PARTICULARIDADES CABOVERDIANAS NOS CONTOS DE ORLANDA AMARILIS: UM ENCONTRO LITERÁRIO NO BRASIL
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- Daniela Caires de Almeida
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1 PARTICULARIDADES CABOVERDIANAS NOS CONTOS DE ORLANDA AMARILIS: UM ENCONTRO LITERÁRIO NO BRASIL Maria Salete Daros de Souza UFSC - Doutoranda em Teoria literária dsouza@unetvale.com.br [...] fui colocada na posição de procura de um universo perdido e, se essa rotura existiu virtualmente, foi bom, porque me obrigou a escrever. Orlanda Amarilis Considerando possível que sua criação literária tenha sido afetada por há muito tempo estar ausente de Cabo Verde, e ciente de que o equilíbrio emocional pode sofrer rupturas quando se deixa a terra onde se nasceu, Orlanda Amarilis desenha e deseja para sua literatura um lugar de reflexão poética e política para uma história de insulamento que é a de Cabo Verde. País africano de particularidades históricas que, não tendo vivido as mesmas condições das demais colônias portuguesas no que se refere aos movimentos de colonização e de descolonização, foi-lhe impingido o abandono administrativo e a desassistida submissão a um cenário físico e humano adverso e insular. [...] terra da miséria, do insulamento, da seca, da imposição do dilema, e essa exigiu a mestiçagem em seu sentido mais amplo: ao lado do crioulo biológico, os brancos e os negros iam-se tornando crioulos culturais, anulando-se, praticamente, pelo exercício da sobrevivência, a subordinação colonial. É o que Manuel Ferreira aponta como um novo tipo de relação a substitutir colonizador/colonizado, uma vez que a própria administração passa para mãos de uma burguesia caboverdiana. A falta de recursos, a pobreza do solo, a pequenez das ilhas e a irregularidade das chuvas, tudo fez
2 com que os portugueses não tivessem interesse de investimento em Cabo Verde. (TUTIKIAN, 1999, p.95). Se olhar a África hoje, em cenário brasileiro, sob os auspícios de política cultural democrática, não excludente, significa (re)visitar décadas de história, que também é nossa, sobretudo ser apresentado à literatura até então desconhecida, conhecer a poética de Orlanda Amarilis pode ser uma das formas de adentrar e de desvelar o universo literário e histórico africano anteriormente distanciado. Com cautela de quem vislumbra complexidades de toda ordem, alguns recortes podem contribuir, penso, para esse adentramento. Nascida em Assomada, Santa Catarina, Cabo Verde, em 1924, Orlanda Amarilis fez os estudos primários e parte dos estudos secundários em Mindelo, São Vicente. Viveu seis anos em Goa, estado da Ìndia Portuguesa e dois em Angola, e estudou Ciências Pedagógicas em Lisboa, onde vive. A ruptura com a terra natal e a condição de exilada é que a coloca na posição de procura do universo perdido como refere na entrevista concedida a Michel Laban. Esse universo distanciado pela condição diaspórica 1, ao lhe permitir viver em grandes cidades de outros países e lhe fortalecer de identidades outras, favorece-lhe olhar para sua terra por outras câmeras. Para nós, Cabo-verdianos, [alerta] a nossa diáspora concretiza-se na emigração. É a fuga clandestina nos barcos estrangeiros, onde, caso fossem descobertos, os prevaricadores seriam atirados para dentro das caldeiras que alimentavam o girar da hélice ou o trabalhar das máquinas. Entre bagagem e sacos no porão escondidos, quantas vezes desacautelados, acabavam por ser empurrados borda fora, para regalo dos tubarões...( AMARILIS, 1999, p. 43). Assim, com esse sentimento de pertencimento e de rompimento, é que sua literatura resulta em diferentes matizes da temática da insularidade - o isolamento, a migração, o futuro ilusório -, e assume variantes de um mesmo tema: o exílio, a 1 Diáspora palavra grega que designa a dispersão dos judeus através do mundo no século II da nossa era. Dispersão ocasionada muitas vezes por exílio forçado, outras vezes ainda por necessidade de fazer transacções comerciais como modo de vida normal. (AMARILIS, 1999, p. 43).
3 diáspora, a solidão, o dia-a-dia das mulheres e das ilhas, o que lhe permite transitar em espaços distintos - a ex-colônia e a metrópole - para pensar a vida contemporânea. [...] Orlanda Amarilis lança luzes sobre algumas questões frente às quais se coloca o escritor contemporâneo, como a necessidade de construir, com sua literatura, um mundo novo, moderno, sobre as culturas que ele carrega dentro de si, ou, ainda, ao escrever, não se fechar em guetos, esquecendo-se de que há um mundo além da comunidade à qual pertence originariamente. (FONSECA; MOREIRA, 2007, p. 23). Ao construir, com a literatura, um mundo novo sobre as culturas que carrega dentro de si, abre-se para além da comunidade a que pertence originariamente. No conjunto, sua obra aborda o deslocamento entre espaços físicos e psicologicamente diferentes. Contista de publicação literária reduzida, publicou Ilhéu dos pássaros em 1983, A casa dos mastros em 1989 e Cais-do-Sodré te Salamansa em É, a partir de um recorte de obra, A casa dos mastros, mais especificamente ainda, de dois contos desta publicação, que concentrarei a diálogo aqui proposto. Se as diversidades devem ser (re)conhecidas e as desigualdades vencidas, se se quer a literatura e a educação estrategicamente pensadas para a superação das tantas desigualdades sociais, há que se examinar, nesta discussão, a escolha do gênero literário conto como adequada para o letramento literário em geral, num país de poucos leitores como somos, bem como pertinente - este gênero -, para a entronização a um universo literário desconhecido, o da literatura africana de língua portuguesa, em particular a literatura caboverdiana aqui representada pelos contos de Orlanda Amarilis. Por sua menor complexidade narrativa e ligeireza de leitura, os contos costumam proporcionar uma entrada prazerosa e cativante no mundo da leitura. Têm, em geral, por característica, uma densidade de fatos e uma tal coesão que favorece lê-los de uma sentada só, impedindo que o leitor iniciante se aborreça e desista da leitura. O conto é [...] conto, quando as ações são apresentadas de um modo diferente das apresentadas no romance: ou porque a ação é inerentemente curta, ou porque o autor escolheu omitir algumas de suas partes. A base diferencial do conto é, pois, a contração. (GOTLIB, 2006, p. 64).
4 Falar das especificidades do conto implica compreender também que não estamos diante de gênero fácil, advertência feita pelo grande contista brasileiro Machado de Assis: É gênero difícil, a despeito de sua aparente facilidade. (2006, p. 806). A brevidade, uma das características mais alardeadas do conto, talvez seja a que exija mais perspicácia e habilidade narrativa e literária do autor. O tamanho, da mesma forma, é naturalmente a qualidade do conto. (ASSIS, 2006, p. 476). Entendo também que a apresentação de uma narrativa mais curta, comparativamente ao romance, surge como uma alternativa potencialmente relevante na promoção da leitura no ambiente escolar, dadas as condições do trabalho na escola e à capacidade de fôlego de leitura própria dos leitores jovens. Feitas as especulações a respeito da eficácia do gênero literário em questão, evidentemente aceitando que resistências e dificuldades farão parte do encontro literário do qual me ocupo, e dos processos de letramento literário em geral, volto às particularidades dos contos de Orlanda Amarilis. Neles, conforme já me referi anteriormente, as vivências traumáticas dos caboverdianos são revisitadas através da temática do exílio, e podem, igualmente, ser vistas à luz de condições históricas gerais representativas do continente africano, tais como as guerras colonial e pós-colonial, a ditadura de Salazar, enfim, situações que fomentaram o exílio político e económico de portugueses e africanos fazendo do exílio um tema recorrente na escrita desta época. (GUTERRES, 1999, p. 9). Por outro lado, ainda segundo Maria Guterres, Os motivos que dão forma ao exílio como tema literário - a viagem ao desconhecido, o destino incerto - estão ligados, não só à aventura involuntária que caracteriza o exílio político, mas também à idéia de viagem sem regresso. (p. 9). Constituem arquétipos na narrativa do exílio a consciência de que a pátria já não é o lugar onde se possa voltar, o conflito das personagens perante realidades desconhecidas e o exílio interior é tão trágico quanto a emigração.
5 O conto Cais-do-Sodré, do livro Cais-do-Sodré té Salamansa (1974), é exemplar das variantes do tema do exílio em Orlanda Amarilis. Nele o deslocamento no estrangeiro conflita com a descoberta de que estar entre um patrício passa a ser incômodo, e de que o imaginário de pátria pode estar se desfazendo. Ao analisar uma conhecida a seu lado, na estação ferroviária, em Lisboa, a personagem Andresa se dá conta de que há algum tempo lhe acontece que: Vê um patrício, sente necessidade de lhe falar, de estabelecer uma ponte para lhe recordar a sua gente, a sua terra. Entretanto, feito o contacto, o desencanto começa a apoderar-se dela. Qualquer coisa bem no íntimo lho faz sentir. Não tem afinidades nenhuma com as pessoas de há quinze anos atrás. Nem são as mesmas. (p.16). No conto Salamansa, do mesmo livro, ao revisitar a casa em Salamansa, o personagem Baltasar rememora, juntamente com os espaços físicos da morada, fatos, amores, colegas e ouve da criada Antoninha que ela deseja também emigrar: << Porque é que queres ir para S. Tomé?>>, surpreende-se a perguntar à criada. <<Não estás bem aqui na tua terra, Antoninha? << Bem, eu estou, senhor doutor. Mas eu tenho meu filho e eu quero darlhe duas letras. Sabe, esta nossa terra está nhanhida.>> Antoninha desfia as suas preocupações num arrastar monocórdico de palavras. <<O pai de meu filho deixou-me. [...] Tenho de ir pâ S. Tomé para poder dar duas letras ao meu filho. (p. 121). Baltasar, que viera passar uns dias em S. Vicente, sente vontade de voltar para Lisboa. Sua terra não é a mesma e nada mais ali tem significado para ele. Sente-se exilado em sua própria terra: A irmã passava os dias a lamentar a chuva arredia havia duas épocas, o povo começara a debandada para S. Tomé, as pessoas do seu tempo ou tinham emigrado para a América, ou tinham-se deixado ficar naquela modorra do Mindelo, impotentes para lutarem contra o vento endiabrado que empurrava as águas para outras pontas. O que o prendia ali? Nada, nada. (p ).
6 Passo a examinar com mais demora o livro A casa dos mastros, publicado em 1989, detendo-me, posteriormente, em dois contos desta publicação: A casa dos mastros título homônimo do livro - e Bico de lacre. Sete contos organizam o livro A casa dos mastros: Rodrigo, A casa dos mastros, Jack-pé-de-cabra, Laura, Bico- de-lacre, Tosca e Maira da Luz, respectivamente. Todos os contos trazem uma introdução, uma espécie de sinopse, epígrafe, ou nota explicativa. Esta epígrafe funciona como uma mostra preparativa para um modo de narrar de desfecho lacônico, curioso, indagador, e as narrativas são repletas de elementos fantásticos, raízes de África, procura do eu remoto que há em todos nós, conforme afirma a autora em entrevista concedida a Michel Laban. (p. 273). Ao articularem-se entre si pelos ciclos de vidas e mortes, os sete contos que compõem A casa dos mastros podem ser paradigmas de que o real pertence à morte, à dimensão do imaginário (TUTIKIAN, 1999, p. 96), ou do fantástico. A epígrafe do conto A casa dos mastros anuncia que O mastro é um sinal, é um signo. Numa cidade, por mais calma e pequena que se nos apresente, há sempre uma casa onde acontece algo diferente. Aqui, neste texto, A CASA DOS MASTROS surge como cenário de uma transgressão no quotidiano de uma pacata cidade. (AMARILIS, 1989, p.39). Transgressão ratificada por Pires Laranjeira no prefácio do mesmo livro: História em que a protagonista se vê enredada nas malhas escabrosas do incesto, na tradição naturalista. (1989, p. 11). O cenário do conto é de terra inóspita: outros becos e ruas, gémeos na solidão esmaecida da terra deserta, varrida pelo suão de repente levantado do mormaço arrastado do Sara. (AMARILIS, 1989, p. 41). A casa é um sobrado com ícones monárquicos: A casa, de herança não repartida dos bisavós, conservava um mastro longo [...]. Em dias festivos e santos, a bandeira monárquica, batia fortemente. (p. 44).
7 Tempo histórico linear, intercalado por recuos e avanços temporais, alterações sequenciais por intromissão do narrador, um eu volátil que alterna entre terceira e primeira pessoa, em diálogo direto com um nós oculto. Há recorrência de crendices, almas penadas, ambientes lúgubres, maldição: aquela casa era dos mortos amedrontados pelas teias a multiplicarem-se, de correntes de ar, de maldição acumulada!. (p. 52). Também as premonições, misturam-se em monólogo interior à voz de um narrador onisciente: Para mim, parte volátil de mim mesma, estas controversas atitudes só me vieram confirmar o que iria acontecer como eu já previra. (p ). Ao atuar na cultura mítica, conforme afirma Jane Tutiakin, a autora desvenda o estatuto de caboverdianidade e africanidade, oferecendo, aos caboverdianos, o orgulho étnico e nacional. (1999, p. 96). O mar e o canal são o sonho de emigrar: Previu nos olhos da moça ondas alterosas do canal barrando o caminho do Norte. Caminho de emigrantes, caminho da procura, caminho de ir e voltar. (AMARILIS, 1989, p. 48). As mulheres são infelizes, marcadas pelo tempo, pela desilusão e pela solidão: Violete continuou a viver de recordações, de desejos amaldiçoados, só sem ninguém, errando pela casa. (p. 53). A iniciação sexual e o incesto vividos pela personagem Violete causam-lhe tensão, dor, culpa, isolamento extremo e morte trágica: Violete continuou a viver de recordações, de desejos amaldiçoados, só sem ninguém, errando pela casa. (p. 53). A exemplo dos demais contos do livro A casa dos mastros, a narrativa do conto Bico-de-lacre também é anunciada com uma epígrafe explicativa: Bico-de-lacre, avezita conhecida em Santiago por Passarinha. Bico-de-lacre, sortilégio como o de qualquer totem a que nos agarramos. Também a infância transfigurada de uma criança tem o seu sortilégio. Vila de Ribeira de João, Lombinho, Passagem, Calejão, Campinho e tantos outros lugares, assim como figuras carismáticas como o cónego Bouças ou o Dr Elmano ou uma instituição como o seminário, ficam dignificadas no tempo. E se a criatividade toma por referências o corpo de lugares e circunstâncias chamadas à stória, isto significa a homenagem de quem amou esses lugares e neles viveu, se bem que de forma passageira. (AMARILIS, 1989, p.93).
8 Memória transfigurada da infância, conto revisitador de lugares, de pessoas e de circunstâncias do cotidiano infantil na casa da avó, casa de organização colonial, onde as crianças estão sob os cuidados de uma tia: Uma das escadas era a das visitas, a outra a das criadas. As traseiras eram a parte mais pomposa da casa. No primeiro andar as seis janelas com largas vidraças reflectiam nos vidros o brilho do sol de todo o ano. Do quarto da titia ou de qualquer dos outros, descortinava-se o Pasmatório [..] ladainhas para a Senhora do Rosário. (p. 95). Casa de homens ausentes, habitada por mulheres, por criadas e por três crianças: As vozes das mulheres derramavam-se pelas casas da ladeira enquanto os dedos marcavam nas contas do rosário o final de cada ave-maria. O cântico, qual coro de carpideiras, espreguiçava-se pela noite. Choravam pelos maridos que nunca tiveram. (p.96). A rotina da casa tem as tarefas bem marcadas pelos fatos básicos, por um certo idílio e por acontecimentos hilários provocados por atitudes das crianças: Era a época dos grandes trabalhos. Em cima do forno havia bananas descascadas num tabuleiro a secarem ao sol. Cachos verdes iam sendo pendurados na despensa. Depois de amadurecidos ai, ai tão perfeito lanche com farinha-de-pau. (p. 100). Narrado em primeira pessoa, de cenários descritivos, a narrativa revisita a infância da menina traquina: Eu chorava, não queria as papas. Gostava, sim, de me levantar cedo e fugir de casa. (p. 96). Um dia empurrei a minha irmã para dentro do tanque e não fosse o Libânio ela ter-se-ia afogado (p. 100). Narra, nos moldes do fantástico, o rito de passagem da menina para a vida adulta; a transformação do corpo, a consciência de si, a perda da inocência: Eu era ruim, diziam-me. Comecei a cismar. [...] Via olhos a espreitarem-me de todos os lados e dia a dia começara a transformar-me exteriormente. Ignoro se se aperceberam do que me ia acontecendo. Os meus dentes cresceram devagar, devagar, saíram para fora da boca e quase chegavam ao
9 queixo. [...] Um rabito de pele tinha começado a despontar ao fundo do cóccix. (p. 101). A descoberta da morte e a conquista da liberdade se dão de forma alegórica e sofrida, em ambiente fúnebre, acompanhada da presença e do canto de um bico-delacre, ave de mau agouro, conforme já se foi advertido na epígrafe do conto. O pranto alto e sentido abriu vincos fundos e irregulares no muro branco do cemitério. As mulheres carpiam pelo morto e pela chuva. [...] Afastei-me então e entretive-me a ler o que diziam as cruzes bem direitas no topo de cada sepultura.[...] Saí a fugir do cemitério, o meu rabito de pele a bater-me nas pernas [...] Então desatei a chorar [...] A noite desabou sobre mim. O bico-de-lacre trinou mais duas vezes (agora ouvia eu bem) e emudeceu. (p ). Um e outro conto aqui apresentados, exemplares da produção amariliana, são adequados a diferentes idades e circunstâncias em exercício de iniciação ao conhecimento das particularidades da obra desta escritora caboverdiana. Poderia cogitar ainda, que Bico-de-lacre, pela sua singeleza, telurismo e memória da infância seria muito bem vindo na recepção de jovens leitores e que A casa dos mastros estaria melhor na companhia de leitores mais amadurecidos. De todo modo, essa cogitação serve apenas para pensar situações específicas da vida escolar, e auxiliar nos projetos de leitura que viriam. Em suma, esses projetos teriam como meta descortinar um universo literário que carrega na sua particularidade o ensejamento de descobertas históricas e culturais formadoras de consciência literária e política, sobretudo de atitudes diante do diverso e do plural de que tratam os contos. Sem mascaramento das verdades históricas, sociais e culturais, Orlanda Amarilis opõe Á perspectiva anômica da dispersão, solidão, individualismo, [...] a solidariedade, procurando, assim, analogicamente, a discursividade dos contadores de estórias. Assim, além de memória cultural de seu povo, sua ficção constitui produção simbólica solidária (enquanto tal, concretiza laços
10 de solidariedade), pela intercalação de múltiplas vozes e múltiplos causos. (ABDALA JUNIOR, 1999, p. 88). Do ponto de vista da viabilidade das leituras aqui propostas, cabe pensar que o distanciamento histórico e físico, também o poético-literário a que estamos submetidos em relação ao país Cabo Verde e à literatura amariliana, poderão ser superados através de estudos e de leituras escolares intertextuais, somando pesquisas e conhecimentos, aproximando-nos das diferenças de toda ordem: temporais, espaciais, culturais, históricas, de raça e de gênero. Todas, passíveis de serem (re)veladas, descobertas, aceitas e (con)vividas. Convívio salutar a todos, sem exceção. Afinal, é esta a luz que nos entra vinda do interior desses textos, produzidos por um sentimento que, a despeito de ser particular, é universal e contemporâneo nas temáticas que aborda. Apontar para as pluralidades e oportunizar essas leituras e discussões significa construir a consciência de que o Brasil se encontra estreitamente ligado, em sua história, aos processos culturais vivenciados pelos povos africanos e também caboverdiano. Tanto é verdade que, segundo Simone Caputo Gomes, um particular aspecto nos une à cultura caboverdiana: o modernismo brasileiro serviu como divisória entre a poética de modelo português e o mergulho nas raízes locais. Através da revista Claridade ( ), primeira manifestação intelectual da elite crioula caboverdiana, o Brasil passa a ser modelo de afirmação e de identidade mestiça, particularmente, a poesia de Manuel Bandeira e aspectos diversos do Nordeste brasileiro: Até o último momento da revista (1960), o Brasil permanece como padrão ou intertexto nos estudos do folclore, da língua, das estruturas sociais e da produção literária. (GOMES, 2006, p. 166). As temáticas da aridez, da seca e da fome, a exemplo da literatura sobre o Nordeste brasileiro, são constantes do olhar caboverdiano. E Manuel Bandeira teve ampla recepção no meio literário de Cabo Verde pela perseguição da felicidade alhures, o mito de Pasárgada, o também chamado terra-longismo. Para o aprimoramento dessa conversa cruzada que aqui traço, importa destacar ainda, apesar da dominação da cultura portuguesa, a resistência do povo de Cabo Verde, na preservação de sua identidade. No processo de luta pela libertação nacional, foi de peso a presença de elementos como: o crioulo na fala dos
11 caboverdianos, as mornas, 2 as cantigas de trabalho, os repiques do batuque, as manifestações coletivas como a Tabanca 3, em suma, o apego à cultura mestiça. O mestiço caboverdiano revelou-se como elemento catalisador e estabilizador, mas também inovador e plástico, com o alastramento tanto horizontal como vertical, por todo o arquipélago, de expressões de cultura mestiça formadas possivelmente no funco: a língua crioula, o folclore poético, musical e novelístico, a culinária, a doceria, o folclore das adivinhas, dos provérbios, os festejos populares, as superstições, os hábitos e esquemas de comportamento. (GOMES, 2006, p. 162). A isso é sensível Orlanda Amarilis que tem plena sua obra dessas particularidades, optando por uma linguagem terra, escolha lingüística anunciadora de crenças e aspectos comportamentais autóctones, conforme se pode observar no trecho que segue do conto A casa dos mastros : O imaterial do meu riso porventura espalhou-se naquela detardinha sobre os meus sujos e acinzentados ossos. A minha caveira desgraciosa, porque desproporcionada aos seu antigo invólucro, tinha estremecido. (p. 43). Por outro lado, convém chamar novamente para a compreensão da ótica problematizadora de Orlanda Amarilis: a do geral através do particular, a da nação através da região, a do coletivo através do individual. Se os seres ficcionais dos contos se fazem agentes de caboverdianidade, no sentido de manter as raízes que os ligam ao seu meio, se extravasam uma história sem máscaras e se, ainda, apontam com suas particularidades, aspectos universais, mais próximo se está de estabelecer um diálogo com este povo e com esta História porque dela e deles de muitas forma compartilhamos, como já ficou claro. Bem receber a literatura universal, particularmente a africana e caboverdiana, poderá ser uma forma de encontro e de solidariedade universal. Um estar aberto para o 2 Morna - Gênero musical e de dança que mais identifica o povo cabo-verdiano. Tradicionalmente tocada com instrumentos acústicos, a morna reflecte a realidade insular do povo de Cabo Verde, o romantismo dos seus trovadores e o amor à terra (ter de partir e querer ficar).trata-se de um símbolo nacional; é o gênero que consegue ser largamente transversal a todos os grupos etários, cronologicos, geográficos, etc. 3 Tabanca Festividade religiosa, típica de algumas ilhas, ligada a santos populares e associada à manifestação de rua.
12 outro no que ele possa assemelhar-se ou diferenciar-se, constituindo uma universalidade mais homogênea, justa e fraterna, modificada em atitudes humanas e cidadãs. Um caminho possível para a promoção das igualdades pelo viés dos estudos literários, culturais, e educacionais. Porque se escrever não é mais que um desabafo, um modo de partilhar a alegria, a dor, o medo por vezes, as nossas emoções quantas vezes caladas, recalcadas (AMARILIS, 1999, p. 46), ler também o é partilhamento e desvelamento. Enfim, pode ser a literatura percurso de (re)conhecimento de (des)igualdades, um pouco superação das limitações humanas, ou ainda, mais do que meio de suportar a existência - como quer Vargas Lhosa em A orgia perpétua -, meio de melhor existir na diversidade. Referências Bibliográficas ABDALA JUNIOR, Benjamin. Orlanda Amarílis, literatura de migrante. Revista Via Atlântica, n. 2 jul USP. p Disponível em: < > Acesso em: 27/05/2011. AMARILIS, Orlanda. Cais-do-Sodré té Salamansa. Coimbra: Centelha, A casa dos mastros: contos caboverdianos. Linda-a-Velha: ALAC, Diáspora Exílio. In: MARTINHO, Ana Maria Mão-de-Ferro (org.). A mulher escritora em África e na América Latina. Évora: NUM, p ASSIS, Machado de. Várias histórias. In: COUTINHO, A. (org). Machado de Assis: Obra Completa. v. 2. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, p Crítica. In: COUTINHO, A. (org). Machado de Assis: Obra Completa. v. 3. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, p FONSECA, Ma. Nazareth Soares e MOREIRA, Terezinha Taborda. Panorama das literaturas africanas de língua portuguesa. Cadernos CESPUC de Pesquisa, Série Ensaios, n. 16: Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, Belo Horizonte, set. 2007, p
13 GOMES, Simone Caputo. Rostos, gestos, falas, olhares de mulher: o texto literário de autoria feminina em Cabo Verde. In: CHAVES, Rita e MACEDO, Tania. (org.). Marcas da diferença: as literaturas africanas de língua portuguesa. São Paulo: Alameda, p GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. 11 ed. São Paulo: Ática, GUTERRES, Maria. O exílio nos contos de Orlanda Amarilis. In: MARTINHO, Ana Maria Mão-de-Ferro (org.). A mulher escritora em África e na América Latina. Évora: NUM, p LABAN, Michel. Encontro com Orlanda Amarilis. In: Cabo Verde: Encontro com escritores. I vol. Fundação Eng. Antonio de Almeida. Porto/Portugal, s.d. p LARANJEIRAS, Pires. Mulheres, ilhas desafortunadas. In: AMARILIS, Orlanda. A casa dos mastros. Contos caboverdianos. Lisboa: ALAC, Prefácio. p MATOS, Mário. Machado de Assis, contador de histórias. In: COUTINHO, A. (org). Machado de Assis: Obra Completa. v. 2. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, p TUTIKIAN, Jane. Inquietos olhares: A construção do processo de identidade nacional nas obras de Lídia Jorge e Orlanda Amarílis. Revista Via Atlântica. n. 2, jul USP. p Disponível em < > Acesso em: 27/05/2011.
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