ESTUDO N. 2 DE JOSÉ VIEIRA BRANDÃO: ASPECTOS INTERTEXTUAIS NA HOMENAGEM MUSICAL A ERNESTO NAZARETH
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1 1429 ESTUDO N. 2 DE JOSÉ VIEIRA BRANDÃO: ASPECTOS INTERTEXTUAIS NA HOMENAGEM MUSICAL A ERNESTO NAZARETH Daniel Felipe Leite Sanches Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Mestrado em Música SIMPOM: Subárea de Teoria e Prática da Execução Musical Resumo: O presente trabalho tem como objetivo verificar o processo de intertextualidade no Estudo n. 2, para piano, de José Vieira Brandão ( ), levando em consideração o idiomatismo pianístico de Ernesto Nazareth ( ), a quem a obra foi dedicada. Objetiva-se oferecer subsídios para a construção de uma possível interpretação desta obra, levando-se em conta a presença de elementos estilísticos do universo de obras do compositor homenageado. Trata-se de uma obra datada de 1965 e não publicada, tendo somente em disponibilidade o manuscrito do autor. A análise foi baseada nos escritos de Joseph Straus em seu livro Remaking the Past: Musical Modernism and the Influence of the Tonal Tradition (1990). Palavras-chave: Música Brasileira para piano; José Vieira Brandão; Ernesto Nazareth; Estudo; Intertextualidade. Abstract: This article aims to determine the process of intertextuality in Estudo n. 2, for piano, written by José Vieira Brandão ( ), considering the pianistic idiom of Ernesto Nazareth ( ), to whom the work was dedicated. The goal is to offer subsidies for the construction of a possible interpretation of this work, considering the presence of stylistic elements of Nazareth s works, the honored composer. This is a work dating from 1965 and not yet published, and available only in the author s manuscript. The analysis was based on the writings of Joseph Straus in his book Remaking the Past: Musical Modernism and the Influence of the Tonal Tradition (1990). Keywords: Brazilian Music for Piano; José Vieira Brandão; Ernesto Nazareth; Etude; Intertextuality. 1. Introdução A realização de uma performance musical é um processo abrangente e de demasiada complexidade. A construção de uma interpretação informada depende das decisões feitas pelo intérprete no decorrer do estudo. Nesse sentido, este artigo pretende investigar aspectos de intertextualidade entre o Estudo n. 2 de José Vieira Brandão ( ) e as obras de Ernesto Nazareth ( ). Com o intuito de oferecer materiais para a construção de uma possível interpretação, enumeramos elementos estilísticos do idiomatismo pianístico do compositor homenageado e estabelecemos relações intertextuais. Para compor a homenagem a Nazareth, Brandão fez uma releitura das características do maxixe e do tango brasileiro, que tem o maxixe como parte de suas origens. (RODRIGUES, 2011, p. 40). Nazareth é considerado o codificador do maxixe e do lundu na literatura pianística. Compôs uma grande quantidade de obras entre tangos brasileiros, valsas, choro, dentre outros.
2 1430 Detinha sólida formação erudita. Era artista de grande popularidade, todavia não realizou carreira de pianista concertista como almejava. Apresentava-se em salas de cinema e cafés do Rio de Janeiro. Vieira Brandão nasceu em 26 de setembro de 1911, em Cambuquira, Minas Gerais e, ainda criança, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde residiu a maior parte de sua vida. Teve sólida formação musical, concluindo em 1929, com primeiro prêmio, o curso de piano no Instituto Nacional de Música, hoje Escola de Música da UFRJ. Diferentemente de Nazareth, trilhou uma notável carreira como pianista concertista, realizando turnês pelo Brasil, América do Sul e Estados Unidos, onde foi bolsista de 1945 a 1946 na University of Southern Califórnia em Los Angeles. Após seguir carreira como educador, regente e no assessoramento a Villa-Lobos, foi Presidente do Conservatório Brasileiro de Música até seu falecimento em Como compositor, possui obra relativamente curta. Sua escrita pianística revela um compositor refinado e exímio explorador das possibilidades sonoras e mecânicas do instrumento, tanto nas obras solo quanto nas de câmara. No período de 1951 a 1965 José Vieira Brandão compôs seus quatro estudos para piano, sendo o Estudo n. 1 em 1951, o Estudo n. 2 escrito em 1965, o Estudo n. 3 em 1955 e o Estudo n. 4 em Este último conta com uma revisão de Seus estudos para piano revelam um compositor com profundo conhecimento das exigências técnicas de seu instrumento e adepto da atmosfera nacionalista. Homenagens em obras musicais estão presentes em todos os períodos e estilos. E suma, o compositor faz um reutilização de traços idiomáticos e estilísticos de uma ou mais obras de outro compositor. Segundo Straus (1990), em linhas gerais, existem três correntes de influência musical: influência por imaturidade, relativa ao jovem compositor que por inexperiência copia seus mestres; influência por generosidade relativa ao compositor maduro que homenageia outro compositor se apropriando de seu idiomatismo ou estilo conscientemente; e influência por ansiedade aquela em que o compositor almeja realizar um trabalho original lutando para se desvencilhar da música do passado em sua própria criação. Partindo desta homenagem prestada a Nazareth por Vieira Brandão, pretendemos desenvolver aspectos intertextuais entre o Estudo n. 2 e a obra do pianista carioca. 2. Intertextualidade Musical A produção musical do século XX foi favorecida com o uso de elementos composicionais de períodos e estilos anteriores. Embora essa modalidade de experimentação de elementos oriundos da tradição musical fosse apresentada com maior frequência na música
3 1431 pós-moderna, a utilização de elementos que remetam a um estilo, a um compositor, ou até mesmo a uma obra não é um fato inédito. Em decorrência da complexidade desse processo transformador, o estudo da influência é um objeto de difícil análise. No entanto, a concepção de obra de arte como entidade autônoma deve ser questionada. Para que haja uma discussão no estudo da intertextualidade faz-se necessário a mudança da concepção obra, como uma entidade completa em si mesma e autônoma para o conceito texto como uma entidade multidimensional e intertextual. Sendo assim, devemos nos aproximar das teorias de influência musical, pensando na obra como esse espaço formal multidimensional, caracterizado pela interseção de vários estilos. (Barbosa & Barrenechea 2003, p.126). O estudo da intertextualidade surgiu no campo da linguística e da literatura. Alguns aspectos de análise no texto musical são originais desse universo de estudo. Julia Kristeva (1986) definiu intertextualidade como uma transposição de um sistema de signos em outro que remete a um significado distinto. Harold Bloom (2002) considera a qualidade de um poeta avaliando a construção do discurso poético a partir da reelaboração de seus predecessores. Partindo agora do pressuposto de que obra de arte é um encontro de vários estilos Charles Rosen (1986) elenca uma variedade de tipos de influência: plagiarismo, apropriação, citação, etc. Rosen elucida que todas as influências são de natureza imitativa, sendo que a forma mais importante é aquela que produz trabalhos originais. Rosen também explica que a intertextualidade é um objeto de complexa análise comprobatória e de evidências incertas. Nestas circunstâncias, não é o caso convencer que uma obra sofreu influência, provar conjecturas segundo as regras da evidência, mas sim, levantar considerações hipotéticas. Embora tenha o repertório do século XX como foco, Joseph Straus (1990) apresenta seu modelo de influência musical baseado na teoria da influência literária de Harold Bloom, através da qual, segundo Straus, é possível interpretar o relacionamento entre a música do século XX e a música dos períodos anteriores. Como dito acima, Straus apresenta três tipos de influência: influência por imaturidade, influência por generosidade e influência por ansiedade. Straus também define o que seriam os mecanismos e estratégias utilizados na manutenção destes aspectos intertextuais em música: Motivicização, Generalização, Marginalização, Centralização, Compressão, Fragmentação, Neutralização e Simetrizacão. Kevin Korsyn (1991) apresenta a influência como ansiedade como um sentimento de chegar tarde, como se tudo já tivesse sido escrito, uma sensação de belatedness. Korsyn também apresenta o que seriam proporções revisionárias, termos semelhantes aos utilizados
4 1432 em linguística aplicados no texto musical: Ironia, Sinédoque, Metonímia, Hipérbole, Metáfora e Metalepse. A análise a seguir aborda de maneira preliminar alguns aspectos observados como ocorrências de um processo intertextual, sem contudo tomar como base, neste momento, os autores acima mencionados. 3. O Estudo n. 2 José Vieira Brandão e Ernesto Nazareth Embora seja o último estudo a ser escrito cronologicamente, possui o título de segundo estudo. Composto em 1965 é dedicado a Ernesto Nazareth, como mencionado anteriormente, aspecto importante para o desenvolvimento de nossa análise. Vieira Brandão era admirador de Ernesto Nazareth: Vieira Brandão considera a obra de Nazareth de atmosfera elevada e, quando fez concurso para a cátedra de piano na Escola Nacional de Música, defendeu a inclusão da criação nazarethiana no programa da Escola: as obras de Nazareth apresentam problemas técnicos de grande interesse, mas os puritanos de então não permitiam a inclusão de seu nome nos programas oficiais... É com grande prazer que observo agora o interesse dos nossos meios musicais mais sérios pela obra desse grande compositor (JORNAL do commercio, 1963). O Estudo n. 2 é disposto em forma ternária acrescida de uma coda (A-B-A - CODA), forma muito próxima do choro e do maxixe, muito utilizada por Nazareth e outros compositores do gênero. A tonalidade principal é Lá bemol maior estabelecida na seção A e A. A seção B é apresentada na tonalidade de Mi maior (Tabela 1). Tabela 1. Esquema formal do Estudo n. 2 de José Vieira Brandão SEÇÃO A SEÇÃO B SEÇÃO A CODA c. 1 ao c. 16 c. 17 ao c. 54 c. 1 ao c.16 c. 55 ao c.59 Nazareth possuía uma solida formação pianística, embora nunca tenha ingressado em algum centro de ensino de música regular, além disso, seu pianismo era muito inspirado em compositores românticos tendo Frédéric Chopin ( ) como seu maior referencial. Além de se apropriar de seu idiomatismo em seus tangos brasileiros e valsas, compôs Noturno Op. 1, obra homônima aos noturnos do mestre polonês, com características peculiares aos noturnos de Chopin.
5 1433 Podemos inferir que a escolha dos planos harmônicos, dentre outros aspectos explorados por Vieira Brandão na elaboração do Estudo n. 2, é uma alusão a um determinado procedimento explorado por Chopin, compositor tão admirado por Nazareth. Trata-se do uso de uma modulação a tonalidades distantes (Figura 1 e 2), aspecto muito encontrado na escrita Chopiniana. O Segundo estudo dos 3 Nouvelles Études, B.130 do compositor polonês possui uma modulação de Lá bemol maior a Mi maior na transição da seção A para a seção B. Além de ambas as obras serem intituladas estudos e serem apresentadas na mesma tonalidade, possuem a mesma modulação na transição da seção A para seção B, embora a armadura de clave não tenha sido alterada na escrita de Chopin. Figura 1. Segundo Estudo dos 3 Nouvelles Études, B.130 de Chopin. c. 15 ao 19 (Fonte: Chopin, [s.d.], <imslp.org>. Acesso 22 de jul. 2012) Figura 2. Estudo n.2 de José Vieira Brandão - c. 13 ao 20. (Fonte: Editoração de Rodrigues, 2011.) Outro aspecto relevante é a utilização das síncopes como motivo rítmico que permeia quase toda a obra. Este aspecto é muito presente na obra de Nazareth. Rodrigues (2011)
6 1434 menciona a importância da execução precisa das síncopes na música brasileira. Sobre este assunto Vieira Brandão explica (Figura 3): O problema da sincope, na musica brasileira [...] é na realidade uma situação rítmica digna de uma consideração particular. Ao executarmos a síncope constituída do grupo deve-se observar a acentuação marcada para sua melhor caracterização. (BRANDAO, 1949, p.7). Figura 3. Exemplo de síncope dado por Vieira Brandão. A célula rítmica mencionada por Brandão é explorada de maneiras variadas. Todo o estudo é escrito em uma ambientação sonora nazarethiana e chopiniana e toda textura sincopada é assinalada por ligaduras (Figura 4): Figura 4. Estudo n. 2 de José Vieira Brandão, c. 1. (Fonte: Rodrigues, 2011, p. 43) Dentre as homenagens prestadas por Vieira Brandão a Nazareth, existem algumas mais evidentes do que outras. Além do aspecto rítmico, apresentam-se também indicações interpretativas extremamente precisas que remetem ao idiomatismo de Ernesto Nazareth. Na seção B, compreendida entre o compasso 17 e 54, está assinalada a indicação maxixando com malícia (Figura 5), em alusão ao universo nazarethiano. Figura 5. Estudo n. 2 de José Vieira Brandão, c. 17 ao c. 20. (Fonte: Editoração de Rodrigues, 2011)
7 1435 Nazareth contribuiu para popularizar o maxixe na literatura pianística, como dito acima. Embora preferisse não se declarar detentor desta fama, tampouco classificava suas obras como esse gênero. De acordo com Almeida (1999): O preconceito que atingia o maxixe por suas origens populares e negras (o próprio termo maxixe era empregado para designar tudo o que fosse baixo, chulo e de mau gosto) fez com que o gênero passasse a apresentar-se sob os títulos de polca, polcalundu, polca brasileira, tango, tanguinho e ate mesmo tango brasileiro. (ALMEIDA, 1999, p. 55). Não obstante, Brandão achou por bem fazer uso do termo maxixando como sugestão interpretativa, provavelmente no intuito de provocar no intérprete uma intenção rítmica específica, peculiar a essa dança. Constata-se também uma condução melódica oriunda de alguns tangos de Nazareth, como Fon-Fon e Odeon. Ambos iniciam-se com um impulso melódico de três semicolcheias (Figuras 6 e 7): Figura 6. Fon-Fon de Ernesto Nazareth, c. 1 e c. 2. (Fonte: Ernesto Nazareth 150 anos. Disponível em < Acesso em 22 de jul. 2012) Figura 7. Odeon de Ernesto Nazareth, c.1 e c.2. (Fonte: Ernesto Nazareth 150 anos. Disponível em < Acesso em 22 de jul. 2012) Este impulso melódico é relembrado por Vieira Brandão, durante quase toda a seção B. Por se tratar de um estudo para piano, Vieira Brandão o reutiliza e explora algumas habilidades técnicas. Dentre elas, a condução de uma linha melódica dividida entre duas mãos
8 1436 trocadas alternadamente, ou seja, a tarefa do intérprete é manter a condução da melodia alternando as mãos evitando interrupções na troca das mãos. No exemplo a seguir, verificamos o impulso melódico, oriundo da obra de Nazareth, seguido das conduções melódicas. A divisão entre as mãos é distribuída entre as duas claves. (Figura 8). Figura 8. Estudo n. 2 de José Vieira Brandão. c. 21 ao 24. (Fonte: Editoração de Rodrigues, 2011) 4. Conclusão Através da análise aqui apresentada não presumimos esgotar o assunto, trata-se de uma mostra da pesquisa em andamento tendo os Estudos de José Vieira Brandão como objeto. A análise de uma obra musical pode servir para inúmeros propósitos, como subsídios para aspectos técnicos e interpretativos. No presente caso percebemos que José Vieira Brandão se utiliza do alguns aspectos da escrita pianista de Nazareth como a textura sincopada e a condução melódica para explorar habilidades da técnica pianística, e a proximidade com as formas do choro e do maxixe, formas estas consagradas por Nazareth em seus tangos e polcas. A respeito do tipo de influência exercida por Nazareth em Brandão, entendemos que se trata de influência por generosidade, dada a definição de Straus mencionada anteriormente e a profundidade como esses elementos são manuseados no texto. Espera-se ainda que este estudo tenha contribuído para aprofundar a investigação a respeito da intertextualidade musical na performance musical, e que seja utilizado como fonte bibliográfica para futuras pesquisas sobre o assunto. 5. Referências ALMEIDA, Renato. História da Musica Brasileira. 2a. Edição. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Comp., 1942.
9 1437 BARBOSA, Lucas de Paula A Intertextualidade Musical Como Fenômeno: Um Estudo Sobre a Influência de Chopin Nas 12 Valsas de Esquina de Francisco Mignone. Goiânia. Dissertação (Mestrado) Escola de Música e Artes Cênicas, UFG. BARBOSA, Lucas de Paula; BARRENECHEA, Lúcia. A intertextualidade musical como fenômeno. Per Musi, 8, p BRANDÃO, Jose Vieira. Tese de Concurso à Docência-livre de Piano da Escola Nacional de Música da Universidade do Brasil. Rio de Janeiro. Não Publicada, JORNAL do Commercio. Festival Vieira Brandão, Rio de Janeiro, 6 de outubro de KORSYN, Kevin. Toward a new poetics of musical influence. In. British Journal-Music Analysis, p. 3 72, RODRIGUES, Mauren L. F Quatro Estudos para Piano Solo De Vieira Brandão: Uma Abordagem Técnico-Interpretativas. Florianópolis. Dissertação (mestrado) Centro de Artes UDESC. ROSEN, Charles. Plagiarism and Inspiration. In. 19th Century Music. v. IV/2, p , STRAUS, Joseph N. Remaking the Past: Musical Modernism and the Influence of the Tonal Tradition. Harvard University Press: Cambridge, Mass, 1990.
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