PERCEPÇÃO E SUBJETIVIDADE EM BERGSON

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PERCEPÇÃO E SUBJETIVIDADE EM BERGSON Solange Bitterbier Mestrado Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Bolsista CAPES solbitter@yahoo.com.br Buscando superar as dificuldades relacionadas à concepção de matéria, Bergson propõe, no início da obra Matéria e Memória, uma purificação da percepção que consiste em isolá-la de qualquer elemento subjetivo: apenas nos situarmos na presença de um campo de imagens. Mas o que são essas imagens? É exatamente pela caracterização de imagem que Bergson pretende fugir aos equívocos tanto do realismo quanto do idealismo. Por imagem, o filósofo entende uma certa existência que é mais do que aquilo que o idealista chama uma representação, porém menos do que aquilo que o realista chama uma coisa. 358. A imagem não é apenas uma coisa à qual o sujeito não tem acesso em si, tampouco somente uma representação à maneira de uma visão mental. É essa concepção diferenciada do termo imagem que permite e a Bergson fugir dos problemas tradicionais e dar início a sua teoria da percepção, mais precisamente, da percepção consciente. Assim sendo, o filósofo sugere que nos abstenhamos de todo preconceito oriundo de qualquer teoria metafísica ou psicofisiológica acerca da percepção da matéria e busquemos uma neutralidade própria ao senso-comum, apenas coloquemo- abro meus nos na simples presença de imagens, imagens percebidas quando sentidos, despercebidas quando os fecho 359. Esse colocar-se na presença de imagens tem como objetivo suspender, inicialmente, as teses sobre a natureza dos objetos numa estratégia para suspender, também, qualquer tese sobre a natureza do sujeito, chegando, assim, à formulação de um campo neutro, chamado por Bergson de campo de imagens, que pode ser interpretado como um campo transcendental pré-subjetivo 360. Pré-subjetivo porque não temos aindaa aqui um sujeito completamente separado do objeto não temos um sujeito consciente de ser sujeito. Em outras palavras, o sistema de 358 BERGSON, H. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Trad. Paulo Neves. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Coleção tópicos). p. 02. Doravante M.M. 359 M.M. p. 11. 360 JÚNIOR, B. P. Presença e Campo Transcendental. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1989. p. 134. Doravante: B.P. - 255 - PPG-Fil - UFSCar

imagens corresponde à idéia de um espetáculo sem espectador; mais exatamente, é o lugar em que, o espetáculo tornando-se possível, criam-se as condições de possibilidade de um espectador em geral 361. Sendo assim, o campo de imagens, do qual parte Bergson em sua análise da percepção, é um campo de possibilidades. Ao partir da suposição de um campo de imagens, percebe-se que há uma [imagem] que prevalece entre as demais na medida em que a conheçoo não apenas de fora, mediante percepções, mas também de dentro, mediante afecções: é o meu corpo. 362 As afecções seriam o que me diferencia das outras imagens exteriores, que por sua vez estão submetidas a leis invariáveis leis da natureza. Seriam um convite a agir, ao mesmo tempo com a autorização de esperar ou mesmo de nada fazer 363. A partir daí, nasce a possibilidade de hesitação perante algum estímulo e a conseqüente capacidade de produzir o novo 364, o que não ocorre com as demais imagens que não possuem esse privilégio e permanecem em ações automáticas. Assim, o indivíduo capaz de escolher entre as ações possíveis foge ao automatismo e isso o caracteriza como um centro de ação: como um centro de indeterminação, em outras palavras: As duas configurações possíveis entre as imagens uma onde todas as imagens agem e reagem umas sobre as outras automaticamente e segundo leis constantes, e outra onde uma imagem em particular se torna uma espécie de centro, pois é capaz de receber e realizar ações que escapam a esse automatismo trazem consigo a gênese da consciência, que se percebe autora das ações oriundas de uma decisão ao ultrapassarem o esquema reflexo. 365 Dada essa indeterminação das ações, não vamos nos ater à teoria das afecções, basta-nos atentar que a afecção precisa ter como base a ação possível da imagem-corpo com relação às demais imagens, do contrário, não haveria hesitação e nem escolha, ou seja, não haveria percepção consciente. Num primeiro momento, tratamos da percepção sem o seu lado subjetivo e isso porque buscávamos mostrar o ponto de contato entre sujeito e objeto partindo de um campo de imagens comum a ambos, aproximando ao máximo a relação entre eles. Sendo assim abordamos a consciência que, na percepção exterior, é voltada para a ação, mais precisamente, para a escolha, escolha esta que envolve discernimento. Doravante, 361 B.P. p. 146. 362 M.M. p. 11. 363 M.M. p. 12. 364 A novidade se produz na medida em que as ações já não são previstas como é possível de se prever a ação de algo submetido às leis físicas por exemplo. 365 PINTO, D. M. Espaço, Percepção e Inteligência: Bergson e a formação da consciência empírica humana. Tese de mestrado. São Paulo, 1994. p. 79-256 - PPG-Fil - UFSCar

vejamos como a memória que já mostrara sua contribuição na percepção consciente através do discernimento vem a caracterizar aquilo que chamamos subjetividade. Ao estudar-se a relação entre o corpo e o campo de imagens na percepção pura, percebe-se que a subjetividade que se acrescenta a essa percepção é algo que se diferencia da matéria, é preciso que a memória seja, em princípio, um poder absolutamente independente da matéria. Se, portanto, o espírito é uma realidade, é aqui, no fenômeno da memória, que devemos abordá-lo experimentalmente. 366 Iniciemos essa abordagem pela distinção entre os dois modos de memória: aquele que se aplica ao hábito e aquele que é próprio da memória espontânea a memória propriamente dita. Quando agimos diante de uma situação que nos é habitual ou que nos é apresentada repetidas vezes como quando apreendemos uma lição de cor percebemos que nossa memória parece ausentar-se na medida em que não precisamos dela na ação. É essa memória que se liga aos mecanismos motores durante a ação e que se apresenta de forma automática em nossos movimentos que caracterizamos como memória-hábito. Essa memória-hábito encobre a memória propriamente dita. Isso ocorre porque nossa tendência ao útil, à própria sobrevivência em última instância, nos leva a considerar esse aspecto da memória como mais valioso para nossas ações, dado que ele as favorece tanto ao tornar mais fácil o agir quanto ao fazer da rapidez uma de suas características. Sendo assim, a memória espontânea é aquela que implica um trabalho do espírito, que irá buscar no passado, para dirigi-las ao presente, as representações mais capazes de se inserirem na situação atual. 367. A memória-hábito se apresenta juntamente com a ação, já a memória espontânea é caprichosa, nos escapa e não conseguimos alcançá-la a nosso bel-prazer. Deste modo, podemos distinguir duas formas de sobrevivência do passado: em mecanismos motores, através da memória- hábito, e em lembranças independentes, que é a memória espontânea. Dessas duas memórias, a primeira é verdadeiramente orientada no sentido da natureza; a segunda, entregue a si mesma, iria antes em sentido contrário. A primeira, conquistada pelo esforço, permanece sob a dependência de nossa vontade; a segunda, completamente espontânea, é tão volúvel em reproduzir quanto fiel em se conservar. 368 366 M.M. p. 78. 367 M.M. p. 85. 368 M.M. p. 97. - 257 - PPG-Fil - UFSCar

Distinguindo essas duas formas de memória, atentemos para a questão do reconhecimento. Um dos modos de reconhecer diz respeito à memória-hábito e, sendo assim consiste basicamente em um reconhecimento automático voltado para a ação. Convém ressaltarmos que esse reconhecimento já se utilizou da memória espontânea, mas que ela se tornou inútil quando a ação passou a ser automática. O outro modo de reconhecimento é aquele que nos permitirá compreender como Bergson caracteriza a memória espontânea, esta que aguarda uma fissura para expor suas particularidades. Esse reconhecimento é considerado pelo filósofo como atento, aquele que exige a intervenção regular das lembranças 369, mas em que consiste essa atenção? A atenção seria um esforço de análise que teria, segundo Bergson, duas funções : uma negativa, que seria uma volta para trás do espírito que renuncia a perseguir o resultado útil da percepção presente: haverá uma inibição de movimento, uma ação de detenção. 370 Entretanto, ocorre uma volta ao objeto na medida em que as lembranças vêm a inserir-se na ação, daí sua função positiva. É propriamente aqui que encontramos a memória e sua relação com a percepção, sendo esta uma solicitação a agir e aquela algo que a percepção evoca para auxiliar em suas ações, a memória é assim a repercussão, na esfera do conhecimento, da indeterminação de nossa vontade 371. As lembranças são evocadas com a função de que, diante de uma situação, o corpo venha a agir da melhor forma possível: Temos consciência de um ato sui generis pelo qual deixamos o presente para nos recolocar primeiramente no passado em geral, e depois numa certa região do passado: um trabalho de tentativa, semelhante à busca do foco de uma máquina fotográfica. Mas nossa lembrança permanece ainda em estado virtual; dispomo- apropriada. nos simplesmente a recebê-la, adotando a atitude Pouco a pouco aparece como que uma nebulosidade que se condensasse; de virtual ela passa ao estado atual; e a medida que seuss contornos se desenham e sua superfície se colore, ela tende a imitar a percepção. 372 Entretanto, poderíamos pensar que, ao tratar de lembranças, Bergson cairia no mesmo erro que ele critica: que o cérebro guardaria estas lembranças à moda de coisas em gavetas; reservando-as em determinado lugar até que elas fossem utilizadas. Esse equívoco nasce do fato de separarmos presente e passado, como se o passado, enquanto 369 M.M. p. 111. 370 Ver M.M. p. 114. 371 M.M. p. 68. 372 M.M. p. 156. - 258 - PPG-Fil - UFSCar

algo que não é mais, precisasse ser guardado em algum lugar do cérebro para que pudesse aparecer com a ajuda da memória. Ao separarmos o presente do passado como dois pontos espacialmente dispostos, não nos situamos na duração 373, não compreendemos que o presente estende-se ao mesmo tempo sobre o passado e o futuro. Para Bergson, O passado não só coexiste com o presente que ele foi, mas como ele se conserva em si (ao passo que o presente passa) é o passado inteiro, integral, é todo o nosso passado que coexiste com cada presente 374. Todavia a realidade psicológica consiste em um misto de lembrança e percepção, misto este que Bergson pretende analisar separando seus termos na análise da percepção pura de forma a mostrar que se tratam de duas instâncias diferentes, ou seja, há uma diferença de natureza entre elas e não apenas de grau. Deste modo, a relação entre percepção e subjetividade se torna mais clara na medida em seguimos a proposta metodológica bergsoniana que nos possibilita partir de uma percepção pura para que compreendamos as particularidades que envolvem a análise da memória, permitindo, portanto, uma nova abordagem do tema, a qual ressaltamos, ainda que introdutoriamente, no presente texto. BIBLIOGRAFIA BERGSON, H. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpoo com o espírito. Trad. Paulo Neves. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Coleçãoo tópicos).. Cartas, conferências e outros escritos. Seleção de textos de Franklin Leopoldo e Silva. Trad. Franklin Leopoldo e Silva e Nathanael Caxeiro. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleção Os pensadores). DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo, Ed. 34, 1999. JÚNIOR, B. P. Presença e Campo Transcendental. São Paulo: Ed. da USP, 1989. PINTO, D. M.. Espaço, Percepção e Inteligência: Bergson e a formação da consciência empírica humana. Tese de mestrado. São Paulo, 1994. SILVA, Franklin L. Bergson: intuição e discurso filosófico. São Paulo: Ed. Loyola, 1994. WORMS, F. (Org.). Annales Bergsoniennes Inédits, dossiers, études. Paris: PUF, 2002, v. 1. 373 Desde o Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência até Evolução Criadora, a noção de duração ganha novos sentidos. Entretanto, ficamos aqui com aquele dado no Ensaio, em que a duração é o tempo da consciência, caracterizado por sua heterogeneidade e pela não separação dos estados psicológicos. 374 DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo, Ed. 34, 1999. p. 46. - 259 - PPG-Fil - UFSCar