Alvorada rural na polifonia urbana: a música caipira no rádio paulistano (1920/1950)



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Transcrição:

Alvorada rural na polifonia urbana: a música caipira no rádio paulistano (1920/1950) Geni Rosa Duarte * Quando da instalação, em São Paulo, das primeiras emissoras, a programação veiculada era essencialmente erudita, com uma ênfase significativa na música lírica. Aos poucos, a música popular foi ganhando alguns espaços. A programação era feita quase que inteiramente ao vivo, o que propiciava que pequenos conjuntos ou cantores se apresentassem. Além disso, havia uma programação vinculada às diversas colônias da cidade, quando se executava música italiana, portuguesa, alemã, espanhola, russa, argentina, cubana, americana, etc. Um espaço nessa programação era ocupado pela chamada música brasileira de raízes folclóricas. Eventualmente, alguns artistas se apresentavam cantando modas de viola, cateretês, batuques, etc. Aparecia também a música popular de influência nordestina, especialmente a embolada, gênero muito popular na época. Além disso, alguns cantores apresentavam-se cantando samba. Aos poucos, foram se firmando enquanto programas mais definidos, principalmente em torno de alguns nomes, que agregavam em torno de si outros artistas: Cornélio Pires, Raul Torres, Ariovaldo Pires e outros, misturando às vezes música e humorismo. Nem sempre os horários desses programas eram constantes. Podiam ser apresentados à noite, ou à tarde. Freqüentemente, apareciam na programação veiculada nos jornais apenas como programa caipira, ou programa sertanejo, ou então a cargo de um artista conhecido, ou de uma dupla. Tal programação era evidentemente endereçada a um público urbano. Eram muitas vezes programas de variedades, dirigidos aos que se interessavam por cousas nossas, e deles constavam números musicais, poemas, histórias diversas, ditos caipiras, etc. Um dos primeiros a apresentar programas sertanejos no rádio foi Raul Torres, que se destacou primeiramente como cantor de emboladas e ritmos nordestinos, tendo formado, dentre outros, os conjuntos Turunas Paulistas, Chorões Sertanejos e Bando dos Baitacas. Foi como representante do filão nordestino que participou das gravações pioneiras de Cornélio Pires. A partir de * Professora adjunta da Universidade Estadual do Oeste do Paraná campus de Marechal Cândido Rondon.

2 diversas parcerias, como compositor e intérprete, diversificou seu repertório, gravando modas de viola, toadas, marchas de carnaval, valsas, etc. Um divisor de águas, certamente, foi a gravação pioneira de discos realizada por Cornélio Pires a partir de 1929, com integrantes de sua troupe. Tais gravações decorrem do sucesso de suas conferências caipiras, nas quais eram apresentados artistas trazidos do interior do estado: violeiros, catireiros, duplas, conjuntos. Tais artistas ficaram conhecidos, e alguns fizeram carreira no rádio, como Mandi e Sorocabinha, Mariano e Caçula. Alguns programas tornaram-se famosos, como Três batutas no sertão,na Rádaio Record, apresentado por Raul Torres, Florêncio e o acordeonista Rielli, em 1947 substituído por seu filho Riellinho. Este último, ao lado do Capitão Barduíno, foi também apresentador do programa Brasil Caboclo, que fez muito sucesso pela Rádio Bandeirantes a partir de 1939. Participou do quarteto sertanejo das Emissoras Associadas (Tupi e Difusora), juntamente com Nhô Pai, Laureano e Mariano. Formou depois o Trio Sertanejo, com Serrinha e Mariano, que posteriormente passou a ter outros componentes. Mariano, vindo da troupe de Cornélio Pires, por volta de 1940, formou dupla com Luizinho (Luiz Raimundo), apresentando-sena Tupi de São Paulo; no mesmo programa, apresentava-se também Laureano (que comandava pela mesma emissora um programa pela manhã), e o sanfonista Arnaldo Meirelles. Um dos nomes significativos do período foi Ariovaldo Pires (que em 1932 adotou o pseudônimo de Capitão Prudêncio Pombo Furtado, depois abreviado simplesmente para Capitão Furtado), sobrinho de Cornélio Pires. Iniciou sua carreira na Rádio Cruzeiro do Sul, em programas humorísticos. Foi responsável pelo lançamento de inúmeros artistas no rádio Alvarenga e Ranchinho, por exemplo. Na Cruzeiro do Sul, junto com Celso Guimarães, criou o primeiro Programa de Calouros, referindo-se aos concorrentes com o mesmo termo atribuído àqueles que ingressavam na faculdade e disputa com Ari Barroso a precedência no uso do termo e na introdução desse tipo de programa. Embora responsável por inúmeros programas onde se apresentavam duplas caipiras, transitou pelos mais diversos espaços radiofônicos, no humor e na música. A partir de 1939, apresentou na Rádio Difusora o programa Arraial da Curva Torta, aos domingos, das 17:30 às 18:30. Era um programa de auditório muito bem cuidado, com distribuição de prêmios, que lançou muitos artistas : Tonico e Tinoco, Hebe Camargo que fazia dupla com sua irmã Estela, como Rosalinda e Florisbela, além de Mário Zan, Xandica e Xandoca e outros.

3 Outros programas apoiados na música caipira passaram a ter sucesso, como Manhãs na roça, apresentado por Chico Carretel, ou o Festa na Roça, que substituiu na Difusora o Arraial quando da mudança do Capitão Furtado para outra emissora. Essa mescla de artistas nos programas roceiros ou sertanejos não era exclusiva de São Paulo. Muitas duplas paulistas transferiram para o Rio, e formaramse também outras com artistas que trabalhavam em outros espaços além do rádio - circos, teatros, etc. É importante lembrar, ainda, que as emissoras cariocas, se não podiam ser sintonizadas na capital paulista, podiam ser ouvidas no interior do estado, em especial as mais potentes - Mayrink Veiga, Tupi, Nacional. As duplas não ficavam restritas a um só tipo de programa: no caso do Rio de Janeiro, por exemplo, Xerém e Bentinho participaram também do programa de César Ladeira na Mayrink Veiga, onde lançaram vários sucessos (de modas de viola a valsas, fox, marchas, etc.). Xerém era cearense, e cantava também ritmos nordestinos. Foi presença constante no programa Alma do Sertão, apresentado por Renato Murce desde a década de 30 primeiramente na Rádio Transmissora (com o nome de Hora Sertaneja), depois na Rádio Clube e posteriormente na Nacional. Esse programa não apresentava apenas música caipira ou sertaneja; também um programa de variedades, onde a dupla aparecia cantando e atuando ao lado de artistas como Zezé Macedo, de Eliana, que destacara-se como atriz do cinema nacional, de conjuntos como Trio Nagô, Trio Irakitan, cantores como Albertinho Fortuna, Luiz Gonzaga e muitos outros. O objetivo de programas como esse era veicular elementos do universo rural, visto como mais autêntico em comparação com a vida urbana, e mostrar as raízes da nacionalidade fincadas no campo, com o objetivo de firmar uma noção de identidade. Não é de admirar, portanto, que a veiculação dos programas caipiras e mesmo de alguns programas humorísticos fossem avaliados mais como caminho para dar a conhecer nossos costumes e nossas tradições do que como forma de carrear novos ouvintes. A apresentação feita dos programas nos anúncios dos jornais utilizava indiferentemente expressões como caipira, sertanejo, regional, folclórico, dentre outras. Dessa forma, os programas caipiras, veiculando coisas, costumes e música não contaminadas pelo urbanismo, eram vistos como tendo uma função educativa bastante clara.dentre os muitos programas que realizou, Renato Murce confessou que seu predileto era Alma do Sertão, explicando: Nele sentia eu a verdadeira alma do nosso caboclo, quase sempre ignorante, analfabeto mesmo, mas cheio de qualidades que eu desejava ressaltar: argúcia,

4 malícia, sua pertinácia lutando contra tudo e contra todos. Enfim, via no homem do interior o verdadeiro cerne da nossa nacionalidade. 1 As diferentes emissoras passaram a ter. entre seus contratados, diversas duplas caipiras. Estas eram escaladas para atuar nos mais diversos programas, inclusive nas novelas roceiras, também bastante populares. Percebe-se, portanto, que o aparecimento de programas caipiras no rádio paulistano não pode ser apontado exclusivamente como resultado direto da ampliação da audiência e da abertura de mercado a músicos populares. Há, a meu ver, um movimento contrário, em que a veiculação desses programas expande o rádio para outros espaços físicos e sociais. As gravações pioneiras de Cornélio Pires e sua turma, bem como da concorrente Turma Caipira da gravadora Victor tem um papel importante nesse processo, possibilitando que as músicas tradicionalmente cantadas nos espaços das festas populares, por exemplo, passassem a ser reproduzidas.2 Isso possibilitou que outras duplas caipiras formadas no interior passassem a se apresentar na capital, abrindo caminho para gravações,3 trazendo outras influências, uma vez que muitos desses artistas tinham sucesso nas diferentes regiões do Estado como cantadores das festas tradicionais, catireiros, etc. Nhô Gonçalo e Nhá Maria (Arlindo Marques dos Santos e Maria Francisca Marques), por exemplo, gravaram primeiramente músicas de fundo religioso: Nhô Gonçalo era cantador de congadas e folia-de-reis, e por isso adotou o pseudônimo em homenagem ao santo de sua devoção. Liu e Léo (os irmãos Lincoln e Walter Paulino da Costa) provinham de uma família de catireiros e violeiros, assim como Vieira e Vieirinha (Rubens Vieira Marques e Rubião Vieira) - os quatro de Itajobi, SP. Mas havia restrições com relação a essa entrada no mercado fonográfico (e radiofônico) dos músicos caipiras. Mário de Andrade, numa de suas crônicas publicadas no Diário Nacional, criticou especificamente uma das gravações da série regional de Cornélio Pires ( Escoiendo Noiva, com a Caipirada Barretense). Procurou delimitar as fronteiras em que se poderia realizar uma "documentação rigidamente 1 MURCE, R. Bastidores do Rádio. Rio de Janeiro: Imago, 1976.pag. 89 2 Cornélio Pires patrocinou, às próprias custas, a gravação de discos com artistas já consagrados mas também com outros recolhidos em suas andanças pelo interior do estado. Formou com eles uma troupe para se apresentar em diversos locais. A gravadora Victor formou um grupo semelhante, contratando inclusive alguns membros da turma de Cornélio Pires. 3 Em depoimento ao MIS-SP, Sorocabinha, catireiro que fez parte da turma de Cornélio Pires e depois gravou pela Victor, comentou seu desconforto quando as modas de viola que cantava (e que continham uma dose de improvisação) eram perpetuadas através do disco, e divulgadas através do rádio.

5 etnográfica" ou uma gravação mais cuidadosa da música popular de caráter folclórico; nesta, escreve, "A intromissão da voz tem de ser dosada para evitar o excesso de repetição estrófica. Os acompanhamentos tem de variar mais na sua polifonia, já que não é possível na sua harmonização, o que os tornaria pedantes e extra-populares. E variar também na instrumentação.4 Já a Zico Dias, que passou a gravar pela Victor, Mário de Andrade tece elogios: "Especialmente nas cantigas e danças com viola, só ultimamente, ao cantar do delicioso piracicabano Zico Dias, é que a fábrica Victor conseguiu algum equilíbrio e discos bons. Nestes agora a gravação já é perfeita."5 Alguns programas caipiras passaram a ser apresentados diretamente por duplas ou artistas com profissionalização mais recente, que não tinham o traquejo radiofônico de outros mais antigos. Isso, naturalmente, não era visto com bons olhos. Na percepção do radialista Arnaldo Câmara Leitão, havia um abismo entre a música caipira e o caipira em si. Essa música poderia ser ouvida, como o era eventualmente, enquanto parte do folclore, mas a linguagem que vinha com essas duplas caipira "autênticas", ou formadas por migrantes, não podia ser absorvida pelo universo "culto" do rádio. A presença do caipira nos programas humorísticos, dentro do modelo idealizado no teatro de revista, não era novidade, mas o caipira que aí aparecia era o elemento crítico, o contraponto ao urbano, representando um olhar particular sobre as questões da cidade. O mesmo não se dava quando, ao lado da música autêntica, o caipira era "autorizado a falar" Bom, a música caipira em si mesma é muito agradável, né? Tem um fundo folclórico, dizem bem as raízes nacionais e dizem bem qualquer situação brasileira. Então logicamente a dupla caipira deveria interessar ao ouvinte e inclusive à crônica, aos jornalistas e intelectuais, se veiculassem exclusivamente a música caipira, a música sertaneja, a nossa música de raiz. Mas não, essas duplas, trios sertanejos, eles eram autorizados a falar, e falando eles pronunciavam muita tolice, muita obscenidade, contavam piadas de sal grosso, porque o público deles era um público assim de C e D, né? E que só compreendiam o sal grosso. Então não era justo que todo mundo ficasse sujeito a esse sal grosso inadvertidamente, não é? (...) Mas alguns 4 ANDRADE, Mário. Táxi e Crônicas no Diário Nacional. São Paulo, Duas Cidades, 1976 pág. 236/7 5 Idem, ibidem, pág. 322.

6 artistas sertanejos eram muito bons. O Raul Torres, por exemplo, é um clássico no gênero. É um dos melhores. Ele tinha um trio e o Raul Torres não falava muito mas outros falavam e diziam tolices e todo mundo se zangava na ocasião por isso, e também um pouco de preconceito, né? Era vontade de malhar porque eles eram pobres e de certa maneira indefesos. Mas na malhação existia uma justificativa. Era... pornofonia, como se poderia dizer, pornofonia da parte deles. 6 Embora a programação de música caipira, portanto, não fosse realizada no sentido de ampliar a audiências das emissoras de rádio, incorporando novos ouvintes no universo rural e nas pequenas cidades do estado, o acesso dessas populações ao aparelho de rádio abriu as portas para essa ampliação. Esse acesso ao rádio, todavia, não foi aceito de modo tranqüilo por alguns estudiosos da música popular. Tinhorão, por exemplo, estabeleceu uma fronteira muito clara entre a música feita no e pelo rádio e disco na cidade - e aquela feita sem a presença desses meios de comunicação no mundo rural. Deixou clara a separação entre os próprios músicos, inclusive de intenções, no momento em que penetravam nesse universo do rádio e do disco. Em decorrência disso, segundo ele, a música caipira autêntica se transformou em música popular urbana de estilo sertanejo, descaracterizada enquanto arte, tornando-se simples mercadoria de consumo. Para ele, as gravações originais da série Folclórica e Regional de Cornélio Pires conservavam muito fielmente o espírito da música da região de onde provinham as próprias duplas de instrumentistas e cantores seriam, portanto, música caipira. Quando a fábrica Victor entrou na competição, lançando as gravações desses artistas (e Tinhorão referiu-se à gravação de Casamento da onça, de autoria de M. Rodrigues Lourenço, por ele interpretada, em dupla com Olegário José de Godoy ou seja, a mesma dupla Mandi e Sorocabinha, que Tinhorão trata como duas duplas distintas), processava-se a transformação da música caipira paulista em música popular urbana de estilo sertanejo. Tinhorão estabeleceu até mesmo a data dessa mudança: 27 de outubro de 1929 (data da gravação referida acima)7. 6 Depoimento de Arnaldo Câmara Leitão. Acervo de Multimeios do CCSP, fita no. 1581. 7 TINHORÃO, José Ramos.Pequena história da música popular da modinha ao tropicalismo. São Paulo, Art. Editora, 1986, pág. 191.

7 Essa, como outras análises, considera, de forma geral, dois conjuntos diversos e autônomos: a música produzida pelos caipiras; e a produzida pelo universo do rádio e do disco, ou seja, a sertaneja. Esta, ao contrário da primeira, teria autores, e destinar-se-ia ao consumo das massas urbanas provindas do meio rural ainda não inteiramente integradas a esse universo - detentoras de uma cultura rústica. 8 Em outros termos: haveria uma cisão entre a música popular urbana (destinada ao consumo das camadas perfeitamente integradas ao mundo urbano) e a música sertaneja, ou música urbana de estilo sertanejo (destinada ao consumo das camadas urbanas marginalizadas). Portanto, agrupar-se-ia num conjunto homogêneo toda a produção gravada de 1929 até os nossos dias - ou, pelo menos, de mais de cinco décadas. Um dos pontos a discutir é o isolamento absoluto das populações interioranas praticantes dos ritmos e festividades rurais. Em algumas análises, mais do que duas realidades econômicas, esses dois mundos apresentam-se como dois conjuntos constituídos de elementos não intercambiáveis, no que diz respeito a costumes e valores. Numa situação de mudança, dá-se uma transformação, ou seja, o homem do campo perde sua pureza original e coloca-se simplesmente como consumidor. Outro ponto aberto para a discussão é a pretensa homogeneização imposta à expressão música caipira, presente mesmo na distinção feita entre música caipira e música sertaneja. 9 Em entrevista do compositor João Pacífico ao MIS-SP, foi-lhe perguntado qual a sua posição com relação aos termos caipira e sertanejo. Na sua resposta, ele esboçou caminhos partindo do local e do regional em direção ao nacional, que refletiam a difusão do rádio para camadas mais amplas da população: 8 Ver, a esse respeito, PAOLI, Maria.Célia. Desenvolvimento e marginalidade. São Paulo, Pioneira, 1974, especialmente capítulo III 9 Os termos caipira e sertanejo(a) assumiram significados diferentes no tempo, especialmente quando adjetivavam o substantivo música. Ainda hoje usa-se a expressão música sertaneja para identificar determinados cantores que cantam geralmente em dupla, e cujas vestimentas fazem alguma referência ao mundo rural - estilização do cowboy ou do fazendeiro americano. Chega-se a usar a expressão sertanejo-pop, uma vez que suas gravações incorporam guitarras e sonoridades mais "globalizadas", com letras passionais.

8 Música caipira tinha um quê de Jeca Tatu, era só para o caboclo. Depois evoluiu, falava sertanejo, abrangia todo o sertão, nordeste, sul etc. A expressão depois evoluiu não demarcaria uma mudança valorativa, para melhor, e nem mesmo temporal, no sentido que vieram primeiro uns e depois outros. Na verdade, João Pacífico vislumbrava a própria expansão do universo musical através do rádio e do disco para camadas mais amplas da população, que por sua vez incorporaram mudanças a essa produção. De fato, a música caipira trazida para o rádio vinha inicialmente como uma forma representativa do mundo rural paulista. A moda de viola cantada no rádio, como já salientamos, não se direcionava especificamente para o público rural, que pouco acesso tinha a esse meio de comunicação. Direcionava-se para o público urbano, tanto quanto as canções sertanejas de Paraguassu e Gastão Formenti, das emboladas cantadas por Raul Torres, Jararaca e Ratinho, etc. Por outro lado, a gravação dos primeiros discos de música caipira dilatou o universo de escuta musical desses gêneros. A difusão do rádio, mesmo lenta, ampliava a difusão- inclusive no interior do estado - de outros gêneros considerados urbanos - sambas, marchas, canções, valsas, polkas, etc., também objeto de gravações. Essa difusão superava a transmissão puramente mecânica: ouvindo, as pessoas aprendiam as músicas e as cantavam, ensinando então a outros - e muitas vezes introduziam nelas inúmeras mudanças. Dois momentos, portanto, devem ser pensados concomitantemente, levando em conta as suas inter-relações: a expansão do rádio em direção ao interior do estado, e do próprio mercado de trabalho radiofônico, abrindo caminho para inúmeros artistas amadores e não profissionalizados - desde conjuntos de choros e serestas, quanto cantores e duplas, trios, etc. Alguns desses artistas provinham do interior, e passavam a ser ouvidos, também no interior, agora também via rádio. Nesse processo de expansão para fora dos limites geográficos do estado de São Paulo ou da região sudeste, outras influências se fizeram sentir. Em direção ao Mato Grosso, pode-se vislumbrar interinfluências de ritmos e modos de cantar vindos do Paraguai, o que explica a incorporação, por exemplo, da guarânia enquanto ritmo regional. Duplas com uma vida artística bastante longa, como Tonico e Tinoco, explicitam tais influências de forma bastante clara.

9 Enfim, nossa pesquisa visa apreender tais mudanças, colocando-se numa direção contrária a uma perspectiva homogeneizadora da música caipira, percebendoa como uma das facetas da música popular que faz parte do modo de vida de amplas camadas da população brasileira.