A MORTE NAS TRAGÉDIAS SENEQUIANAS PIRATELI, Marcelo Augusto PEREIRA MELO, José Joaquim No seu tempo, Sêneca teve grande destaque, sendo considerado uma das figuras mais importante do mundo cultural romano do século I. Além das relevantes atividades políticas, desempenhou uma significativa produção filosófica e literária: fue un gran escritor, por su abundante producción de ensayos [...] y también por sus tragedias que hacían de él, a ojos de sus contemporáneos, el rival romano de la tragedia griega (VEYNE, 1996, p. 11). Sêneca escreveu as suas peças num estilo elaborado, revestido-as de um tom eloqüente, oratório e empolado (CARDOSO, 1997, p. 14). Não eram textos para as grandes massas, tendo, portanto, como público, pessoas bem situadas na sociedade romana acostumas ao luxo e a vida palaciana; eram pessoas que participavam de um lazer intelectualizado, que frequentavam sessões de recitações e círculos literários (CARDOSO, 2005a). Suas tragédias se destacam pela linguagem requintada e por seu estilo. A suas tragédias, além de claras inspirações morais, trazem ricas reflexões psicológicas e especialmente sobre as paixões, apresentando ao público os dramas e as angústias da alma das personagens. Do clima dessas paixões heróicas é que Sêneca extrai as meditações sobre a condição do espírito humano (LEONI, 1957). O homem torna-se enfermo quando se deixar dominar pelos vícios e pelas paixões. No entanto, em seu drama existencial, o homem defronta-se, inevitavelmente, com um grande mal: o medo da morte. Essa preocupação com a morte se destaca não apenas no pensamento filosófico, mas também na obra literária de Sêneca, consistindo um princípio de sua moral a tomada de consciência dessa realidade: a mortalidade enquanto condição natural do homem. Quando incapaz de aceitá-la essa realidade e controlar o seu medo o homem compromete ao seu projeto de caminhar rumo a sabedoria e a felicidade. Para Sêneca, cabia ao homem identificar os males a que estava 1
sujeito, buscando constantemente a sua perfeição. Cabe ao homem, para atingir este ideal de perfeição, estar em conformidade com a sua própria natureza e se afastar daquilo que lhe pudesse retirar desse caminho. Isso somente seria possível com a superação do medo da morte. Na aceitação da morte o homem encontraria o fundamento de sua liberdade ao passo que isso permitiria que ele superasse os medos que afligem a sua existência. Para Sêneca a poesia dramática contribui para a tomada de consciência da morte, ajudando o homem a não temê-la. Cabe ao homem refletir sobre o sentido da vida e da morte, portanto, não se escondendo dessa condição que é natural para não cair na solidão e desespero. Nossa hipótese é que nas tragédias senequianas, além de um caráter filosófico e político, destaca-se uma preocupação formativa na qual se revela uma pedagogia da morte que orienta para uma educação que Sêneca entendia como verdadeira cujo resultado seria o homem ideal. Portanto, em Sêneca, uma verdadeira educação pressupõe uma educação para a morte, pois isso proporcionará ao homem que tome consciência de sua condição, de sua fragilidade e mortalidade. Com isso, a morte não seria entendida como causa de angústia e sofrimento, mas como momento de libertação. Com o objetivo de responder às questões propostas, a investigação privilegiará a poesia trágica 1 de Sêneca (aqui entendidas como fontes) que possuem uma função didática por apresentarem as suas concepções filosóficas e formativas, destacadamente no que se refere à morte. Na tragédia Hércules no Eta a morte nós é apresentada como libertação e ato de virtude. Pode-se verificar como a vida do sábio é demonstrada pela trajetória de Hércules: na morte do herói ocorre o espetáculo da consolidação do sábio. No final da tragédia, Hércules aceita a morte e mais: se orgulha de tê-la dominado. Essa aceitação é marcante no caminho percorrido pelo herói, tal como o homem que caminha rumo a sabedoria (concepção de Sêneca de que a vida toda é um aprender a morrer). 1 Da sua significativa produção literária, chegaram até os dias de hoje nove tragédias. São elas: A loucura de Hércules, Hércules no Eta, As troianas, Agamêmnon, Fedra, Média, Tiestes, Édipo e As fenícias. 2
No caminho rumo a sabedoria, Hércules domina o sofrimento e administra a sua própria morte, subjugando-a, portanto. O herói de Sêneca está convicto de sua capacidade para trilhar o seu próprio caminho até a virtude (independentemente dos deuses), mas somente a caminhada do sábio é que convence Hércules dessa verdade, pois a virtude pertence ao homem que a conquista. No homem somente a razão era livre, isto é, quando o homem colocava as suas ações sob o domínio da razão é que experimentava de fato a liberdade. Para Sêneca esse era o homem virtuoso; somente o sábio, o homem virtuoso era livre. A liberdade que Sêneca fala é a liberdade em relação aos medos que poderiam afligir o homem, principalmente o medo da morte. A liberdade somente é possível com a certeza de que não se abalará diante da dor e da ameaça da morte. O remédio para a insegurança diante da morte é não temê-la, tal como Hércules fez no seu caminho até a sapiência. Hércules, o herói trágico de Sêneca, trilha o caminho para tornar-se um homem virtuoso ao passo que deixa o luta contra os monstros exteriores e se dedica ao enfrentamento de seus monstros internos, isto é, contra o medo da dor e sofrimento, principalmente contra o mais aterrador dentre todos: o medo da morte. Hércules de forma exemplar suporta a dor e sofrimento (Hércules no Eta, vv. 1740-1741; 1749-1755), vencendo a morte pelo destemor. Na peça, Hércules é proclamado por Alcmena como o vencedor do reino da morte. Somente depois da aceitação da morte é que o herói atinge a condição de sábio. Em As Troianas, Sêneca apresenta uma denúncia as sevícias cometidas na guerra; sendo evidente uma intenção moral ao fazer uma crítica a guerra e ao exaltar os vencidos. No entanto, Sêneca apresenta um problema mais amplo na sua peça dramática ao apresentar como questão essencial o tema da morte, que equivale à liberdade contraposta à vida como escravidão. Sêneca dramatiza essa questão em sua peça ao apresentar o sacrifício de Políxena e a morte de Astíanax, filho de Heitor, transmitindo pelo clímax da ação dramática uma verdadeira lição de sabedoria. Não se trata apenas da exaltação da dor dos vencidos, mas uma resposta contundente aos dilemas da sorte. Na peça, pela boca de Andrômaca, fica explícito a serenidade da jovem que se prepara para a morte como se fosse um verdadeiro ritual de núpcias (As Troianas, vv. 945.948). Em As Troinas de 3
Sêneca, o destino da morte de Políxena mostra-se como uma contraposição a sorte das de Andrômaca, Cassandra e Hécuba que são condenadas a escravidão. Apesar dos destinos de Políxena e Astíanax serem correlatos e se desenvolverem em planos distintos, paralelamente, acabam confluindo no relato da imolação descrito pelo mensageiro. Astíanax tem a sua morte apresentada como libertação e um ato heróico ao se precipitar do alto da torre, antecipando, assim, a morte que os vencedores lhe haviam destinado. Assim como Políxena que se ofereceu destemidamente ao golpe mortal do sacrificador (As Troianas, vv. 1151-1152). O que torna essas mortes admiráveis são a aceitação e a antecipação dos desígnios do destino. A morte de Astíanax converte-se num suicídio, entendido como uma opção privilegiada para Sêneca quando as razões que obrigam a viver estão esgotadas, pois assim o indivíduo em seu último ato voluntário readquire a sua plena liberdade. Ao celebrar os vencidos e sua salvação individual em As Troianas, Sêneca apresenta um pressuposto fundamental de seu pensamento ético: a morte como libertação e a liberdade na morte. Sêneca dedica a máxima preocupação com o tema da morte, de sua presença ameaçadora e angustiante. Considerando a morte como presença certa na vida do homem, Sêneca o convoca a caminhar na perspectiva dela, a fim de que aproveite bem o tempo que lhe é disponível e esteja pronto a enfrentar corajosamente essa suprema realidade humana. Sêneca encontrou uma forma mais agradável para falar sobre esses assuntos ao abordar essas questões por meio da poesia dramática. Assim, não se limitou apenas aos seus tratados filosóficos e cartas para transmitir as suas preocupações educativas, mas também utilizou do teatro como instrumento exemplar para a formação humana, realizando numa postura pedagógica uma educação pela arte. Sêneca alcançou um papel de destaque não apenas em seu tempo, mas ao longo dos séculos. Os seus ensinamentos morais, seus conselhos e a sua preocupação com a condição humana, especialmente em relação à morte, que atormenta esse mesmo homem em todos os tempos e lugares são evidentes em suas obras, sejam elas filosóficas ou literárias, por isso sua contribuição tornou-se atemporal. 4
Portanto, justifica-se este estudo sobre Sêneca pelo interesse histórico e pedagógico que têm despertado as suas reflexões sobre a formação do homem que ele entendia como ideal, o sábio, agente social capaz de romper com as fragilidades da condição humana, sem ser atormentado pelo medo da morte e responder às necessidades do seu momento histórico (PEREIRA MELO, 2003). O estudo de Sêneca também se justifica na perenidade do seu pensamento. É inegável a sua importância, não apenas pela consolidação do pensamento filosófico em Roma, mas também pela influência que exerceu sobre a literatura na posteridade (CARDOSO, 2003; 2014). É ponto assente que a produção trágica de Sêneca foi influente e objeto de apreciações ao longo dos tempos. A obra de Sêneca não ficou limitada ao seu tempo, mas invadiu outros momentos históricos, o que evidencia a importância de suas reflexões e a validade do seu modelo pedagógico em outras sociedades. A importância do estudo das tragédias de Sêneca adquire relevância também pelas contribuições dadas para o tempo presente. O seu objetivo de orientar numa clara intenção pedagógica os indivíduos à prática da virtude como um caminho seguro para se ter uma vida feliz, sem ser atormentado pelo medo e angústia diante da morte pode contribuir para a formação moral dos homens de hoje, pois as preocupações existenciais, apesar de apresentarem diferentes faces conforme as especificidades de sua época, demonstram ter características comuns em todos os tempos. REFERÊNCIAS ABBAGNANO, N; VISALBERGHI, A. Historia de la pedagogía. 15. ed. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. CAMBI, Franco. História da pedagogia. São Paulo: UNESP, 1999. CANDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. 8. ed. São Paulo: T. A. Queiroz; Publifolha, 2000. (Grandes nomes do pensamento brasileiro). CARDOSO, Zelia de Almeida. Apresentação: As fenícias. In: SÊNECA. Tragédias: A loucura de Hércules; As troianas; As fenícias. São Paulo: Martins Fontes, 2014. p. 197-211. 5
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