SUBJETIVIDADE EMPÍRICA E TRANSCENDENTAL NO TRACTATUS DE WITTGENSTEIN 1

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Tradução Lena Aranha

Transcrição:

CONFERÊNCIA SUBJETIVIDADE EMPÍRICA E TRANSCENDENTAL NO TRACTATUS DE WITTGENSTEIN 1 João Vergílio Gallerani Cuter Universidade de São Paulo galleranicuter@uol.com.br RESUMO: A relação nome objeto, no Tractatus, exige a atuação de uma vontade. Um sujeito deve escolher qual objeto associar a um nome dado. Essa escolha não pode ser descrita não pode ser um fato no interior do mundo. Do mesmo modo, o sujeito não pode ser um objeto, nem um estado de coisas. Ele deve permanecer fora do mundo, em seus limites lógicos. Ele está conectado ao quê, mas não ao como aos objetos, e não aos fatos. É por isso que o sujeito lógico é o portador do elemento ético, e contempla o mundo sub specie aeterni. Palavras-chave: Wittgenstein, lógica, ética. A nomeação de um objeto, no Tractatus, envolve o estabelecimento de uma relação interna. O nome incorpora, na forma de regras sintáticas, todas as possibilidades e impossibilidades combinatórias do objeto designado. Essa identidade formal entre nome e objeto é certamente uma condição necessária para que a nomeação ocorra. Mas não é suficiente. Dois objetos pertencentes à mesma categoria serão nomeados por dois nomes pertencentes à mesma categoria. A ordem categorial não pode decidir, porém, qual desses dois nomes deve nomear qual daqueles objetos. A sintaxe seria incapaz de dar origem a uma semântica. A sintaxe limita-se a incorporar em suas regras a exigência do isomorfismo. Ela não decide o que será nome de quê. Cabe à semântica tomar uma decisão. Uso a palavra decisão para enfatizar que a projeção da linguagem no mundo depende de uma escolha. Quero dizer com isto que as relações afigurantes unindo nomes a objetos se estabe- PHILÓSOPHOS 8 (1) : 79-86, jan./jun. 2003 Recebido em 20 de setembro de 2002 Aceito em 13 de novembro de 2002

João Vergílio Gallerani Cuter lecem com base na eleição de uma entre várias alternativas possíveis. A lógica exige identidade categorial e, nesse sentido, a sintaxe não é livre. Enquanto as regras sintáticas, tomadas em seu conjunto, refletem a ordem necessária da substância do mundo, as regras semânticas, tomadas em seu conjunto, refletem uma eleição que, do ponto de vista da lógica, é indiferente. A escolha poderia ter sido outra, sem que o caráter representativo da linguagem ficasse comprometido. É nesse sentido apenas que uso as palavras escolha e decisão. Elas não possuem nenhum vestígio psicológico. No fundo, elas refletem apenas a necessidade de que cada objeto possua apenas um nome e a possibilidade de haver diversos candidatos à nomeação de um mesmo objeto. Nada é, por sua própria natureza, nome de coisa alguma. A relação entre nome e objeto não está inscrita na natureza do nome; só a possibilidade de nomear aquele tipo de objeto é que está. Que essa escolha nada tenha de psicológica é algo que decorre do fato de ela não ser feita no interior do mundo. Seria impossível descrever o resultado dessa escolha e, se buscássemos esse resultado no mundo, deveríamos concluir que não foi feita escolha alguma. Este nome nomeia aquele objeto não é uma proposição, mas um contra-senso. Nessa pseudoproposição, usamos a expressão aquele objeto com função de nome, e com a função daquele nome a que a expressão este nome, no início da sentença, se refere. Suponhamos que tal nome seja a. O que a sentença está pretendendo dizer, então, é que o nome a nomeia o objeto a, ou, mais simplesmente, que a nomeia a. Essa sentença, porém, só poderia ter sentido caso fosse verdadeira. Para que ela tenha sentido, é preciso que a seja o nome que é, nomeando aquilo que nomeia: a. Para dizer qual é o objeto que o nome a nomeia, devemos introduzir o nome já associado àquele objeto. A sentença a nomeia a só tem sentido caso sua última palavra (o nome a ) designe aquilo que, se ela for verdadeira, o nome a de fato designa. É claro, portanto, que não temos aqui uma possibilidade sendo afirmada. Seria impos- 80 PHILÓSOPHOS 8 (1) : 79-86, jan./jun. 2003

CONFERÊNCIA SUBJETIVIDADE EMPÍRICA E TRANSCENDENTAL... sível especificar em que situações a sentença seria falsa. Não podemos dizer que a sentença será falsa caso a não nomeie o objeto a, pois se a não nomeia a, a sentença a não nomeia a já não estará se referindo ao objeto a. A relação entre nome e objeto é, pois, uma relação interna. Como toda relação interna, ela está para além de toda possibilidade de descrição. Ela está fora do mundo, vale dizer, fora do âmbito daquilo que é descrito por figurações bipolares. Apesar disso, como já vimos, ela deve ser estabelecida. Um objeto, entre diversos objetos possíveis, deve ser escolhido para cumprir essas funções. Ao tornarse nome, o objeto deve ganhar uma propriedade interna. Sua essência se altera, sem que suas determinações contingentes sofram com isso qualquer alteração. O objeto que, por si só, não designa coisa alguma, torna-se nome de algo por obra e graça de uma escolha que só pode ser feita fora do mundo, no limite do mundo. O estabelecimento de relações afigurantes deve ser uma ação e deve ser também indescritível. É essa, a meu ver, a função lógica do sujeito transcendental. Há outras a respeito das quais não irei fazer mais que uma breve menção. As operações lógicas forneceriam um bom exemplo. Como no caso das relações afigurantes, temos aqui algo que deve ser feito para que a linguagem possa descrever o mundo, mas que permanece fora do alcance de qualquer descrição possível. Não podemos descrever a relação de sentido existente entre uma proposição e sua negação. Essa relação é algo que se mostra na aplicação da linguagem. A negação é, portanto, uma ação lógica realizada fora do mundo, em seus limites. É algo que deve ser feito a uma proposição para a obtenção de outra. Aquilo que deve ser feito, no entanto, é algo que não admite descrição. Uma outra ação desse mesmo tipo está envolvida nos mecanismos de quantificação. A negação simultânea de um grupo de proposições só se traduz numa proposição quantificada quando o grupo foi selecionado por intermédio de uma função proposicional. Temos aqui um expediente lógico sem o qual a capacidade expressiva PHILÓSOPHOS 8 (1) : 79-86, jan./jun. 2003 81

João Vergílio Gallerani Cuter da linguagem ficaria prejudicada. Tanto a seleção quanto a aplicação da negação simultânea devem ser vistas como ações que produzem proposições a partir de outras. Essas ações, porém, não podem ser descritas. Não pertencem ao mundo. São transcendentais. A linguagem do Tractatus não se constitui sem a intervenção de um sujeito transcendental. Esse sujeito não é tomado de empréstimo a Schopenhauer, nem é um suplemento metafísico, em última instância, descartável. A postulação de um sujeito posto no limite do mundo não é a mera contraparte de uma iluminação imotivada. A mística presente aqui diz respeito apenas ao contato não-lingüístico com aquilo que a análise lógica demonstrou ser necessário. Ela é logicamente motivada e está ancorada nas condições de possibilidade do sentido. Só quando se compreende o papel exercido pelo sujeito transcendental na constituição do sentido é que somos capazes de compreender quem é essa vontade portadora do que é ético de que Wittgenstein nos fala em 6.423. Essa vontade é contraposta à vontade fenomênica a respeito da qual é perfeitamente possível falar. A vontade fenomênica é parte do mundo. É um estado de coisas, ou parte de estados de coisas. O Tractatus não avança nenhuma análise específica dessa vontade. Importa apenas, do ponto de vista da análise lógica, lembrar que ela jamais poderia querer a união de um nome com o objeto nomeado, ou a transformação de sentido operado pela negação. O que a vontade fenomênica quer está sempre inserido na contingência dos estados de coisas. Ela quer que tais fatos aconteçam e outros não aconteçam. A vontade portadora do Ético define-se por oposição à primeira. Ela não se dirige a uma situação contingente, a algo que pode tanto ser quanto não ser. Ela se dirige ao mundo sub specie aeterni: não ao como contingente, mas ao que necessário. O elemento místico do Tractatus não está contido em nenhum detalhe de como o mundo é, mas no fato, ou, melhor dizendo, no não-fato de haver um mundo, seja ele qual for. Proposições significativas, portadoras da bipolaridade do verdadeiro e do falso, 82 PHILÓSOPHOS 8 (1) : 79-86, jan./jun. 2003

CONFERÊNCIA SUBJETIVIDADE EMPÍRICA E TRANSCENDENTAL... dizem como o mundo seria caso elas fossem verdadeiras. Como se sabe, porém, o Tractatus só admite a possibilidade de uma figuração bipolar da contingência contraposta a uma ordem fixa e necessária de possibilidades. Figurar a contingência é recortar o espaço das possibilidades e esse espaço deve estar dado de uma vez por todas. Ele é aquilo que não muda, nem poderia mudar. Ele é a substância portadora das mudanças. Essa substância está completamente dada nos objetos simples. Os objetos simples não são o mundo. O mundo é a totalidade dos fatos, mas não dos objetos. Dada a totalidade dos objetos, estará dada a totalidade dos mundos possíveis, mas não o mundo efetivo. Cada objeto, no Tractatus, é marcado por suas possiblidades e impossibilidades combinatórias. A totalidade dos objetos, portanto, é suficiente para determinar a totalidade das combinações possíveis. Quem se dirige ao mundo, quem se dirige aos fatos, deverá dirigirse ao como ; quem se dirige à substância do mundo, porém, voltase para aquilo que, a um só tempo, fundamenta a possibilidade da mudança e escapa a toda mudança. Dirigir-se aos objetos é contemplar o mundo sub specie aeterni. É essa contemplação da substância eterna do mundo que, para Wittgenstein, caracteriza o mundo dos felizes. O mundo dos felizes, diz ele, é completamente diverso do mundo dos infelizes. A junção desses temas parece surpreendente. O que tem a felicidade a ver com os objetos simples? Por que a contemplação dos átomos lógicos seria capaz de proporcionar algum tipo de felicidade? E por que, finalmente, essa felicidade teria o poder de alterar completamente o mundo? A boa vontade, que se dirige aos objetos eternos e imutáveis, modifica o mundo, diz Wittgenstein. Por assim dizer, o mundo fica mais amplo, não porque este ou aquele fato tenha ocorrido, mas apenas porque nossa boa vontade assim o quis. Numa sucessão rápida de aforismos, Wittgenstein vai retomando alguns dos principais temas da ética ocidental, articulandoos aos conceitos mais centrais do Tractatus. É nessa articulação que PHILÓSOPHOS 8 (1) : 79-86, jan./jun. 2003 83

João Vergílio Gallerani Cuter devemos tentar perceber o sentido de sua ética e seus fundamentos lingüísticos. O ponto de partida de toda a discussão é dado no aforismo 6.4: todas as proposições têm o mesmo valor. O aforismo tem um tom propositalmente provocativo. A palavra valor vinha sendo utilizada, até esse ponto do livro, na expressão valor de verdade, e é óbvio que, no que diz respeito ao valor de verdade, as proposições não podem ter o mesmo valor. Elas não são equivalentes, mas assumem o valor verdadeiro ou o falso, conforme descrevam correta ou incorretamente uma parte do mundo. Se Wittgenstein está dizendo que todas as proposições têm o mesmo valor, logo percebemos que não é mais do valor de verdade que estamos falando. De que valor se trata, então? O aforismo seguinte realiza uma reflexão esclarecedora. No interior do mundo, não encontramos nenhum valor. Nenhum estado de coisas possível vem marcado por nenhum tipo de deverser. No interior do mundo, tudo está submetido à perfeita indiferença lógica da bipolaridade. Nada deve ser assim, ou deixar de ser assim, mas tudo acontece, ou então deixa de acontecer, e isso é tudo. O dever-ser não reside na sucessão dos fatos, mas naquilo que está por trás deles. Se quisermos atingir um nível ontológico dotado de valores imanentes, devemos recuar dos fatos para os objetos. Devemos recuar do mundo para seus limites. Só aqui encontraremos uma esfera daquilo que não é indiferente do ponto de vista da lógica. Os objetos simples de Wittgenstein, o mundo sub specie aeterni, têm todas as características que, desde Platão, a filosofia tem associado ao Bem Supremo. São imutáveis, incorruptíveis, e têm uma existência necessária. Ao falarmos, ao produzirmos sentido, nós visamos os objetos simples por intermédio das relações afigurantes. Projetando os nomes no mundo, nós devemos direcionar nossa vontade transcendental no sentido dos objetos. Mas esta é uma projeção da vontade que não se dirige aos objetos em si mesmos. Dirigimo-nos a eles por intermédio dos nomes, no contexto da afirmação da 84 PHILÓSOPHOS 8 (1) : 79-86, jan./jun. 2003

CONFERÊNCIA SUBJETIVIDADE EMPÍRICA E TRANSCENDENTAL... contingência. A intencionalidade que elege as relações afigurantes, porém, nada tem de contingente. Ela cria necessidade. No nível da vontade fenomênica, tudo muda. O fato que afirmo pode ser, além de afirmado, querido, desejado, esperado. A vontade que põe esse querer no mundo, porém, é a vontade fenomênica um episódio íntimo tão contingente quanto uma lembrança, uma dor, ou qualquer outro fato. Enquanto fato, essa vontade mantém uma relação também contingente com os outros fatos do mundo. Posso querer a maçã, e minha mão mover-se em sua direção. Mas é perfeitamente possível imaginar realizada a linha da tabela de verdade em que minha vontade ocorre, mas minha mão fica parada, ou simplesmente some, saindo dos trilhos projetados por minhas expectativas físicas. Por isso mesmo, o querer que se dirige ao mundo não é apenas contingente. É também infeliz. Sua satisfação depende sempre da ocorrência de fatos que podem não ocorrer e que, de qualquer forma, são logicamente exteriores à esfera factual da própria vontade fenomênica. A independência lógica das proposições elementares é, digamos assim, o inferno da vontade. Mas é possível também adotar um outro rumo. É possível querer, não a maçã, nem o mundo todo, mas o mundo como totalidade. É possível, em outras palavras, amar o mistério que está diante de todos nós. Não este ou aquele acontecimento, nem esta ou aquela concatenação contingente de objetos, mas a ordem eternamente inserida nesses objetos. Não se trata, é claro, de contemplar a ordem causal dos fenômenos. A causalidade é simplesmente a rede que fabricamos para projetar sobre a contingência uma necessidade que, do ponto de vista da lógica, ela não possui. Trata-se de contemplar a ordem categorial do mundo que nenhuma linguagem seria capaz de descrever. Na medida em que desejamos o necessário, nossa vontade já não precisa submeter-se aos caprichos da contingência. Ela encontra no ato mesmo de desejar a sua imediata satisfação. Nenhum fato poderá perturbar a paz que o místico encontra aqui. A eternidade, PHILÓSOPHOS 8 (1) : 79-86, jan./jun. 2003 85

João Vergílio Gallerani Cuter para ele, não é uma promessa a ser cumprida após a morte, mas uma recompensa renovada a cada instante. Seu mundo é composto exatamente dos mesmo fatos, mas esses fatos estão todos impregnados de Eternidade. Seu mundo é maior, mais amplo, mais pleno, pois ele não está simplesmente diante daquilo que passa no fluxo da mudança, e que nossas palavras conseguem, sem nenhum problema, capturar, congelar e descrever. Estando diante do espetáculo da mudança, ele é capaz de fixar a vontade fundadora do sentido naquilo que não pode ser dito, nem desejado, mas jamais se perde, se recusa, falta, ou se corrompe. ABSTRACT: The name object relation in the Tractatus requires the activity of a will. A subject must choose which object to associate with a given name. This choice cannot be described it cannot be a fact within the world. By the same token, the subject cannot be an object, or a state of affairs. It must stay outside of the world, in its logical limits. It is connected to the what, not to the how to the objects, not to the facts. That is why the logical subject is the bearer of the ethical element, and contemplates the world sub specie aeterni. Key words: Wittgenstein, logic, ethics. Nota 1. Palestra proferida no I Colóquio Nacional de Filosofia da Linguagem, realizado em Goiânia, em junho de 2002. 86 PHILÓSOPHOS 8 (1) : 79-86, jan./jun. 2003