A questão do autor no pós-fotográfico: reflexão a partir do Irado 1

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1 1 A questão do autor no pós-fotográfico: reflexão a partir do Irado 1 Júlia Milward Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais Orientador: Carlos Pernisa Júnior juliamilward@yahoo.com Resumo A questão de direitos autorais na contemporaneidade aflige todas as áreas da fotografia. Hoje é quase impossível provar a autoria de uma imagem veiculada no ciberespaço. Além desses problemas, a fotografia publicitária sofre ainda com uma diferente questão em relação à autoria, decorrente, principalmente, do surgimento de um profissional inexistente até então, o manipulador. Essa problemática foi levantada pela fotografia vencedora do prêmio Conrado Wessel de 2004, intitulada "Irado", e de autoria, até que se prove o contrário, do fotógrafo Ricardo Cunha. Após o resultado da premiação o tratador de imagens Leonardo Candian, cujo nome não foi citado como sendo integrante da equipe do fotógrafo, reivindicou a co-autoria nessa fotografia. No período fotográfico, quem ficava responsável pelo tratamento das imagens era o laboratorista fine-art, que realizava aquilo que era ordenado pelo fotógrafo ou apenas cópias. Hoje esse profissional adquiriu outras funções e maior relevância na criação da fotografia publicitária. Atualmente, a maioria das imagens produzidas nesse ramo são montagens, e isso requer uma construção de um conceito que deve ser trabalhado através de uma parceria entre manipulador e fotógrafo. Palavra-chave: tecnologia, imagem digital, fotografia, autoria, publicidade Introdução A proposta desse artigo é refletir sobre a questão autoral da fotografia contemporânea. Com o advento do equipamento fotográfico digital, e sua posterior popularização, ocorreu a desestruturação da definição conceitual de fotografia. Consideramos que hoje ela é composta pela hibridação dos conceitos imagéticos, coexistindo os paradigmas pré-fotográfico, fotográfico e pós-fotográfico, propostos por Lúcia Santaella 2. O computador substituiu os quartos escuros, e todas as imagens produzidas hoje, têm, necessariamente, que passar pelos programas de tratamento de imagens. 1 Trabalho desenvolvido em pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). 2 SANTAELLA, L P

2 2 Essa (r)evolução tecnológica permitiu, também, uma maior facilidade de produção e reprodução de imagens. A conseqüência foi uma enxurrada de fotografias, com suporte nos monitores e telas de LCD, veiculadas através da rede internacional de computadores. A questão autoral na fotografia acaba sendo, ainda, mais prejudicada, afinal, não existe mais o clichê para efeito de comprovação. Além disso, a problemática não fica restrita ao crédito de uma imagem: o fotógrafo enfrenta dificuldades, ainda, com o direito patrimonial e moral sobre a obra. Por exemplo, existe uma corrente artística denominada Copyleft Attitude 3, que prega a cópia como forma de aprendizado e complemento de uma obra. Segundo o site oficial desse movimento, o objetivo da Licença da Arte Livre não é eliminar copyright ou os direitos do autor, mas reformular a relevância destes levando em consideração o contexto atual. O manifesto ressalta, ainda, que o nome do artista original deve ser elucidado e adverte, também, para violação da lei autoral. Nesse caso, fica a questão: os autores podem reivindicar a integridade de sua obra? Segundo a atual constituição, o direito moral do autor é: o de assegurar-lhe a integridade, opondo-se a quaisquer modificações, ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la, ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra. 4 A modificação, porém, acontece de modo a não prejudicar a integridade física de uma obra e sim como uma releitura (ou re-criação) sobre a mesma. Essa é apenas uma das várias discussões autorais suscitadas pelo advento e popularização da tecnologia. Qualquer modificação na estrutura vigente gera questionamentos e repulsa. O surgimento da fotografia originou diversos debates sobre o seu caráter artístico e a necessidade, ou não, de leis que protegessem a autoralidade das imagens produzidas através de aparatos técnicos. Segundo Hermano Duvall 5, foi exatamente a fotografia que permitiu a mudança do direito autoral clássico para o moderno. A categorização do fotógrafo como profissão, por exemplo, é relativamente nova. A contribuição pessoal deste profissional em uma obra é hoje indiscutível. Atualmente, vivemos uma situação semelhante àquela do final do século XIX: a popularização dos equipamentos digitais originou profissões inexistentes até então. Esse estudo pretende abordar, especificamente, um: o manipulador de imagens. No período fotográfico, quem ficava responsável pelo tratamento das imagens era o laboratorista fine-art, realizando aquilo que era ordenado pelo fotógrafo ou apenas cópias. Porém, nesse momento de hibridação, esse profissional adquiriu outras funções e maior relevância na criação da fotografia publicitária. A híbrida imagem publicitária contemporânea SANTOS, N. 1990: p SANTOS, N. 1990: p. 21.

3 3 Quando a fotografia surgiu, no século XIX, a maior preocupação dos artistas era o que iria acontecer com a pintura, afinal, a foto estava roubando o espaço ao qual pertencia. A evolução tecnológica fez com que os papéis se invertessem, e, hoje, são os fotógrafos que questionam os rumos da fotografia. As imagens produzidas, atualmente, vêm perdendo cada vez mais o caráter realista. O digital acabou com os limites de manipulação. As imagens publicitárias tendem hoje à concepção do fantástico e do surrealismo. As novas tecnologias permitiram a concretização das imagens que antes estavam restritas apenas ao plano das idéias. A manipulação, existente desde os primórdios da fotografia é só lembrar do movimento pictorialista, datado do início do século XX torna-se cada vez mais constante. A propulsora dessa proliferação foi a tecnologia, que permitiu a facilitação do processo, pois, antes, para se chegar ao produto final eram necessários vários negativos e muitas horas dentro dos laboratórios, e, na maior parte das vezes, o resultado das montagens não era o mesmo. Hoje, através das camadas, ou layers, uma imagem pode ser reproduzida infinitas vezes, sem qualquer diferença no produto final. O tempo da realização das montagens também foi reduzido. Hoje ela pode ser produzida e divulgada em apenas algumas horas. Porém, a modificação do caráter imagético tende a criar simulacros, exibindo o inexistente atrelado a um fragmento de realidade. Não se trata da justaposição ilógica de figuras realistas, característica do movimento surrealista, afinal a produção final é sempre figurativa, mas sim de uma hibridação de paradigmas, em que são abordados elementos do onírico, de ordem ilusionista, de criação individual imersos nos fragmentos do real. Não se consegue, e não é este o objetivo, romper com a dependência da imagem aos objetos do mundo. O resultado final é uma criação de paisagens sígnicas que instauram uma nova ordem perceptiva e vivencial em ambientes imaginativos e críticos capazes de regenerar a sensibilidade do receptor para o mundo em que vive 6. Para a concretização dessas imagens, todas as ferramentas são imprescindíveis: lápis, papel, fotografia de película ou digital e os programas de tratamento, isto é, com intuito de se chegar ao objetivo final são utilizados instrumentos característicos dos três paradigmas abordados por Santaella 7. Essa mistura de paradigmas é uma constante, existe uma co-influência entre os três, isto é, o mesmo que influência é influenciado. Um paradigma nunca vem dissociado de outro. Por exemplo, a fotografia herdou características de composição do pré-fotográfico e, ao mesmo tempo, o seu ato fotográfico 8 influenciou as obras de arte modernas. O mesmo acontece com a computação gráfica, que herdou 6 SANTAELLA, L p SANTAELLA, L p DUBOIS, P p

4 4 caracteres plásticos da pintura e a possibilidade de manipulação trazida por esta produz uma revolução nos conceitos fotográficos. Irado A fundação Conrado Wessel é a que oferece o maior prêmio na categoria foto publicitária do Brasil; são oitenta mil reais só para o primeiro colocado. A premiação é decorrente do testamento deixado por Augusto Conrado Wessel, um aficionado por fotografia, que deixou parte da sua herança reservada com o intuito de beneficiar essa arte. Porém, quando idealizou essa premiação, Wessel não podia imaginar as problemáticas oriundas dos equipamentos digitais, e, principalmente, da figura conseqüente desse processo conhecida como manipulador de imagens. A fotografia vencedora do prêmio Conrado Wessel de 2004, intitulada Irado, e de autoria, até que se prove o contrário, do fotógrafo Ricardo Cunha, foi a grande motivadora da discussão sobre o autor da imagem na era digital. Após o resultado da premiação, o tratador de imagens Leonardo Candian, cujo nome não foi citado como sendo integrante da equipe do fotógrafo, reivindicou a co-autoria nessa fotografia. A

5 5 repercussão desse acontecimento fez com que a fundação revisse e modificasse as regras do concurso, e, agora, o fotógrafo premiado tem que responder por, no mínimo, dois terços da peça. Foi uma solução providencial, mas que não esclarece a questão sobre o manipulador. Ao analisarmos a fotografia, notamos que ela é uma fusão de outras oito (fazenda, irado, mulher, galinha, pato, gato, bode e céu), agrupadas digitalmente. Segundo o fotógrafo Ricardo Cunha 9, o processo todo levou três meses para ser concluído. O mesmo diz que a idéia era contar uma história a partir de um frame e que a base da pesquisa foram fotos, pinturas e filmes. A única imagem que não foi realizada através de um aparato digital, foi a da fazenda; o resto é produto das novas tecnologias. Porém, não é essa a questão. Será que existe alguma imagem publicitária, hoje, que seja produzida exclusivamente a partir de apenas uma mente criadora? O advento do equipamento fotográfico digital possibilitou maior produção de imagens, em menor escala de tempo. O processo de criação visual geralmente ocorre da seguinte maneira: a agência cria um layout para a peça publicitária, utilizando fotografias de bancos de imagens; o projeto é enviado ao cliente para o aceite e, se aprovado, as informações e imagens são repassadas ao fotógrafo, que se encarrega de executá-las e, para isso, contrata uma equipe responsável pela pré e pós-produção. Porém, a tendência é que as agências passem a enviar o projeto diretamente ao manipulador. Para Leonardo Candian 10, quem acaba gerando a concepção visual, no final, é o manipulador. Conclusão A produção artística nada mais é que o reflexo do momento em que vivemos e das ferramentas que utilizamos. O homem criou a ferramenta, e esta passou a definir as atitudes daquele. As novas tecnologias mudam o estilo de vida ao qual estamos habituados. Modificam-se os hábitos, os gostos e as formas. Assim como no final do século XIX, hoje vivemos uma fase de incertezas, decorrente das mudanças oriundas do desenvolvimento tecnológico. As produções artísticas estão, desde sempre, atreladas às ferramentas utilizadas pelo artista na sua execução. Desde as pinturas rupestres até as imagens vetoriais, foram necessários instrumentos e suportes para a sua realização. Para Santos 11, a técnica invadiu o comportamento do homem, e foi através dela que ele passou a manifestar a sua capacidade criadora. Porém, a necessidade de categorizar e definir, que está intrinsecamente conectada à cultura metafísica à qual estamos inseridos, gera desconforto 9 Entrevista à revista FOTOSITE edição 6 jun/jul Entrevista realizada pela autora no Rio de Janeiro, no dia 23 de fevereiro de SANTOS, N p. 25.

6 6 pelas incertezas. Estamos vivendo em um período de transição paradigmática, e as fases de mudança são sempre de difícil aceitação. Como se precaver de algo que não se sabe o que é? Os valores misturados e os preconceitos diante do novo dificultam o julgamento; é por isso que a fórmula julgadora não pode ser a mesma. As produções artísticas encontram, hoje, na internet o seu principal meio de divulgação. As obras ficam constantemente expostas em um espaço virtual e abertas a qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo. No sistema atual não existe, ainda, uma forma de assegurar a autoria ou o direito moral e patrimonial de um autor sobre a obra. Porém, acreditamos que, ao modificar uma imagem capturada através dos meios eletrônicos, não estamos ferindo fisicamente a obra, mas recriando-a. Ao mesmo tempo, quando disponibilizamos uma fotografia na rede, sabemos que estamos correndo o risco de vê-la em outro site, sem nenhum crédito. O processo ainda está indefinido e confuso; as leis, hoje vigentes, não conseguem acompanhar as constantes mudanças. O advento dos equipamentos digitais, ainda, criou e extinguiu empregos. Na fotografia Irado, o que chamou a atenção foi o surgimento da figura do manipulador. O seu aparecimento é decorrente da digitalização, que também originou a transformação estética vivida hoje pelo ramo da publicidade. Cada vez mais as agências e os produtores estão procurando os manipuladores, ou photodesigners, para realizarem a pós-produção da demanda publicitária de imagens fantásticas. Por conta disso, o fotógrafo publicitário terá que redescobrir o seu espaço. Isso porque, há menos de dez anos atrás, os fotógrafos eram chamados para realizarem trabalhos publicitários com total liberdade de criação, desenvolvendo imagens a partir de sua própria concepção. Hoje, são requisitados apenas por seu repertório técnico, repetindo aquilo que já está previsto no layout. No geral, a imagem publicitária nada mais é que um conjunto de idéias comuns sobrepostas, com o intuito definido de venda. Atualmente, a maioria das imagens produzidas por esse ramo são montadas, e isso requer uma construção de um conceito que deve ser trabalhado através de uma parceria entre manipulador e fotógrafo. Salvo os raríssimos casos em que o fotógrafo é também o manipulador, é preciso reconhecer a nova realidade dessa parceria e se instituir, definitivamente, a importância profissional do manipulador e categorizar essa profissão. Referências Bibliográficas AUMONT, Jacques. A imagem. Trad. Estela dos Santos. São Paulo: Papirus, 2004 BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulações. Lisboa: Ed. Relógio D'Agua, BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. Comentário: Luiz Costa Lima. In: ADORNO, Theodor W. et alli. Teoria da cultura de massa. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p

7 7 DUBOIS, Philipe. O ato fotográfico e outros ensaios. Trad. Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, IMAGENS. Tecnologia: a imagem sob o signo do novo. Campinas, SP: Editora da Unicamp. n. 3, dez MAKING OF. Fotosite. São Paulo: Tripix, junho e julho de 2005, ano I, n.6. SANTAELLA, Lucia. Os três paradigmas da imagem. In: O fotográfico. 2ª. Ed. São Paulo: Editora Hucitec, P SANTOS, Newton. A fotografia e o direito do autor. São Paulo: Editora Universitária de Direito, 1990.