SABERES COMPARTILHADOS ENTRE HISTÓRIA E ENSINO RELIGIOSO: uma experiência que deu certo



Documentos relacionados
Projeto - A afrodescendência brasileira: desmistificando a história

NÚCLEO DE ESTUDO EM CULTURA, TEOLOGIA E ARTE PROJETO. Prof. Me. Carlos César Borges Nunes de Souza

AULA 05. Profª Matilde Flório EXPECTATIVAS DE APRENDIZAGEM PARA EDUCAÇÃO ÉTNICO-RACIAL PMSP-DOT- 2008

TRABALHANDO A CULTURA ALAGOANA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: UMA EXPERIÊNCIA DO PIBID DE PEDAGOGIA

V Seminário de Metodologia de Ensino de Educação Física da FEUSP Relato de Experiência INSERINDO A EDUCAÇÃO INFANTIL NO CONTEXTO COPA DO MUNDO.

ARTE E CULTURA AFRO-BRASILEIRA

DCN DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS

COLÉGIO ESTADUAL PEDRO ARAUJO NETO ENSINO FUNDAMENTAL E MÉDIO DISCIPLINA DE ENSINO RELIGIOSO

COMISSÃO DE EDUCAÇÃO E CULTURA PROJETO DE LEI Nº 309 DE 2011 VOTO EM SEPARADO

CONGRESSO INTERNACIONAL INTERDISCIPLINAR EM SOCIAIS E HUMANIDADES Niterói RJ: ANINTER-SH/ PPGSD-UFF, 03 a 06 de Setembro de 2012, ISSN X

Educação das Relações Etnicorraciais e A lei 10639/2003 : construindo uma escola plural

O Conselho Estadual de Educação do Estado da Paraíba, no uso de suas atribuições e considerando:

PRÁTICA PEDAGÓGICA EM GEOGRAFIA: ABORDANDO O ANTAGONISMO DO CONTINENTE AFRICANO POR MEIO DAS INTERVENÇÕES DO PIBID

A Interdisciplinaridade e a Transversalidade na abordagem da educação para as Relações Étnico-Raciais

SEMANA 3 A CONTRIBUIÇAO DOS ESTUDOS DE GÊNERO

UMA BREVE SOBRE A PINCESA EMÍLIA DE OYA LAJA E A FORMAÇÃO DA NAÇÃO OYO-JEJE NO RIO GRANDE DO SUL

RELATÓRIO DE TRABALHO DOCENTE NOVEMBRO DE 2012 EREM ANÍBAL FERNANDES

A IMPRENSA E A QUESTÃO INDÍGENA NO BRASIL

CULTURA AFRO CULTURA AFRO

JOVEM ÍNDIO E JOVEM AFRODESCENDENTE/JOVEM CIGANO E OUTRAS ETNIAS OBJETIVOS E METAS

ENSINO FUNDAMENTAL. De acordo a LDB 9394/96 o Ensino Fundamental, juntamente com a Educação Infantil e o Ensino Médio, compõe a Educação básica.

CURSO DE GESTÃO EM COOPERATIVISMO: Aproximando educação popular e tecnologias

CUIDAR DA NATUREZA RESPEITANDO OS ORIXÁS E ENTIDADES

Organização Curricular e o ensino do currículo: um processo consensuado

PROPOSTA CURRICULAR DA DISCIPLINA DE ENSINO RELIGIOSO

Incentivar a comunidade escolar a construir o Projeto político Pedagógico das escolas em todos os níveis e modalidades de ensino, adequando o

SAÚDE E EDUCAÇÃO INFANTIL Uma análise sobre as práticas pedagógicas nas escolas.

FORMAÇÃO INICIAL EM ENSINO RELIGIOSO. Ma. Simone Riske Koch FURB/FONAPER

EDUCAÇÃO E CIDADANIA: OFICINAS DE DIREITOS HUMANOS COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES NA ESCOLA

SEDUC SECRETARIA DE ESTADO DE EDUCAÇÃO DE MATO GROSSO ESCOLA ESTADUAL DOMINGOS BRIANTE ANA MARIA DO NASCIMENTO CAMPOS

Educação para a Cidadania linhas orientadoras

PRÁTICA PROFISSIONAL INTEGRADA: Uma estratégia de integração curricular

FORMAÇÃO DA CIDADANIA OBJETIVOS E METAS

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAMPA CAMPUS JAGUARÃO CURSO DE PEDAGOGIA

MESTRADO EM MEMÓRIA SOCIAL E BENS CULTURAIS. 1.1 Matriz Curricular Disciplinas obrigatórias

UNIVERSIDADE DO PLANALTO CATARINENSE UNIPLAC PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO COORDENAÇÃO DE EXTENSÃO E APOIO COMUNITÁRIO

VII JORNADA DE ESTAGIO DE SERVIÇO SOCIAL A PRÁTICA DO SERVIÇO SOCIAL NO DEPARTAMENTO DE PROTEÇÃO SOCIAL ESPECIAL DO MUNICIPIO DE CARAMBEÍ PR.

O PAPEL DA CONTAÇÃO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL

O olhar do professor das séries iniciais sobre o trabalho com situações problemas em sala de aula

José Fernandes de Lima Membro da Câmara de Educação Básica do CNE

O Curso de Graduação em Ciências da Religião nas Faculdades Integradas Claretianas em São Paulo

PLANEJAMENTO ANUAL 2014

PROJETO INTELECTUAL INTERDISCIPLINAR HISTÓRIA E GEOGRAFIA 7º ANO A ESCRAVIDÃO EM UBERABA: PASSADO E PRESENTE

Entusiasmo diante da vida Uma história de fé e dedicação aos jovens

ÀGORA, Porto Alegre, Ano 3, jan/jun ISSN

A EDUCAÇÃO QUILOMBOLA

CHAMADA DE ARTIGOS do SUPLEMENTO TEMÁTICO A EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE

MESTRADO EM EDUCAÇÃO. Mestranda Barbara Raquel do Prado Gimenez Corrêa. Prof. Orientador Dr. Sérgio Rogério Azevedo Junqueira

Bacharelado em Humanidades

EDUCAÇÃO E PROGRESSO: A EVOLUÇÃO DO ESPAÇO FÍSICO DA ESCOLA ESTADUAL ELOY PEREIRA NAS COMEMORAÇÕES DO SEU JUBILEU

O Cemitério Municipal São Jose: espacialidade, religiosidade e seus vários enfoques culturais

TÍTULO: AFRO-EDUCAÇÃO: DESAFIOS PARA A SUPERAÇÃO DO RACISMO NAS ESCOLAS A PARTIR DA IMPLEMENTAÇÃO DA LEI N /03.

ORIENTAÇÕES: NORMAS E PRAZOS PARA INSCRIÇÃO DE PROJETOS PARA A IV MOSTRA REGIONAL DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL DA REDE ESTADUAL DE ENSINO

SUGESTÕES PARA ARTICULAÇÃO ENTRE O MESTRADO EM DIREITO E A GRADUAÇÃO

e construção do conhecimento em educação popular e o processo de participação em ações coletivas, tendo a cidadania como objetivo principal.

Formulário de inscrição para Unidades Escolares:

Religiosidade Africana

PROJETO MEIO AMBIENTE NA SALA DE AULA

Universidade Federal do Acre UFAC Centro de Filosofia e Ciências Humanas CFCH.

PROJETO MEIO AMBIENTE NA SALA DE AULA

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO. Relatório Perfil Curricular

ACTIVIDADES DE ENRIQUECIMENTO CURRICULAR ANO LECTIVO 2011 / 2012 TIC@CIDADANIA. Proposta de planos anuais. 1.º Ciclo do Ensino Básico

Programa de Diálogo Intercultural para as Relações Étnico-Raciais da UNESCO no Brasil

SECRETARIA DE ESTADO DE EDUCAÇÃO SECRETARIA ADJUNTA DE ENSINO DIRETORIA DE ENSINO MÉDIO E EDUCAÇÃO PROFISSIONAL COORDENAÇÃO DE ENSINO MÉDIO

PROJETO interação FAMÍLIA x ESCOLA: UMA relação necessária

REFERÊNCIAS SÓCIO- CULTURAIS DO INSTITUTO GINGAS DE CULTURA AFRO-BRASILEIRA

Texto 03. Os serviços da Proteção Social Especial de Média Complexidade e o processo de construção de saída da rua

SOCIEDADE E TEORIA DA AÇÃO SOCIAL

DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL

É projeto porque reúne propostas de ação concreta a executar durante determinado período de tempo. É político por considerar a escola como um espaço

InfoReggae - Edição 17 Grupos: Makala Música & Dança 01 de novembro de Coordenador Executivo José Júnior

ALGUNS ASPECTOS QUE INTERFEREM NA PRÁXIS DOS PROFESSORES DO ENSINO DA ARTE

RELATÓRIO DA PESQUISA ONLINE: Avaliação dos Atores do Sistema de Garantia de Direitos participantes das Oficinas em São Paulo

OLIMPÍADAS DE CIÊNCIAS EXATAS: UMA EXPERIÊNCIA COM ALUNOS DO ENSINO PÚBLICO E PRIVADO

EE DR. LUÍS ARRÔBAS MARTINS

Colégio Pedro II Departamento de Filosofia Programas Curriculares Ano Letivo: 2010 (Ensino Médio Regular, Ensino Médio Integrado, PROEJA)

Resolução de Exercícios Orientações aos alunos

PLANTANDO NOVAS SEMENTES NA EDUCAÇÃO DO CAMPO

Quem faz a diferença? E.E.E.I. Olímpio Catão Sala 10 - Sessão 1

Regulamento para a participação do Seminário Nordestino de Educação Popular e Economia Solidária

Cultura Afro-Indígena Brasileira. Prof. Ms. Celso Ramos Figueiredo Filho

Unidade II FUNDAMENTOS HISTÓRICOS, TEÓRICOS E METODOLÓGICOS DO SERVIÇO SOCIAL. Prof. José Junior

Rompendo os muros escolares: ética, cidadania e comunidade 1

A QUESTÃO ÉTNICO-RACIAL NA ESCOLA: REFLEXÕES A PARTIR DA LEITURA DOCENTE

DIREITOS HUMANOS, JUVENTUDE E SEGURANÇA HUMANA

INTRODUÇÃO. Sobre o Sou da Paz: Sobre os Festivais Esportivos:

O ENSINO DE QUÍMICA PARA DEFICIENTES VISUAIS: ELABORANDO MATERIAIS INCLUSIVOS EM TERMOQUÍMICA

Educar hoje e amanhã uma paixão que se renova. Prof. Humberto S. Herrera Contreras

ESTRUTURA CURRICULAR:

Ambientes Não Formais de Aprendizagem

DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA: e os museus com isso? Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás (MA/UFG)

TRANSVERSALIDADE. 1 Educação Ambiental

(Publicada no D.O.U em 30/07/2009)

ESCOLA BÁSICA E SECUNDÁRIA DR. VIEIRA DE CARVALHO Planificação Educação Moral e Religiosa Católica. Ano Letivo 2015/2016 3º Ciclo 7º Ano

PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS ENSINO RELIGIOSO

PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

TRANSVERSALIDADE CULTURAL: NOTAS SOBRE A PRÁTICA DE ENSINO E A TEMÁTICA AFRO-BRASILEIRA E INDÍGENA NAS SALAS DE AULA.

A Sociologia de Weber

PROJETOS DE ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA: DO PLANEJAMENTO À AÇÃO.

Transcrição:

SABERES COMPARTILHADOS ENTRE HISTÓRIA E ENSINO RELIGIOSO: uma experiência que deu certo Talita Bender Teixeira 1 Resumo: Este artigo tem por objetivo relatar uma experiência que deu certo, fruto dos saberes compartilhados entre alunos e professores. Numa proposta de interdisciplinaridade, História e Ensino Religioso se encontraram, frutificando desse encontro, possibilidades ricas de valorizar os conhecimentos prévios dos alunos e enriquecer o debate sobre as relações étnico-raciais, especialmente através das religiões afrobrasileiras. Palavras-chave: história, cultura afro-brasileira, ensino religioso. Os saberes compartilhados em questão são frutos da lei 10.639, de 09 de janeiro de 2003, que introduz o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares. A Lei faz parte de um conjunto de ações afirmativas que buscam combater o racismo e as discriminações étnico-culturais. Nesse sentido, aos estabelecimentos de ensino e aos profissionais de educação cabe orientar os educandos quanto à pluralidade das identidades e consciência das diversidades presentes na sociedade brasileira. O espaço escolar configura-se como o cadinho das diferenças, onde as pertenças religiosas, sociais, culturais e étnicas são variadas - tanto entre alunos, quanto entre professores, equipe diretiva e demais funcionários. Ter consciência das diferenças, dialogando entre os saberes construídos a partir das mesmas, tem sido um objetivo permanente e um desafio para os professores da área do Ensino Religioso. Como nomeada em História e titular temporária de Ensino Religioso na E.M.E.F. Luiza Silvestre de Fraga, em Esteio/RS, relato aqui uma experiência que deu certo 2 : o encontro entre as duas disciplinas. Um início: o ano de 2005 A E.M.E.F. Luiza Silvestre de Fraga situa-se num bairro de periferia, recebendo alunos da chamada Vila Pedreira, localizada num enclave entre a cidade de Esteio e a 1 Doutoranda em Teologia/EST, mestre em Antropologia Social/UFRGS, especialista em Religiões, Religiosidades e Educação/Unisinos e graduada em História/Unisinos. Professora de História e Ensino Religioso nas séries finais do Ensino Fundamental na rede pública de Esteio/RS. Contato: talita_teixeira@yahoo.com.br 2 Na verdade o trabalho vem dando certo, uma vez que tem continuidade a cada ano letivo.

2 BR-116. Reduto de conflitos advindos do tráfico de drogas e da violência, a vila também abriga muitos alunos com grande potencial, que superam dificuldades em sua trajetória pessoal para poder estudar. Como nas demais favelas do Brasil, sua população é composta majoritariamente por negros, que encontram geralmente preconceito ao afirmarem sua origem. No ano de 2005, ao ingressar como professora nomeada para a disciplina de História na escola, travei contato com os professores Paulo Sérgio da Silva (História) e Leonardo Pereira (Educação Física), que atuavam no CEJA (Construindo a Educação de Jovens e Adultos) e buscavam implementar o debate sobre as relações étnicoraciais a partir da realidade da própria escola. Motivada pelo diálogo com os colegas, tendo conhecimento da lei 10.639/03 e cursando especialização em Religiões, Religiosidades e Educação, busquei fortalecer parcerias entre alunos que estivessem dispostos a trocar conhecimentos sobre o universo mítico afro-brasileiro, pois havia pesquisado sobre as religiões afro-brasileiras em minha dissertação de mestrado 3 e o assunto estava ainda gravitando em meu entorno. Constituído um grupo de alunos e professores interessados na troca de saberes e motivados pelos demais pressupostos da lei 10.639/03, o ano de 2005 ficou marcado pela gestação de um diálogo, resultando nas parcerias certas para a construção de um trabalho interdisciplinar que começou a dar frutos em 2006. Definidas estratégias de abordagem, ficou constituído que a temática das relações étnico-raciais iria nortear as ações da escola e de alguns professores em particular.. Assim, a partir do ano de 2006 a África foi presença constante nos currículos dos professores. Tendo assumido naquele ano, além de História, a disciplina de Ensino Religioso, busquei motivar e valorizar os alunos que se assumiam africanistas, uma vez que, no sentido do imaginário, o termo batuqueiro ainda é envolvido por preconceito, atualmente advindo das religiões de matriz neo-pentecostal (MARIANO, 2003). Um tema: as religiões afro-brasileiras no Rio Grande do Sul As religiões afro-brasileiras, como consequência do processo da diáspora negra, tornaram-se, no correr do tempo, espaços de presença multicultural, congregando diferentes identidades étnicas, porém sempre valorizando sua pertença africana. Redutos de saberes e segredos (erós), as religiões afro-brasileiras, em suas diversas 3 Trapo Formoso: o vestuário na Quimbanda. PPGAS/UFRGS (2005) disponível online em http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/5308

3 modalidades, constituem-se em autêntico patrimônio cultural, em termos de memória, oralidade, culinária e ritmos musicais. No Rio Grande do Sul, as modalidades de religiões afro-brasileiras situam-se, com algumas diferenças, entre Batuque ou Nação, Umbanda e Quimbanda. As casas de culto multiplicam-se às centenas e o censo 2000 afirmou o Estado com o maior número de praticantes das matrizes afro-brasileiras, superando a Bahia e o Rio de Janeiro (FOLLMANN, 2006). O Batuque ou Nação O Batuque ou Nação representa a modalidade de religião afro-brasileira que cultua os Orixás ou seja, as divindades do panteão africano, relacionada também ao Candomblé baiano, ao Tambor-de-Mina do Maranhão e ao Xangô pernambucano. Apresenta diferenças específicas relacionadas às nações as quais o pai ou mãe-desanto tem afinidade religiosa, e que corresponderiam - remetendo a uma ancestralidade mítica - às regiões da África de onde vieram os negros e às divindades correspondentes destas regiões. No Rio Grande do Sul, as práticas rituais do Batuque estão essencialmente demarcadas pela pertença às nações, que são as seguintes: Cabinda, Jêje, Keto, Oyó, Nagô e Ijexá. A cada uma destas nações correspondem ritos e também divindades diferentes, de acordo com o panteão específico de cada modalidade. Apesar de suas especificidades, as várias nações reconhecem uma roda de orixás, em número de doze (Bará, Ogum, Iansã, Xangô, Ibejis, Odé, Otim, Obá, Ossanha, Xapanã, Oxum, Iemanjá e Oxalá), representando uma determinada hierarquia mitológica. A cada um destes orixás correspondem alimentos, cores, símbolos e uma alusão a um ou mais de um santo católico (CORREA, 1994). A Umbanda O marco histórico mais aceito para a constituição da Umbanda pode ser considerado a manifestação do caboclo das sete encruzilhadas que, em 1908, teria tomado o corpo do jovem Zélio de Morais, em Niterói, estado do Rio de Janeiro, e anunciado a criação de uma nova religião (GIUMBELLI, 2002). Esta nova religião acentuaria os valores cristãos e os sincretizaria com elementos das demais religiões. Suas práticas estariam voltadas exclusivamente para a caridade e o auxílio ao próximo, no que Patrícia Birman (1983) chama de umbanda cristã.

4 Apesar desta origem oficial, a Umbanda pode ser associada aos cultos de caboclo presentes em diferentes estados brasileiros, considerados muitas vezes como uma deturpação da religião africanista pura (DANTAS, 1988). Geralmente pode ser explicada como uma religião que se apropriou de elementos presentes nas demais religiões, especialmente o catolicismo, o espiritismo, a macumba carioca e outras religiões de matriz afro-brasileiras (MAGNANI, 1986). Sendo essa sua origem mais aceita atualmente no universo acadêmico, coloca-se numa dada oposição às observações de Bastide (1960) que, em seus estudos, enquadrou a Umbanda como remanescente direta de tradições africanas. A trajetória desta Umbanda histórica, após o seu fundamento no começo do século XX deve-se ao papel das federações umbandistas, surgidas entre as décadas de 1940 e 1960. O papel desempenhado pelas federações e por seus intelectuais orgânicos - que visavam codificar ritos e legitimar socialmente os cultos - permitiu que a Umbanda praticada por Zélio de Morais se difundisse no sul e sudeste do país. Reinterpretando as variantes regionais (tais como o toré analisado por DANTAS, 1988), a Umbanda histórica construiu uma identidade que tem como principais figuras o caboclo e o preto-velho, considerando ambos como representantes míticos da formação do povo brasileiro. (SILVA, 2002:161-162). As divindades e entidades cultuadas pela Umbanda dividem-se em linhas ou falanges, nas quais atuam entidades ou caboclos específicos, tais como Ogum Iara e Ogum Beira-Mar, na Linha de Ogum, e Xangô Godô e Xangô 7 pedreiras na Linha de Xangô. Com as diversidades regionais as linhas ou falanges modificam-se, apresentando, por exemplo, as modalidades de Linha dos Boiadeiros, Linha do Oriente e Linha dos Marinheiros, que não são comuns no Rio Grande do Sul, onde foi introduzida no início da década de 1920. Na Linha Africana atuariam pretos-velhos e na Linha de Ibeji, crianças. Todas as imagens representativas das entidades que atuam nas Linhas estão presentes no congá o altar umbandista bem como nos ornamentos e decoração dos templos. Assim, é característica desta religião a presença de imagens de santos católicos, acompanhados de elementos de outras tradições pois é uma religião em constante recriação - tais como o esoterismo e a Nova Era, com representações de deuses orientais, anjos, bruxas, duendes e gnomos, entre outros. A trajetória histórica da Umbanda remete também ao surgimento do seu oposto:, a Quimbanda, modalidade onde as entidades cultuadas são as mesmas da macumba carioca, ou seja, os Exus e Pombagiras. A Quimbanda ou Linha Cruzada

5 No panteão dos deuses africanos, Exu ou Esu - é o orixá que personifica a vida em movimento: ele é o mensageiro entre os deuses, dos deuses para os homens e vice-versa; conhece todas as entradas e saídas, e por isso é respeitado é o dono dos caminhos, o intérprete dos deuses. Tendo como símbolo o órgão genital masculino, é associado à fecundação e a vida, remetendo à sensualidade e a sexualidade: Exu é considerado uma força motora, geradora, criativa e onipresente, cuja existência se faz nas margens, nos limites, na liminaridade e nas suas múltiplas caracterizações. Representando a ambigüidade, a pelintragem, o imprevisível e o caótico, ele é também o mestre das encruzilhadas e das aberturas, conhecedor dos caminhos, início da vida, mensageiro da palavra e arauto entre os orixás e os seres humanos. (BARBOSA, 2000, p.155) As características contraditórias do Exu africano contribuíram decisivamente para que o personagem fosse reconhecido pelo seu caráter irreverente ou trickster (MAGNANI, 1986). Presente neste caráter, a ambiguidade e a dicotomia Bem/Mal demarcam profundamente a entidade, cuja representação refere um personagem envolto em luz e sombras, numa perspectiva moral. O imaginário que cerca o personagem Exu migrou também para a construção simbólica dessa entidade na Quimbanda, recebendo nesta modalidade de religião uma correspondente feminina, a pombagira. O caminho percorrido que demarca a introdução histórica do orixá Exu no Brasil remete ao período da escravidão, quando as características da entidade foram censuradas pela óptica católica, especialmente as representações de sensualidade e sexualidade. O estigma negativo que envolveu o personagem estava inserido no sistema de valores simbólicos e morais que atribuiu à cultura do outro um caráter de perigo. O processo de colonização do Novo Mundo levou a demonologia a ser incorporada como filosofia auxiliar às práticas religiosas dos catequizadores, que viam nos hábitos e crenças (tais como, por exemplo, a nudez e a poligamia, entre outros) dos ameríndios a intervenção do diabo naturalmente, o diabo cristão que era alimentado no imaginário do homem europeu. Logo, qualquer insucesso no processo de evangelização era atribuído ao personagem, o que desencadeou práticas diversas no combate ao mal, especialmente autos-de fé que consistiam na destruição de relíquias e objetos sagrados. O início do tráfico negreiro para o Brasil, ainda no século XVI e através do século XVII em diante, inseriria definitivamente o africano num processo de coisificação -

6 isto é, afastando o negro de sua dimensão humana e considerando-o como um objeto manipulável, que pode ser vendido, emprestado e barganhado. Ao mesmo tempo, a demonização atribuída inicialmente ao índio passa de forma contínua para o universo de valores do negro, especialmente em relação às suas crenças. Advindo de uma Europa marcada pelo temor frente ao desconhecido, o transplante do imaginário social e dos consequentes valores a ele atribuídos foi de fato uma prática permanente e até certo ponto inconsciente - durante o processo de consolidação das estruturas sociais, políticas, econômicas e culturais no Brasil. Um projeto: Lendas e mitologias na diáspora negra para o Brasil Sendo titular das disciplinas de História e Ensino Religioso, o projeto acabou se chamando Lendas e Mitologias na diáspora negra para o Brasil. Dentre seus objetivos, propõe o conhecimento sobre as religiões afro-brasileiras presentes no Rio Grande do Sul, especialmente o Batuque, e enfatiza a busca da autonomia por parte dos alunos, valorizando para isso o conhecimento prévio sobre o assunto. Nesse sentido, os conhecimentos vêm sendo socializados entre alunos, professores, funcionários e equipe diretiva, enriquecendo a relação ensino-aprendizagem. Como não poderia deixar de ser, o projeto envolve em seus referenciais teóricos os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Religioso, especialmente ao refletir sobre a diversidade das tradições religiosas, fundamentadas na convivência com o outro. Busca-se identificar também os elementos essenciais, comuns e particulares das diversas tradições religiosas que compõem o universo mítico afro-brasileiro, bem como conhecer o pluralismo religioso e a diversidade cultural como parte histórica de cada povo. No decorrer do trabalho foi possível observar o ingresso de alunos nãoafricanistas na pesquisa, motivados pela curiosidade a respeito das práticas do Batuque. Nesse sentido, o projeto vem contribuindo para desconstruir e desmistificar o i- maginário corrente que deprecia as tradições religiosas afro-brasileiras. Por outro lado, a maior parte dos alunos que vem participando da pesquisa constitui-se de praticantes das modalidades de religião afro-brasileira, sendo possível estabelecer uma conexão com a experiência de vida dos alunos, valorizando suas aprendizagens anteriores à pesquisa. Assim, a pesquisa incentivou, desde seu início, a autonomia e a construção crítica dos conhecimentos, onde os alunos foram orientados em suas ações a partir da seleção criteriosa de materiais e literatura que pudessem contemplar o tema. Ao assumir responsabilidades de pesquisar e apresentar um trabalho científico, orientado pela professora, os alunos vêm se fazendo protagonistas de seu conhecimento.

7 Metodologia Foram convidados alunos das séries finais do Ensino Fundamental, tendo prevalecido participantes dos 8º e 9º anos. Constituído um grupo de pesquisa, passamos à análise da sobrevivência das tradições religiosas na diáspora negra para o continente americano. Nesse sentido, o trabalho vem sendo encaminhado da seguinte maneira: Exegese: A análise e a hermenêutica dos textos sagrados; no caso das religiões afro, marcadas pela tradição oral, a mitologia iorubá e o panteão de principais deuses (orixás); História das narrativas sagradas: O conhecimento dos acontecimentos religiosos que originaram os mitos e segredos sagrados; Audiovisuais: Alguns documentários são importantes para a elaboração do trabalho. Dentre estes, destacam-se: Atlântico Negro na rota dos Orixás (2001); Êxtase Ritos Sagrados (2005), que aborda diferentes manifestações de religiosidade afro (candomblé, umbanda, tambor-de-mina e Jurema); e Terra de Quilombo espaços de liberdade (2003), que se passa em três quilombos com realidades muito diferentes no Brasil. Um breve debate sucede à exibição dos documentários, abordando os principais aspectos de cada filme. Ações A pesquisa vem passando por diversos momentos, uma vez que foi organizada a partir de 2006, tendo vários alunos como participantes. Desde então, foram realizadas quatro oficinas sobre o tema sendo uma delas na Feira Municipal de Ciências e Ideias (Esteio 2007) -, tendo destacada participação nos eventos da Semana da Consciência Negra da E.M.E.F. Luiza Silvestre de Fraga.

8 Conclusões O trabalho vem sendo de fundamental importância para contemplar os pressupostos da lei 10.639/03 e aproximar os alunos e comunidade escolar em geral das religiões afro-brasileiras. Também contribui para aprofundar o diálogo inter-religioso, uma vez que interage com jovens de diferentes pertenças religiosas. Nesse sentido, vem alcançando - no entendimento da alteridade presente neste diálogo - o cultivo do respeito aos valores morais, éticos e religiosos do outro, além de hábitos e atitudes conscientes na busca de transcendência e de cidadania. Referências BARBOSA, Maria José Somerlate. Exu: Verbo Devoluto. In: FONSECA, Maria Nazareth Soares (org.). Brasil Afro-brasileiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. BASTIDE, Roger. As Religiões Africanas no Brasil. Vol. 1 e 2. São Paulo: Pioneira/EDUSP, 1971. BIRMAN, Patrícia. O que é Umbanda. São Paulo: Brasiliense, 1983. CORREA, Norton Figueiredo. Panorama das religiões afro-brasileiras do Rio Grande do Sul. In: ORO, Ari Pedro (org). As religiões afro-brasileiras do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 1994. DANTAS, Beatriz Góis. Vovó Nagô e Papai Branco. Usos e abusos da África no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1988. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das relações étnico-raciais e para o ensino de História e Cultura afro-brasileira e africana. Brasília: MEC, 2004. FOLLMANN, José Ivo. O mundo das religiões e religiosidades: alguns números e apontamentos para uma reflexão sobre novos desafios. In: SCARLATELLI, Cleide; STRECK, Danilo (org.). Religião, Cultura e Educação. São Leopoldo: Unisinos, 2006. FONAPER. Parâmetros curriculares nacionais: Ensino Religioso. São Paulo: Ave- Maria, 1998.

9 GIUMBELLI, Emerson. Zélio de Morais e as origens da Umbanda no Rio de Janeiro. In: SILVA, Vagner Gonçalves da (org.). Caminhos da alma: memória afro-brasileira. São Paulo: Summus, 2002. MAGNANI, José Guilherme Cantor. Umbanda. São Paulo: Ática, 1986. MARIANO, Ricardo. Guerra Espiritual: O protagonismo do diabo nos cultos neopentecostais. In: Debates do NER. Ano 4, nº 4. Porto Alegre: UFRGS, julho de 2003.