TESTAMENTO VITAL E A SUA VALIDADE NO BRASIL

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Transcrição:

TESTAMENTO VITAL E A SUA VALIDADE NO BRASIL O Direito, por pertencer as Ciências Humanas e Sociais, reflete diretamente no cotidiano e na vida das pessoas, haja vista que seu maior objetivo é organizar as relações entre indivíduos e grupos na sociedade, tudo isso através da aplicação das normas jurídicas vigentes. Nessa perspectiva, as ciências jurídicas precisam evoluir conjuntamente com as necessidades de cada sociedade, regulamentando os mais variados tipos de situação. E é nesse contexto que o Direito também passou a ter que voltar os olhos, de forma mais atenciosa, à vontade do indivíduo, inclusive no que diz respeito à possibilidade dele determinar como será o fim de sua vida. Trata-se de tema intrigante e que não pode passar despercebido aos olhos dos operadores do Direito e dos legisladores. Imagine que uma pessoa encontra-se em estado terminal, estando a ciência médica impossibilitada de intervir de forma curativa, iniciando-se a prática de atos que visam unicamente o prolongamento da vida do paciente, o que traz unicamente sofrimento a ele e aos seus familiares. Será possível determinar em vida o tipo de tratamento a que essa pessoa será submetida? O indivíduo tem o direito de dispor sobre esse assunto? O artigo 1626 do revogado Código Civil de 1916, possibilitava que o cidadão brasileiro dispusesse em testamento questões de ordem patrimonial apenas. Este conceito recebeu várias críticas, pois o testamento versava exclusivamente sobre a disposição de bens particulares. Com o advento do Código Civil de 2002, passou-se a admitir que o testamento tenha, também, conteúdo não patrimonial. O Código Civil em vigor preceitua que o testamento é um negócio jurídico unilateral, personalíssimo, gratuito e revogável em regra. Atualmente, a legislação brasileira admite as seguintes formas de testamento, a saber: Testamento Público,

Testamento Cerrado, Testamento Particular, Testamento Aeronáutico, Testamento Militar e o Testamento Marítimo. Surge o questionamento, já que o testamento não se presta só a fins patrimoniais, seria também possível dispor sobre o tipo de tratamento que uma pessoa gostaria de receber em uma situação emergencial ou em caso de ser acometida por doença grave ou incurável? Alguns países como a Itália e os Estados Unidos, já adotaram posicionamento favorável a tal conduta e é justamente por isso que surge a necessidade de se debater e entender o que vem a ser o testamento vital. Trata-se de um documento escrito no qual a pessoa determina a forma que gostaria de ser tratada pelos profissionais de saúde na ocorrência de uma doença incurável ou em fase terminal, podendo dispor também sobre o fato de não querer nenhum tipo de tratamento para qualquer doença terminal. Em simples palavras, o testamento vital é um documento através do qual uma pessoa pode garantir sua morte de forma digna, de acordo com seus preceitos e vontades. Diante da exteriorização da autonomia da vontade, materializada em forma de documento escrito, os profissionais de saúde poderão definir os procedimentos a serem adotados para o paciente terminal ou acometidos de doença grave, em consonância com sua vontade, nos termos do que dispõe os artigos 15 do Código Civil, Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica e artigos 22 a 24 do Código de Ética Médica. O testamento vital também pode ser definido como um pedido de ortotanásia, que é o processo de deixar que a morte siga seu curso natural, sem que se mantenha a vida através de aparelhos ou procedimentos médicos. No Brasil, nos últimos anos, alguns raros acordos semelhantes já vinham sendo firmados entre médicos e pacientes. O panorama, no entanto, deverá mudar.

Em uma decisão histórica, o Conselho Federal de Medicina (CFM) recentemente promulgou uma determinação destinada a consagrar a autonomia do paciente sobre seu destino. Dando-se ao paciente o poder de escolha sobre como deseja ser tratado no limite entre a vida e a morte, o CFM alterou a determinação pública na edição mais recente do Código de Ética Médica brasileiro, de 2009 - a de recorrer à opinião da família ou do representante legal ante a impossibilidade de levar em conta a vontade expressa do paciente. Como a resolução tem força de lei entre os médicos, o profissional que não a respeitar pode ser punido administrativamente. Analisando o artigo 41 do Código de Ética, fica claro o que é vedado ao médico nessa situação: representante legal. Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal. A pessoa, ao chegar para uma consulta médica ou internação, poderá apresentar a seu médico o testamento vital, cabendo ao profissional de saúde anexar uma cópia do mesmo ao prontuário do paciente. Em seguida, o médico deverá conversar com o paciente sobre a declaração constante no testamento e as implicações desta em sua saúde e no tratamento que irá receber. Na conversa com o paciente, o médico indagará se ele já falou com a família, expondo sua vontade, demonstrando o tipo de tratamento que deseja receber, bem como se informou se tal desejo prevalecerá sobre o de qualquer outro parente, por mais próximo que seja. O esclarecimento nesse sentido é de sua importância, pois evita inúmeras controvérsias no caso concreto.

O testamento vital, para ter validade, deverá ser elaborado por pessoa maior e capaz, bem como ser assinado por duas testemunhas, as quais possam atestar a legalidade do ato, reconhecendo-se a firma de todos os subscritores. Vale ressaltar que esse documento poderá ser revogado a qualquer momento. Em tese, no Brasil não existe prazo de validade para tal manifestação de vontade escrita, porém por analogia deverá ser adotado o prazo de 05 anos, conforme os demais países que permitem a realização do testamento vital. Apesar da demonstração favorável do Conselho de Medicina, por não ter previsão legal, o testamento vital poderá esbarrar em alguns entraves para a comprovação de sua validade, como por exemplo nos artigos 104, II e 166, II do Código Civil, os quais exigem que todo negócio jurídico tenha licitude quanto ao objeto, o que pode ser entendido como uma lei que permita a realização do ato. Logo, sem previsão legal, sua eficácia e validade poderão ser questionados, principalmente por aqueles que entendem que a vida, bem maior de todos, deve sempre ser preservada a qualquer custo ainda que isso vá contra os desejos e vontade do paciente; vontade essa que já estava demonstrada e estabelecida por um documento que cumpria todos os requisitos necessários para que ele pudesse produzir seus efeitos no mundo jurídico, analisando-se pelo prisma do direito privado. No ano de 2013, o Tribunal do Rio Grande do Sul, na Apelação Cível nº 70054988266, possibilitou que um paciente tivesse seu direito de se recusar a ser mutilado, em decorrência do tratamento, o que foi atendido após a verificação de sua manifestação de vontade em um prontuário médico. A I Jornada de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça, realizada ano de 2014, em seu enunciado número 37 assim dispôs: As diretivas ou declarações antecipadas de vontade, que especificam os tratamentos médicos que o declarante deseja ou não se submeter quando incapacitado de expressar-se autonomamente, devem ser feitas preferencialmente por escrito, por instrumento

particular, com duas testemunhas, ou público, sem prejuízo de outras formas inequívocas de manifestação admitidas em direito. Apesar de todas as discussões a respeito, o testamento vital é um instrumento necessário, devendo ser acatado pelo Poder Judiciário a fim de garantir a todos que seus direitos sejam respeitados. Assim como a Constituição, através do principio da dignidade da pessoa humana, garante a todos o direito de viver em harmonia consigo e com a sociedade, existe a necessidade de se resguardar também a prerrogativa de morrer de forma digna, de acordo com a vontade e os anseios do paciente. Procedendo-se dessa forma, reconhecendo a validade do testamento vital, nosso estará privilegiando a autonomia da vontade, expressa de forma inequívoca em documento escrito, tornando possível a expedição de um instrumento válido, que proporcione os meios necessários para que o tratamento ocorra segundo o pedido do paciente, respeitando-se os princípios básicos da legislação brasileira, como o da liberdade e da dignidade acima citado. A pessoa que desejar saber mais informações sobre os procedimentos a serem adotados em casos análogos, deverá consultar um advogado a fim de que sejam resguardados todos os direitos que lhe assiste. Clodoaldo Moreira dos Santos Júnior, professor, advogado integrante da banca Santos, Magalhães e Estrela, Advocacia e Consultoria, Pós Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Messina na Itália e Presidente da Comissão de Direito Constitucional e Legislação da Ordem dos Advogados do Brasil Seção de Goiás. Texto publicado junto ao jornal Diário da Manhã em 23/02/2016, Opinião Pública folha 08.