DERRUBANDO AS CERCAS DO CONHECIMENTO: A educação no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (Brasil)



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Transcrição:

Currículo sem Fronteiras, v.3, n.1, pp.5-10, Jan/Jun 2003 DERRUBANDO AS CERCAS DO CONHECIMENTO: A educação no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (Brasil) Júlio Emílio Diniz Pereira Universidade Federal de Minas Gerais Belo Horizonte, Brasil Resumo O presente texto serve de introdução ao dossiê sobre educação e o MST Movimento dos Trabalhadores Sem Terra no Brasil. Esta apresentação contextualiza brevemente o MST e, ao apresentar os artigos que compõem este número da revista Currículo sem Fronteiras, sumariza algumas concepções e experiências de educação que o Movimento vem realizando. Palavras-chave: Educação Popular; Educação e Movimentos Sociais. Abstract This article is the introduction to the dossier on the Brazilian Landless Movement (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra no Brasil or MST). It briefly contextualizes the MST, presents the articles of the special issue, and summarizes some of the key conceptions and experiences of the movement. Key words: Popular Education, Education and Social Movements. Foi com muito prazer que recebi o convite para organizar este número especial da revista eletrônica Currículo Sem Fronteiras sobre a educação no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), sem exageros, o maior e mais importante movimento social do mundo. Todavia, ainda hoje me pergunto sobre a legitimidade da ISSN 1645-1384 (online) www.curriculosemfronteiras.org 5

JÚLIO EMÍLIO DINIZ PEREIRA minha posição de organizador de um número especial sobre a educação no MST. A minha ligação com o Movimento tem sido bastante recente e por meio da minha pesquisa de doutorado em que procuro discutir a construção da identidade de educadores militantes, estudando histórias de vida de educadoras do MST. É bem verdade que antes de iniciar o meu doutoramento, fui convidado para coordenar um projeto educacional entre o movimento e a universidade onde trabalho a Universidade Federal de Minas Gerais. Infelizmente, tive que declinar esse convite em função do meu licenciamento para o curso de pós-graduação; este ainda em curso. Logo, apesar da frustração ao me ver impedido de contribuir com tal projeto entre o MST e a universidade da qual sou docente, é com muita alegria que vejo os meus laços reatados ao Movimento seja por meio da minha pesquisa no curso de doutorado seja, agora, ao organizar este número de incomensurável importância acadêmica e política. Cabe destacar o importante papel político que esta revista, apesar do seu pouco tempo de existência, vem desempenhando no campo educacional dos países que possuem como traço identitário a língua portuguesa. Assim como o Movimento Sem Terra, cujo principal propósito educacional é o de derrubar as cercas do conhecimento conforme destacado desde o título deste texto, a revista eletrônica Currículo Sem Fronteiras, ao disponibilizar artigos educacionais críticos por meio da rede mundial de computadores, também contribui para romper com a a privação e porque não dizer, a privatização do conhecimento. Aliás, como já havia escrito certa vez, quando alguns dos meus alunos resolveram criar uma página eletrônica sobre o ensino de ciências naturais 1 : O que mais me fascina na internet é o seu potencial revolucionário. Pois, tudo aquilo que é difícil de se controlar se torna bastante perigoso. Cabe aos que não compactuam com a reprodução de uma sociedade excludente e injusta o domínio dessa tecnologia para colocá-la à disposição da luta por um mundo diferente do que temos hoje. Para aqueles que têm contato pela primeira vez com materiais sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra penso principalmente nos colegas dos demais países que não o Brasil apresentarei neste texto, de maneira bastante sintética, um histórico do movimento, seus principais objetivos e metas, além de introduzir os artigos desta coletânea que também fornecerão informações adicionais sobre o MST. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil, ou simplesmente MST, surgiu oficialmente nos anos 80 2, coincidindo com o fim da ditadura militar que durou vinte e um longos anos, com a abertura política bem como o início do processo de redemocratização no país. Mais precisamente, o MST tem suas origens nos conflitos agrários do final dos anos setenta, ainda em plena ditadura militar, quando camponeses sem-terra resistiam às propostas governamentais de colonização e reforma agrária na verdade, apenas de colonização uma vez que não se tinha a intenção de mudar a estrutura fundiária do país e lutavam pelo direito constitucional à terra em seus próprios estados. 3 Alguns estudiosos afirmam que o MST pode ser considerado uma continuidade não em termos temporais mas sim em termos dos ideais de luta de vários outros episódios históricos e movimentos sociais existentes no Brasil desde o período imperial a Guerra de 6

Derrubando as cercas do conhecimento Canudos (1896-1897) e as Ligas Camponesas nos anos cinquenta e sessenta seriam alguns exemplos. Os próprios militantes do MST citam esses exemplos de resistência na história do Brasil para contextualizar a contemporânea luta pela terra no país. Desse modo, se por um lado, desde a invasão européia no início do século XVI que alguns ainda insistem em chamar de descobrimento a história do Brasil é recheada de exemplos de desigualdade e injustiça também atos de discriminação e violência contra as camadas populares, os desposuídos, as pessoas de cor (índios, negros, mestiços), as mulheres, os idosos, as crianças, os homossexuais, os portadores de necessidades especiais, os migrantes e imigrantes, por outro lado, é importante ressaltar que sempre existiu resistência por parte dos povos oprimidos. Consequência dessa história de injustiças e desigualdades e, novamente, não sem resistência, o Brasil chega ao século XXI como uma das sociedades mais excludentes do planeta. O país está entre os de maior concentração de renda e fundiária do mundo. O MST pode ser definido, então, como um movimento social que resiste a esse quadro histórico de injustiças cometidas contra os menos favorecidos e, especificamente, contra as trabalhadoras e os trabalhadores rurais no Brasil, mas também como um movimento social que procura produzir uma outra lógica nessa sociedade. São três os principais objetivos do Movimento: 1) redistribuir terra para aqueles que nela trabalham; 2) construir a reforma agrária que para o MST é algo muito maior e mais complexo do que a simples redistribuição de terra; 3) construir uma sociedade socialista. A manutenção da utopia de construção de uma sociedade socialista se sustenta fortemente no Movimento porque as pessoas que dele fazem parte sabem que elas são fruto de uma sociedade capitalista extremamente excludente e injusta. Elas estão sempre indagando: Por que existem pessoas sem-terra? 4 Aliás, estão conscientes de que a injustiça e a exclusão social são inerentes ao capitalismo. Nessa sociedade, perderam quase tudo: suas terras, seus bens, sua cidadania. O Movimento Sem Terra surge, então, como possibilidade concreta de recuperarem sua dignidade, sua condição como seres humanos, seus sonhos. Para essas mulheres e homens não resta outra saída senão lutar por transformações profundas e estruturais nessa sociedade. Para elas, também está claro que a simples reforma do modelo atual de sociedade capitalista apenas adiaria para um futuro próximo o seu sofrimento, colocando-as, novamente, em breve, na situação de exclusão que lhes levou a construir esse movimento social de massa. Em termos da conquista da terra e da construção da reforma agrária no Brasil, o MST usa de eficientes estratégias como, por exemplo, a ocupação de terras ociosas, a ocupação de praças e prédios públicos, as marchas como a inesquecível Marcha Nacional por Reforma Agrária, Emprego e Justiça, em 1997, quando milhares de camponeses sem-terra percorreram a pé vários quilômetros, saindo de diferentes estados do país até chegarem a capital federal, Brasília entre outras. A ocupação de terras ociosas para fins de reforma agrária é uma das estratégias mais usadas pelo MST e também uma marca de identidade do Movimento. Consideram que as pessoas passam a pertencer efetivamente ao Movimento apenas a partir da ocupação da terra, ou a partir dos momentos de preparação desse ato de radicalidade a sobrevivência 7

JÚLIO EMÍLIO DINIZ PEREIRA humana ou a manutenção da condição humana exige atos de radicalidade por parte daqueles que estão nessa situação limite entre a vida e a morte, quando permanecem acampadas aguardando a melhor hora para agir. Concretamente falando, para ocuparem as terras ociosas, os membros do Movimento cortam os arames que cercam o latifúndio. Simbolicamente falando, ao cortarem as cercas do latifúndio rompem com a condição de sujeitos passivos e subalternos que aceitam a condição de exclusão como sendo um fenômeno natural. Nos acampamentos e nos assentamentos, estes últimos quando já têm assegurada a posse definitiva da terra, o MST luta por um outro direito negado aos trabalhadores rurais a educação. Então, por meio da implantação de um projeto educacional ousado, objeto de discussão deste número especial da revista eletrônica Currículo Sem Fronteiras, procuram derrubar também as invisíveis, porém extremamente poderosas, cercas do conhecimento, metaforicamente falando. Dessa forma, é por meio de uma discussão mais geral e contextual sobre a reforma agrária no Brasil que abrimos esta coletânea. O artigo do professor Bernardo Mançano Fernandes, considerado um dos maiores especialistas brasileiros contemporâneos em questões fundiárias, foi escolhido como pano de fundo para a discussão específica sobre a educação no MST. O professor Fernandes faz em seu artigo uma análise conjuntural dos avanços e desafios da reforma agrária nos dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e também projeções a respeito das perspectivas de novas conquistas na gestão do presidente Luís Inácio Lula da Silva cujo mandato havia apenas iniciado quando o professor Bernardo escreveu o seu texto. Ainda como uma discussão mais geral, porém já especificamente dentro da temática da educação, o professor Miguel Arroyo analisa a questão da pedagogia dos movimentos sociais, entre eles o MST. O professor Arroyo aprofunda teoricamente a discussão das relações entre movimentos sociais e culturais e educação. A principal tese defendida pelo autor é que existe uma pedagogia nos movimentos sociais e culturais e que tal pedagogia seria capaz de redimensionar o pensamento educacional. Estaríamos atentos para essa dimensão pedagógica existente nos movimentos sociais e culturais? O que deveríamos aprender a partir da análise dessa dimensão educativa dos movimentos? São perguntas como essas que serão detalhadamente discutidas pelo autor em seu artigo. O artigo seguinte pode ser considerado uma continuidade dessa discussão a respeito da dimensão pedagógica dos movimentos sociais. A professora Roseli Caldart, uma das principais lideranças na área educacional do Movimento Sem Terra, utiliza a experiência de educação do MST para refletir sobre as lições de pedagogia que vêm sendo aprendidas a partir da práxis educacional do Movimento. São dez as lições apresentadas e discutidas pela professora Roseli. Ao analisá-las, novas informações sobre a experiência educacional do MST serão compartilhadas com o leitor. Continuamos nossa coletânea com outro texto da professora Roseli Caldart que discute as especificidades da educação escolar no Movimento Sem Terra ou como esse Movimento tem contribuído para a construção de uma proposta de educação rural e/ou escola do campo no Brasil. De maneira similar ao texto anterior, a autora analisa outras dez lições 8

Derrubando as cercas do conhecimento que o MST vem ensinando/aprendendo a partir de sua experiência de mais de quinze anos no campo educacional. O professor Antônio Júlio de Menezes Neto discute em seu artigo os princípios unitários na escola técnica do MST. A intenção aqui é continuar a discussão sobre a educação escolar na experiência do Movimento Sem Terra, iniciada no texto anterior da professora Roseli Caldart, porém, detendo-se às particularidades da formação técnica e profissional. O professor Antônio Júlio apresenta e analisa a experiência do Curso Técnico em Administração Cooperativa (TAC), de nível secundário (ensino médio), do MST. São discutidos os avanços, os desafios e as contradições presentes nessa experiência educacional. Por fim, chega-se na sala de aula. Para as educadoras e educadores do Movimento Sem Terra está bastante claro que a educação não se resume à educação escolar e esta, por sua vez, não está confinada ao que acontece no dia-a-dia da sala de aula. Existem outros ambientes educativos na escola, assim como existem outras pedagogias a serem aprendidas por meio do envolvimento com um movimento social como o MST e por meio das lutas por reforma agrária e justiça social no país. Por outro lado, o Movimento não desconhece a importância desse espaço educativo. É ali na sala de aula não necessariamente um espaço físico delimitado por quatro paredes onde o assim chamado currículo real acontece e onde, talvez, concentram-se os maiores desafios em termos de mudança da prática pedagógica. Pois é sobre tais desafios que a professora Gelsa Knijnik, uma expoente da etnomatemática no Brasil e no exterior, reflete em seu artigo. Por meio da análise dos resultados de uma pesquisa empírica realizada em uma escola pública localizada em um dos assentamentos do MST, a professora Gelsa discute as possibilidades e potencialidades de um trabalho pedagógico de sala de aula para as pretensões político-educacionais do Movimento Sem Terra. Como organizador desta coletânea sobre a educação no Movimento dos Trabalhadores Sem Terra sugiro que a mesma seja lida na sequência em que os artigos são aqui apresentados. Isso obviamente não impede que o leitor acesse e leia apenas o/s texto/s que está mais interessado e na ordem que bem desejar. Este número especial da Currículo sem Fronteiras foi pensado especialmente para aqueles leitores que, dentro ou fora do Brasil, já ouviram a respeito do MST mas que não conhecem mais a fundo o Movimento nem suas ações no campo educacional. A intenção política desta coletânea é aproximar por meio desta tecnologia os povos luso-falantes que também lutam por justiça social em seus países. A experiência que o MST vem construindo, também na educação, não é uma cartilha a ser seguida. É um ponto de partida para a troca com outras experiências emancipatórias em outras regiões do planeta, para a discussão da temática da construção de um projeto educacional verdadeiramente crítico e libertador, uma vez que se constrói a partir da práxis dos próprios sujeitos oprimidos, ou mesmo uma inspiração para que novas experiências sejam construídas em outras realidades igualmente excludentes e opressoras. 9

JÚLIO EMÍLIO DINIZ PEREIRA Que os textos deste número especial da revista eletrônica Currículo Sem Fronteiras, por meio da análise de uma práxis politico-pedagógica que vem contribuindo para alterar significativamente a realidade fundiária e educacional brasileira, sejam capazes de alimentar seus sonhos e utopias e instigar novas e concretas ações coletivas e libertárias. Boa leitura! Na luta, sempre! Notas 1 Portal do Ensino de Ciências, 2000, http://www.pecweb.hpg.ig.com.br/index.htm 2 No dia 20 de janeiro de 2004, o Movimento Sem Terra completa vinte anos de lutas no Brasil. 3 Com a intenção de amenizar os problemas fundiários nos estados do sul do país, os governos autoritários do regime militar apresentaram como solução o envio de trabalhadores sem-terra para as assim chamadas áreas de colonização na região amazônica brasileira. Como já era de se esperar, esse programa fracassou. O que antes era apenas uma possibilidade a luta pela terra nos estados de origem tornou-se uma realidade com a organização do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). 4 Essa pergunta faz parte da reflexão cotidiana do Movimento bem como está presente nas propostas de discussão nas escolas de assentamentos e acampamentos do MST. Correspondência Júlio Emílio Diniz Pereira, Professor da Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Educação, Belo Horizonte, Brasil. E-mail: jdpereira@wisc.edu Texto publicado em Currículo sem Fronteiras com autorização do autor. 10