FUNDAMENTOS, DESAFIOS E ESPECIFICIDADES DA ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO Fábio Fernando Lima (USP / FAPESP)

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Transcrição:

FUNDAMENTOS, DESAFIOS E ESPECIFICIDADES DA ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO Fábio Fernando Lima (USP / FAPESP) fabiofernandolima@uol.com.br. Considerações iniciais Foi a partir da tomada de consciência de que a linguística é uma ciência social, com um importante serviço a prestar à comunidade e, com isso, contribuir para a melhoria das condições de vida dos setores menos privilegiados da sociedade à qual pertence (RAJAGOPALAN, 2003, p. 23) que emergiu, na década de oitenta, sob o impulso de Norman Fairclough, a análise crítica do discurso, baseada em uma concepção da linguagem como parte verdadeiramente integrante e irredutível da vida social, dialeticamente interconectada a outros elementos sociais (cf. FAIRCLOUGH, 200). A partir dessa ótica, delineou-se uma proposta de mapear relações entre recursos linguísticos utilizados por grupos de atores sociais e aspectos da rede de práticas sociais em que a interação discursiva se insere. De um modo geral, a análise crítica do discurso desenvolve o estudo da linguagem como prática social, com vistas à investigação de transformações na vida social contemporânea (cf. FAIRCLOUGH, 200). Apresenta-se como um campo de investigação fundamentalmente interessado em propor uma teoria e um método para descrever, interpretar e explicar as relações estruturais, transparentes ou veladas, de poder e controle manifestos na linguagem (cf. WODAK, 2004). Assume-se, assim, como ponto central, a análise das maneiras pelas quais o discurso contribui para a reprodução da desigualdade e da injustiça social, determinando quem tem acesso a estruturas discursivas e de comunicação a- ceitáveis e legitimadas pela sociedade (VAN DIJK, 994, p. 4-5). Partindo de um quadro assim configurado, assumimos como objetivo central, neste artigo, apresentar um breve panorama do estágio atual dos estudos englobados sob o que se convencionou chamar análise crítica do discurso. Esse percurso inicia-se com a apresentação da trajetória de constituição epistemológica de uma abordagem crítica do discurso e culmina com a exposição da proposta de análise elaborada por Fairclough (997, 200, 2007), a teoria social do discurso. Por fim, apresentamos brevemente alguns aspectos específicos que consideramos centrais p. 823 Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 2. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 20

para investigação em uma agenda contemporânea da análise crítica do discurso. 2. Percurso epistemológico de uma abordagem crítica do discurso A emergência da análise crítica do discurso e, por conseguinte, a convergência entre a linguística e a teoria crítica eixo fundamental da análise crítica do discurso está intimamente relacionada ao redirecionamento teórico operado por Jürgen Habermas no interior da teoria crítica da sociedade, a partir do início dos anos oitenta. Dito de uma maneira muito breve, se o objetivo inicial da teoria crítica, nos anos trinta, havia sido o de desenvolver o marxismo interdisciplinar, assumindo como pano de fundo a ideia de que, assim procedendo, contribuir-se-ia com os fundamentos para uma mudança social, constituindo, a teoria em si mesma, uma prática emancipatória, muitos questionamentos começam a ser lançados ainda nos anos cinquenta. O principal deles referia-se ao fato de que, no programa inicial de Max Horkheimer para a teoria crítica, a dimensão da ação social excluíra sistematicamente as convicções morais e as orientações normativas tão caras a Parsons (964) em seu sistema central de valores em favor de um ponto de vista de acordo com o qual apenas os processos sociais suscetíveis de assumir funções na reprodução e na expansão do trabalho social encontram espaço. Esse reducionismo funcionalista remete à própria tendência, predominante em Marx, de restringir instrumentalmente a história humana para um desdobramento desenvolvimentista do procedimento societal da natureza (HONNETH, 999, p. 57). Nesse sentido, como nenhum outro tipo de ação social é concebido ao lado do trabalho societário, Horkheimer havia perdido de vista a dimensão da prática diária, de acordo com a qual os sujeitos socializados não cumprem cegamente um conjunto de imperativos funcionais, mas geram e desenvolvem criativamente orientações de ações comuns de um modo comunicativo. Observe que a teoria crítica nasce vinculada ao ideal da prática emancipatória. Esse aspecto constituiu, desde então e de forma definitiva, o objetivo prático primeiro da teoria, o que explica sua predominância nas versões posteriores e na própria ACD. Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 2. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 20 p. 824

Foi justamente a ênfase no processo de comunicação que abriu espaço para o desenvolvimento da versão da teoria crítica apresentada por Habermas, toda assentada na concepção da intersubjetividade linguística como o fator nuclear da ação social. De acordo com o seu ponto de vista, é a partir da comunicação linguística que os indivíduos garantem a reciprocidade necessária em atos e concepção de valor para que as tarefas da reprodução material, tão presentes em Marx, possam ser socialmente regidas (cf. HONNETH, op. cit.). Ao adotar tais pressupostos, percebe-se claramente o vínculo com a teoria da ação e um rompimento com a visão marxista clássica, de a- cordo com a qual a reprodução social está atrelada apenas ao trabalho societário. Ao contrário, se a forma de vida humana se distingue por obter a compreensão pela língua, a prática da interação linguisticamente mediada deve ser encarada como uma dimensão igualmente fundamental para o desenvolvimento histórico (cf. HABERMAS, 984). Esse programa assumiu forma sistemática com a publicação dos dois volumes da obra The Theory of Communicative Action, em que a racionalidade da ação comunicativa, conceito-chave para o autor, é reconstruída a partir de uma teoria dos atos de fala e sobre os alicerces de uma teoria da sociedade, sendo que a última se constitui na passagem sobre a história da teoria social de Weber a Parsons. Finalmente, tornase um ponto de referência para o diagnóstico do mundo contemporâneo (HONNETH, op. cit., p. 54). Nessa perspectiva, pode-se apontar como eixo central da concepção habermasiana o fato de se considerar que, nos atos de fala comunicativos, em virtude dos quais as ações dos indivíduos são coordenadas, reivindicações de validade culturalmente invariáveis são a- cumuladas, sendo aos poucos diferenciadas historicamente, no curso de um processo de racionalização cognitiva. Graças à descentralização do conhecimento do mundo existencial, que abrange toda a ação comunicativa, identifica-se uma atitude cognitiva (...) pela qual os sujeitos se relacionam com o meio apenas do ponto de vista do sucesso. Habermas vê, nessa capacidade histórica de agir estrategicamente, o pressuposto social para o surgimento de esferas de ação sistematicamente organizadas (HONNETH, op. cit., p. 543). Os grifos são nossos. Observe que o ponto de vista de acordo com a qual os falantes, ao formularem seus enunciados, agem para alcançar determinados objetivos (metas), está em forte concordância com o ponto de vista das correntes linguísticas ditas interacionistas. p. 825 Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 2. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 20

É a partir desse diálogo com a teoria crítica e da centralidade atribuída à linguagem que se abre espaço, no campo dos estudos linguísticos, para a emergência da análise crítica do discurso. Por isso mesmo, Van Dijk (994) afirma que, na análise crítica do discurso, encontra-se a influência combinada de estudos neomarxistas e da teoria crítica, enquanto Chouliaraki e Fairclough (999) localizam-na mais especificamente na sociedade moderna posterior, termo cunhado no interior da teoria crítica para fazer referência às transformações econômicas e socioculturais das três últimas décadas do século XX, em que os avanços na tecnologia da informação e na mídia permitiram a livre circulação dos signos entre os limites espaciais e temporais. Chouliaraki e Fairclough chegam a a- firmar que a análise crítica do discurso deveria ser considerada como uma contribuição ao campo da pesquisa crítica sobre a modernidade posterior (999, p. 3). Essas transformações refletem-se, como bem destaca Fairclough (200), em mudanças no funcionamento social da linguagem, embora muitas dessas alterações não envolvam apenas a linguagem, mas são constituídas de modo significativo por mudanças em suas práticas, intrinsecamente relacionadas às transformações pelas quais está passando a indústria. Trata-se, aqui, do que se convencionou chamar produção pósfordiana, contexto em que os operários não mais funcionam como indivíduos que desempenham rotinas repetitivas em um processo de produção invariante, mas como grupos flexíveis em um processo acelerado de mudança. Assim, as indústrias têm tentado transformar a cultura dos locais de trabalho, posicionando os empregados em uma relação mais participativa com a gerência, como nos círculos de qualidade, com o objetivo de estabelecer novos valores: operários empreendedores, automotivados e autodirecionados : Tais mudanças na organização e na cultura são, de modo significativo, mudanças nas práticas discursivas. O uso linguístico está ganhando maior importância como meio de produção e controle social no local de trabalho. Mais especificamente, espera-se agora que os operários se envolvam em interação face a face com o grupo, como falantes e ouvintes (FAIRCLOUGH, 200, p. 26). Vale destacar que as afirmações sobre a importância social da linguagem não são novas. Na realidade, em décadas recentes, a teoria social tem atribuído à linguagem um lugar mais central na vida social. Primeiro, na teoria Marxista, Gramsci (97) e Althusser (974) enfatizam o significado da ideologia na reprodução social moderna, e outros como Pêcheux (988) identificam o discurso como a forma material linguística Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 2. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 20 p. 826

preeminente da ideologia (entendo por reprodução os mecanismos por meio dos quais as sociedades mantêm suas estruturas sociais e relações sociais ao longo do tempo). Segundo, Foucault (988) ressalta a importância das tecnologias em formas modernas de poder a quais são exemplificadas centralmente na linguagem. 3. Especificidades da análise crítica do discurso Os esforços empreendidos por Fairclough (997, 200, 2007) se concentraram na busca da construção de um modelo, de uma teoria particular capaz de vincular, intrinsecamente, a análise linguística e discursiva às orientações de ordem social. Esse modelo veio a ser denominado pelo autor Teoria Social do Discurso, uma abordagem multidirecional que sintetiza, conforme mencionado, as concepções de discurso com orientação, ao mesmo tempo, social e linguística. Partindo dos princípios elencados na seção anterior, Fairclough (200) concebe o discurso, por um lado, de forma semelhante à pragmática e às perspectivas interacionistas, como um modo de ação, uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros. Mas, a essa definição, o autor acrescenta que o discurso é também um modo de representação, o que implica uma relação dialética entre o discurso e a estrutura social, existindo mais geralmente tal relação entre a prática social e a estrutura social: a última é tanto uma condição como efeito da primeira (p. 9). As práticas sociais são entendidas como maneiras habituais, em tempos e espaços particulares, pelas quais as pessoas aplicam recursos materiais ou simbólicos para agirem juntas no mundo (CHOU- LIARAKI e FAIRCLOUGH, 999, p. 2). Possuem várias orientações, em espectros distintos da vida cultural orientação econômica, política, cultural, da vida cotidiana e ideológica e o discurso pode estar implicado em todas elas, sem que se possa reduzir qualquer uma dessas orientações. No entanto, para Fairclough (op. cit.), as práticas com orientação política e ideológica estão em relação de supremacia sobre as demais: O discurso como prática política estabelece, mantém e transforma as relações de poder e as entidades coletivas (classes, blocos, comunidades, grupos) Note que os princípios da Teoria da Ação Social continuam presentes, mesmo que de modo indireto, na definição que Chouliaraki e Fairclough apresentam para as práticas sociais. p. 827 Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 2. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 20

entre as quais existem relações de poder. O discurso como prática ideológica constitui, naturaliza, mantém e transforma os significados do mundo de posições diversas nas relações de poder. (...) a prática política e a ideológica não são independentes uma da outra, pois as ideologias são os significados gerados em relações de poder como dimensão do exercício do poder e da luta pelo poder. Assim, a prática política é categoria superior. Além disso, o discurso como prática política é não apenas um local de luta pelo poder, mas também um marco delimitador na luta de poder: a prática discursiva recorre a convenções que naturalizam relações de poder e ideologias particulares e as próprias convenções, e os modos como se articulam são um foco de luta (p. 22). De uma forma mais precisa, a importância da prática discursiva enquanto prática social (no sentido amplo do termo) na teoria é descrita pelo autor da maneira que segue: Minha formulação da análise na dimensão da prática discursiva está centrada no conceito de intertextualidade. Entretanto, minha formulação da análise na dimensão da prática social está centrada nos conceitos de ideologia e essencialmente de hegemonia, no sentido de um modo de dominação que se baseia em alianças, na incorporação de grupos subordinados e na geração de consentimento. As hegemonias em organizações e instituições particulares, e no nível societário, são produzidas, reproduzidas, contestadas e transformadas no discurso. Além disso, pode ser considerada a estruturação de práticas discursivas em modos particulares nas ordens do discurso, nas quais se naturaliza e ganha ampla aceitação, como uma forma de hegemonia (especificamente cultural). É a combinação dos conceitos de intertextualidade e hegemonia que torna a teoria (...) útil para investigar a mudança discursiva em relação à mudança social e cultural (p. 29). Pelo que se percebe nos trechos destacados, os conceitos de ideologia e, por conseguinte, de hegemonia adquirem um estatuto especial na Teoria Social do Discurso elaborada pelo autor. Essa importância, no entanto, não se restringe a sua obra: está presente nas diversas modalidades de análise crítica. De acordo com essa ótica, as classes dominantes exercem aquilo que Miliband (999) denomina pressão vinda de cima, mediante a luta pela hegemonia e pela conquista dos corações e mentes das populações subordinadas, com os modos pelos quais ocorre a socialização ideológica e política (p. 485). Jornais e outras publicações, o rádio, a televisão, o próprio Estado, dentre outras instituições ou mesmo pessoas, podem contribuir nesse processo, a fim de conter as forças contra-hegemônicas, estas marcadas por suas políticas e práticas emancipatórias particulares. A partir de uma leitura crítica acerca do conceito ideologia presente em Althusser (974), Fairclough (op. cit., p. 7) define ideologia Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 2. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 20 p. 828

como significações/construções da realidade (o mundo físico, as relações sociais, as identidades sociais) que são construídas em várias dimensões das formas/sentidos das práticas discursivas e que contribuem para a produção ou a transformação das relações de dominação, servindo em circunstâncias específicas, para estabelecer ou manter relações de dominação. O conceito de hegemonia, por sua vez, é extraído da análise que Gramsci (97) faz do capitalismo ocidental e da estratégia revolucionária na Europa Ocidental. De acordo com o autor, hegemonia pode ser caracterizada como o domínio exercido pelo poder de um grupo e esse grupo é o grupo dominante sobre os demais, baseado mais no consenso que no uso da força (Fairclough, 200, p. 43). Dadas as forças contra-hegemônicas, a dominação estará sempre em equilíbrio instável, daí a noção de luta hegemônica como foco de luta sobre pontos de instabilidade em relações hegemônicas. No que se refere à orientação linguística de sua teoria, Fairclough faz uso da linguística sistêmico funcional de Halliday (200). De acordo com Fairclough (op. cit.), pode-se distinguir três aspectos construtivos do discurso: a construção das identidades sociais e posições do sujeito; a construção das relações sociais entre as pessoas e, por fim, de sistemas de conhecimento e crenças. Nas palavras do autor, Esses três efeitos correspondem respectivamente a três funções da linguagem e a dimensões de sentido que coexistem e interagem em todo discurso o que denominarei as funções da linguagem identitária, relacional e ideacional. A função identitária relaciona-se aos modos pelos quais as identidades sociais são estabelecidas no discurso, a função relacional a como as relações sociais entre os participantes do discurso são representadas e negociadas, a função ideacional aos modos pelos quais os textos significam o mundo e seus processos, entidades e relações. As funções indentitária e relacional são reunidas por Halliday como a função interpessoal (FAIRCLOUGH, 200, p. 9-92). Fairclough (997, 200, 2007) reformula a teoria hallidayana de acordo com os parâmetros da análise crítica do discurso, concebendo o discurso como um nível intermediário entre o texto em si e o contexto/estrutura social, atravessado por gêneros (modos de agir), estilos (mo- Embora o autor não faça menção alguma à teoria da argumentação, da qual trataremos de modo particular no capítulo III, a partir dessa afirmação torna-se possível extrair uma correlação entre a teoria social do discurso e a nova retórica de Chaïm Perelman, na medida em que a obtenção do consenso é o objetivo final de qualquer argumentação. p. 829 Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 2. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 20

dos de ser) e discursos (modos de representar) específicos. Assim, os gêneros relacionam-se à função textual e à função interpessoal de Halliday (op. cit.), no que tange ao estabelecimento de relações sociais; os estilos abarcam o aspecto de construção de identidades subjetivas no discurso, o que também integra a função interpessoal; e os discursos ou representações equivalem à função ideacional. 4. Persuasão e poder: questões para análise Considerando os grupos dominantes aqueles que detêm o controle dos grandes veículos de comunicação de massas, bem como o acesso à manipulação e ao uso de estratégias discursivas de dominação, em um cenário no qual a linguagem ocupa o centro do modo de produção do sistema capitalista (cf. HABERMAS, 984), tem-se, de acordo com Van Dijk (994, p. 6) que O discurso e a comunicação se convertem então nos recursos principais dos grupos dominantes. Por meio de um estudo do discurso, pode-se conseguir compreender os recursos de dominação utilizados pelas elites, pois estas têm um controle específico sobre o discurso público. É um poder que permite controlar os atos dos demais, define quem pode falar, sobre o que e quando. Considero que o poder das elites é um poder discursivo uma vez que, por meio da comunicação, há o que se denomina uma manufatura do consenso : trata-se de um controle dos atos linguísticos por meio da persuasão, a maneira mais moderna e última de exercer o poder. Os atos são intenções e, controlando as intenções, se controlam, por sua vez, os atos. Existe então um controle mental através do discurso. Esse segmento permite que observemos uma clara integração entre a análise crítica do discurso e a retórica, que está colocada como a maneira mais moderna de exercício do poder. O autor considera que, por meio da persuasão e manipulação, dominam-se as mentes das pessoas, as quais, por sua vez, controlam as ações. Em suas palavras O poder moderno é aquele que se exerce por meio do controle mental, maneira indireta de controlar os atos dos outros. O poder moderno consiste em influenciar os outros por meio da persuasão para conseguir que façam o que se quer. Os grupos que têm acesso a essas formas de poder e controle social são geralmente aqueles que têm sido legitimados e têm acesso ao discurso público. Isso é o que (...) se conhece por hegemonia. O discurso é poder e a persua- Para o autor, a transitividade verbal está vinculada à representação das ideias ou experiências humanas e, por isso mesmo, constitui-se no elemento característico para análise do componente ideacional. Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 2. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 20 p. 830

são é o maior controlador dos atos linguísticos na modernidade. (VAN DIJK, 994, p. 0-). No entanto, apesar de toda a importância conferida à argumentação, não encontramos, na literatura corrente, um modelo capaz de amalgamar os aspectos retóricos com a análise e interpretação da linguagem em contexto sócio-histórico. É visando a suprir esta lacuna que propomos estabelecer pontos de contato entre a teoria social do discurso, elaborada por Fairclough (op. cit.), à nova retórica de Perelman e Olbrechts-Tyteca (996). Para tal, detemo-nos nos aspectos interpessoais dos textos analisados e buscamos relacioná-los ao desencadeamento de determinadas estratégias argumentativas. Isso porque os recursos linguísticos englobados pela função interpessoal permitem observar exatamente as maneiras pelas quais o falante/escritor, inserido em um determinado contexto sociocognitivo, tanto atribui determinadas identidades sociais aos atores designados em seu texto quanto expressa seus posicionamentos e julgamentos, buscando, sempre, de acordo com as premissas ora assumidas, influenciar e levar o ouvinte/leitor a assumir esse mesmo ponto de vista. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de estado. Trad. J. J. M. Ramos. Lisboa: Presença/Martins Fontes, 974. BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. M. Lahud e Y. F. Vieira. São Paulo: Hucitec, 994. CHOULIARAKI, L.; FAIRCLOUGH, N. Discourse in Late Modernity. Rethinking critical discourse analysis. Edinburg: Edinburg University Press, 999. FAIRCLOUGH, N. Critical Discourse Analysis: papers in the critical study of language. London and New York: Longman, 997.. Discurso e mudança social. Trad. I. Magalhães. Brasília: Universidade de Brasília, 200. A primeira versão do Tratado da Argumentação: A nova retórica, publicada em francês, data de 958. p. 83 Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 2. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 20

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