SÍNDROME DE ASPERGER, TRABALHO E EDUCAÇÃO: CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONSTITUIÇÃO DOS SUJEITOS NAS PRÁTICAS SOCIAIS.



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Transcrição:

SÍNDROME DE ASPERGER, TRABALHO E EDUCAÇÃO: CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONSTITUIÇÃO DOS SUJEITOS NAS PRÁTICAS SOCIAIS. CAMILA AZEVEDO DE ARAÚJO 1 MARIA DE FÁTIMA CARVALHO 2 Introdução Este trabalho apresenta parte das considerações e questionamentos elaborados no trabalho de Iniciação Científica A constituição dos sujeitos nas práticas sociais: síndrome de Asperger, trabalho e educação 3, desenvolvido de agosto de 2007 a junho de 2009 como parte do projeto de pesquisa Inclusão Educacional de Jovens e Adultos com Deficiência Mental: Interação Social, Relação com o Conhecimento e Constituição de Sujeitos, da Professora Dra. Maria de Fátima Carvalho (UNIFESP, Guarulhos), com o objetivo de contribuir para a reflexão sobre as condições de possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento, vividas por sujeitos jovens e adultos, no âmbito de sua inclusão em práticas de educação e trabalho. O projeto foi realizado com apoio do PIBIC UNIFESP (vigência: 2007/2009), no curso de Pedagogia, Campus Guarulhos. Assumindo como fundamentos teóricos e metodológicos os pressupostos da vertente histórico-cultural em Psicologia acerca do desenvolvimento humano como processo social e a importância de consideração dos aspectos históricos e sócio-culturais na constituição das mais diversas formas de comprometimento do funcionamento mental (Vygotsky: 1985, 2001, 2007) e a perspectiva discursiva (Bakhtin: 2004), investigou as possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento construídas por um adulto com síndrome de Asperger, um homem de 29 anos, identificado como H., em práticas de trabalho voluntário, na função de auxiliar de professor, em uma escola especial de caráter filantrópico que atende crianças e adolescentes com paralisia cerebral na cidade de São Paulo, com o objetivo de observar, registrar (em áudio e diário de campo), descrever interações que configuram o trabalho voluntário desempenhado pelo sujeito junto aos demais envolvidos (professores, pesquisadora e alunos), buscando compreender e tornar visíveis, nessas práticas sociais, aspectos dos processos de aprendizagem e desenvolvimento do sujeito, de sua constituição como adulto, como trabalhador voluntário. Método O trabalho de pesquisa, caracterizado como um Estudo de Caso, foi desenvolvido a partir da observação participante e de contribuições da metodologia de Análise Microgenética. Os trabalhos de observação e registro foram realizados durante 20 semanas, duas vezes por semana, às quartas e sextas-feiras, das 7 às 11 horas, em duas diferentes salas/turmas da escola, onde o sujeito desempenhava a atividade voluntária. No processo de observação e registro, a pesquisadora participou das atividades pedagógicas também como auxiliar, voluntária e somou às observações o material construído a partir da realização de entrevistas semi-estruturadas realizadas (gravadas em 1 Graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal de São Paulo Campus Guarulhos. Email: camila-azevedo@uol.com.b 2 Doutora, Professora adjunta do curso de Pedagogia; Professora do Programa de Pós - Graduação Saúde e Educação na Infância e na Adolescência na Universidade Federal de São Paulo Campus Guarulhos. Email: fatima.carvalho@unifesp.br 3 Parte das considerações elaboradas neste texto foram apresentadas no Congresso de Iniciação Científica, PIBIC UNIFESP, junho de 2009 como parte do Relatório Final do Trabalho A Constituição dos Sujeitos nas Práticas Sociais: Síndrome de Asperger, Trabalho e Educação. 2744

áudio) com as professoras e com o sujeito. A discussão específica dos modos de participação de uma pessoa com síndrome de Asperger em uma situação de trabalho voluntário nos permite enfocar a dimensão social do desenvolvimento jovem e adulto e as condições de possibilidades de constituição dos sujeitos, no enfrentamento do funcionamento mental comprometido, no âmbito de uma situação de trabalho que pode ser definida como formadora, embora não profissionalizante. No processo de construção dos dados (observação, registro, realização de entrevistas, fundamentação teórica e discussão/análise), destacam-se aspectos organizadores das interações sociais vividas pelo sujeito na instituição, na configuração do trabalho voluntário, os quais permitem refletir sobre como as concepções de síndrome de Asperger em circulação na instituição afetam as interações vividas pelo sujeito e os seus modos diferenciados de relacionar-se no/com o contexto de trabalho e consigo mesmo. Apontam também para a necessidade de reflexão e análise, no âmbito dos processos de formação e profissionalização, sobre as condições de participação, de aprendizagem e de desenvolvimento como adulto e como trabalhador. Os dados apontam ainda para os modos de participação mais característicos do sujeito (e demais envolvidos) nas interações e para o seu empenho em responder as demandas do trabalho, em significar a função de voluntário, em desenvolver suas possibilidades de atuação e apropriar-se de modos de participação dos adultos, professores e demais voluntários com quem se relaciona, elaborando seus recursos cognitivos, de comunicação e sócio-afetivos. Desenvolvimento No Brasil, a produção relacionada à investigação do desenvolvimento adulto na existência da síndrome de Asperger é ainda escassa, não havendo referência à abordagem da questão do trabalho como uma experiência de inclusão e desenvolvimento. Neste contexto, buscamos nas contribuições de autores como Giordano (2000) e Carvalho ( 2006, 2007), elementos para a discussão da questão do trabalho na existência do comprometimento do funcionamento mental e, mais especificamente, da deficiência intelectual, embora saibamos que a deficiência intelectual não é uma característica da síndrome de Asperger. Giordano, assumindo uma perspectiva materialista dialética, destaca a o caráter de produção cultural humana da atividade de trabalho e afirma que o seu significado transcende a função de subsistência, para constituir-se um dos aspectos de identidade social. Para esta autora, o trabalho assume um lugar importante como atividade humana e como realidade social, devido à sua freqüência e relevância na vida das pessoas. (2000, p. 50). Conforme esta autora, podemos entender que o trabalho carrega representações de valores/comportamentos que afetam o processo de desenvolvimento do sujeito (...) soma-se um conjunto de representações sociais, cognitivas e afetivas das condutas, normas, papéis, tarefas que estão relacionadas com o mundo do trabalho e que os indivíduos vão adquirindo através de um processo mental resultante de todo o processo de interação que se estabelece entre os indivíduos com suas próprias experiências e o ambiente. (p. 51) A atividade de trabalho conforma-se assim ao mesmo tempo, como um local, uma ação, um instrumento e um papel social constituído e constituinte pelo/do sujeito (...) por meio do trabalho, o homem adquire sua identidade social e atende às necessidades básicas de segurança, autonomia, afirmação, auto-realização, prazer, auto-estima, dentre outras tantas, caracterizando, portanto, um dos mais valiosos recursos de adaptação do homem ao meio. (p.53) No Brasil, a legislação reconhece a importância do trabalho estabelecendo-o como direito, 2745

conforme o estabelecido pela Declaração Universal dos Direitos dos Homens. Esse direito, embora estabelecido na Constituição de 1988 ( Art. 5º, inciso XIII do Capítulo I e no Art. 6º do Capítulo II), a despeito dos avanços que caracterizaram as últimas décadas e dos desdobramentos decorridos após 18 anos de promulgação da Lei 8213 (1991), constitui-se ainda hoje, para a grande maioria dos brasileiros que possuem deficiências em uma impossibilidade. Laplane (2004), problematiza o fato de num contexto de políticas ostensivamente inclusivas ocorrer a reprodução de um modelo do mercado que estabelece as competências a serem exigidas com o objetivo de inserção profissional. Neste contexto onde a participação nas práticas educacionais já não é mais condição de garantia de trabalho e ascensão profissional e social, a falta de escolarização, formação e profissionalização que frequentemente caracteriza o adulto com deficiência no Brasil constitui-se como um grave problema, quando os campos da educação e do trabalho reproduzem as formas de uma organização social onde as relações de poder e propriedade são excluidoras dos menos aptos à competição e a produção. Carvalho (2007) ao explorar a relação entre os campos do Trabalho e da Educação enfatiza a importância da participação dos sujeitos com deficiências nas práticas de Educação e Trabalho, ressaltando também a necessidade de consideração das formas como essa relação se estabelece no âmbito das instituições de educação escolar (que propõem-se preparar os alunos para o mundo do trabalho, como os CIEJAS, em São Paulo) e de preparação para o trabalho remunerado (como Instituições de Atendimento Especial que configuram a oferta de preparação para o trabalho em oficinas de Trabalho abrigado e competitivo). Para esta autora, os modos como essas instituições concebem e relacionam educação, trabalho e deficiência, afetam os sujeitos dirigindo suas formas de entendimento e contingenciando suas possibilidades de educação e de trabalho (p. 8). Esta autora aponta para algumas das condições que se relacionam na construção das dificuldades e possibilidades vividas por essa população nesses campos e enfatiza a necessidade de consideração (entre outras coisas) de: (...)o papel desempenhado pelos diagnósticos e concepções das deficiências ou doenças mentais nos processos de busca, de preparação e de exercício de atividades educacionais ou laborais remuneradas; a ausência de políticas públicas efetivas que contemplem as necessidades de formação profissional dessa população no âmbito da educação profissional básica; o caráter filantrópico, assistencialista, terapêutico e restritivo que perpassa as práticas de preparação para o trabalho dirigidas a essa população. Carvalho (2007, p. 8) Em Giordano (op. cit.), encontramos a referência ao emprego como modalidade mais constante de relação das pessoas com deficiência com o mundo do trabalho. Em algumas situações as pessoas são inseridas em contextos que necessitam de adaptação e em outros não. Quando a situação demanda adaptação do meio para receber esses sujeitos, essa modificação pode ser temporária. Existe também a possibilidade de oferecimento em setores mediados por instituições especializadas, que medeiam a força de trabalho de pessoas com deficiências e os contratantes. Esta autora também aponta para o papel desempenhado pelas concepções de deficiência vigentes na sociedade. Discute como essas condições de empregabilidade são oferecidas. A maioria dessas pessoas são empregadas em instituições chamadas Oficinas Abrigadas, mas a autora aponta que as habilidades aprendidas nessas práticas respondem pouco as exigências do mercado de trabalho e aborda também a diferenciação entre o significado da remuneração, onde a remuneração pelo trabalho é apontada como um prêmio para esses indivíduos, enquanto para as pessoas (...) [sem deficiência] é um direito do cidadão (p. 58). Ela atribui a inadequação dessas iniciativas às concepções de deficiência construídas na sociedade. Os pressupostos assumidos por esse trabalho (Vygotski, 1997), nos permitem conceber a 2746

deficiência como desenvolvimento diferenciado, onde o sujeito que apresenta alguma forma de comprometimento do funcionamento mental não se encontra incapacitado, mas desenvolve-se de forma singular, podendo ao longo de toda a vida, nas e pelas interações sociais, construir formas novas e mais eficientes de ação (Carvalho, 2006). Nessa direção, podemos compreender que a participação social é condição de construção de suas possibilidades de ação psíquicas/cognitivas/sócio-afetivas. A idéia do desenvolvimento humano como um processo social, apóia-se em uma perspectiva discursiva de linguagem, em uma visão interacionista que compreende a interação social como intrinsecamente discursiva e por isso, local e matéria de constituição do funcionamento psicológico, pelos processos de significação. Esse pressuposto, nos permite considerar os fatos em seu acontecimento, incorporados à sua dimensão histórica, ou seja, considerar a necessidade de abordar os lugares discursivos ocupados pelos sujeitos, os modos de participação que nas variadas condições cotidianas são produzidos, as mediações que organizam suas ações. De acordo com as contribuições de Góes sobre a Análise Microgenética (2000, p. 9-11) destacamos a tese vygotskiana segundo o qual os processos humanos têm gênese nas relações com o outro e com a cultura e são as relações sociais, as interações, que devem ser investigadas ao se examinar o curso de ação do sujeito (p. 11). Dessa forma, atentamos para episódios interativos que consideramos significativos, para as relações intersubjetivas e para as condições sociais da situação, buscando realizar um relato minucioso dos acontecimentos. No contexto da psicologia histórico-cultural, são principalmente as contribuições de Mikhail Bakhtin (1990) sobre a dimensão discursiva das interações e a característica ideológica dos discursos, o que embasa a possibilidades de análise. Para Bakhtin (1990) a palavra revela-se, no momento de sua expressão, como o produto da interação viva das forças sociais e cada coisa dita, se apresenta como uma arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam valores sociais e orientações contraditórias. Para este autor, a linguagem nos permite objetivar a experiência, tipificando-as e agrupandoas em categorias amplas e significativas para o indivíduo (p. 61). Na idade adulta, conforme argumenta Carvalho (2006, 2007) a inserção no campo do trabalho é fundamental. Para isso, é fundamental que o sujeito como afirma Giordano (op. cit.) desenvolva suas capacidades profissionais, suas habilidades laborativas (...) do mesmo modo que as pessoas sem deficiência (p. 55). Nesse contexto, podemos compreender que a inclusão de sujeitos com deficiência mental no sistema educativo e no mercado de trabalho se dá num processo circular, onde uma inclusão complementa a outra, onde esses espaços de socialização concorrem para a construção de possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento de modos novos de ação psicológica. Assim, na elaboração, pelo sujeito com comprometimento do funcionamento mental, das formas de ação que caracterizam a vida adulta, o trabalho assume um papel preponderante e formador, educativo. (Carvalho, 2007) Para H. (o sujeito de nossa pesquisa) a atividade de trabalho voluntário como auxiliar de professor em uma escola, releva-se como condição de possibilidade de transformação de suas formas de ação psíquica em todas as suas dimensões (cognição, afeto, sociabilidade, motricidade, socialização). Sem outras possibilidades de participação social que oportunizem relações sociais organizadas em torno de um objetivo sócio-culturalmente tão valorizado quanto o trabalho, ou de construção de vínculos pessoais e de continuidade (embora assistemática) de relação com o conhecimento (tratase de uma escola de ensino fundamental), o sujeito encontra no trabalho voluntário uma oportunidade ímpar de aprendizado e desenvolvimento na etapa de vida adulta. 2747

Como voluntário, é chamado para responder às diferentes solicitações relacionadas ao papel de auxiliar de professor. Neste contexto, atende às solicitações de crianças que apresentam significativas dificuldades psicomotoras e de comunicação, responde às solicitações dos professores frente à preparação de materiais, convive com outros voluntários e com toda a equipe da instituição escolar, encontrando no trabalho as mais diferentes oportunidades de relação. Mas como o trabalho afeta o desenvolvimento de H.? Será que a participação como auxiliar de professor permite a construção de modos de participação que favoreçam o seu desenvolvimento na etapa de vida em que se encontra? Como nas interações que caracterizam as práticas de trabalho voluntário ele aprende e se desenvolve? Como participa? O que e como aprende? Como sua presença afeta a instituição? A discussão dos dados registrados no Diário de Campo nos levaram a enfrentar essas questões. Conclusões: A Síndrome de Asperger e os modos de interação do sujeito: a constituição social das possibilidades de participação como trabalhador voluntário. Nos novos padrões diagnósticos, a síndrome de Asperger é considerada um Transtorno Global do Desenvolvimento. Atualmente, três eixos de comprometimento são considerados para o diagnóstico de um Transtorno Global do Desenvolvimento, esses eixos são: a deficiência no desenvolvimento da linguagem, a deficiência de interação social e a presença de interesses e movimentos repetitivos. É a existência de um desenvolvimento comprometido, simultaneamente nestes três eixos, o que expressa o tipo de transtorno de desenvolvimento assim denominado (SACKS, p. 254-255). A Organização Mundial de Saúde define a síndrome de Asperger como: Transtorno de validade nosológica incerta, caracterizado por uma alteração qualitativa das interações sociais recíprocas, semelhante à observada no autismo, com um repertório de interesses e atividades restrito, estereotipado e repetitivo. Ele se diferencia do autismo essencialmente pelo fato de que não se acompanha de um retardo ou de uma deficiência de linguagem ou do desenvolvimento cognitivo. Os sujeitos que apresentam este transtorno são em geral muito desajeitados. As anomalias persistem freqüentemente na adolescência e idade adulta. O transtorno se acompanha por vezes de episódios psicóticos no início da idade adulta. Psicopatia autística. Transtorno esquizóide da infância (Ibid., F84.4). Esse comprometimento é a forma mais branda do espectro autista. O sujeito com Asperger não apresenta deficiências, mas transtornos, comprometimentos cognitivos e de linguagem e pode, de acordo com as condições de seu desenvolvimento, construir formas compensatórias de habilidades sociais. Podem, em alguns casos, apresentar altas habilidades. H. apresenta todas as características que sustentam esse diagnóstico. A condição sindrômica articula-se a outras condições na construção de seu desenvolvimento. Ele é filho de uma família de classe média, freqüentou escolas especiais na infância, chegou a freqüentar (em 1994) sem se adaptar uma escola regular na adolescência e retornou à escolas especiais (de 1995 a 2005), tendo atualmente além da atividade voluntária, as atividades sociais que desenvolve com sua família e a as atividades físicas desenvolvidas em uma academia de ginástica. Possivelmente por tratar-se de uma instituição de educação especial, a escola em que ele é aceito como voluntário mostra-se aberta às suas possibilidades de aprendizado e desenvolvimento e ao convívio com as diferenças relacionadas à síndrome, percebendo-o como capaz de assumir um posto de trabalho voluntário, de relacionar-se com as crianças, professores, demais voluntários, educadores e técnicos, relacionar-se com uma rotina de trabalho, com as normas e formas de 2748

organização que a caracterizam. Apesar dessa positividade da situação encontraremos no dia a dia escolar, formas contraditórias de convívio e significação das possibilidades de ação de H. e da síndrome de Asperger. Podemos apontar, por exemplo, entre outras característica dos modos de participação dos professores, a repetição. Os professores repetem muitas vezes o que H. tem que fazer. Em uma mesma situação, uma professora E. chega a repetir oito(8) vezes a explicação da atividade e uma outra professora D. duas (2) vezes. A partir do trabalho de observação, constatamos ser essa repetição desnecessária. H. compreende as ordens dadas e solicitações e pode responder. Destacamos aqui a emergência no âmbito interativo, de uma das características da síndrome de Asperger: a tendência à repetição, à estereotipia. Mas nas situações referidas essa característica não é manifesta pelo sujeito. Podemos perguntar se as repetidas explicações das professoras podem ser tomadas como indícios de uma desconfiança nas possibilidades de compreensão do sujeito, decorrentes da associação da síndrome de Asperger à existência de deficiência intelectual, algo comum em nossa cultura. Poderiam ainda ser interpretadas como uma característica professoral, comum no contexto da educação especial desenvolvida junto a crianças com considerável comprometimento de fala e comunicação. Perguntamos também, como afetam H.? Contribuiriam para a transformação de suas formas de significar suas próprias limitações? As condições de ação de H. são definidas nas diversas formas de atuação dos professores e voluntários. São distintas as formas de significar sua presença e suas possibilidades de participação. Em algumas situações, evidencia-se a dificuldade de percebê-lo como adulto, trabalhador voluntário e a propensão à atribuir, para ele, o papel de aluno, criança, deficiente. Em uma dessas situações, a professora C. ao explicar que a atividade, seria baseada no livro didático Os Problemas da Família Gorgonzola (Furnari, 2001) 4, o qual explora problemas matemáticos, pede para cada aluno inventar uma história, trazer fotos de sua família e inclui H. entre os alunos. Determina que ele fará o mesmo que as crianças, o que não é solicitado de outros voluntários que trabalham nessa mesma sala. Ela sugere que H. (fazendo uso de suas altas habilidades) ajuda a a turma com os problemas matemáticos. Ela pede a H. que veja as horas e comenta sorrindo: Professora C: - Ele é muito bom com horas e datas. Diversas vezes ela fez comentários sobre ele. Ela faz esses comentários diante dele, excluindo-o da conversa, não se preocupa se ele está escutando ou não. Ela lê os problemas matemáticos propostos no livro e ao final pede que ele resolva. Ele respondeu na hora ao que é solicitado, orgulhoso dá as respostas corretas. Ela fala das aptidões de H. Para o grupo. Participando desta forma das atividade, H. é deslocado de seu papel de auxiliar de professor voluntário. A professora solicita-o como aluno e é desse lugar que ele responde, propondo-se a, como aluno, fazer a atividade. A valorização das altas habilidades para o cálculo ganha um sentido de exibição que é assumido pelo sujeito. Ele demonstra gostar disso. Ao contrário das outras situações em que pode usar suas capacidades, mas não é chamado a exibi-las. Possivelmente, esta situação gratifica o sujeito porque não o desafia a colocar-se socialmente de forma mais compatível com sua idade e possibilidades de ação. Ele é chamado a comportar-se como uma criança. 4 FURNARI, Eva. Os Problemas da Família Gorgonzola. São Paulo: Global, 2001. 2749

Na mesma situação, em seguida chegou a professora E. com cópias do livro citado. Percebendo a situação, ela problematiza a possibilidade de H. participar como aluno. A professora E. Não confronta a professora C. e pergunta para H. se ele não vê problema em participar, trazer fotos da própria família etc. Ele fez um gesto com a cabeça afirmando que não haveria problema. A professora C. por sua vez, permanece alheia a problematização levantada pela colega. Ela dá ordens sobre como ele deve proceder para fazer a atividade, diz que ele deve comprar e ler o livro, criar a história, usar as fotos da família dele e montar essas fotos compondo a história. Então ela pergunta se eu (a pesquisadora) poderia ajudá-lo. Eu sabia que o sujeito não precisava de ajuda, mas constrangida, disse sim. A professora solicitou que eu escrevesse para ele (como é feito com os alunos que não sabem escrever) o que ele deveria fazer em casa. Ela pegou um papel com linhas e margens coloridas de amarelo do armário e me perguntou se era muito infantil para dar a ele. Eu respondi com a cabeça que não, achando que sim. E ela deu a ele para que escrevesse a atividade na sala. Na semana seguinte ele trouxe a atividade escrita e leu para o grupo. Desautorizado, H. responde de onde é chamado, deixa de ser trabalhador voluntário que auxilia e volta a ser garoto prodígio que dá respostas certas. Confrontado quanto a adequação da situação, não consegue descolar desse lugar que lhe foi atribuído como natural por toda a vida. Dessa forma, vamos vendo emergir na escola, local de trabalho, as condições de elaboração do lugar de trabalhador voluntário e com elas, de modos de participação que definam o desenvolvimento adulto. Ora aparecem como a condição dada de trabalho e ora desparecem na forma como o sujeito é percebido e solicitado nas interações. Nesse contexto contraditório, H. convive também com o desafio de atender a demandas d e trabalho que desafiam a ser, comportar-se de forma mais compatível com o seu desenvolvimento adulto. Nas salas onde atua, H. trabalha com as crianças auxiliando na realização de atividades, ele prepara atividades, ele digita textos, ele cola, recorta, escreve, pesquisa no google, pesquisa em livros e revistas etc. Considerando-se as grandes dificuldades motoras e de fala que caracterizam as crianças, aprender a entendê-las e efetivamente ajudá-las é para H., assim como para os professores e demais voluntários, um permanente desafio. Nessas situações evidencia-se que as professoras confiam cada vez mais em H. Vemos assim se evidenciarem, em meio as contradições, as transformações recíprocas de H. e seus pares. Os modos de ação de H. vão ganhando forma em relação às formas de ação dos Outros que convivem com ele na instituição. Em muitas situações, as características relacionadas à síndrome se destacam, H. insiste para que projetos não realizados sejam cumpridos. Não esquece os combinados. Demonstra rigidez, dificuldade para contornar as situações, aceitar que o que é combinado nem sempre ocorre etc. Demonstra particular interesse pelos passeios, excursões. Em uma situação ele organiza-se para ir a um passeio como se fosse um dos alunos e nessa situação, é mais uma vez confrontado pela professora E. que conversa com ele sobre a propriedade de sua atitude, sobre suas responsabilidades e as exigências de seu trabalho, ela fala sobre a importância e necessidade de sua presença na escola, que sua ausência interfere na realização das atividades, pois se ele vai aos passeios ele é um trabalhador voluntário a menos. Ela sugeriu a ele que perguntasse a professora da sala onde deveria trabalhar, se poderia faltar. Explicou que ele só poderia ir como voluntário, para ajudar com as crianças do outro grupo. O desfecho desta situação deu-se com a ida de H. ao passeio. 2750

É nesse contexto que podemos refletir sobre como vão se definindo nas interações, as possibilidades e limitações, as características que definem a síndrome, como a repetição, as estereotipias, a infantilidade, a rigidez etc. Uma das características da síndrome de Asperger é uma certa rigidez em relação ao que é planejado e aparentemente compreendido como algo que tem que ser cumprido. H. apresenta essa característica. Por outro lado, podemos considerar que participar das excursões é uma oportunidade de vivenciar coisas novas, passear etc. Vemos assim que contraditoriamente sintoma e motivação aparecem juntos, assim como a dificuldade de H. e das professoras de compreender e separar o papel de voluntário e de aluno, pois apesar da repreensão, ele vai ao passeio. É assim, em meio as contradições, que as possibilidades de aprendizagem, compreendida na perspectiva vygotskiana, como processo relacional e de significação, que H. vai encontrando (ou não) as condições de transformação/desenvolvimento de suas possibilidades de ação. Como, por exemplo, ao ser solicitado a ajudar uma criança que não fala e não escreve, cuja comunicação é apenas com os olhos, a professora disse a H. e a aluna: Professora D. : - O H. vai fazer pra você, ta? ( ) - Olha H., por favor. Ajuda ela? O dela tem que escrever pra ela porque ela não escreve a professora leu o exercício para a aluna e disse O H. vai fazer para você, tá?. A professora deu um lápis para ele escrever para a menina. H. escrevia a lição para a menina em silêncio. Em outro momento um aluno pediu auxílio dele. R. emitiu sons apontando para H. H. pergunta O que? R. estava bastante agitado, então eu disse a H.: - Ele quer sua ajuda, eu acho. E continuei o que estava fazendo com outra aluna. H. dirige-se a R. e pergunta: E qual é o melhor jeito de te ajudar R.? R. não respondia, pois não fala, se comunica por prancha de comunicação. H. perguntou: - Como você vai escrever? O aluno acomodou o lápis na mão e H. pegou a mão do aluno e começou ajudá-lo a escrever. Terminaram e a professora disse: - Olha, o Haroldo te ajudou. Que legal hein! O aluno abraçou Haroldo que se deixou abraçar. A situação evidencia a receptividade das crianças em relação ao sujeito, assim como as diferentes formas de solicitação que a ele são dirigidas no trabalho e os seus modos de responder. Na situação, são feitas duas solicitações diferentes para a atuação junto a alunos bem diferentes. Na primeira situação a professora pede a ele que escreva as respostas da atividade para a aluna, não o instrui para interagir com ela. Na segunda situação, H. pergunta à criança como deve ajudá-la. H., assim como os demais voluntários, quando chegou à instituição, foi informado pelas professoras sobre como deveria agir com os alunos. Foi orientado a interagir com os alunos que não falavam, lendo as atividades para eles e a sempre perguntar Qual o melhor jeito de eu lhe ajudar?. H. aprendeu. O processo de observação e a construção dos dados nos permitiu ver como as formas de ação do sujeito se transformaram ao longo desse período, assim como os modos da instituição solicitá-lo. Refletindo sobre as condições de trabalho, pensamos que a condição de voluntário vivida por H. na instituição ainda é mal compreendida pelo sujeito não apenas em decorrência de suas limitações, 2751

mas pelas limitações da escola de a definir, por ser ele um voluntário com características diferenciadas. A despeito das intenções incluidoras e do acolhimento, circulam na instituição diferentes formas de conceber o sujeito e a síndrome de Asperger como característica que condiciona seu desenvolvimento. Embora seja necessário em quase todas as situações que alguém provoque suas falas, evidenciamse suas maiores possibilidades de comunicação com o grupo e uma maior capacidade de interpretação dos diálogos e situações, de inserção na rede discursiva. Suas possibilidades de socialização ampliaram-se consideravelmente e ele, como os outros auxiliares e professores, dirigise aos familiares das crianças com quem trabalha e às próprias crianças, fazendo perguntas ou comentários simples. Em uma situação de entrevista semi estruturada e em conversas informais, ele fornece as pistas para compreendermos como se dá seu aprendizado: ele responde às solicitações da forma que lhe é sugerido e possível, conseguindo, quando isso é demandado, corresponder ao papel de auxiliar voluntário, colocando-se no lugar daquele que ajuda às crianças. Nesse contexto, a desorganização das situações, o inacabado, as solicitações afetivas das crianças, assim como as contradições que organizam o cotidiano institucional, têm contribuído para a diminuição de sua rigidez e para o desenvolvimento de autonomia cada vez maior no exercício de sua função. O trabalho na instituição tem enorme importância para H. O trabalho confere sentido às suas ações, proporciona interesse, motiva e significa o seu desenvolvimento como adulto, tem um caráter formativo, educador. Ele desempenha algo valorizado e útil para as crianças e para a escola. Ele realmente, nas salas onde as professores oferecem condições de participação, trabalha, auxilia. Por outro lado, esse trabalho não remunera, não profissionaliza, não lhe permite avançar da condição de dependência familiar na qual se encontra, mas H. ainda não se pergunta sobre isso. Ele gosta de trabalhar, ele quer trabalhar. É importante que a instituição organize-se para definir melhor o seu lugar de voluntário contribuindo dessa forma para que ele também o elabore e assuma de forma que a atividade de trabalho demande novas necessidades. Referências Bibliográficas BAHKTIN,M. 1990. Marxismo e filosofia da linguagem. 5ª ed., Tradução : Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira, São Paulo : Hucitec. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Diretrizes nacionais para a educação especial na educação básica. Brasília, MEC/SEESP, 2001. CARVALHO, Maria de Fátima. Conhecimento e vida na escola: convivendo com as diferenças. Campinas: Editora Unijui, 2006. CARVALHO, Maria de Fátima. Educação de jovens e adultos com deficiência mental: inclusão escolar e constituição dos sujeitos/education of teenagers and adults with mental deficiencies: school inclusion and the constitution of subjects. In HORIZONTES. Revista Semestral do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade São Francisco. Volume 24 Número 2 Julho/Dezembro 2006. ISSN 0103-7706 (2006-b) CARVALHO, Maria de Fátima. Inclusão Educacional de Jovens e Adultos com Deficiência Mental: Interação Social, Relação com o Conhecimento e Constituição de Sujeitos (2006). Relatório Fapesp/Faculdade de Educação da USP. Outubro, 2006 - c. GIORDANO, Blanche Warzée. (D)eficiência e trabalho: analisando suas representações. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2000. 2752

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