Instituto Gestalt de São Paulo Ajustamento Criativo em Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes
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- Victor Gabriel Salgado Minho
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1 Instituto Gestalt de São Paulo Ajustamento Criativo em Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes Nome: Carina Peralli Piacentini Turma: Mensal V São Paulo, Julho de 2013
2 Os Serviços de Acolhimento Neste trabalho pretendo apresentar reflexões sobre o papel de um serviço de acolhimento para crianças/adolescentes no ajustamento criativo e no desenvolvimento do auto-suporte destas crianças. Ou seja, de que formas o serviço de acolhimento pode contribuir para que as crianças/adolescentes acolhidos desenvolvam ajustamentos necessários para suportar as experiências traumáticas vividas, bem como criar condições para que o auto-suporte seja desenvolvido. Podemos entender por instituições de acolhimento os abrigos que acolhem crianças e adolescentes que, de certa forma, estão submetidos a situações de risco. Por estarem com seus direitos violados, na maioria das vezes vítimas de violência doméstica, são retirados de suas famílias pelo Conselho Tutelar ou pela Vara da Infância, e encaminhados às instituições de acolhimento. Estas têm como objetivo proteger e garantir os direitos básicos de toda criança e adolescente. Desta maneira, as crianças e adolescentes residem no abrigo durante certo período, que, pela lei , não deve ultrapassar dois anos. Durante este período, o abrigo trabalha no sentido de favorecer a integração desta criança/adolescente na vida da comunidade, ou seja, são inseridos em inúmeras atividades oferecidas pela comunidade e pelos serviços da rede, como: escola, atividades de contra-turno, atividades esportivas, de lazer e cultura, etc. O objetivo principal de todo serviço de acolhimento é trabalhar as famílias das crianças/adolescentes acolhidos, favorecendo a reintegração familiar, isto é, o retorno da criança para sua família de origem. Vale ressaltar que família de origem compreende toda a família extensa da criança. Ou seja, se a criança possui um familiar que possui condições de acolhê-la, é preferível que a criança fique sob os cuidados destes familiares do que permanecer acolhida. A equipe técnica (psicólogo e assistente social) do abrigo atende, orienta e encaminha as famílias aos mais diversos serviços da comunidade, de acordo com a necessidade de cada uma delas, como: serviços que trabalham com a reabilitação de pessoas usuárias de álcool/drogas, serviços de saúde, inserção no mercado de trabalho, CRAS (Centro de Referência da Assistência Social, localizados nos bairros com maior vulnerabilidade social), CREAS (Centro de Referência Especial Assistência Social), Unidades Básicas de Saúde, dentre outros. A partir do momento em que a família é acompanhada pelo serviço de acolhimento e pelos serviços da rede, é dado um tempo para que a família possa se reorganizar com o objetivo de acolher seus filhos novamente. Se passado certo período e a família não segue as orientações e encaminhamentos realizados, a equipe do abrigo sugere ao Juiz da Vara da Infância e Juventude a destituição do poder familiar e a criança é encaminhada para a fila de adoção para ser inserida em uma família substituta. 2
3 Vale lembrar que a família possui direito à defesa, o que faz com que a criança permaneça acolhida por um período de anos aguardando a decisão judicial. O acolhimento institucional já foi apontado por vários autores, como Bowlby e Winnicott, como uma experiência de ruptura para a criança/adolescente acolhido, o que pode, em muitos casos, favorecer o desenvolvimento de transtornos psiquiátricos na vida adulta, tendo em vista que o acolhimento é uma experiência marcada pela privação afetiva. Ou seja, estar acolhido num serviço de acolhimento significa que a criança teve seus vínculos afetivos rompidos e prejudicados,o que influencia na formação de novos vínculos no futuro. Desta forma, o serviço de acolhimento deve priorizar certas condutas com a criança/adolescente visando com que o acolhimento institucional não prejudique seu desenvolvimento como um todo. Atualmente trabalho como coordenadora técnica num serviço de acolhimento para crianças e adolescentes de 0 a 14 anos de idade na cidade de Jundiaí SP. Inicialmente, em 2004, fui contratada como psicóloga e, em 2012, assumi o cargo de coordenadora técnica. Nos últimos anos tal abrigo vem passando por inúmeras transformações na sua forma de atuação com o objetivo de oferecer um serviço de melhor qualidade, o que beneficia diretamente o desenvolvimento das crianças/adolescentes acolhidos, proporcionando maiores chances para que eles consigam desenvolver o auto-suporte e ajustamentos criativos para que possam, mesmo vivenciando situações traumáticas, apresentar um desenvolvimento saudável. Neste sentido, o abrigo, nos últimos anos, tem possibilitado com que cada criança/adolescente tenha seus próprios objetos pessoais, como roupas, material de escola, brinquedos, etc, o que antes era tudo compartilhado por todos. Desta forma, a identidade de cada um pode ser construída e preservada. Procuramos fazer com que os interesses e habilidades de cada um sejam preservados e incentivados, ou seja, cada criança é inserida em atividades conforme seu interesse. O abrigo, nos últimos anos, passou a ampliar a equipe de trabalho, criando cargos como educador social, que tem como objetivo proporcionar atividades de educativas, de lazer e culturais às crianças e adolescentes conforme as faixas etárias. Capacitações e reuniões mensais são realizadas com toda a equipe do abrigo visando com que os cuidadores possam se apropriar das histórias de vida de cada criança/adolescente acolhido, bem como se apropriar das condutas a serem tomadas frente a eles. Há cerca de três anos atrás, o abrigo fez uma parceria com o Instituto Fazendo História, de São Paulo, e desde então, desenvolvemos o Projeto Fazendo Minha História. Neste projeto, cada criança/adolescente participa de um encontro semanal com um mesmo voluntário e, através de leituras de livros infanto-juvenis, a história de vida da criança é resgatada. Criança e voluntário vão confeccionando um álbum com 3
4 fotos, fatos cotidianos, sentimentos, sonhos, etc, que é levado com a criança quando esta é desacolhida. Ou seja, este projeto favorece com que a criança seja vista com sua história de vida e identidade, resgate sua história e, muitas vezes, faça projeções a respeito do seu futuro. Outra questão a ser levada em consideração é que, segundo John Bowlby, existe uma correlação entre a tendência anti-social e a privação afetiva. Neste sentido, considero que todo serviço de acolhimento deve se preocupar com tal apontamento, realizando um trabalho que minimizasse as chances da criança desenvolver tal transtorno. Partindo de tais reflexões, o presente trabalho abordará as relações existentes entre ajustamentos criativos e acolhimento institucional, ou seja, como o acolhimento pode favorecer com que a criança se ajuste criativamente mesmo vivenciando uma situação de privação afetiva, que é uma das características do acolhimento institucional, bem como de que formas o abrigo pode favorecer o desenvolvimento saudável das crianças e adolescentes nele acolhidos. Para tanto, farei uma articulação entre teorias distintas, definindo o conceito de ajustamento criativo segundo o referencial da Gestalt-terapia e os conceitos definidos pelo autor John Bowlby, psicanalista, no que tange à privação afetiva e rompimento de vínculos afetivos, além da articulação com as prerrogativas que norteiam o trabalho nos serviços de acolhimento (como o Estatuto da Criança e do Adolescente e Orientações Técnicas para os Serviços de Acolhimento). 4
5 O acolhimento como garantia de direitos à criança e ao adolescente O acolhimento é uma das medidas de proteção previstas no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e se aplica a qualquer bebê, criança ou adolescente ameaçado ou violado em seus direitos básicos. Caracterizado com uma medida excepcional e provisória, o acolhimento só deve ocorrer quando esgotadas todas as alternativas de permanência na família. Nesse caso, o serviço de acolhimento deve representar uma alternativa de moradia digna, com clima residencial, atendimento personalizado e priorizar a preservação dos vínculos familiares sempre que possível, até que o bebê, a criança ou o adolescente possa retornar à sua família de origem ou ser encaminhado a uma família substituta (adoção). É fundamental que as famílias, as crianças e os profissionais partilhem da ideia de que quando a família não pode exercer sua função é dever do Estado fazê-lo. Em 2009, foi sancionada a Lei , conhecida como a Nova Lei da Adoção, que aperfeiçoa o ECA através da ampliação ou modificação de parte de seus artigos. Essa lei tem como objetivo modernizar, organizar, e alargar o sistema protetivo da criança e do adolescente, priorizando o direito à convivência familiar e comunitária, ressaltando a importância de a história de vida ser considerada no processo e de ser acessível à criança, assim como também há necessidade de o PIA (Plano Individual de Atendimento) ser revisto a cada seis meses, o que pretende dinamizar o sistema de acolhimento institucional. Uma mudança de paradigma está em jogo quando o abrigo passa a ser chamado de instituição de acolhimento. Trata-se de uma transição no sistema de proteção, que deixa de ter a função de abrigar (assistir) para assumir a função de acolher (cuidar). Anteriormente, os abrigos assumiam uma postura assistencialista, pois se acreditava que o mais importante era garantir os cuidados básicos à criança separada de sua família, como alimentação, higiene e saúde. Hoje, com as mudanças advindas do ECA, sabe-se que toda criança precisa de muito mais do que isso, incluindo-se cuidados afetivos, respeito pela sua singularidade e direito à convivência familiar e comunitária. Com novas prerrogativas, o abrigo vem se profissionalizando e a rede de atenção a esse setor vem sendo ampliada. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) está mais atento e atualmente o PIA passou de orientação para instrumento de lei. O serviço de acolhimento é um serviço de proteção previsto no ECA e é um sistema de alta complexidade. A eficácia de seus serviços depende inteiramente do estabelecimento de parcerias, concretizando-se o PIA no sentido de ser um caminho construído e consensuado entre diferentes instituições, visando garantir um percurso unificado para a criança. Portanto, o abrigo não trabalha atualmente de forma isolada, ou seja, atua estabelecendo parcerias com os outros serviços da rede do município (CRAS, CREAS, UBS, escolas, Vara da Infância, etc) tendo em vista a reintegração familiar da criança/adolescente. O abrigo encontra respaldo em documentos importantes que orientam seu projeto, no sentido de garantir a participação das crianças e adolescentes na vida comunitária e realizar um trabalho integrado com a rede de atendimento, além do ECA. São eles: O Sistema único de Assistência Social (SUAS), O Plano Nacional de promoção, proteção e defesa do direito de crianças e adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária e o documento formatado pelo Ministério do 5
6 Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes. O PIA é um documento elaborado pela equipe do abrigo, no momento da chegada de todas as criança. Ele possui dois eixos: da criança/adolescente e da família. Nele deve conter todas as ações realizadas e a serem desenvolvidas e devem ser considerados os seguintes aspectos: a realidade da família, as condições e reações do bebê/criança no início do processo, as relações que ele estabelece com os adultos, com as outras crianças e com a comunidade, o modo como se adapta à nova rotina, as informações disponibilizadas pelo fórum responsável pelo processo, os encaminhamentos necessários à criança, relativos à saúde, educação e lazer, os encaminhamentos necessários às famílias (quanto à moradia, saúde, alimentação, reabilitação e colocação profissional), as perspectivas de duração desse acolhimento e as hipóteses de transferência para outra instituição, o retorno familiar ou a adoção. Cada criança que é acolhida prevê ações que sejam individuais e que possam ser inseridas no funcionamento do abrigo. Mesmo no caso de crianças de uma mesma família, os planos de ação muitas vezes podem ser distintos. Segundo Marin (2011), ao se pensar em situações de vulnerabilidade, quando parecem falhar todas as possibilidades do bem-estar social que a lei exige e que as políticas públicas deveriam garantir, um sentimento de desamparo se apodera de todos, e o risco de se instalarem programas assistencialistas e compensatórios são enormes. Muitos abrigos que tiveram sua origem num projeto afetivo e assistencialista, resistem à ideia da profissionalização, entendendo que poderão perder a qualidade afetiva e querendo poupar as crianças de qualquer conflito. Por isso as histórias de cada uma delas são muitas vezes caladas e pouco se fala delas, prejudicando ainda mais seu desenvolvimento. Portanto, o abrigo deve ser capaz de assumir sua identidade para poder acolher todas as manifestações de suas crianças, ser capaz de realizar interlocuções, de buscar representações para as histórias que vão se constituindo. Deve permitir que essas crianças não percam o contato com sua rede social, com suas famílias, garantindo-lhes a participação nos diferentes equipamentos sociais aos quais têm direito, preparando-as para que não tenham medo dos estranhamentos e questionamentos que essa participação permitirá - quem é você?, onde você mora?, por que não mora com a sua família?, etc sem medo de ouvir coitadinho, ele mora no abrigo. É necessário com que o abrigo permita com que a família visite e também aguente o choro da criança e perguntas como cadê mamãe?. O abrigo deve permitir com que os pais participem da rotina dos seus filhos, do cotidiano do abrigo. Para isso os cuidadores devem ser capacitados para escutar as famílias, para compreender os afetos que levaram ao abandono. Apenas desta forma se tecem os sentidos da história de cada criança. John Bowlby foi um dos maiores estudiosos que se dedicou a investigar os efeitos nocivos que acompanham a separação de crianças pequenas de suas mães, depois que entre elas se formaram relações emocionais. Segundo ele, é a intensidade da demanda libidinal e do ódio gerados que a separação de uma criança de sua mãe, depois que formou com ela uma relação emocional, pode acarretar efeitos tão devastadores para o desenvolvimento de sua personalidade. Nos seus estudos (2001), Bowlby conseguiu comprovar a existência de uma 6
7 relação causal entre a perda dos cuidados maternos nos primeiros anos de vida e o desenvolvimento de transtornos de ordem emocional. Segundo ele, muitos desvios comuns parecem resultar de uma experiência desse gênero, desde a formação do caráter delinquente até uma personalidade propensa aos estados de ansiedade e depressão. Bowlby teoriza que o bebê aprende a discriminar uma certa figura, usualmente a mãe, e desenvolve um grande prazer em estar na sua companhia. Durante a segunda metade do primeiro ano de vida, e a totalidade do segundo e terceiro, a criança está intimamente ligada à figura materna, o que significa que fica contente na companhia dela e aflita quando ela está ausente. Tais reações podem ser observadas nas crianças acolhidas, principalmente no período próximo ao seu acolhimento, mesmo naquelas crianças que eram, de uma certa forma, negligenciadas em seus cuidados e submetidas a certas situações de risco. Bowlby coloca que a partir do primeiro ano, outras figuras podem se tornar importantes para a criança, de modo que a sua ligação não se limita mais a uma única figura. No entanto, existe usualmente uma preferência bem marcada por uma determinada pessoa. Ao examinar as possíveis causas de distúrbios psiquiátricos na infância, Bowlby pode observar que as condições antecedentes de incidência significativamente elevada são a ausência de oportunidade para estabelecer vínculos afetivos ou então as prolongadas e repetidas rupturas de vínculos que foram estabelecidos. Neste sentido, ao pensar no abrigo, temos desde aqueles bebês e crianças que recebem visitas das suas mães regularmente, o que faz com que o vínculo afetivo com a genitora se mantenha e aqueles que não recebem tais visitas, ou seja, que vivenciaram rupturas no vínculo e necessitam se vincular a novos cuidadores. Neste sentido, cabe dizer que aí se encontra um dos maiores desafios de um serviço de acolhimento, isto é, como proporcionar aos bebês e crianças um ambiente favorável para seu desenvolvimento, tendo que o abrigo é um local de trabalho onde há escalas de férias de funcionárias, rotatividade de funcionários, dentre outros. Bowlby, através de estudos longitudinais, pode comprovar que em numerosos grupos de pacientes psiquiátricos, a incidência de rompimento de vínculos afetivos durante a infância é significativamente elevada. Ele correlaciona a elevada incidência de vínculos afetivos desfeitos durante a infância a duas síndromes psiquiátricas: personalidade sociopática e a depressão. Pode observar que em tais pessoas a capacidade para estabelecer e manter vínculos afetivos é sempre desordenada e, não raro, ausente. Apurou que frequentemente a infância de tais pessoas foi seriamente prejudicada pela morte, separação ou por outros eventos que resultaram na ruptura de vínculos afetivos. Além disso, afirma que, nas condições mais extremas como na sociopatia e tendências suicidas não só é provável que uma perda inicial tenha ocorrido nos primeiros anos de vida, mas também é provável que tenha sido uma perda permanente, seguida da experiência de repetidas mudanças de figuras parentais. Vale ressaltar que Bowlby correlaciona tais fatos, no entanto é cauteloso em afirmar que tais fatores desempenham um papel causal, ou seja, ele apenas aponta para uma incidência maior de alguns aspectos, mas não os considera como fatores causais. Bowlby, quando relata a respeito do luto e pesar da criança, ressalta que é 7
8 importante com que a criança disponha de uma pessoa que atue como substituta permanente, a quem ela possa ligar-se gradualmente. Só em tais circunstância, é que a criança reúne condições para aceitar a perda como sendo irremediável e a reorganizar então sua vida interior de acordo com isso. Neste sentido, pode-se pensar nos bebês e crianças que se identificam por uma cuidadora específica. Tal pessoa pode assumir para a criança tal função de substituir a figura materna. Caso esta criança não retorne para sua família de origem, pode ser colocada em uma família substituta sob forma de adoção, sendo que esta também irá assumir tal papel de forma gradativa na vida da criança. Vale dizer que todo processo de adoção acontece de forma gradual, em que a criança e a família adotante vão se aproximando passo a passo para que a criança possa, pouco a pouco, desligando-se dos cuidadores do abrigo e vinculando-se a sua nova família. Podese observar que a formação de vínculos seguros com os profissionais do abrigo favorece com que a criança vá se vinculando de forma segura com estas novas pessoas. Tal conceito de vínculo seguro também foi elaborado por Bowlby. Segundo ele,...seres humanos de todas as idades são mais felizes e mais capazes de desenvolver melhor seus talentos quando estão seguros de que, por trás deles, existem uma ou mais pessoas que virão em sua ajuda caso surjam dificuldades (Bowlby, 2001). A pessoa em quem se confia, conhecida como figura de ligação, pode ser considerada aquela que fornece uma base segura a partir da qual poderá atuar. Apesar de todos, nas diferentes fases da vida, necessitarem de bases seguras, é durante os primeiros anos de vida que tal necessidade é mais evidente. Neste sentido, o tipo de experiência que uma pessoa tem, especialmente durante a infância, possui uma grande influência sobre o fato de ela esperar ou não encontrar mais tarde uma base segura, e também sobre o grau de competência que possui para iniciar e manter relações mutuamente gratificantes. Desta forma, o padrão de relações familiares que uma pessoa experimenta durante a infância se reveste de uma importância tão decisiva para o desenvolvimento de sua personalidade. Este é um aspecto que pode ser claramente percebido no cotidiano do abrigo. A maioria das genitoras que possuem dificuldades em estabelecer um vínculo seguro com seus filhos e despender cuidados adequados, também apresentam histórias de abandono, negligência e falta de vínculos seguros na infância, perpetuando tais padrões na vida adulta. Ou seja, a maioria das mães de filhos acolhidos apresentam dificuldades para reconhecer figuras adequadas e dispostas a fornecer uma base segura e uma reduzida capacidade para colaborar em relações gratificantes. A teoria da Gestalt-terapia considera que pessoa e meio ambiente formam uma unidade indissociável em que ambos mantêm entre si uma influência mútua e uma constante interação dinâmica. Para Perls (1981), o indivíduo só pode ser compreendido num campo circundante, onde o seu comportamento está em função do campo total. É o tipo da relação entre a pessoa e o seu meio ambiente que orientará a formação de sua personalidade e interferirá nos seus comportamentos. O enfoque na relação é um dos pilares da Gestalt-terapia. E, nesse sentido, o conceito de contato pode ser destacado na medida em que enuncia a condição ontológica do ser humano como ser de relação. Somos seres para o contato. Segundo Antony (2006) 8
9 o nascimento dá início ao drama relacional da união/separação que constitui a Gestalt original inacabada e que se perpetua até a vida adulta. A angústia da separação suscita o medo do abandono, e crianças que sofrem separação precoce apresentam reações de ansiedade e sentimentos de insegurança e desamparo (aput Antony 2010). Ainda segundo esta autora, crianças que são afastadas de seus pais por um longo tempo, o que ocorre muitas vezes com as crianças acolhidas, sofrem o que ela chama de angústia da ausência da presença, ou seja, tais crianças já experienciaram a existência dos pais, porém ainda não construíram uma representação interna desses cuidadores, o que gera um sentimento de desespero pelo afastamento, desaparecimento e perda das figuras parentais (Antony, 2010). Diante de tais comprovações de que a separação da criança com sua figura de apego, bem como a institucionalização traz consequências danosas ao desenvolvimento da criança, cabe questionar de que formas o serviço de acolhimento pode favorecer o desenvolvimento das crianças acolhidas ou minimizar os danos já descritos. Neste sentido, o abrigo pode lançar mão de condutas que favoreçam o processo de auto-regulação organísmica das crianças acolhidas, bem como facilitar com que estas façam ajustamentos criativos. Entendemos por auto-regulação organísmica o processo pelo qual o organismo satisfaz suas necessidades na busca de um equilíbrio (homeostase). O termo organísmico é utilizado em referência a teoria organísmica de Goldstein, a qual pressupõe o homem como uma pessoa integrada e organizada. Sustenta a noção de indivisibilidade do ser humano, afirmando que o que ocorre em uma parte afeta o todo. É uma visão holística e considera o homem apenas na sua interação com o meio. A cada instante, o homem está em busca da satisfação de inúmeras necessidades, podendo estas ser basicamente fisiológicas (fome, sono, sede, etc) ou psíquicas (aceitação, afeto, confirmação, etc). É no mundo que o ser humano vai buscar as satisfações de suas necessidades e, para que ele as obtenha necessita saber discriminar a cada momento a necessidade dominante, isto é, a figura a ser fechada. Este processo de reconhecer e satisfazer uma necessidade é denominado de formação e destruição de Gestalt. O termo destruição está ligado a assimilação e resolução. Ou seja, surge uma necessidade a partir da qual surge uma tensão, pois o organismo se desequilibra, ocorrendo uma mobilização para a ação (busca da homeostase), que implica em interagir com o meio para satisfação da necessidade dominante. Quando a necessidade é satisfeita, a figura volta ao fundo e, ao surgir uma nova necessidade ou figura, o ciclo se inicia. Tendo em vista o conceito acima mencionado, podemos pensar em como os serviços de acolhimento podem favorecer com que as crianças possam satisfazer suas necessidades, sejam elas fisiológicas e psíquicas, bem como facilitar com que os acolhidos possam entrar em contato consigo mesmos visando identificar suas necessidades e as formas de satisfação. Ou seja, o papel do abrigo é auxiliar e favorecer com que seus acolhidos possam se auto-regular, mesmo estando num ambiente considerado inadequado. 9
10 O abrigo também pode contribuir para que as crianças façam ajustamentos criativos visando uma melhor qualidade de vida. Segundo Kiyan (2006), ajustamentos criativos são ajustamentos possíveis entre o indivíduo e o meio que possam promover de alguma forma o fechamento de figuras. Seria um ajustamento possível por parte do indivíduo naquele momento, porém interagindo criativamente no meio. Segundo Aguiar (2005), ao longo do desenvolvimento da criança, nem sempre é fácil para ela satisfazer todas as suas necessidades importantes, pois ela costuma privilegiar a que geralmente é a mais importante de todas: sua necessidade de ser confirmada pelo outro. Se esta necessidade não entrar em conflito com outras necessidades e a criança conseguir manter uma forma fluida de satisfação de suas necessidades, realizando ajustamentos criativos pertinentes a cada situação, a criança apresentará um funcionamento saudável. Caso a criança precise abrir mão da satisfação de suas necessidades para obter a confirmação do outro, sua saída será tentar negar, suprimir, distorcer ou transformar suas necessidades para que possa ser reconhecida no meio onde está inserida. Desta forma, para que o abrigo possa, portanto favorecer um desenvolvimento saudável das crianças acolhidas é imprescindível que as crianças sejam confirmadas pelos cuidadores. Caso contrário, a criança submetese à expectativa que os outros alimentam dela, fazendo exatamente o que espera dela, deixando de lado suas próprias necessidades. Pode-se observar inúmeros sintomas apresentados pelas crianças acolhidas no abrigo. Sintomas estes que inicialmente podem ter se constituído como ajustamentos criativos, mas que pelo fato da criança perseverar na mesma forma de lidar com o mundo, acabam por se transformar em ajustamentos criativos disfuncionais. Como exemplo, é muito comum ter crianças em abrigos que apresentam a enurese, a compulsão alimentar e o ato de furtar objetos. Tais comportamentos, mesmo nos parecendo pouco saudáveis, podem constituir inicialmente formas de se ajustarem criativamente naquele dado momento. No entanto, se a criança passa a repetir e generalizar para outras situações, como se estivesse presa em uma única forma de responder ao mundo, a criança passa a apresentar um desenvolvimento não saudável. Segundo Winnicott (2002), a criança que furta um objeto não está desejando o objeto roubado, mas a mãe, sobre quem ela tem direitos. Esses direitos derivam do fato de que (do ponto de vista da criança) a mãe foi criada pela criança. A mãe satisfaz a criatividade primária da criança e, assim, converteu-se no objeto que a criança estava disposta a encontrar (Winnicott, 2002, pag.141). Apesar de o abrigo onde trabalho já ter tido várias crianças que apresentassem tais sintomas, pode-se observar que, nos últimos anos, com a implantação de novas condutas e profissionalização do abrigo, tais sintomas aparecem com menor incidência atualmente. As principais mudanças que tem acontecido nos serviços de acolhimento nos últimos anos estão relacionadas a uma maior profissionalização do abrigo, bem como com a implantação de condutas que levam em consideração as histórias das crianças acolhidas. Antigamente as crianças e adolescentes que estavam numa situação de risco social eram acolhidos em instituições conhecidas como orfanatos. Em 10
11 algumas unidades, se chegava a acolher cerca de quinhentas crianças e adolescentes. Eles não eram inseridos nos serviços da comunidade, visto que todas as atividades eram realizadas dentro da instituição, provocando um movimento de segregação destas crianças e adolescentes. Não se levava em consideração as histórias de vida de cada criança e adolescente, nem mesmo um trabalho era realizado com suas famílias visando à reintegração familiar. O destino dessas crianças e adolescentes era crescer e se desenvolver neste ambiente que em nada favorecia um desenvolvimento saudável. Com a formulação do ECA, das leis e das orientações voltadas aos serviços de acolhimento, os abrigos passam a priorizar ações que levam em consideração a história de cada criança acolhida, favorecendo com que esta seja vista em sua individualidade. Os abrigos passam a acolher no máximo 20 a 25 crianças/adolescentes e todos são inseridos em atividades culturais, de lazer e educativas fora do espaço da instituição, ou seja, integrados na comunidade. A partir deste ponto, tratarei das mudanças e alterações que protagonizei no serviço de acolhimento onde atuo atualmente como coordenadora. Nos últimos anos, o foco do trabalho do abrigo tem sido favorecer a reintegração familiar, ou seja, as famílias têm sido cada vez mais integradas no cotidiano do abrigo, pois o objetivo é incentivar com que elas possam assumir novamente os cuidados com seus filhos. Neste sentido, os horários de visita foram ampliados, as famílias contam com um trabalho de atendimento, orientação e encaminhamentos aos serviços da rede do município e participam da vida dos seus filhos de uma forma mais intensa. As famílias são convidadas a participar das festas no abrigo, das reuniões escolares, das consultas médicas, etc, com o objetivo de acompanhar a vida dos próprios filhos. Pode-se observar que o vínculo afetivo com as famílias é fortalecido na medida em que esta passa a fazer parte do cotidiano da criança, favorecendo com que o vínculo entre pais e filhos seja estabelecido numa base segura. Nos últimos anos, o abrigo passou a propiciar um espaço onde as histórias de vida puderam ser vividas e compartilhadas, criando-se o laço social, e onde se permite que a criança possa ser acolhida pela comunidade. A criança passou a ter um espaço onde pode expressar a saudade da família, a violência com que já fora tratada, a mágoa pelo abandono da mãe, etc, o que antes não acontecia. Neste sentido, a criança poder ser confirmada em seus sentimentos, o que, como já foi descrito acima, possui relação direta com o desenvolvimento saudável da criança. Nos últimos anos, o abrigo passou a organizar reuniões e capacitações mensais aos cuidadores e educadores, com o objetivo de que todos passem a adotar uma mesma conduta com cada criança, onde a história de cada criança possa ser compartilhada e cada comportamento compreendido por todos e onde todos possam expressar os sentimentos, muitas vezes tão ambivalentes, próprios de um serviço de acolhimento. Nestes encontros, a ambivalência suscitada no trabalho com a criança abandonada, a mobilização do desamparo, a necessidade de fazer o luto simbólico da família ideal podem ser levantadas e trabalhadas. As informações sobre cada criança acolhida, inclusive a percepção que os diferentes educadores têm dela, possam circular entre todos da equipe, o que interfere diretamente nos cuidados despendidos para cada criança. Nestes momentos, informações quanto à importância de um ambiente rico em estímulos para o 11
12 desenvolvimento dos bebês e das crianças são compartilhadas, o que faz com que o abrigo não seja mais caracterizado como um ambiente pobre em estímulos, como era anteriormente. Os bebês passaram a ser cuidados por poucas cuidadoras, o que favorece com que eles estabeleçam vínculos mais seguros, diferente de anteriormente, em que as cuidadoras se revezavam nos seus cuidados. As cuidadoras passaram a oferecer um contato particularizado aos bebês, percebendo-os nas suas individualidades. O bebê, desde seu nascimento, é tomado como um sujeito, único e ativo, com particularidades e preferências, e não mais como um simples organismo que tem que ser cuidado no âmbito apenas da satisfação de suas necessidades básicas. Ou seja, os aspectos interacionais entre bebê e educador passam a ter prioridade. Desta forma, os bebês passaram a não mais apresentar sinais da síndrome de privação afetiva ou hospitalismo, assim denominada por Spitz. O quadro de hospitalismo aponta os riscos à constituição psíquica e até mesmo para a sobrevivência de bebês institucionalizados que recebiam cuidados impessoais, voltados exclusivamente à sobrevivência do organismo. Portanto, priorizando os cuidados particulares a cada bebê pode-se observar que atualmente os efeitos da separação podem ser atenuados diante da necessidade do acolhimento. Outra mudança fundamental que foi instaurada no abrigo é o fato de cada criança poder possuir seus próprios bens pessoais, como roupas, material escolar, brinquedos, presentes, o que anteriormente eram objetos compartilhados por todos da casa. Tal mudança favorece com que cada criança seja vista na sua individualidade, o que contribui para a formação de sua identidade e de ser único no mundo. Os aniversários são comemorados no dia do nascimento de cada bebê e criança, o que também leva em consideração a individualidade de cada um. Anos atrás os aniversários eram comemorados uma vez ao mês numa única comemoração, fazendo com que as crianças fossem consideradas apenas no âmbito coletivo. Atualmente o abrigo onde coordeno acolhe no máximo vinte e cinco crianças, o que favorece com que cada uma seja cuidada com mais qualidade. Em épocas passadas, o abrigo já chegou a acolher cerca de quarenta crianças. As crianças, os adolescentes e até mesmo os bebês são inseridos em várias atividades externas, participando ativamente da vida da comunidade, direito básico de toda criança. Nenhuma atividade, como aulas particulares, são realizadas no âmbito do abrigo. A partir de 2010, o abrigo fez uma parceria com o Instituto Fazendo História. Este instituto foi criado a partir das mudanças estabelecidas pelo ECA, em que as crianças e adolescentes passam a ser considerados sujeitos de direitos. O instituto tem como missão colaborar com o desenvolvimento de crianças e adolescentes acolhidos em abrigos de todo o Brasil, trabalhando junto à sua rede de proteção a fim de fortalecê-los para que construam e transformem a própria história. Através desta parceria, pudemos dar início ao Projeto Fazendo Minha História, que visa o resgate da história de vida de cada criança. Ou seja, cada criança possui um voluntário específico e se reúnem semanalmente para juntos resgatarem a história de vida da criança, registrando num álbum, que é levado junto com a criança no momento do seu desacolhimento. Tal projeto tem 12
13 favorecido com que cada criança possa entrar em contato com sua história, tornando-se protagonista de sua própria vida. Ou seja, tem possibilitado com que a criança seja confirmada, contribuindo para que faça contatos com mais qualidade e awareness. Diante de todo o exposto acima, pode-se afirmar que, em decorrência do surgimento das leis que regem atualmente os serviços de acolhimento, o abrigo onde atuo atualmente passou a prestar um trabalho de melhor qualidade, priorizando a individualidade e qualidade de vida da cada criança e adolescente acolhido, favorecendo com que cada um deles tenha seus direitos garantidos. Pode-se concluir que os riscos descritos por John Bowlby acerca do acolhimento institucional para o desenvolvimento da criança diz respeito ao modelo pelo qual eram organizados os assim chamados orfanatos, onde a criança e o adolescente não a possibilidade de serem vistos nas suas individualidades e onde suas histórias não eram consideradas. Com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, o direito das crianças e adolescentes acolhidos em serviços de acolhimento passa a ser respeitado, garantindo a estas crianças maiores chances de se desenvolverem de uma forma mais saudável. Toda Criança Quer Toda criança quer Toda criança quer crescer Toda criança quer ser um adulto E todo adulto quer E todo adulto quer crescer Pra vencer e ter acesso ao mundo E todo mundo quer E todo mundo quer saber De onde vem Pra onde vai Como é que entra Como é que sai Por que é que sobe Por que é que cai Pois todo mundo quer... (Palavra Cantada) 13
14 Referências Bibliográficas AGUIAR, Luciana. Gestalt-terapia com crianças: teoria e prática. Campinas: Livro Pleno, BOWLBY, J. Formação e rompimento dos laços afetivos. São Paulo: Martins Fontes, BRASIL. Lei nº de 13 de julho de Estatuto da Criança e do Adolescente BRASIL. Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes. Brasília, BRITO, Mônica Xavier de e Antony, Sheila. "Abandono, abrigamento e adoção: o que os pais precisam saber sobre as crianças e a realidade dos abrigos". In: Antony, S. (org.). A clínica gestáltica com crianças: caminhos de crescimento. São Paulo: Summus, KIYAN, Ana Maria Mezzarana. E a gestalt emerge: vida e obra de Frederick Perls. São Paulo: Altana, WINNICOTT, Donald W. Privação e delinquência. São Paulo: Martins Fontes,
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