acordado em meio ao seu transe interior. A vida próxima a outras pessoas se tornou uma tônica da família que, diversamente do passado, vivia reclusa do contato social. O pai não gostava, em mesa de bar, de referir-se ao caso do filho. Dessa maneira, na companhia de adultos, Felipe simula gestos, risadas, atitudes, mas os conteúdos lhe são inacessíveis é o teatro que importa, o sentir-se membro de uma comunidade adulta, pela relação dos afetos (TEZZA, 2007, p. 191). Parecia que a criança tentava ser aceita por meio da afetividade, por isso, esbanjava grandes e verdadeiros sorrisos. O pai, na tentativa de acompanhar o menino, [...] exerceu também uma influência inversa, a do filho sobre ele, também um pai com permanente dificuldade para a vida adulta madura, seja isso o que for, ele pensa, sorrindo e talvez a filha, que não tem nada com isso, sofra as consequências de ter um pai que se recusa a crescer (TEZZA, 2007, p. 192). Como se vê, o pai procurava moldar o filho, e, ao mesmo tempo, era moldado por Felipe. Aos poucos, sem maiores pretensões, Felipe passou a desenhar, modalidade artística que passou a chamar atenção: Ele reproduz desenhos animados uma folha depois da outra, linhas esquemáticas sobre o papel vão fazendo quadros de uma história mental que ele vai explicando, ou reproduzindo, à medida que desenha, como numa estenografia pictórica acompanhada de sonoplastia: diálogos dramáticos, bordões míticos, às vezes bombas poderosas, um teatro intenso e solitário, um completo isolamento do mundo, exceto pela evocação do que ele vê na caixa colorida da televisão e os traços tentam acompanhar aquela viagem. Mal o desenho vai a meio, ele já vira a página para outro quadro, de modo que não há papel que chegue (TEZZA, 2007, p. 195). Com isso, a ausência de autoria dos desenhos passo a chamar a atenção do pai, que notava a falta de preocupação com a ideia de originalidade, porém essa condição também causou certa inveja do pai, dado o contentamento do filho no ato da livre criação. Assim, o pai se lembrou de seu passado. Aos 16 anos, o pai de Felipe foi orientado por seu guru a começar a pintar objetivando ser um grande escritor: [...] uma orientação certeira, o mestre lhe diz que a pintura é fundamental, que ele deve estudá-la se quiser ser um escritor, e ele obedeceu imediatamente, começando pelos fascículos de banca, depois por histórias da arte e enfim pela imitação escarrada (TEZZA, 2007, p. 195). O pai notou que as pinturas de Felipe expressam um estilo e uma visão de mundo, diferentemente das cópias dos grandes pintores que ele, o pai, fazia. Com isso, as produções do filho lhe trouxeram certa comoção genuína, ainda que para o filho isso não tivesse importância nenhuma. DESEJO E SEDUÇÃO No capítulo onde Felipe revela os seus dotes pictóricos, o narrador aborda as reflexões do pai acerca da sexualidade do filho. O pai tinha medo de algum tipo de inadequação do filho com relação aos seus desejos sexuais, mas avalia que a escola conseguiu moldar bem os comportamentos da criança. Felipe, às vezes, se perdia em devaneios líricos repletos de namoradas imaginárias. O pai se lembrou de duas ocasiões em que a sexualidade do filho aflorou de maneira mais acentuada/constrangedora: certa vez, ele beijou na boca a filha de um amigo da família, e, em outra ocasião, Felipe abraçou a filha de outro amigo dizendo à garota que ela era sua namorada. No dia, em virtude dessa ação da criança, se instalou um clima bastante tenso na casa. Porém, o pai ponderava dizendo que Felipe seria incapaz de fazer qualquer tipo de maldade a alguém. Há, também, no capítulo 23, uma interessante reflexão do pai, que revela um caminho percorrido rumo à própria maturidade, condição adquirida após anos de experiência com o filho: [...] o meu filho não é uma criança normal, e cada dia que eu mantiver na cabeça essa normalidade, uma sombra que seja, como modelo e referência, eu serei infeliz, muito mais do que ele próprio conseguiria ser; para meu filho, esse quadro de valor é radicalmente inexistente. Eu sou o problema, ele diria a ele mesmo, um súbito desejo de acender o cigarro que abandonou por completo há mais de cinco anos (chegará a apalpar no bolso a carteira imaginária) (TEZZA, 2007, p. 199). 128

129 UFU 2017 Ter em mente um paradigma forjado, sistematicamente, pela sociedade, implicou em crônicos sofrimentos ao pai que ansiava ter um filho normal. Aceitar as peculiaridades do outro seria uma maneira de viver em paz consigo mesmo. O processo de aceitação perpassa o eu, que contempla o outro, isto é, o gerador da crise familiar seria o próprio pai. Sendo assim, ele passou a avaliar-se como o problema da não aceitação do filho para, somente assim, e em decorrência disso, ser possível aceitar Felipe com as suas próprias idiossincrasias. O pai sempre teve o costume de não jogar fora folhas de papel não usadas integralmente. Essas folhas passaram a servir como tela para Felipe pintar. Curiosamente, os originais de um dos livros do pai estavam escritos em uma lauda da folha sendo a parte branca utilizada pelo filho: [...] o pai começa a lhe dar folhas usadas, para que ele desenhe no verso, entre elas originais e cópias datilografadas de seus romances já publicados, até que a mãe é chamada à escola para um encontro com a diretora. Um colega de escola levou para casa, de presente, um desenho do Felipe, e no verso havia trechos cabeludos de Aventuras provisórias, palavrões escabrosos e uma cena de sexo (TEZZA, 2007, p. 197). Além do grave problema erótico contido nas escrituras do trecho do romance do pai, podemos notar que a fusão simbólica estabelecida entre a produção de Felipe à do pai, condição alegórica que sinaliza o estreitamento dos laços afetivos estabelecidos entre pai e filho. COMO NOSSOS PAIS Novamente, o narrador resgata a memória do pai comparando fatos vividos por Felipe, nesse caso, no campo afetivo, os primeiros amores do pai. Essa comparação se dá na linha temporal do passado distante, portanto essa digressão faz parte da linha narrativa vinculada ao pai, que passou as férias na ilha da Cotinga com a família de uma mulher nomeada de Dolores, antiga conhecida de seu guru. A retomada desse tempo é inaugurada com a seguinte enunciação: Comigo o amor também chegou antes do sexo, ele sonha, achando graça da mentira, buscando na memória algum momento primeiro (TEZZA, 2007, p. 203). O pai, menos racional que em outros momentos do romance, divaga sobre o seu passado a fim de buscar retalhos que possam compará-lo a Felipe e assim, quem sabe, afirmar que só ele, o pai, conhece o filho. Aos 15 anos, o futuro escritor passou um mês inteiro suspirando por sua Virgínia, uma das filhas de Dolores, ao passo que a menina ignorou por completo a sua existência. A moça se interessou por outro homem que estava numa festa na casa da mãe. O aspirante a escritor, naquele dia, exagerou nas doses de caipirinha, ainda experimentou cannabis/maconha. O álcool e a maconha, associados à fome, fizeram que ele passasse mal, condição que fez ele ser visto com bom olhos pela menina, contudo sem nenhum tipo de relação concreta: Nada pior, ele poderia concluir várias vezes naquele mês, ao tentar atrair a atenção de sua musa esquiva. Mas o saldo era bom: até o sofrimento permitia uma boa moldura (TEZZA, 2007, p. 208). Essa recordação do pai parece estar a serviço da atenuação das diferenças entre ele e o filho: Como para o pai, para o filho a mulher também é uma boa ideia (TEZZA, 2007, p. 208). Já que a memória é seletiva, podemos vê-la como uma tentativa do pai em reelaborar o seu passado a fim de ressignificar o presente vivido com o filho. À medida que vamos aproximando do final do texto, as semelhanças e diferenças entre o pai e o filho vão se intensificando como, por exemplo, quando o pai se recusou, veementemente, a usar gravata, não usou mesmo em seu casamento, e de Felipe adorar o adereço, o pai é um rato de biblioteca, enquanto Felipe é o ratinho de laboratório, aspecto relacionado às atividades a que era submetido na infância a fim de melhorar os estímulos. Pai e filho são meio autistas, nenhum dos dois foi precoce em nada, ambos são bastante apegados à rotina, possuem imensas restrições ao novo. Os dois têm dificuldades de lidar com a derrota, ambos, por motivos variados, movem-se em um universo que tem dez metros de diâmetro 106. Pai e filho, sempre que se propõe fazer alguma tarefa, procuram executá-la de maneira impecável. Os dois têm aptidões artísticas e são capazes de investir sua visão de mundo nas produções que criam, embora o pai tenha sempre preocupações com autoria, de originalidade e de qualidade estética do texto e o filho não se atém a essas concepções. Felipe, sempre que pode, diz aos outros que é um artista plástico. De outro lado, o pai nunca ficou à vontade para dizer que é um escritor. ATLÉTICO PARANAENSE Como dissemos anteriormente, na parte final do romance, a presença de Felipe cada vez mais se torna definitiva e marcante, não podemos negar que o filho ganha espaço, na medida em que o pai consegue se desapegar de algumas das crenças que o aprisionavam em uma visão limitada sobre o filho. O futebol é um elemento fundamental para o desenvolvimento de Felipe e também um meio para selar a cumplicidade entre ele e o pai. O vínculo com o futebol é estabelecido quando o filho pede ao pai que escreva a palavra ônibus em um papel objetivando encontrar a fotografia do ônibus do Clube Atlético Paranaense na internet, time do coração do menino. Nessa parte, o narrador revela que Felipe jamais se alfabetizou completamente, na verdade, apenas conseguiu escrever aquele que envolve os seus próprios desejos. Felipe tem grande capacidade em navegar pela internet, mesmo não alfabetizado: 106 Sobre Felipe, o narrador afirma, no capítulo 16: O mundo que ele vê não é o nosso mundo. Ele não vê o horizonte; nem o abstrato, nem o concreto. O mundo tem dez metros de diâmetro [...]. (TEZZA, 2007, p. 130, grifos nossos). Sobre o pai, no capítulo 25, apontará, a respeito da difícil trajetória de quem busca assumir o papel social de escritor: É simplesmente um fato com o qual temos que lidar sozinhos, ele imaginava, escoteiro, anos a fio, camponês de si mesmo, girando no seu mundo de dez metros de diâmetro [...].. (TEZZA, 2007, p. 213, grifo meu). 129

130 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS Jamais aprendeu a ler ou escrever, mas é capaz de copiar as letras no teclado do computador e viajar na sequência interminável de páginas do Google, com um total domínio do mouse e da lógica aparentemente autoexplicativa das janelas do Windows e do sistema de gravação, reprodução e transformação de arquivos e programas, do Word ao Photoshop (TEZZA, 2007, p. 216). Uma das invenções mais sofisticadas do mundo é, facilmente manipulada pela criança sem nenhuma aula de informática, ações que atestam a capacidade de Felipe. A criança não conseguiu encontrar a foto do ônibus de seu time de futebol proferido, assim, o pai sugeriu que ele, o Felipe, mesmo pintasse o veículo com a identidade do time: Humm! Boa ideia! No seu traço, o ônibus terá umas oito rodas enfileiradas, e em cada janela um rosto sorridente. Todos os personagens do filho são inesgotavelmente felizes. Mesmo os heróis lutadores batendo espadas sorriem enquanto lutam, caem e morrem, para renascerem sorridentes no próximo desenho (TEZZA, 2007, p. 218). O pai via que o seu Peter Pan possuía sinais de maturidade. Certa vez, a professora de pintura resolveu fazer uma exposição com as obras das crianças em um shopping, onde a turma passou o dia, Felipe não quis assistir ao último desenho de Walt Disney, Os sem-floresta, pois considerou o filme de criança. MEDO DO NOVO Felipe, à maneira do pai, tinha muita dificuldade em aceitar novas experiências, em se abrir para qualquer atividade que não fizesse parte de sua rotina, com isso, o narrador indica que o pai terá de obrigá-lo a assistir algo novo, junto com ele até o fim, até que descubra que a novidade pode ser interessante (TEZZA, 2007, p. 218). A presença e a permanência paterna são condições que permitem que Felipe se desprenda de seu funcionamento circular, aspecto que se aplica à condição do pai que, aos poucos, sai de sua suposta vida livre e alternativa. O pai, aos poucos, vai percebendo que o verdadeiro encantamento da existência também está relacionado às experiências que quebraram com a expectativa planejada, como, por exemplo, a temporada vivida na Ilha de Cotinga, quando tinha a intenção de passar um mês na casa de seu guru, em Antonina, foi quebrada com a súbita viagem do mestre, fazendo que ele permanecesse um mês na casa de Dolores: Essa memória quarenta dias e quarenta noites na ilha, sem retorno se fundiria com as subsequentes, na vida comunitária de alguns anos, até os pedaços de lembrança se desprenderem avulsos, cada um deles em seu próprio desamparo, na pequena diáspora que, essa sim, dá sentido a tudo como a morte de Dolores por overdose, alguns anos depois. Voltou para Curitiba feito um pequeno adulto, comprando na rodoviária sua primeira carteira de cigarros, Capri, mais curtos que os normais, e sorvendo as tragadas com as tintas da melancolia. No seu termômetro particular, ele calcula, aquele representou um dos momentos de mais alta felicidade de sua vida (TEZZA, 2007, p. 216). Esse momento de alta felicidade do futuro escritor apenas foi possível, pois se operou dentro de um projeto inesperado. A vida errante na Europa, quando a Revolução dos Cravos promoveu uma quebra do processo planejado de assistir aulas na Universidade de Coimbra, também trouxe uma rica experiência em plagas distantes de seu torrão natal. O futebol, de acordo com o narrador, apareceu na vida de Felipe como um poderoso estímulo para fazer frente à rigidez de Felipe, e também à do pai. Inúmeros foram os ganhos. Graças ao futebol, Felipe aprendeu, pouco a pouco, a lidar com a terrível frustração que, a todo tempo, ronda um torcedor de futebol em virtude das derrotas. Além disso, há um papel socializador nesse esporte: sempre que a família recebia uma visita, Felipe vestia a camisa do time do visitante para depois colocar a camiseta do time de seu coração, Clube Atlético Paranaense. Mesmo o calendário passou a fazer parte do cotidiano de Felipe que acompanha as partidas e os campeonatos distribuídos ao longo dos meses do ano. Há também a esperança que ele avance na alfabetização, já que o seu interesse pelo esporte confere significado aos atos de ler e de escrever, os nomes dos times, por exemplo. Todavia, mesmo ao refletir sobre os benefícios que o futebol trouxe à vida de Felipe, o pai sempre deixa transparecer o seu apego à cultura letrada: O futebol, esse nada que preenche o mundo, o pai imagina, logo o futebol, uma instituição de importância quase superior à da ONU e que ao mesmo tempo congrega em sua cartolagem universal algumas das figuras mais corruptas e vorazes do mundo inteiro, um esporte que onde quer que se estabeleça é sinônimo de falcatrua, transformado num negócio gigantesco e tentacular, criador de mitos de areia, a mais poderosa máquina de rodar dinheiro e ocupar o tempo jamais inventada, a derrota final das inquietações do dasein de Heidegger, o triunfo definitivo das massas, o maior circo de todos os tempos, vastas emoções sobre coisa alguma o pai vai se irritando sempre que pensa, escravizado também ele àquela dança defeituosa que jamais completa mais de cinco lances seguidos sem um erro, um esporte que sequer tem arbitragem minimamente honesta até mesmo por impossibilidade dos juízes de dar conta do que acontece (em todos os jogos do mundo acontecem falhas grotescas), e no entanto urramos em torno dele, a alma virada do avesso pois o futebol, essa irresistível coisa nenhuma, passou lentamente a ser para o Felipe uma referência de sua maturidade possível (TEZZA, 2007, p , grifos meu) 130

131 UFU 2017 O pai, intelectual letrado, revela a sua nítida resistência à paixão popular pelo futebol, há um reconhecimento desse esporte na vida do filho operado dentro de reflexões críticas do pai avesso às coisas práticas do mundo. Curiosamente, o pai deixa de refletir sobre a irônica semelhança entre a literatura e o futebol: a literatura, à maneira do futebol, é também um nada. O próprio objeto livro, nas palavras de Borges: [...] enquanto não abrimos um livro, esse livro, literalmente, geometricamente, é um volume, uma coisas entre as coisas (BORGES, 2000, p. 284). A literatura, como o futebol, não tem uma existência concreta, contudo, mesmo assim, somos afetados, cotidianamente, por esses dois campos da vida humana, um esportivo e outro artístico. O futebol e a literatura poderiam ser compreendidos como a atualização do prazer infantil que encontra proteção em comportamentos aceitos pelo mundo do adulto, ainda que, como manifestação da cultura, a literatura guarde em si mais prestígio e o futebol muito mais popularidade. Se nas partes iniciais do romance, Felipe não possuía voz/importância, nas parcelas finais do texto, a criança ganha notoriedade. O romance é concluído com o seguinte trecho: Hoje tem jogo, filho! O menino sorri, exultando: Hoje tem?! Tem! Atlético e Fluminense! Então vamos chamar o Christian! O Christian é o vizinho atleticano em todo jogo, monta-se na casa uma arquibancada de fanáticos. Sim, ele também vem. Isso! Vamos ganhar! Quatro a zero! e ele mostra a mão espalmada, olha para os dedos, ri e acrescenta: Opa! Errei! Cinco a zero! Vai ser um jogo muito difícil o pai pondera, torcedor pessimista. Que tal dois a um? O menino pensa. Ergue a mão novamente, agora com três dedos. Três a zero, só. Que tal? Tudo bem. Mas vai ser duro. Você está preparado? Estou! Eu sou forte! Ele ergue o braço, punho fechado: Nós vamos conseguir! Vamos ver se a gente ganha. O menino faz que sim, e completa, braço erguido, risada solta: Eles vão ver o que é bom pra tosse! É uma das primeiras metáforas de sua vida, copiada de seu pai, e o pai ri também. Mas, para que a imagem não reste arbitrária demais, o menino dá três tossidinhas marotas. Bandeira rubro-negra devidamente desfraldada na janela, guerreiros de brincadeira, vão enfim para a frente da televisão o jogo começa mais uma vez. Nenhum dos dois tem a mínima ideia de como vai acabar, e isso é muito bom (TEZZA, 2007, p ). GUERREIROS DE BRINCADEIRA O futebol é capaz de unir pai e filho em cálidos momentos de ternura. A beleza da cena descrita acima reside na condição de igualdade estabelecida entre pai e filho no que diz respeito à possibilidade de antecipar tal resultado. Há uma espécie de negociação entre os dois: Felipe abre mão de dois gols para aproximar-se da previsão conservadora do pai. Em meio ao afetuoso diálogo, Felipe presenteia o pai com uma das primeiras metáforas de sua vida ( Eles vão ver o que é bom pra tosse idem), imitação do pai, seu espelho, conseguindo, assim, arrancar, de seu velho, boas risadas. Nesse momento lúdico, espécie de suspensão da realidade, o pai e filho são colocados, pela primeira vez, em pé de igualdade, os dois parecem um par, na verdade, apenas guerreiros de brincadeira (TEZZA, 2007, p. 222). O pai, aspirante a escritor, se considerava um predestinado à literatura, se vê como alguém que tem a capacidade de compreender literariamente a vida, por meio de um mundo mental/racional, e que, mesmo assim, percebe-se incapaz de domesticar literariamente o maior desafio de sua vida, vê-se incapaz de falar sobre o filho e passará anos sem escrever uma palavra sequer sobre Felipe. Essas limitações do pai acabarão abalando muitas outras certezas que, por vários anos, guiaram a sua conduta ao atravessar as suas referências culturais a fim de se aproximar afetivamente do filho, assumindo, finalmente, o papel de pai. Esse desfecho narrativo abre a possibilidade de vermos um livro como sendo uma brilhante reflexão sobre a necessidade da ação do tempo criar um processo de amadurecimento/aceitação. O romance é uma narrativa brutal que, ao longo das páginas, torna-se um romance de aceitação. Fugindo ao lugar comum do politicamente correto, o romance O filho eterno, de Cristovão Tezza, consegue, magistralmente, fugir das soluções óbvias ao caso envolvendo Felipe, condição que, ao certo, pode gerar expectativa no leitor. Alguns projetos são expostos nas páginas do romance, ambos, simultaneamente, desfilam sem nenhum pudor aos nossos olhos: de um lado o projeto pai-narrador-escritor e, ao mesmo tempo, o projeto filho-personagem-narrado, ambos se confluem no mar da existência. Há um reencontro em relação ao outro (pai e filho) e de si mesmo (o pai configurando- -se como pai, reconhecimento/amadurecimento enquanto sujeito). O passado e o presente se entrelaçam na rememoração do pai, grande personagem-tema do romance, em um período entre 3 de novembro de 1980 até O PASSADO REMOTO/A DÉCADA DE 1970: A narrativa O filho eterno, de Cristovão Tezza, possui pelo menos dois enredos entrecruzados ao longo das páginas: um deles é o relato do nascimento e dificuldades na criação de Felipe, nesse caso a narração tem o seu início em Há também o resgate da mitologia pessoal do jovem escritor, o pai da criança especial. Esse outro fio narrativo aparece misturado sem nenhuma especificação de sessão, isto é, não há capítulos específicos para a história do pai, que se passa na década de Contudo, em nossa análise, para fins didáticos, colocaremos os dois enredos separados a fim de torná-los mais compreensíveis aos leitores/estudantes, não que fosse necessário, mas, para fim de uma preparação mais adequada, julgamos produtivo. 131

132 ANÁLISES OBRAS LITERÁRIAS No ano de 1972, o futuro pai e um amigo participaram de um teatro em Caruaru, Pernambuco. A viagem foi feita aos moldes alternativos: [...] mochila nas costas, dedão na estrada, atravessando o Brasil a pé (TEZZA, 2016, p. 80). Um episódio curioso e, de certa maneira, irônico à condição de atraso cultural brasileira se deu em Salvador. Os dois amigos caminhavam pelo acostamento de uma rodovia em obras quando operários questionaram essas duas figuras cabeludas o que faziam da vida: Teatro, respondeu o amigo. O que é teatro?, insistiu um deles, sinceramente curioso. Uma espécie de circo, ele respondeu, depois de gaguejar um pouco, confuso. Sentiu-se mal uma estranheza bruta entre dois mundos (TEZZA, 2016, p. 80). Há um nítido contraste entre os dois jovens alternativos, que têm acesso à cultura erudita e os operários ignorantes das artes cênicas. Aqui, vemos uma sutil ironia feita à condição de atraso cultural de certa parcela da população. Ainda na mesma viagem citada acima, os dois jovens subiram na carroceria de um caminhão, que os levaria a Macaé, no Rio de Janeiro. Adiante, uma família inteira de retirantes subiu no caminhão: Os retirantes pareciam olhar para eles no escuro, a noite súbito aberta por uma lua cheia de calendário, tão perfeita para desenhar aquele painel de Portinari que parecia falsa como um recorte de cartolina num céu pintado. Ele contemplava a gravura viva açoitada pelo vento (TEZZA, 2016, p. 80). O tema do retirante tão utilizado pela literatura neorregionalista da década de 1930 é abordado nesse trecho. Uma família inteira indo rumo ao Rio de Janeiro, em condições precárias, na tentativa de ter uma existência mais razoável. Os dois jovens cabeludos, livres viajantes em busca de aventuras românticas, tinham comprado um queijo para a viagem e resolveram distribuir o alimento entre o grupo de retirantes: Enfim era hora de comer o queijo, e eles ofereceram a partilha, apenas um gesto de algum lugar no mesmo instante apareceu um canivete, e as fatias foram sendo cortadas e distribuídas num silêncio religioso, a veneração agradecida de quem recebe a hóstia (TEZZA, 2016, p. 81). A partilha do queijo adquiriu a conotação de um banquete, por mais ínfimo e mínimo que fosse expressa a comunhão com o outro, naquele caso, exprime um rito comunial, a partilha da mesma graça, da mesma vida. A distribuição do queijo é a alegoria da participação de uma comunidade, os dois jovens, solidariamente, fizeram parte do grupo. Por isso, o jovem escritor sentiu vergonha de tirar o seu relógio de bolso, pois o diferenciaria radicalmente dos demais: [...] sentiu vergonha de tirar o seu relógio de bolso, preso na cintura da calça surrada a uma correntinha de prata, o toque dândi do candidato o escritor (TEZZA, 2016, p. 81). O jovem escritor passou um ano na Europa, em 1975, com pouquíssimo dinheiro e inúmeras leituras. O dinheiro para a existência no exterior era escasso, por isso, às vezes, entrava em supermercados e roubava latas de sardinha ou atum, que eram estocadas na pensão onde vivia. Bastaria comprar um pão e estava alimentado. Ele reservava o dia para dormir e a noite para ler e escrever. Certa vez, ele e um amigo comunista saíram pintando uma foice e um martelo nos postes em Coimbra. Sentia-se um turista revolucionário participando da história da humanidade. O jovem escritor presenciou o final da Revolução dos Cravos, em Portugal, golpe militar que, no dia 25 de abril de 1974, pôs fim aos 41 anos de ditadura salazarista. Essa data ficou conhecida como o dia da Liberdade. Trata-se de um dos mais importantes acontecimentos históricos da década de O jovem escritor saiu de Coimbra indo, como imigrante ilegal, para a Alemanha. Em Frankfurt, desembarcou na estação com algumas poucas moedas no bolso, vida alternativa praticada também no Brasil. Era incapaz de dizer uma palavra em alemão, porém estava na mítica Alemanha dos livros que leu, Goethe, Thomas Mann, Gunter Grass. Conseguiu um emprego no hospital, trabalhava na lavanderia até as 11 horas para depois se estender até mais um bom tempo na faxina no interior dos quartos do hospital. Havia um funcionário turco, que ficou com a limpeza do corredor deixando os quartos, parte mais trabalhosa, ao brasileiro. Ainda na Alemanha, o futuro pai trabalhava mecanicamente no hospital de Frankfurt, condição que o fazia ver-se como um personagem de Chaplin, no filme Tempos Modernos. Certo dia, um jovem brasileiro apareceu como serviçal. Com isso, o pai de Felipe desejou delegar a tarefa mais desagradável ao brasileiro recém-chegado, como um turco fizera com ele tempos antes, mas logo percebeu que não tem o dom nietzschiano da vontade de poder (TEZZA, 2016, p. 105). Ao ver o colega brasileiro roubando uma calculadora, pediu que o outro devolvesse o objeto, caso contrário o denunciaria à direção. Porém, decidiu não denunciar por considerar a delação o último grau da indignidade (TEZZA, 2016, p. 105), o que o fez pensar em Judas. O aprendiz de escritor, no hospital, na Alemanha, num raríssimo intervalo, junto a seu amigo comunista, descobriu que o melhor lugar para trabalhar é na esteira: você notou como os alemães jogam comida fora? Só então ele percebe: porções de salame em embalagens a vácuo, potinhos intocados de manteiga e geleia, torradas, pãezinhos, tudo que volta nas bandejas é sumariamente despejado nos latões de lixo é claro, aquilo é um hospital, e em outra ponta dos tentáculos daquele prédio os latões arremessam tudo para incineradores gigantes, ele imagina; e as chaminés despejarão a fumaça negra para que se perca para sempre nos céus (TEZZA, 2016, p ). 132

ANÁLISE DA OBRA MENINO DO MATO

ANÁLISE DA OBRA MENINO DO MATO ANÁLISE DA OBRA MENINO DO MATO por Henrique Landim 1 O AUTOR O poema é antes de tudo um inutensílio. Manoel de Barros Manoel Wenceslau Leite de Barros nasceu em Cuiabá no dia 19 de dezembro de 1916. Morou

Leia mais

1.º C. 1.º A Os livros

1.º C. 1.º A Os livros 1.º A Os livros Os meus olhos veem segredos Que moram dentro dos livros Nas páginas vive a sabedoria, Histórias mágicas E também poemas. Podemos descobrir palavras Com imaginação E letras coloridas Porque

Leia mais

Aos Poetas. Que vem trazer esperança a um povo tristonho, Fazendo os acreditar que ainda existem os sonhos.

Aos Poetas. Que vem trazer esperança a um povo tristonho, Fazendo os acreditar que ainda existem os sonhos. Aos Poetas Venho prestar homenagem a uma grande nação, Que são os nossos poetas que escrevem com dedicação, Os poemas mais lindos e que por todos são bemvindos, Que vem trazer esperança a um povo tristonho,

Leia mais

Trecho antecipado para divulgação. Venda proibida.

Trecho antecipado para divulgação. Venda proibida. Poeta é bicho que voa Sem tirar os pés do chão É quem sente com a mente E pensa com o coração Viva a força da poesia Viva Pedro Salomão Bráulio Bessa Quando você ama minhas ideias, Eu me sinto também abraçado.

Leia mais

Manoel de Barros Menino do mato

Manoel de Barros Menino do mato Manoel de Barros Menino do mato [ 3 ] SUMÁRIO Menino do mato 7 Caderno de aprendiz 23 [ 5 ] Primeira parte MENINO DO MATO O homem seria metafisicamente grande se a criança fosse seu mestre. SÖREN KIERKEGAARD

Leia mais

II ENCONTRO "OUVINDO COISAS: EXPERIMENTAÇÕES SOB A ÓTICA DO IMAGINÁRIO"

II ENCONTRO OUVINDO COISAS: EXPERIMENTAÇÕES SOB A ÓTICA DO IMAGINÁRIO II ENCONTRO "OUVINDO COISAS: EXPERIMENTAÇÕES SOB A ÓTICA DO IMAGINÁRIO" Título da Exposição: A poética da morada e os cenários do imaginário habitado Trabalho fotográfico realizado com base no livro A

Leia mais

Educar para o Cuidado e a Cultura da Paz: outras formas de estar no mundo. Maristela Barenco Corrêa de Mello

Educar para o Cuidado e a Cultura da Paz: outras formas de estar no mundo. Maristela Barenco Corrêa de Mello Educar para o Cuidado e a Cultura da Paz: outras formas de estar no mundo Maristela Barenco Corrêa de Mello Cuidar das coisas implica em ter intimidade, senti-las dentro, acolhê-las, respeitá-las, dar-lhes

Leia mais

Felicidade Clandestina. Clarice Lispector

Felicidade Clandestina. Clarice Lispector Felicidade Clandestina Clarice Lispector FELICIDADE CLANDESTINA Autor: Clarice Lispector Escola literária: Terceira Geração Modernista (1945 / 1960) Principais características: 1. Temática intimista: o

Leia mais

CONSIDERAÇÕES INICIAIS:

CONSIDERAÇÕES INICIAIS: CONSIDERAÇÕES INICIAIS: Está apresentação não tem a intenção de mostrar-se como uma teoria válida para qualquer contesto da Língua Portuguesa. Ela se destina apenas a atender uma solicitação de colegas

Leia mais

Professora: Deisi Meri Menzen Escola 1º de Maio. Sequencia de Outubro/novembro Identidade. Competências. Objetivos

Professora: Deisi Meri Menzen Escola 1º de Maio. Sequencia de Outubro/novembro Identidade. Competências. Objetivos Professora: Deisi Meri Menzen Escola 1º de Maio Sequencia de Outubro/novembro 2013- Identidade Competências Objetivos Estratégias em Língua Portuguesa (contemplando os 4 eixos: Leitura; Produção de textos;

Leia mais

1 o ano Ensino Fundamental Data: / / Nome: 14 DE MARÇO: DIA DA POESIA

1 o ano Ensino Fundamental Data: / / Nome: 14 DE MARÇO: DIA DA POESIA 1 o ano Ensino Fundamental Data: / / Nome: 14 DE MARÇO: DIA DA POESIA Poesia é a arte de escrever obras em verso. Como arte, ela recria a realidade, ou seja, o artista cria um outro mundo. A poesia ganhou

Leia mais

SUPLEMENTO DE ATIVIDADES

SUPLEMENTO DE ATIVIDADES SUPLEMENTO DE ATIVIDADES NOME: N O : ESCOLA: SÉRIE: 1 Honoré de Balzac ficou mundialmente famoso por sua enorme A comédia humana, obra que reúne quase cem romances e constitui um grande painel da sociedade

Leia mais

Luiz Gonzaga. Chuva e sol Poeira e carvão Longe de casa Sigo o roteiro Mais uma estação E a alegria no coração. 2º Bimestre 2018 Português/Jhonatta

Luiz Gonzaga. Chuva e sol Poeira e carvão Longe de casa Sigo o roteiro Mais uma estação E a alegria no coração. 2º Bimestre 2018 Português/Jhonatta Português/Jhonatta Minha vida é andar por este país Pra ver se um dia descanso feliz Guardando as recordações Das terras onde passei Andando pelos sertões E dos amigos que lá deixei Chuva e sol Poeira

Leia mais

Descartando Descartes

Descartando Descartes Descartando Descartes Este livro foi criado com o proposito de ser independente e de ser, pessoalmente, o meu primeiro trabalho como escritor. Isaac Jansen - 2015 Quem foi René Descartes? Dono da razão,

Leia mais

VAMOS PLANEJAR! Volume 1. BNCC - Colocando o pensar e o agir da criança no centro do processo educativo.

VAMOS PLANEJAR! Volume 1. BNCC - Colocando o pensar e o agir da criança no centro do processo educativo. VAMOS PLANEJAR! Volume 1 BNCC - Colocando o pensar e o agir da criança no centro do processo educativo. O conhecimento vem com a experiência que cada criança vai vivenciar no ambiente educacional. Colocando

Leia mais

VAMOS PLANEJAR! Volume 1. BNCC - Colocando o pensar e o agir da criança no centro do processo educativo.

VAMOS PLANEJAR! Volume 1. BNCC - Colocando o pensar e o agir da criança no centro do processo educativo. VAMOS PLANEJAR! Volume 1 BNCC - Colocando o pensar e o agir da criança no centro do processo educativo. O conhecimento vem com a experiência que cada criança vai vivenciar no ambiente educacional. Colocando

Leia mais

Projetos I semestre GA/B e G1/2 O SAPO CURIOSO - SONS E TEXTURAS Professoras Gislaine Esteves e Aline Brasil

Projetos I semestre GA/B e G1/2 O SAPO CURIOSO - SONS E TEXTURAS Professoras Gislaine Esteves e Aline Brasil GA/B e G1/2 O SAPO CURIOSO - SONS E TEXTURAS Professoras Gislaine Esteves e Aline Brasil Usando a literatura como apoio, os grupos 1/2 e A/B adotaram o livro O Sapo Curioso para nortear o Projeto. O objetivo

Leia mais

Educador A PROFISSÃO DE TODOS OS FUTUROS. Uma instituição do grupo

Educador A PROFISSÃO DE TODOS OS FUTUROS. Uma instituição do grupo Educador A PROFISSÃO DE TODOS OS FUTUROS F U T U R O T E N D Ê N C I A S I N O V A Ç Ã O Uma instituição do grupo CURSO 2 CURSO OBJETIVOS Fomentar a produção e circulação de saberes docentes acerca das

Leia mais

CURSO PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE E EDUCAÇÃO

CURSO PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE E EDUCAÇÃO OBJETIVOS: Fomentar a produção e circulação de saberes docentes acerca das diferentes manifestações artísticas e expressivas no campo da Educação. Oferecer possibilidades de formação sensível, reflexiva

Leia mais

Figuras de Linguagem e Exercícios de Coesão

Figuras de Linguagem e Exercícios de Coesão Figuras de Linguagem e Exercícios de Coesão Figuras de Linguagem e Exercícios de Coesão 1. imóvel. Comente o uso que nela se faz do pronome demonstrativo isso. 2. Auto Retrato Falado Venho de um Cuiabá

Leia mais

COLÉGIO XIX DE MARÇO Educação do jeito que deve ser 2ª PROVA PARCIAL DE PORTUGUÊS

COLÉGIO XIX DE MARÇO Educação do jeito que deve ser 2ª PROVA PARCIAL DE PORTUGUÊS COLÉGIO XIX DE MARÇO Educação do jeito que deve ser 2016 2ª PROVA PARCIAL DE PORTUGUÊS Aluno(a): Nº Ano: 7º Turma: Data: 14/06/2016 Nota: Professor(a): Paula Querino Valor da Prova: 30 Pontos Orientações

Leia mais

VOCÊ TEM MEDO DE QUÊ?

VOCÊ TEM MEDO DE QUÊ? VOCÊ TEM MEDO DE QUÊ? Introdução O seguinte planejamento de aula foi desenvolvido inicialmente para a cadeira de Metodologia e Laboratório de Ensino de Língua Portuguesa do curso de Licenciatura em Letras

Leia mais

Conto das Águas. Um conto de sensações. Enio Roncarati

Conto das Águas. Um conto de sensações. Enio Roncarati Conto das Águas Um conto de sensações Enio Roncarati Dedicatória Dedico este pequeno conto aos autores anônimos que com esperança de lançar uma pequena Luz sobre aqueles que estão dispostos a trilhar

Leia mais

CURSO PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE E EDUCAÇÃO

CURSO PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE E EDUCAÇÃO OBJETIVOS: Fomentar a produção e circulação de saberes docentes acerca das diferentes manifestações artísticas e expressivas no campo da Educação. Oferecer possibilidade de formação sensível, reflexiva

Leia mais

3 passos fundamentais para escrever uma resenha crítica nota mil

3 passos fundamentais para escrever uma resenha crítica nota mil 3 s fundamentais para escrever uma resenha crítica nota mil Escrever uma resenha é uma ótima forma de comprovar que realmente leu e entendeu os pontos principais de uma determinada obra. Mas como fazer

Leia mais

Projeto Pedagógico Qual caminho deve seguir para obter uma infância feliz? Como fazer para compreender a vida em seu momento de choro e de riso?

Projeto Pedagógico Qual caminho deve seguir para obter uma infância feliz? Como fazer para compreender a vida em seu momento de choro e de riso? Projeto de Leitura Título: Maricota ri e chora Autor: Mariza Lima Gonçalves Ilustrações: Andréia Resende Elaboração do Projeto: Beatriz Tavares de Souza Apresentação O livro apresenta narrativa em versos

Leia mais

Fernanda Oliveira. Vida na margem IMPRIMATUR

Fernanda Oliveira. Vida na margem IMPRIMATUR Fernanda Oliveira Vida na margem IMPRIMATUR Sumário [A linha do horizonte] [Às vezes, eu fico muito solta] [Todo ser humano é sensível] [Eu só queria uma alegria verdadeira] [Nós podemos nos tornar enormes]

Leia mais

AULA DE VÉSPERA VESTIBULAR 2019 LITERATURA

AULA DE VÉSPERA VESTIBULAR 2019 LITERATURA AULA DE VÉSPERA VESTIBULAR 2019 LITERATURA Prof. Yuri Augustus QUINCAS BORBA Sofia Rubião Destino Sociedade Palha Burguesia A METAMORFOSE MORTE E VIDA SEVERINA Severino, retirante, deixe agora que lhe

Leia mais

COLÉGIO NOSSA SENHORA DA PIEDADE. Programa de Recuperação Paralela. 1ª Etapa Ano: 7 Turma: 71

COLÉGIO NOSSA SENHORA DA PIEDADE. Programa de Recuperação Paralela. 1ª Etapa Ano: 7 Turma: 71 COLÉGIO NOSSA SENHORA DA PIEDADE Programa de Recuperação Paralela 1ª Etapa 2014 Disciplina: ARTE Professor (a): JANAINA Ano: 7 Turma: 71 Caro aluno, você está recebendo o conteúdo de recuperação. Faça

Leia mais

COMO INOVAR NO MERCADO DO TURISMO

COMO INOVAR NO MERCADO DO TURISMO COMO INOVAR NO MERCADO DO TURISMO 2 Introdução Como Inovar no mercado de turismo deve ser uma indagação contínua e crescente dentro de qualquer empresa que almeja algum sucesso. Já reparou nas empresas

Leia mais

Linguagens de meninas e meninas, em especial: o desenho entrelaçando manifestações expressivas. Marcia Gobbi FEUSP

Linguagens de meninas e meninas, em especial: o desenho entrelaçando manifestações expressivas. Marcia Gobbi FEUSP Linguagens de meninas e meninas, em especial: o desenho entrelaçando manifestações expressivas Marcia Gobbi FEUSP Construtoras de culturas infantis Social e historicamente situadas Sujeitos de direitos

Leia mais

Suelen e Sua História

Suelen e Sua História Suelen e Sua História Nasci em Mogi da Cruzes, no maternidade Santa Casa de Misericórdia no dia 23 de outubro de 1992 às 18 horas. Quando eu tinha 3 anos de idade fui adotada pela tia da minha irmã, foi

Leia mais

Colégio Santa Dorotéia

Colégio Santa Dorotéia Colégio Santa Dorotéia Tema Transversal: Cultivar e guardar a Criação Disciplina: Língua Portuguesa / ESTUDOS AUTÔNOMOS Ano: 5º - Ensino Fundamental - Data: 5 / 9 / 2017 LEIA o texto a seguir: OSCAR NIEMEYER:

Leia mais

Título original Poemas, Maurício Ribeiro: Espírito e Alma.

Título original Poemas, Maurício Ribeiro: Espírito e Alma. 1 Título original Poemas, Maurício Ribeiro: Espírito e Alma. Todos os direitos reservados: nenhuma parte dessa publicação pode ser reproduzida ou transmitida por meio eletrônico, mecânico, fotocópia ou

Leia mais

LITERATURA. PROF(a). REBEKKA MENEZES

LITERATURA. PROF(a). REBEKKA MENEZES LITERATURA PROF(a). REBEKKA MENEZES // QUESTÃO 01 Porque a realidade é inverossímil Escusando-me1 por repetir truísmo2 tão martelado, mas movido pelo conhecimento de que os truísmos são parte inseparável

Leia mais

Sou eu quem vivo esta é minha vida Prazer este

Sou eu quem vivo esta é minha vida Prazer este Vivo num sonho que não é realidade Faz parte do meu viver Crescer sonhando esquecendo os planos Sou eu quem vivo esta é minha vida Prazer este EU Hoje deixei pra lá me esqueci de tudo Vivo minha vida sobre

Leia mais

... Cultura. Em busca de conceitos

... Cultura. Em busca de conceitos Cultura Em busca de conceitos Cultura Clifford Geertz Ernst Cassirer. EUA, 1926 2006 Texto: 1973 Polônia, 1874 EUA, 1945 Texto: 1944 A ciência na busca da definição do Homem Ciência na busca de leis gerais

Leia mais

ENCONTRO DE SECRETÁRIAS A CONSCIÊNCIA COMO PONTO DE PARTIDA PARA O DESENVOLVIMENTO 26/09/2009

ENCONTRO DE SECRETÁRIAS A CONSCIÊNCIA COMO PONTO DE PARTIDA PARA O DESENVOLVIMENTO 26/09/2009 ENCONTRO DE SECRETÁRIAS UNIMED JOÃO MONLEVADE A CONSCIÊNCIA COMO PONTO DE PARTIDA PARA O DESENVOLVIMENTO 26/09/2009 OS SETE PECADOS CAPITAIS DE UMA SECRETÁRIA A vida racional é o que distingue os homens

Leia mais

a cobronça, a princesa e a supresa

a cobronça, a princesa e a supresa projeto pedagógico a cobronça, a princesa e a supresa Rua Tito, 479 Lapa São Paulo SP CEP 05051-000 divulgação escolar (11) 3874-0884 divulga@melhoramentos.com.br Fê ilustrações e Celso Linck www.editoramelhoramentos.com.br

Leia mais

COLÉGIO XIX DE MARÇO Educação do jeito que deve ser 2ª PROVA PARCIAL DE PORTUGUÊS

COLÉGIO XIX DE MARÇO Educação do jeito que deve ser 2ª PROVA PARCIAL DE PORTUGUÊS COLÉGIO XIX DE MARÇO Educação do jeito que deve ser 2016 2ª PROVA PARCIAL DE PORTUGUÊS Aluno (a): Nº Ano: 9º Turma: Data: 14 / 06 /16 Nota: Professor(a): Letícia Silva Valor da Prova: 30 Pontos Orientações

Leia mais

COMUNICAÇÃO APLICADA MÓDULO 4

COMUNICAÇÃO APLICADA MÓDULO 4 COMUNICAÇÃO APLICADA MÓDULO 4 Índice 1. Significado...3 1.1. Contexto... 3 1.2. Intertextualidade... 3 1.2.1. Tipos de intertextualidade... 3 1.3. Sentido... 4 1.4. Tipos de Significado... 4 1.4.1. Significado

Leia mais

Análise de discursos textuais: questões

Análise de discursos textuais: questões Análise de discursos textuais: questões Com base no texto a seguir, responda às questões (1) e (2): Os Poemas Os poemas são pássaros que chegam não se sabe de onde e pousam no livro que lês. Quando fechas

Leia mais

Quando dividimos uma oração em partes para estudar as diferentes funções que as palavras podem desempenhar na oração e entre as orações de um texto, e

Quando dividimos uma oração em partes para estudar as diferentes funções que as palavras podem desempenhar na oração e entre as orações de um texto, e MORFOSSINTAXE Quando analisamos a que classe gramatical pertencem as palavras de determinada frase, estamos realizando sua análise morfológica. A morfologia é a parte da gramática que estuda a classificação,

Leia mais

Aula lá Fora. Episódio: Artes Plásticas

Aula lá Fora. Episódio: Artes Plásticas Aula lá Fora Episódio: Artes Plásticas Resumo A série Aula lá Fora nos apresenta projetos desenvolvidos a partir de aulas-passeio realizadas em escolas da rede pública municipal de Santo André, cidade

Leia mais

DISCIPLINA: PORTUGUÊS

DISCIPLINA: PORTUGUÊS ESCOLA SECUNDÁRIA/3 RAINHA SANTA ISABEL 402643 ESTREMOZ PLANIFICAÇÃO ANUAL DISCIPLINA: PORTUGUÊS 12º Ano 2017-2018 Professoras: Maria de Fátima Anjinho Correia Tavares Crujo Maria Filomena Franco de Matos

Leia mais

Modernismo em Portugal

Modernismo em Portugal Modernismo em Portugal Caeiro Campos Fernando Pessoa Pessoa e seus Reis Heterônimos Fernando Pessoa (1888-1935) Grande parte da crítica considera Fernando Pessoa o maior poeta moderno da Língua Portuguesa.

Leia mais

Aulas Multimídias Santa Cecília Profª André Araújo Disciplina: Língua Portuguesa, Redação e Literatura Série: 2º ano EM

Aulas Multimídias Santa Cecília Profª André Araújo Disciplina: Língua Portuguesa, Redação e Literatura Série: 2º ano EM Aulas Multimídias Santa Cecília Profª André Araújo Disciplina: Língua Portuguesa, Redação e Literatura Série: 2º ano EM Literatura contemporânea prof. André Araújo Literatura Brasileira Contemporânea Concretismo

Leia mais

1º PERÍODO (Aulas Previstas: 64)

1º PERÍODO (Aulas Previstas: 64) ESCOLA BÁSICA E SECUNDÁRIA DE BARROSELAS ANO LETIVO 2017/2018 PORTUGUÊS 12º ANO 1º PERÍODO (Aulas Previstas: 64) Oralidade O11 Compreensão do oral Unidade S/N (Conclusão da planificação do 11º Ano) Cânticos

Leia mais

uma das características mais marcantes da literatura contemporânea

uma das características mais marcantes da literatura contemporânea As formas da poesia: relações entre os textos verbal e visual em O poeta aprendiz JosÉ Nicolau Gregorin Filho uma das características mais marcantes da literatura contemporânea para crianças talvez seja

Leia mais

DESCONSTRUINDO O NORMATIVO ATRAVÉS DAS MOCHILAS: EXISTEM OUTRAS POSSIBILIDADES DE SER?

DESCONSTRUINDO O NORMATIVO ATRAVÉS DAS MOCHILAS: EXISTEM OUTRAS POSSIBILIDADES DE SER? DESCONSTRUINDO O NORMATIVO ATRAVÉS DAS MOCHILAS: EXISTEM OUTRAS POSSIBILIDADES DE SER? André Vieira Permito-me iniciar este relato dizendo que o mesmo em seu desenvolvimento não traz uma linearidade do

Leia mais

LIVRO PARADIDÁTICO: OU ISTO OU AQUILO

LIVRO PARADIDÁTICO: OU ISTO OU AQUILO LIVRO PARADIDÁTICO: OU ISTO OU AQUILO (MEIRELES, Cecília. Ou isto ou aquilo. São Paulo: Global, 2012.) Cantigas de ninar, cantigas de roda, parlendas, adivinhas e trava-línguas originários do folclore

Leia mais

LÍNGUA PORTUGUESA I EMI 1º ANO. Prof. Andriza

LÍNGUA PORTUGUESA I EMI 1º ANO. Prof. Andriza LÍNGUA PORTUGUESA I EMI 1º ANO Prof. Andriza andriza.becker@luzerna.ifc.edu.br Ementa da disciplina: Revisão da gramática aplicada ao texto oral e escrito: Fonética; regras de acentuação, ortografia (Novo

Leia mais

Em silêncio, abandona-te ao Senhor, põe tua esperança nele (Sl 36, 7)

Em silêncio, abandona-te ao Senhor, põe tua esperança nele (Sl 36, 7) Silêncio: o caminho para Deus Em silêncio, abandona-te ao Senhor, põe tua esperança nele (Sl 36, 7) 1 / 5 Não há dúvidas: nascemos para Deus e apenas nele podemos encontrar o repouso para nossas almas

Leia mais

DEPARTAMENTO DE LÍNGUAS 2017 / 2018

DEPARTAMENTO DE LÍNGUAS 2017 / 2018 DEPARTAMENTO DE LÍNGUAS 2017 / 2018 PLANIFICAÇÃO PORTUGUÊS -12º ANO Unidade 0 Diagnose. Artigo de opinião..texto de opinião. Identificar temas e ideias principais. Fazer inferências. Texto poético: estrofe,

Leia mais

O OLHAR OBLÍQUO DO MENINO POETA RESUMO

O OLHAR OBLÍQUO DO MENINO POETA RESUMO O OLHAR OBLÍQUO DO MENINO POETA Antonio Aparecido Mantovani 1 Rosana de Barros Varela 2 RESUMO Menino do Mato é um livro de poemas assinado pelo escritor cuiabano Manoel de Barros. A obra é dividida em

Leia mais

Família Presente de Deus, Lugar de Amor

Família Presente de Deus, Lugar de Amor Família Presente de Deus, Lugar de Amor Amadas irmãs e amados irmãos, Paz e Bem! É com felicidade que trazemos mais este presente para a IMMF do Brasil: mais um encarte no caderno de formação! Um material

Leia mais

BNCC e a Educação da Infância: caminhos possíveis para um currículo transformador. Profa. Maria Regina dos P. Pereira

BNCC e a Educação da Infância: caminhos possíveis para um currículo transformador. Profa. Maria Regina dos P. Pereira BNCC e a Educação da Infância: caminhos possíveis para um currículo transformador Profa. Maria Regina dos P. Pereira Oficina Escuta, fala, pensamento e imaginação É preciso transformar a forma. Zilma de

Leia mais

A LUZ DE MAIOR BRILHO É O AMOR!

A LUZ DE MAIOR BRILHO É O AMOR! A LUZ DE MAIOR BRILHO É O AMOR! O universo está na sua dimensão cortado ao meio, de um lado a luz de outro a escuridão, e ele é infinito, além do alcance dos olhos e da imaginação do homem, mas uma luz

Leia mais

ABORDAGEM FRIA. Receita do sucesso

ABORDAGEM FRIA. Receita do sucesso ABORDAGEM FRIA Receita do sucesso Para que serve abordagem fria? Realizar uma nova venda; Fidelizar cliente; Novos inícios. Abordagem fria E agora? Como fazer? Para quem não sabe o que é, significa você

Leia mais

farmrio.com.br/shop/farmrio/us/adorofarm/post/farm-entrevista-mana-bernardes/_/a-blogpost enus

farmrio.com.br/shop/farmrio/us/adorofarm/post/farm-entrevista-mana-bernardes/_/a-blogpost enus .:: FARM RIO ::. farmrio.com.br/shop/farmrio/us/adorofarm/post/farm-entrevista-mana-bernardes/_/a-blogpost-21900006.enus FARM entrevista: Mana Bernardes 11.05.18 #mana bernardes Mulher, designer, artista

Leia mais

É possível conjugar uma sessão de cinema com uma oficina.

É possível conjugar uma sessão de cinema com uma oficina. 7 12 Anos ESTAS IMAGENS SÃO UM RODOPIO!///////////////////// 3 CINEMA EM CASA!//////////////////////////////////////////////////// 4 QUE FEITIÇO É ESTE?/////////////////////////////////////////////////

Leia mais

Filosofia da Arte. Unidade II O Universo das artes

Filosofia da Arte. Unidade II O Universo das artes Filosofia da Arte Unidade II O Universo das artes FILOSOFIA DA ARTE Campo da Filosofia que reflete e permite a compreensão do mundo pelo seu aspecto sensível. Possibilita compreender a apreensão da realidade

Leia mais

COMO SER UM NEGRO. Começamos no presente atemporal eu e o mundo que é uma mentira porque a própria eternidade finge morrer em nós

COMO SER UM NEGRO. Começamos no presente atemporal eu e o mundo que é uma mentira porque a própria eternidade finge morrer em nós COMO SER UM NEGRO Marcelo Ariel 1 Poema Começamos no presente atemporal eu e o mundo que é uma mentira porque a própria eternidade finge morrer em nós como é que algo pode realmente existir se a eternidade

Leia mais

FAZENDO A R T E COM TARSILA

FAZENDO A R T E COM TARSILA FAZENDO A R T E COM TARSILA Prefeitura Municipal de Santos ESTÂNCIA BALNEÁRIA SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DEPARTAMENTO PEDAGÓGICO Subsídios para implementação do Plano de Curso de Educação Artística Ensino

Leia mais

Aprender com a BE. Contextos criativos de ensino e aprendizagem. com obras de Miró

Aprender com a BE. Contextos criativos de ensino e aprendizagem. com obras de Miró Aprender com a BE Contextos criativos de ensino e aprendizagem com obras de Miró Aprendizagens associadas ao trabalho da biblioteca escolar Conhecimentos/Capacidades 5. Construir sentidos a partir da leitura

Leia mais

Pergaminho dos Sonhos

Pergaminho dos Sonhos Pergaminho dos Sonhos Michel R.S. Era uma vez um poeta... Um jovem poeta que aprendera a amar e deixar de amar. E de uma forma tão simples, assim como o bem e o mal, O amor tornou-se o objetivo de suas

Leia mais

Manoel de Barros e o gorjeio azul da palavra pousada na infância: o transver em Menino do mato

Manoel de Barros e o gorjeio azul da palavra pousada na infância: o transver em Menino do mato Manoel de Barros e o gorjeio azul da palavra pousada na infância: o transver em Menino do mato Rafael Mendes * Mesmo que o ser biológico Manoel de Barros esteja completando seus 95 anos de idade, o poeta

Leia mais

Trabalhand as Em ções

Trabalhand as Em ções Caderno de Atividades Trabalhand as Em ções Psicologia Acessível Por: Caroline Janiro @carolinejaniro Psicologia Acessível, o que é? Psicologia Acessível é um projeto idealizado pela psicóloga Ane Caroline

Leia mais

EDUCAÇÃO INFANTIL OBJETIVOS GERAIS. Linguagem Oral e Escrita. Matemática OBJETIVOS E CONTEÚDOS

EDUCAÇÃO INFANTIL OBJETIVOS GERAIS. Linguagem Oral e Escrita. Matemática OBJETIVOS E CONTEÚDOS EDUCAÇÃO INFANTIL OBJETIVOS GERAIS Conhecimento do Mundo Formação Pessoal e Social Movimento Linguagem Oral e Escrita Identidade e Autonomia Música Natureza e Sociedade Artes Visuais Matemática OBJETIVOS

Leia mais

* Nascimento: 11/10/2011

* Nascimento: 11/10/2011 Homenagem a Davi Henrique da Silva Schmidt * Nascimento: 11/10/2011 Falecimento: 15/10/2011 Em 11 de outubro de 2012, no Hospital Santa Cruz, nascia Davi Schmidt, filho de Fernanda da Silva Schmidt e Paulo

Leia mais

Escolas de Educação Básica, na Modalidade Educação Especial Parecer 07/14

Escolas de Educação Básica, na Modalidade Educação Especial Parecer 07/14 Escolas de Educação Básica, na Modalidade Educação Especial Parecer 07/14 Anexo 5 Semana Pedagógica 1º semestre - 2016 Anexo 5 Trabalhando com textos na Alfabetização (Marlene Carvalho, 2005) Muitas professoras

Leia mais

CONTAR UMA HISTÓRIA É DAR UM PRESENTE DE AMOR.

CONTAR UMA HISTÓRIA É DAR UM PRESENTE DE AMOR. CONTAR UMA HISTÓRIA É DAR UM PRESENTE DE AMOR. LEWIS CARROL Elaborado pelas assessoras Patrícia Ribeiro e Rosinara Nascimento, em 2011, nas oficinas pedagógicas para as educadoras, ocorridas nas Livrarias

Leia mais

DEIXA-ME SENTIR TUA ALMA ATRAVÉS DO TEU CALOROSO ABRAÇO

DEIXA-ME SENTIR TUA ALMA ATRAVÉS DO TEU CALOROSO ABRAÇO EU AMO VOCÊ: DEIXA-ME SENTIR TUA ALMA ATRAVÉS DO TEU CALOROSO ABRAÇO Cleber Chaves da Costa 1 O amor é paciente, o amor é benigno, não é invejoso; o amor não é orgulhoso, não se envaidece; não é descortês,

Leia mais

(...) Eu canto em português errado. Acho que o imperfeito não participa do passado. Troco as pessoas. Troco os pronomes ( ).

(...) Eu canto em português errado. Acho que o imperfeito não participa do passado. Troco as pessoas. Troco os pronomes ( ). (...) Eu canto em português errado Acho que o imperfeito não participa do passado Troco as pessoas Troco os pronomes ( ). (Meninos e Meninas Legião Urbana) ALGUMAS ESCOLHAS LINGUÍSTICAS TORNAM O IDIOMA

Leia mais

EDUCAÇÃO INFANTIL: VOLUME INICIAL Conteúdo Lições Objetivos CAMPOS DE EXPERIÊNCIA*

EDUCAÇÃO INFANTIL: VOLUME INICIAL Conteúdo Lições Objetivos CAMPOS DE EXPERIÊNCIA* EDUCAÇÃO INFANTIL: VOLUME INICIAL Conteúdo Lições Objetivos Coordenação motora Identidade 1, 8 10, 12, 13, 23, 45, 54, 62, 63 Estimular a Manipular materiais. Desenvolver noção de direção e sentido: da

Leia mais

MINISTÉRIO E RELACIONAMENTO VIDA DE FILHO

MINISTÉRIO E RELACIONAMENTO VIDA DE FILHO MINISTÉRIO E RELACIONAMENTO VIDA DE FILHO Qual a visão real de Deus sobre o ministério? Será que criou o ser humano pra ser usado, será que o foco de Deus esta em nos usar o que poderia fazer para ele?

Leia mais

VAMOS DAR SIGNOS AOS SIGNOS!

VAMOS DAR SIGNOS AOS SIGNOS! VAMOS DAR SIGNOS AOS SIGNOS! por Pedro Candido escritor e colunista no Portal a Toca Gabriel Coelho é daquele artista envolvente, que através de sua música faz com que os sentimentos expressos em nosso

Leia mais

SARTRE: FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO LIBERDADE E RESPONSABILDIADE

SARTRE: FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO LIBERDADE E RESPONSABILDIADE SARTRE: FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO LIBERDADE E RESPONSABILDIADE Viver é isto: ficar se equilibrando o tempo todo entre escolhas e consequências Jean Paul Sartre Jean-Paul Sartre - Paris, 1905 1980.

Leia mais

Unidade Portugal. Ribeirão Preto, de de AVALIAÇÃO DO CONTEÚDO DO GRUPO VIII 3 o BIMESTRE. A cigarra e a formiga

Unidade Portugal. Ribeirão Preto, de de AVALIAÇÃO DO CONTEÚDO DO GRUPO VIII 3 o BIMESTRE. A cigarra e a formiga Unidade Portugal Ribeirão Preto, de de 2011. Nome: 2 o ano (1 o série) Tarde AVALIAÇÃO DO CONTEÚDO DO GRUPO VIII 3 o BIMESTRE Eixo temático - A evolução e o tempo Disciplina/Valor Português 3,0 Matemática

Leia mais

Professoras: Aline Costa Disciplina: Redação Turmas: 7º A e 7º B. POESIAS, POEMAS... Sarau! Paradidático: Adolescente Poesia de Sylvia Orthof

Professoras: Aline Costa Disciplina: Redação Turmas: 7º A e 7º B. POESIAS, POEMAS... Sarau! Paradidático: Adolescente Poesia de Sylvia Orthof Professoras: Aline Costa Disciplina: Redação Turmas: 7º A e 7º B POESIAS, POEMAS... Sarau! Paradidático: Adolescente Poesia de Sylvia Orthof POEMA Vamos entender primeiro o que é POEMA. É um texto que

Leia mais

DISCURSO e texto AS MARCAS IDEOLÓGICAS DOS TEXTOS. A arte de ler o que não foi escrito. contextualizando

DISCURSO e texto AS MARCAS IDEOLÓGICAS DOS TEXTOS. A arte de ler o que não foi escrito. contextualizando DISCURSO e texto AS MARCAS IDEOLÓGICAS DOS TEXTOS Todas as classes sociais deixam as marcas de sua visão de mundo, dos seus valores e crenças, ou seja, de sua ideologia, no uso que fazem da linguagem.

Leia mais

EU TE OFEREÇO ESSAS CANÇÕES

EU TE OFEREÇO ESSAS CANÇÕES EU TE OFEREÇO ESSAS CANÇÕES Obra Teatral de Carlos José Soares Revisão Literária de Nonata Soares EU TE OFEREÇO ESSAS CANÇÕES Peça de Carlos José Soares Revisão Literária Nonata Soares Personagens: Ricardo

Leia mais

23 de Abril. Dia Mundial do Livro Venha festejá-lo com palavras, na Biblioteca da FLUP.

23 de Abril. Dia Mundial do Livro Venha festejá-lo com palavras, na Biblioteca da FLUP. 23 de Abril. Dia Mundial do Livro Venha festejá-lo com palavras, na Biblioteca da FLUP. No dia 23 de abril de 2013 a Biblioteca Central pediu aos seus leitores que dedicassem algumas palavras de homenagem

Leia mais

PLANEJAMENTO (LIVRO INFANTIL)

PLANEJAMENTO (LIVRO INFANTIL) PLANEJAMENTO (LIVRO INFANTIL) Professor (a): Paula Bartelli Francisquetti NOME DO LIVRO: A Colcha de Retalhos AUTOR: Conceil Corrêa da Silva e Nyl Ribeiro Silva COMPETÊNCIAS - Leitura, produção textual,

Leia mais

Educação Infantil 2019_PC_INF.indd 5 25/05/ :05:26

Educação Infantil 2019_PC_INF.indd 5 25/05/ :05:26 Educação Infantil 2019_PC_INF.indd 5 25/05/2018 16:05:26 O eu, o outro e o nós Traços, sons, cores e quantidades, relações e transformações Unidade temática Eu, minha escola e meus colegas necessidades

Leia mais

DIÁLOGO PEDAGÓGICO PNAIC 2016 SEQUÊNCIA DIDÁTICA DE LEITURA NA EDUCAÇÃO INFANTIL

DIÁLOGO PEDAGÓGICO PNAIC 2016 SEQUÊNCIA DIDÁTICA DE LEITURA NA EDUCAÇÃO INFANTIL DIÁLOGO PEDAGÓGICO PNAIC 2016 SEQUÊNCIA DIDÁTICA DE LEITURA NA EDUCAÇÃO INFANTIL Creche Paranapiacaba Turma: 1 ciclo inicial Educação Infantil Integral 1 ano e 10 meses a 2 anos a 10 meses. Os livros,

Leia mais

Do lugar de cada um, o saber de todos nós 5 a - edição COMISSÃO JULGADORA orientações para o participante

Do lugar de cada um, o saber de todos nós 5 a - edição COMISSÃO JULGADORA orientações para o participante Do lugar de cada um, o saber de todos nós 5 a - edição - 2016 COMISSÃO JULGADORA orientações para o participante Caro(a) participante da Comissão Julgadora da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo

Leia mais

Apresentação A história apresenta a amizade entre um menino e duas árvores: a do quintal de sua casa e a da sua imaginação.

Apresentação A história apresenta a amizade entre um menino e duas árvores: a do quintal de sua casa e a da sua imaginação. Título: A árvore dos meus dois quintais Autor: Jonas Ribeiro Ilustrações: Veruschka Guerra Formato: 21 cm x 27,5 cm Número de páginas: 24 Elaboradora do Projeto: Beatriz Tavares de Souza Apresentação A

Leia mais

TEXTOS SAGRADOS. Noções introdutórias

TEXTOS SAGRADOS. Noções introdutórias TEXTOS SAGRADOS Noções introdutórias A ORIGEM Os Textos Sagrados, via de regra, tiveram uma origem comum: Experiência do sagrado. Oralidade. Pequenos textos. Primeiras redações. Redação definitiva. Organização

Leia mais

Com o autorretrato de Tarsila do Amaral é possível trabalhar a identidade da criança. Pode-se iniciar fazendo uma apresentação da artista, contando

Com o autorretrato de Tarsila do Amaral é possível trabalhar a identidade da criança. Pode-se iniciar fazendo uma apresentação da artista, contando Com o autorretrato de Tarsila do Amaral é possível trabalhar a identidade da criança. Pode-se iniciar fazendo uma apresentação da artista, contando sua história e depois de apresentar o seu autorretrato,

Leia mais

Ao Teu Lado (Marcelo Daimom)

Ao Teu Lado (Marcelo Daimom) Ao Teu Lado INTRO: A9 A9 Quero estar ao Teu lado, não me importa a distância Me perdoa a insegurança, tenho muito a aprender E/G# E7 ( F# G#) A9 Mas em meus poucos passos, já avisto a esperança E/G# Também

Leia mais

Metamorfose. Francisco Júlio Barbosa Lima Filho 2º Master Ensino Médio - Tarde

Metamorfose. Francisco Júlio Barbosa Lima Filho 2º Master Ensino Médio - Tarde Metamorfose Francisco Júlio Barbosa Lima Filho 2º Master Ensino Médio - Tarde Insegura sobre o seu destino. Sempre arrastando-se nas plantas do jardim. Será se alcançará, na noite, o celestino? Será se,

Leia mais

Leitura: Rom 8, 8-11 Carta de S. Paulo aos Romanos

Leitura: Rom 8, 8-11 Carta de S. Paulo aos Romanos Acreditai! Nos amigos confiamos plenamente! Sabemos que jamais nos enganarão e que estarão presentes sempre que deles precisarmos. Nos amigos nós acreditamos: temos a garantia de que querem a nossa alegria.

Leia mais

O Sorriso de Clarice

O Sorriso de Clarice O Sorriso de Clarice Clarice era uma mulher meio menina sabem,doce,meiga,amiga,e apaixonada,aqueles seres que contagiam com seu sorriso, ela tinha algo único conquistava todos com seu sorriso,ninguém sabia

Leia mais

Bom dia! Texto. 2ª FEIRA 25 de março

Bom dia! Texto. 2ª FEIRA 25 de março 2ª FEIRA 25 de março QUARESMA- Pela estrada de Jesus Rumo à Vida Feliz Obrigatório! Iniciamos uma nova semana. E na nossa caminhada com Jesus acrescentamos mais um sinal que nos quer ajudar a viver bem

Leia mais

ATIVIDADES LÁPIS E PAPEL MÓDULO COMEÇAR LUZ DO SABER (EJA)

ATIVIDADES LÁPIS E PAPEL MÓDULO COMEÇAR LUZ DO SABER (EJA) ATIVIDADES LÁPIS E PAPEL MÓDULO COMEÇAR LUZ DO SABER (EJA) ATIVIDADES LÁPIS E PAPEL DO MÓDULO COMEÇAR LUZ DO SABER (EJA) Nunca vi fazer tanta exigência Nem fazer o que você me faz Você não sabe o que é

Leia mais

* Nascimento: 17/09/1960

* Nascimento: 17/09/1960 Egomar Aloísio Genz * Nascimento: 17/09/1960 Falecimento: 15/09/2005 Viver ao lado de pessoas generosas é muito bom. Aumenta não só a sensação de segurança, mas também o sentimento de solidariedade, de

Leia mais

A marca de uma lágrima

A marca de uma lágrima A marca de uma lágrima O autor O livro é uma obra de Pedro Bandeira, o autor responsável pela minha paixão por livros nacionais. É comum encontrarmos leitores com um alto teor de preconceito em relação

Leia mais

Quem foi Mario Quintana?

Quem foi Mario Quintana? Quem foi Mario Quintana? MARIO QUINTANA, O POETA PASSARINHO Mario por ele mesmo... Nasci em Alegrete, em 30 de julho de 1906. Creio que foi a principal coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale

Leia mais

APRESENTA. Exercícios para uma adjetivação sugestiva

APRESENTA. Exercícios para uma adjetivação sugestiva APRESENTA Exercícios para uma adjetivação sugestiva 01 Quem sou Desde criança, as palavras me fascinam. De belas histórias ouvidas ao pé da cama, até as grandes aventuras de Monteiro Lobato devoradas no

Leia mais