Charles Schulz, homem dos quadrinhos. A história de Charles Monroe Schulz parece feita sob medida para quem acredita em predestinação.

Transcrição

1 Charles Schulz, homem dos quadrinhos Alexandre Boide* A história de Charles Monroe Schulz parece feita sob medida para quem acredita em predestinação. Com poucos dias de vida, ganhou de um tio um apelido baseado em um personagem dos quadrinhos começou a ser chamado de Sparky, por causa de Spark Plug, o cavalo de Barney Google, a tira sensação nos Estados Unidos de 1922, ano de seu nascimento. Desde criança, nunca sonhou em ser nada além de quadrinista. Já no primeiro ano de escola, a professora decretou: Você vai ser um artista, Charles. Durante sua infância de filho da classe trabalhadora seu pai era barbeiro e sua mãe, uma garçonete que depois de se casar virou dona de casa na cidade de St. Paul, em Minnesota, a atividade cultural que praticamente monopolizava sua atenção era ler e estudar em detalhes os quadrinhos do jornal de domingo. Foi publicado pela primeira vez aos catorze anos um desenho de Spike, o cachorro de estimação da família, que mandou para uma revista. Desde o começo eu já estava condenado, resumiu o autor em uma entrevista no final da década de E, de fato, quadrinista foi sua profissão durante cinquenta anos. Para completar o ciclo de coincidências, Schulz morreu na noite anterior à publicação de sua tira de despedida em centenas de jornais espalhados pelo mundo, em fevereiro de Assim que deixou de ser quadrinista, deixou também de viver, como escreveu David Michaelis, autor de sua mais extensa e detalhada biografia. Mas talvez, no lugar de algo que pudesse estar miraculosamente escrito nas estrelas, tenha sido uma decisão racional e facilmente justificável. Apesar de ambiciosa, era uma opção acima de tudo viável. Charles Schulz nasceu e cresceu na chamada era de ouro dos quadrinhos de jornal. Como bem assinalou o escritor John Updike: Nas décadas de 1930 e 1940, quando eu era garoto, o quadrinista ocupava um lugar na hierarquia cultural não muito abaixo do astro de cinema e do inventor. Em meados dos anos 1930, havia nada menos que sete grandes agências de distribuição os chamados syndicates e mais de duzentos autores publicando regularmente em jornais espalhados por quase todas as cidades dos Estados Unidos. Era uma indústria milionária, destinada a suprir de conteúdo os suplementos dominicais, que em certos casos chegavam a 32 páginas somente de * Editor de quadrinhos e tradutor da série Peanuts completo, entre outros. 5

2 quadrinhos. Havia opções para todos os gostos: comédias sobre relacionamentos, humor familiar, melodramas e aventuras grandiosas. Quando Peanuts entrou em cena, em outubro de 1950, o que ainda predominavam nos quadrinhos de jornal eram as histórias de ação com cenários ultradetalhados e arte exuberante e um tipo de humor mais ingênuo, que muitas vezes beirava o pastelão (com as devidas exceções verdadeiramente anárquicas e revolucionárias, como Krazy Kat, de George Herriman, que circulou de 1913 a 1944). A única experiência anterior de Schulz era uma série de cartuns chamada Li l Folks, em que crianças eram retratadas em situações típicas do mundo adulto, publicada sem periodicidade fixa no suplemento feminino de um jornal de Minnesota. A princípio silenciosamente, lido por poucos leitores nos meios acadêmicos americanos na década de 1950, Peanuts foi o gatilho de uma revolução no universo das tiras de jornal, que dividiu a história das páginas de quadrinhos entre antes e depois de sua publicação. No traço minimalista de um rapaz tímido e modesto do Meio-Oeste americano, os Estados Unidos se viram diante daquela que seria a primeira tira beat, nas palavras de Garry Trudeau, criador da icônica Doonesbury. Ninguém estava fazendo esse tipo de história, explica Jules Feiffer, outro integrante do panteão dos grandes quadrinistas norte-americanos. Não havia isso na New Yorker. Estava restrito a alguns círculos; às vezes aparecia algo nas páginas do Village Voice. Fora isso, você não encontrava esse tipo de humor em lugar nenhum. E então, com Peanuts, ele invadiu a seção de quadrinhos dos jornais. Em um país dedicado a celebrar a si mesmo, a narrar as glórias de uma prosperidade em escala nunca vista na época do pós-guerra, Charles Schulz ousava pôr o dedo na ferida e abordar temas que até então eram tabus: depressão, melancolia, fé, intolerância, isolamento e uma sensação constante de inadequação. Os personagens dos quadrinhos começavam então a falar em dois registros diferentes, segundo a famosa análise semiótica de Umberto Eco sobre a tira: aquelas crianças usavam a linguagem cotidiana para se perguntar sobre o sentido da vida. Logo de início, ficava claro que se tratava de uma tira inovadora. O universo infantil de Schulz nada tinha de idealizado, e abria espaço para uma das características mais marcantes da convivência entre as crianças: a crueldade. Eram criaturinhas impiedosas, loucas para magoar umas às outras, como definiu Al Capp, um dos grandes artistas da era de ouro das tiras de jornal. Vítima frequente dessas interações implacáveis, o bom e velho Charlie Brown que aliás era como Schulz gostaria que se chamasse a tira, em vez de Peanuts, nome que considerava sem dignidade era uma novidade e tanto na página de quadrinhos: uma pessoa de verdade, com sentimentos, alegrias, sonhos, tristezas, inseguranças e vulnerabilidades inerentes a qualquer ser humano. E, em meados de 1960, quando os 6

3 sentimentos reprimidos dos americanos vieram à tona, e o país explodiu em rebelião, nenhuma obra de arte parecia mais adequada para retratar o espírito da época do que Peanuts. Os quadrinhos da geração anterior eram uma paródia do nosso mundo, escreve o biógrafo David Michaelis. Charles Schulz criou seu próprio mundo. Foi nessa década de intensa agitação cultural que Peanuts extrapolou de vez os limites das páginas de quadrinhos. Em 1965, seus personagens foram parar na capa da revista Time (com a manchete A vida segundo Peanuts ). Em dezembro de 1969, o especial de TV O Natal de Charlie Brown foi sintonizado por mais da metade dos televisores ligados nos Estados Unidos, atingindo uma audiência de mais de 35 milhões de adultos e crianças. Nesse mesmo ano, o longa-metragem de animação Um garoto chamado Charlie Brown arrastava multidões ao cinema, e o musical Meu amigo Charlie Brown era encenado noite após noite para plateias sempre lotadas. Nas livrarias, as coletâneas de tiras atingiam o número estratosférico de 300 milhões de exemplares vendidos em 26 idiomas diferentes. As reverberações desse abalo sísmico cultural se fazem sentir até hoje, na legião de artistas de gerações seguintes que se declaram admiradores fervorosos de Peanuts: o produtor de desenhos animados Matt Groening, a atriz e comediante Whoopi Goldberg, a cantora Diana Krall, o cineasta Hal Hartley, o escritor Jonathan Franzen Neste livro, organizado cronologicamente dentro de cinco blocos temáticos que reúnem cinco décadas de tiras, é possível acompanhar a evolução das diversas fases desse universo particular. Charlie Brown está lá desde o início, mas acompanhado de personagens que foram perdendo espaço e pouco a pouco deixados de lado, como Shermy, Patty (não confundir com Patty Pimentinha, que só apareceria na década de 1960) e Violet. Por outro lado, outros foram surgindo, e em alguns casos podemos testemunhar seu desenvolvimento desde o berço: como a temperamental Lucy, que desde novinha já mostrava ser cheia de personalidade; ou o talentoso e obsessivo Schroeder, capaz de executar sinfonias antes de sair das fraldas; ou o questionador Linus, desde bebê já dado a excentricidades, como encher balões em formatos inusitados; ou ainda a sempre passional Sally, a irmã mais nova de Charlie Brown. A cada adição, o universo de Schulz se tornava mais complexo. Chiqueirinho é um ímã para atrair sujeira. Frieda, com seus cachinhos naturais, vive tentando convencer Snoopy a caçar coelhos. Patty Pimentinha é craque nos esportes, mas nem tanto nos estudos. Marcie, sua amiga inseparável, é o oposto. Pouco a pouco, a tira vai criando suas próprias tradições: o solitário Dia dos Namorado de Charlie Brown; os jogos de beisebol no verão; o acampamento de férias; a Grande Abóbora no Dia das Bruxas; a Árvore Devoradora de Pipas Da mesma forma, vão surgindo as paixões: Lucy gosta 7

4 de Schroeder, que é apaixonado pela música e nada mais; Sally gosta de Linus, que tem um fascínio por sua professora; Charlie Brown gosta da garotinha ruiva... por mais que Patty Pimentinha tenha certeza de que ele gosta dela. Snoopy é um caso à parte. Junto com seu amigo Woodstock, ele é o elemento de fantasia pura, o toque de despreocupação e imaginação irrefreável em meio a um grupo de crianças que carregam sobre os ombros todo o peso do mundo dos adultos. Suas metamorfoses são notáveis. No início, um cachorrinho comum que corria atrás de passarinhos; em seguida um imitador versátil de outros animais, com pensamentos e opiniões próprias; e por fim uma multidão de personagens em um só: o Ás Voador da Primeira Guerra Mundial, o Beagle Escoteiro, o Sargento-mor da Legião Estrangeira, o figurão do campus Joe Cool Ele joga hóquei, beisebol, futebol americano, pode ser cirurgião, advogado, escritor o que for preciso. Nas tiras aqui reunidas, é possível acompanhar também a evolução visual da obra de Schulz. Se Peanuts sempre se caracterizou pela economia de traços, nos primeiros anos isso era ainda mais acentuado a ação se desenrolava praticamente contra um fundo branco. Porém, mesmo em sua simplicidade, alguns cenários de Peanuts se tornaram clássicos: a casinha de Snoopy, o montinho do arremessador de Charlie Brown, o piano de Schroeder, o muro de tijolos, a carteira da escola, o consultório psiquiátrico Com o tempo, o próprio formato das tiras começou a variar. Por mais de três décadas, Schulz seguiu um formato de quatro quadrinhos de tamanho fixo em boa parte para satisfazer as diferentes disponibilidades de espaço dos jornais, que podiam reproduzi-la na horizontal, em um quadrado com duas fileiras de dois quadrinhos ou até na vertical. A partir da segunda metade dos anos 1980, no entanto, o autor começou a adotar um formato variável, com três, dois e às vezes até um quadro. Já os temas aqui contemplados são os que imediatamente saltam aos olhos mesmo dos leitores mais neófitos ou ocasionais: experiência, aprendizado, alegrias, tristezas, brincadeiras, aventuras, amizade, convivência, amor. Em conjunto, representam as reflexões de um homem que nunca pretendeu ser um pensador, os ensinamentos de alguém que nunca quis ser visto como um sábio. Tudo o que ele queria era ser um quadrinista. E foi isso que ele fez todos os dias ao longo de meio século, desenhando, arte-finalizando e letreirando sozinho tiras de quadrinhos. Por qualquer critério, uma obra monumental que, enquanto nos faz rir, também nos torna mais humanos. 8

5 Vivendo e aprendendo

6 garotinhas são uma mistura de açúcar, tempero......e tudo o que há de bom... assim são as garotinhas! boa tentativa! sim, senhor! este é um jogo de inteligência! ha! sorte, sorte, sorte!! é tudo uma questão de sorte! como você pode ver, isto prova que a terra é redonda como uma bola... como uma bola de beisebol? é, como uma bola de beisebol. como uma bola de basquete? é, como uma bola de basquete. não dá pra acreditar! por quê? não tem costura! 10

7 acho que você ainda não entendeu quem manda nesta casa! o que eu disser é o que vale, entendeu? charlie! charlie brown! espera aí... acho que era a minha mãe! tenho muito medo do futuro! não vejo por quê... você é jovem e cheio de vida... provavelmente vai viver mais uns sessenta anos! é disso que eu tenho medo! g-a-t-o é gato... r-a-t-o é rato. ora, mas... isso é incrível! sim, senhor, isso é mesmo incrível! esclarece muitas coisas com que tenho me preocupado ultimamente... posso provar pra você que sou muito humilde! não é, não! ai! ninguém tem o direito de dizer que eu não sou humilde! 11

8 puxa vida! as aulas começam hoje!! dias felizes e sem preocupações na escola... a boa e velha escola! coitado do charlie brown... ficou maluco! sim, senhor! abraham lincoln foi um grande homem! você gostaria de ter sido abraham lincoln? acho que não... já é difícil o suficiente ser um simples charlie brown! que habilidade... que precisão... que estilo... que sorte de principiante! nunca dê um passo maior que a perna! quem não arrisca não petisca! quanto mais longe, mais querido! longe dos olhos, longe do coração! 12