ESTADO DO RIO DE JANEIRO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DA CAPITAL DECISÃO
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- José Caldeira Farinha
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1 ESTADO DO RIO DE JANEIRO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DA CAPITAL JUÍZO DE DIREITO DA 2 a VARA DE FAZENDA PÚBLICA DECISÃO Cuida-se de ação cautelar em que pretende a Associação Autora que o Município se abstenha de realizar qualquer intervenção demolitória na comunidade localizada no Canal do Anil. Afirma a Associação que os moradores da comunidade acima referida residem na localidade há mais de cinqüenta anos, sendo surpreendidos, em janeiro de 2007, com a presença de agentes do Município marcando de forma diferenciada as suas residências, sendo promovida notificação judicial pela própria Associação com o escopo de coibir e prevenir possíveis arbitrariedades, o que ensejou o deferimento da notificação, pela autoridade judicial, para que a Prefeitura Municipal observasse, na eventual retirada da população do canal do Anil, os direitos dos moradores, abstendo-se de praticar qualquer ato violador destes direitos. Ressalta que, no dia 01/08/07, o Poder Público Municipal enviou cerca de 50 funcionários, devidamente equipados e sob o aparato de força policial, para proceder à demolição de casas situadas na comunidade do canal do Anil. 1
2 Passo a decidir. o processo cautelar tem por escopo garantir a efetividade de outro processo, ao qual o mesmo se liga necessariamente. Levando-se em conta o tempo necessário para que um processo chegue aó seu desfecho, com a prática de atos processuais e a observância dos prazos legais, criou-se um mecanismo de prevenção dos males do tempo, protegendo, garantindo, assegurando a eficácia do provimento jurisdicional a ser produzido no processo principal. Costuma-se dizer que o processo cautelar é o "instrumento do instrumento", já que não satisfaz o direito material, mas tão somente garante que este possa ser realizado em momento posterior. São requisitos da medida cautelar o periculum in mora e o fumus bone iuris, os quais se provam mediante juízo de cognição sumária. Enquanto o processo principal ocupa-se com o bem da vida, buscando a verdade, o processo cautelar se contenta com o desígnio, mais modesto, da busca da probabilidade. Infere-se que os referidos processos possuem campos de instrução distintos e inconfundíveis. Nesta fase inicial do processo, ainda sem a oitiva do Poder Público Municipal, este Juízo possui sérias dúvidas a respeito da regularidade das construções erigidas na comunidade conhecida como Canal do Anil. Não se discute aqui que a Administração Pública, por força da autoexecutoriedade dos atos administrativos, possui o poder de executar direta e imediatamente atos administrativos sem a necessidade de prévia apreciação judicial, execução esta assegurada pela força pública, mesmo que o ato acarrete a apreensão ou a destruição de coisas, embargo de construções, demolição de obras, interdição de atividade e o mais que se contiver na competência da autoridade administrativa que o determina. Observe-se que a auto-executoriedade dos atos administrativos encontra fundamento no princípio da supremacia do interesse público. Sucede que, embora possível, em tese, a demolição de imóveis construídos de forma irregular, vale dizer, em desconformidade com as normas que disciplinam, no nosso ordenamento, a ocupação do solo urbano, hão de ser observados princípios constitucionais, tais como o devido 2
3 processo legal (art. 5, LlV, da Constituição, tanto no seu aspecto substancial traduzido pelo princípio da razoabilidade, quanto o seu aspecto formal, que consiste na observância das regras constitucionais e legais para a perda de bens pela pessoa humana), a ampla defesa (art. 5, L V), o contraditório (art. 5, LV), o direito à moradia (art. 6, caput) e o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1, lu), valor máximo do ordenamento pátrio e síntese de todos os demais direitos. Estamos, aqui, diante de residências de pessoas pobres que ali moram há várias décadas, sem a menor condição de aquisição de imóvel em outra área, se é que esta realmente foi adquirida, considerando a ausência de título de domínio, cuidando-se de comunidade construída precariamente, com a tolerância do Estado e, inclusive, com a concessão de alguns serviços públicos básicos, em um completo reconhecimento da dificuldade de solução do problema. Brasil: Prescreve a Constituição Federal, em seu art. 3 : "Constituem objetivos da República Federativa do IJI - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, ração, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. ". Se os objetivos da nossa República são estes, tão magnânimos, como pretender a demolição de casas residenciais de pessoas pobres sob a justificativa de que são irregulares (sem licença e sem projeto de construção), sem antes se proceder a uma vistoria e à avaliação dos imóveis? Registram os léxicos que favela é o "conjunto de habitações populares, toscamente construídas e desprovidas de recursos higiênicos" (cf. Aurélio, Novo Dicionário). Conquanto o fenômeno seja universal, porquanto existem favelas até nos chamados países ricos, na América Latina o fenômeno adquire dimensões assustadon.s, na medida em Processo no: Comunidade Canal do Anil Réu: Município do
4 que o acompanha o fenômeno da proletarização das massas e a concentração dessa população marginal da zona urbana, sem que haja atendimento adequado para contornar o gigantismo da cidade, determinando o esvaziamento do campo. Como conseqüência, remete para a cidade uma multiplicidade de problemas. Nos países pobres, onde há desemprego, miséria, falta de escola e de educação,multiplicidade de raças, o problema se agrava e se cronifica e, diante da crise de habitação, todos são obrigados a conviver com o triste espetáculo do crescimento de habitações populares desprovidas de recursos mínimos para o exercício de uma vida digna. O problema social atinge tamanha dimensão que o Poder Público assume não o papel de mera tolerância, mas vai além e, para aliviar a situação do favelado, estende alguns benefícios de saneamento básico a essas comunidades. A solução rápida e indolor para a sociedade carioca não pode ser o fechar de olhos e a demolição de centenas de casas, onde vivem homens, mulheres, crianças, idosos e doentes, expurgando os pobres, oprimidos e sem qualquer auxílio do Poder Público. Cabe a este último impedir a construção irregular e em local inadequado, muitas vezes perigoso; porém, concluída a obra há décadas, deverá regularizar a situação ou, não sendo possível por questões ambientais, urbanas, de saúde, as quais serão avaliadas ao longo do processo que ora se inicia, viabilizar a concessão de moradia a essas famílias, implementando e incrementando políticas habitacionais, prestações de natureza material, que lhes assegure o mínimo existencial. Ressalte-se que não se trata de uma residência isolada, construída de forma irregular e em perigo à sociedade e aos moradores, mas de um conjunto de pessoas residindo junto a um canal poluído pela absoluta falta de moradia em local diverso. Essas construções deixaram de ser simplesmente clandestinas para tomarem-se problemas sociais, os quais, considerando a magnitude de sua existência e a gravidade das conseqüências daí advindas, não encontram a solução rápida e cômoda no ato administrativo consistente na demolição, salientando que o poder de polícia não se compatibiliza com o excesso de rigorismo no seu exercício pela Administração Pública. Processo no: I.l Comunidade Canal do Anil Réu: Município do
5 Se o Estado pretende impor-se nas comunidades pobres, carentes da atuação do Poder Estatal em múltiplos aspectos, deve, por meio de seus agentes, respeitar a dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República (art. 1, lu, da Constituição da República), "ao qual foi atribuído pela Constituição o valor supremo de alicerce da ordem jurídica democrática. o valor da dignidade da pessoa humana, sendo um fim e não um meio para o ordenamento constitucional, não se sujeita a ponderações. Segundo o professor Antônio Junqueira de Azevedo, "a dignidade da pessoa humana como princípio jurídico pressupõe o imperativo categórico da intangibilidade da vida humana e dá origem, em seqüência hierárquica, aos seguintes preceitos: 1- o respeito à integridade física e psíquica das pessoas; 2- consideração pelos pressupostos materiais mínimos para o exercício da vida; 3- respeito pelas condições mínimas de liberdade e convivência social igualitária" (A caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana, Revista Trimestral de Direito Civil, n 9, jan/mar 2002, p. 3-24). Consoante afirma o professor Daniel Sarmento, no Estado Democrático de Direito estabelecido pela Carta Magna de 1988, todos devem envidar esforços para a consolidação de uma cultura de direitos humanos, criando-se em cada pessoa humana a percepção de que "vive sob a égide de um regime constitucional que trata a todos com o mesmo respeito e consideração; a compreensão de que não se é súdito de um Estado, mas cidadão; partícipe da formação da vontade coletiva, mas também titular de uma esfera de direitos invioláveis; sujeito e não objeto da História. Só que isto requer um Estado que respeite profundamente os direitos dos seus cidadãos" (Colisões entre Direitos Fundamentais e Interesses Públicos, in Direitos Fundamentais: Estudos em Homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres, ed. Renovar, 2006, p ). Acentue-se, ainda, que o presente feito é de grande relevância, por estar em discussão uma considerável área de posse e propriedade do Município, objeto de ocupação social por mais de 200 famílias, consoante se depreende dos documentos colacionados aos autos. Por isso, há de se ter muita cautela na condução do processo, sob pena de 5 PODER JUDICIÁRIO violação de direitos fundamentais, consoante já explicitado, acrescentando que a
6 função do processo é justamente a pacificação social. Pelos motivos expendidos, vislumbro a presença dos requisitos indispensáveis para a concessão da liminar pleiteada, a fim de que o Poder Público Municipal se abstenha de realizar qualquer intervenção demolitória na comunidade do Canal do Anil. na alínea "c" do pedido. Associação Autora. Intime-se o Ministério Público, na forma requeri da Concedo o beneficio da gratuidade de justiça à Cite-se. Intimem-se. Rio de janeiro, 03 de agosto AFONSO HENRIQUE FERREIRA BARBOSA Juiz de Direito 6
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