337 IV. Entre estética e ética: o futuro da paisagem
339 ROSARIO ASSUNTO Recentemente descoberta, a obra de Rosario Assunto (1915 1994) tem vindo a ser reconhecida como uma das mais importantes do pensamento filosófico italiano do século XX. Para esta revelação tardia concorreram duas causas principais, ambas respeitantes à relação do pensador com o seu tempo. Se a filiação de Assunto na tradição da filosofia da natureza de cariz romântico e a defesa de uma concepção estética impregnada de classicismo lhe permitiram denunciar com sólidos argumentos teóricos os actos perpetrados contra as paisagens, não deixaram também de envolver a sua produção filosófica num manto de extemporaneidade. A redacção do livro aqui seleccionado (Il paesaggio e l estetica, 1973) ocupou o filósofo durante dez anos, num período imediatamente subsequente ao chamado milagre económico italiano e coincidente com a acelerada expansão da construção civil ocorrida durante a década de 60. No momento em que o industrialismo e a realização de grandes obras viárias e habitacionais eram vistos como concretizações máximas do desenvolvimento e do progresso, não é difícil imaginar como um trabalho teórico dedicado à estética da paisagem se colocava numa direcção contrária à dominante. Em áreas ligadas à política e à comunicação, a sua obra foi recebida, quando não como fruto de um espírito antiprogressista, pelo menos com manifesta indiferença. Numa segunda instância, seria a própria evolução histórica a revelar o teor fundamental deste trabalho antecipador de um dos pontos nevrálgicos das sociedades actuais. A vivência contemporânea não consegue já subtrair se a uma concepção do mundo natural como lugar envolvente no qual todos estamos inseridos e cuja integridade depende da acção humana. O pensamento de Rosario Assunto detém essa marca distintiva de pioneirismo quando nos recorda a importância de restabelecermos uma ordem de continuidade entre o ser humano e o ser natural. No âmbito estritamente académico, Assunto é recordado como um filósofo mestre, capaz de conjugar uma vasta erudição filosófica e literária a uma permanente preocupação pedagógica na transmissão dos seus ensinamentos. Em 1956, assume a docência de Estética na Universidade de Urbino, onde permanecerá por vinte e cinco anos, e em 1981 transfere se para Roma, onde
377 ARNOLD BERLEANT Arnold Berleant procura ultrapassar a demarcação rígida entre os conceitos de ambiente e de paisagem, correspondente a uma clivagem artificialmente instituída entre o meio físico dos seres vivos e a dimensão perceptiva de um espaço observado. A Environmental Aesthetics, de que é um dos principais representantes, visa precisamente aproximar os dois planos, entendendo o ambiente como o conjunto muito geral dos factores e condições da vida, e a paisagem como um seu nível mais particular: é o ambiente característico de um local determinado em que se enquadra e desenvolve a presença da existência humana. A fórmula a paisagem é um ambiente vivido resume bem esta aproximação. Trata se de um momento essencial na fundamentação de uma estética integral. A superação das fronteiras entre ambiente e paisagem permite ligar o mundo objectivo e a visão subjectiva, articular o conhecimento e a ordem da existência, compreender a continuidade entre interior e exterior. Os seres humanos não vivem por secções nem repartidos por actividades distintas: vivem como seres totais em espaços integrados, que os transformam e que eles simultaneamente transformam. Assim, a paisagem, individual e localizada, pode ser considerada como um dos níveis do ambiente (environment): a realidade complexa e compósita de uma qualquer envolvência. Vivemos sempre envolvidos por ambientes e não face a paisagens, como se nos pudéssemos colocar abstractamente fora delas para simplesmente as observar. A estética defendida por Berleant é multi sensitiva, e não unicamente visual e contemplativa. Implica a dimensão física do corpo, em cuja multi sensorialidade se recebe a multifacetada riqueza sensível dos ambientes. A diferença entre apreciar a arte e apreciar a natureza decorre por si mesma: só os ambientes naturais, na diversidade qualitativa que os caracteriza, podem também proporcionar uma ilimitada experiência cinestésica. Mas a sua proposta explanada em múltiplos livros, como The Aesthetic Field. A Phenomenology of Aesthetic Experience (1970); The Aesthetic of Environment (1992); Art and Engagement (1993); Aesthetics and Environment. Variations on a Theme (2005) não é só fundamentadora e descritiva. A estética teórica tem de completar se numa intensa prática da experiência sensitiva, que
395 MARTIN SEEL Martin Seel (n. 1954) é professor na Goethe Universität de Frankfurt am Main. Em diversos livros e ensaios tem vindo a propor que os princípios da estética não sejam, na sequência da tradição metafísica, fundados no ser, mas no aparecer (Erscheinen), ou seja, no modo como a realidade se dá aos sentidos de um sujeito inserido no mundo da vida (Lebenswelt). São alguns destes princípios que atravessam o livro Eine Ästhetik der Natur, de 1991, e permitem reinterpretar o sentido de uma estética da natureza na actualidade. Nas secções aqui traduzidas, Seel começa por sublinhar o carácter problemático do conceito de natural. Num momento em que a natureza está já altamente transformada pela acção humana, sofrendo o resultado de processos que chegam a afectar os seus mecanismos profundos, muitas vezes invisíveis, é a própria ideia de naturalidade que está precisamente em causa. A natureza aparece à percepção sempre nos seus aspectos sensíveis; por estar ao alcance da acção do homem, esta natureza presencial é também a sua parte vulnerável. Decorre daqui que uma estética da natureza como teoria do seu aparecer tem, explícita ou subjacentemente, implicações numa moral do belo natural. Em diálogo crítico com a explicação desenvolvida por Joachim Ritter acerca do nascimento da paisagem, fundada na dicotomia entre natureza objectiva e natureza estética, Seel contrapõe a distinção entre natureza canónica e natureza problemática. Aquela corresponde ao modelo científico: é a regularidade das leis que regem os fenómenos; esta, por sua vez, mostra se visivelmente, e só esta parte da natureza que convive com o homem pode também proporcionar prazer. Ritter teria descurado os aspectos concretos e sensíveis do mundo natural, subsumindo os num todo abstracto, e interpretando daí a estética como sucedâneo da metafísica; pela mesma razão, a descrição que faz do sujeito da contemplação corresponderia a um ideal teorético e a uma concepção idealizada da liberdade, dominantes em épocas passadas mas que há muito desapareceram. É só quando nos encontramos suficientemente familiarizados com a natureza a ponto de a considerarmos natural, que ela nos poderá surpreender precisamente pela sua estranheza. Acontece, por exemplo, que mesmo
419 PAOLO D ANGELO O que é a paisagem? Embora a enorme variedade de noções presentes no discurso do quotidiano pareça ainda tomá la como objecto estético, esta componente tem vindo a ser desprezada por várias disciplinas que reclamam para si a exclusividade do conceito. Clarificá lo e dotá lo de uma amplitude operatória para a reflexão teórica e a prática de intervenção é um dos objectivos deste autor. Nascido em 1956 em Itália, Paolo D Angelo é professor de Estética na Universidade Roma Tre, com várias publicações recentes na área da estética da natureza e da filosofia da paisagem. Se nos seus primórdios a geografia entendia a paisagem como incluindo ainda a presença de um observador, a evolução conceptual acabou por resumi la à morfologia do terreno e à sua quantificação objectiva. A ecologia, por sua vez, reduziu a paisagem a um complexo de ecossistemas e o seu sucesso contemporâneo terá implicado o emprego indistinto dos termos ambiente e paisagem. Na mesma ordem de ideias, a própria estética ambiental considera a paisagem como um conceito inadequado para compreender a experiência integral da natureza. Combinar paisagem e estética parecia ser, até há alguns anos, um resíduo de uma época diletante e romântica e, sobretudo, uma combinação desnecessária em face das questões mais sérias da sua protecção e conservação. Estabelece se então um paradoxo: na ausência de uma teorização sólida da questão do belo natural não há recursos teóricos que permitam explicar uma crescente e inevitável sensibilidade para com a natureza. Revestindo se muitas vezes de preocupações ecológicas ou até científicas, a sensibilidade pela paisagem, acompanhada de um sentimento de gratificação, não deixa de radicar na experiência perceptiva, a mais indelével forma de relação do homem para com a realidade. Além do mais, o próprio elemento estético é inerente a diversas actividades profissionais que se dedicam ao planeamento e ao projecto das paisagens, e essencial à configuração da sua tutela jurídica. Segundo Paolo D Angelo, o tratamento da paisagem continua a ser marcado pela alternativa entre as doutrinas biológico científicas e as explicações culturalistas. Se aquelas seguem o modelo da objectividade e da causalidade, estas interpretam na através do paradigma da pintura. Por isso, ela
441 LUISA BONESIO O interesse recentemente despertado pela questão da paisagem encontra na obra de Luisa Bonesio uma resposta teórica com princípios e objectivos muito precisos. A sua reflexão, centrada na defesa da identidade dos lugares e na sua conservação, é sintetizada num neologismo, a geofilosofia, amplamente explanado nos textos que aqui se apresentam. Analiticamente considerada, como filosofia da terra, a geofilosofia promove um saber crítico e articulado acerca da dimensão originária do habitar humano. Um habitar não uniforme, mas sempre desdobrado na múltipla variedade dos lugares individuais modelados pela acção e carregados de densidade simbólica. A geofilosofia parte da constatação de uma generalizada destituição do valor das paisagens e territórios em que hoje vivemos. Um empobrecimento que corresponde em termos empíricos e práticos, quando não a uma irreversível destruição, pelo menos a uma transformação do espaço pela manipulação que visa o lucro imediato. Inserida neste horizonte economicista, a intervenção humana tem olhado o espaço natural e físico como um obstáculo a ultrapassar, reduzindo-o a mera fonte de recursos. No horizonte das actuais posições sobre a paisagem, a consciência deste estado de uniformização é uma constante, e é dela que podem surgir propostas para a refundação do estatuto dos lugares, como modo de instituir uma nova relação entre o humano e o espaço por ele habitado. Os textos recolhidos para esta Antologia, extraídos de Oltre il paesaggio. I luoghi tra estetica e geofilosofia (2002) e de Geofilosofia del paesaggio (1997, 2001), ilustram o importante trabalho desenvolvido por Luisa Bonesio. Para além destes livros, a filósofa, docente de Estética na Universidade de Pavia (onde também introduziu a disciplina de Geofilosofia nos percursos curriculares), publicou, entre outros: La terra invisibile (1990); Passaggi al bosco. Ernst Jünger nell era dei Titani (2000, com Caterina Resta); Paesaggio, identità e comunità tra locale e globale (2007), coordenando ainda vários volumes concernentes às mesmas temáticas. Bonesio concentra-se numa reavaliação categorial dos lugares, indagando os seus caracteres identitários por forma a descobrir a respectiva autenticidade, indispensável, por sua vez, para a sua correcta reabilitação e preser-
475 GONÇALO RIBEIRO TELLES Gonçalo Ribeiro Telles (n. 1922) é um arquitecto paisagista da primeira geração formada em Portugal, no Instituto Superior de Agronomia, pelo curso fundado em 1941. A escola de pensamento e intervenção que representa inscreve-se numa concepção de Paisagem como entidade resultante do envolvimento do homem com a natureza. A sua intensa actividade inclui o projecto e execução de importantes espaços verdes, sobretudo na cidade de Lisboa assinou, entre outros, os jardins da Fundação Calouste Gulbenkian (com António Viana Barreto) e o Jardim Amália Rodrigues mas a sua marca em projectos de referência estende-se por todo o País e estrangeiro, nomeadamente em Angola. Também ao nível do ordenamento do território, Gonçalo Ribeiro Telles é uma referência incontornável, tendo proposto, enquanto membro de governos pós-revolução democrática, grande parte da legislação ainda em vigor sobre a protecção dos recursos naturais e o equilíbrio ecológico da Paisagem. Tem lutado contra a separação das funções no espaço rural (agricultura e floresta mono-específica de espécies exóticas de crescimento rápido); a expulsão dos camponeses das aldeias, devido à destruição da agricultura de subsistência e dos modos de gestão comunitária; um crescimento urbano desconhecedor do conceito de aptidão ecológica; a cidade desumanizada do automóvel e das torres isoladas. Ribeiro Telles tornou-se assim na bandeira mais visível de uma nova perspectiva que tem tardado em se inscrever em Portugal, para usar o conceito de José Gil. Mais recentemente, coordenou equipas técnicas responsáveis pela intervenção em Lisboa e área metropolitana, bem como projectos relativos à estrutura ecológica municipal para a qual foram desenvolvidos troços, como o vale de Alcântara, a radial de Benfica, o vale de Chelas, o Parque Periférico, o Corredor Verde de Monsanto e a integração da zona ribeirinha Oriental e Ocidental. O presente artigo descreve a paisagem pré-moderna, representativa de uma humanização processada durante séculos, com a experiência depurada através de gerações, em que o equilíbrio ecológico era a base da perenidade e, portanto, da sobrevivência dos povos que a habitavam. Seguidamente,