O ensaio no documentário e a questão da narração em off. Consuelo Lins 1

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Transcrição:

O ensaio no documentário e a questão da narração em off Consuelo Lins 1 Resumo: A partir da tradição do ensaio no cinema documentário, e particularmente das obras dos cineastas franceses Chris Marker e Agnès Varda, esse artigo discute as possibilidades estéticas do uso da narração em off nessa forma de cinema. Identifica na produção documental brasileira das últimas duas décadas a abolição desse recurso em favor de filmes baseados em entrevistas e a retomada recente da narração em filmes ensaísticos, em que a subjetividade do diretor se faz presente. Trata-se de uma utilização que desloca o uso clássico da locução, ampliando o repertório estético do documentário brasileiro. Palavras-chave: ensaio fílmico, documentário, subjetividade. Se analisarmos a produção brasileira de documentários dos últimos anos identificamos sem muita dificuldade a ausência de um elemento estético que foi no entanto dominante nos filmes dessa forma de cinema até o final dos anos 80: a narração em off, recurso inventado nos anos 30 pelo movimento liderado pelo documentarista John Grierson e que marcou definitivamente a trajetória de filmes documentais. A presença majoritária, nas últimas duas décadas, de filmes feitos essencialmente de entrevistas ou conversas entre cineastas e personagens, já diagnosticada por J. C. Bernardet, decorreu, entre outros fatores, do desejo dos cineastas brasileiros de abolir a voz de Deus, a narração desencarnada onisciente e onipresente, que tudo vê e tudo sabe a respeito dos personagens,que acompanhou boa parte dos documentários do Cinema Novo. Considerada uma intervenção excessiva na relação entre filme e espectador, dirigindo sentidos, fabricando interpretações, a produção documental no Brasil praticou uma recusa desse tipo de locução já experimentada em outros países nos anos 50 e 60, período crucial não apenas para o documentário mas para o cinema em geral. 1 Professora do Programa de Pós-Graduação da escola de Comunicação da UFRJ.

Os pioneiros do cinema direto americano iniciaram no final dos anos 50 umas das grandes mudanças no modo de filmar e montar documentários partindo de uma crítica radical ao que eles consideravam uma estética marcada pela herança do rádio. Filmes que eram absolutamente compreensíveis sem a imagem e que eram ininteligíveis sem a locução. Eles apostaram nas possibilidades narrativas da imagem optando pelo sincronismo entre imagem e som de planos seqüências que capturavam personagens em movimento, acontecimentos em processo. Isso só foi possível porque eles batalharam também para modificar a tecnologia disponível na época e atingir o que, para eles, era o ideal de uma equipe de filmagem: um cinegrafista e um técnico de som. Assim, puderam abolir o off em muitos filmes; em outros reduziram-no a intervenções curtas, apenas contextualizadoras, distantes das interpretações do documentário clássico. Já o documentário francês do pós-guerra não abole a narração, mas inventa modos distintos de utilizar o off, fazendo indiretamente uma crítica à tradição. O Cinema Direto lutou de forma mais consciente por um outro modo de filmar e narrar havia uma forma dominante e Robert Drew, Richard Leacock, D. A. Pennebaker e Al Maysles queriam fazer filmes que privilegiavam a visão e não a audição do espectador, e isso no interior mesmo da televisão. A experiência de Jean Rouch na década de 50 na África foi mais intuitiva e feita pouco a pouco, a medida que se deparava com diferentes realidades. Não havia um desejo de ir contra uma estética instituída; havia, sim, uma vontade furiosa de filmar o que via. Fez assim o que achava que tinha de ser feito, e o que era possível fazer, com um equipamento precário e não sincrônico. Precariedade que acabou contribuindo para o cineasta inventar, ao lado dos amigos africanos que encontrou no percurso, uma obra radicalmente original, fazendo, entre outras coisas, um uso inédito da póssincronização, aproveitando a tradição oral dos africanos. Montou o filme sem som e sonorizou-o mais tarde com comentários e diálogos improvisados pelos próprios personagens ao assistir as imagens, transformando um espaço sonoro normalmente utilizado pela dublagem de um texto previamente escrito em um espaço vivo, cheio de tensões, não programado, em que diferentes registros de fala interagem repletos de ironias, auto-críticas, humor. A recusa atrasada da locução clássica pelo documentário brasileiro espanta diante de toda a circulação, contaminação e trocas entre metodologias, estéticas e éticas

de cinematografias de diferentes países no período moderno do cinema. Os documentários que surgem com o Cinema Novo são marcados, em muitos aspectos, por esses novos movimentos: deixam de lado o tripé, utilizam som direto, realizam filmagens sincrônicas e registros sem intervenção da equipe. Um filme como Opinião Pública (Arnaldo Jabor/1965), por exemplo, é repleto de seqüências em que a câmera acompanha as conversas dos personagens sem intervir; imagens e sons que estabeleceriam, em princípio, uma relação mais aberta com o espectador não fosse a narração que irrompe em muitos momentos para imprimir uma direção ao que vemos e ouvimos no filme. Creio que a permanência desse tipo de locução deve-se à dimensão política dos filmes, que deveriam ser claros em relação à mensagem que queriam transmitir. Os filmes documentais do Cinema Novo recusavam a ambigüidade que as seqüências sincrônicas em plano-seqüência podiam conter, favorecendo a manutenção do off clássico. Praticamente não há, no cinema brasileiro desse período, usos diferenciados da narração. O filme Câncer, de Glauber Rocha, filmado em 1968, é uma das poucas exceções da década de 60, mas ele é, na verdade, montado em 1972. A intervenção da voz contundente do diretor no inicio de Câncer inicia uma forma de manifestação artística que será trabalhada nas obras posteriores de Glauber e especialmente em Di/Glauber (1977). Ensaio fílmico e a retomada de imagens já existentes: o cinema de Chris Marker Um outro caminho fabricado pelo cinema francês dos anos 50 que nos interessa especialmente aqui é aquele que o crítico francês André Bazin define, já em 1958, como ensaístico, ao falar especialmente do filme Lettre de Sibérie (1957), de Chris Marker. Eu vos escrevo de um país distante diz Marker no início do filme, abrindo um campo de possibilidades para o documentário, que até então desconhecia, ou conhecia mal, inflexões subjetivas, autobiográficas, epistolares. Estive em Cuba, e trouxe essas imagens desordenadas. Para classificá-las fiz esse filme-homenagem diz Agnès Varda poucos anos depois em Saudações Cubanos (1963), uma espécie de filme-carta endereçada aos cubanos e ao mundo por uma viajante seduzida por tudo que viu. Se hoje

essas dimensões estão cada vez mais presentes na produção documental contemporânea, nos parece importante rever filmes que, às margens do cinema dominante, retiraram o documentário da paralisia em que ele se encontrava nos anos 50. O que diferencia Chris Marker e Agnès Varda, ambos atuantes desde os anos 50, dos diretores do Cinema Direto e do chamado Cinema Verdade de Jean Rouch é o fato deles manterem a narração em off, utilizando-a porém de modo ensaístico, essa forma híbrida filiada à literatura, sem regras nem definição possível, mas com o traço específico de misturar experiência de mundo, da vida e de si. Lettre de Sibérie contém a primeira grande critica explícita aos poderes e limites da locução clássica do documentário através de um comentário em que a subjetividade do cineasta está absolutamente presente. Marker simula três textos diferentes para a mesma seqüência de imagens registradas na cidade de Irkutsk, na Sibéria. Um texto crítico ao comunismo, um favorável ao regime soviético e um terceiro mais descritivo, em tom mais neutro. Todos aderem sem problemas ao que vemos. Marker mostra, assim, ao espectador de que forma o que é dito no off orienta a percepção do espectador. Sugere que é possível provar inúmeros aspectos da realidade utilizando essa metodologia e estética. Nessa seqüência, o espectador experimenta de fato o quanto um certo tipo de narração pode ser autoritário, obrigando a imagem a exprimir coisas que ela jamais exprimiria caso não houvesse a locução. Portanto, é também por meio da palavra, da narração em off, que se dá o questionamento da relação entre imagem e locução, diferindo da forma como essa problematizacão se deu no Cinema Direto e no Cinema Verdade. Além disso, a narração é também fundamental em uma outra operação que Marker pratica desde cedo na sua trajetória. Trata-se da retomada e manipulação de imagens alheias, realizadas por outros, mas também de imagens de arquivos, misturadas àquelas que ele mesmo captou. A trilha sonora imprime a esse material impuro uma distância, desnaturalizando o que estamos vendo e revelando a natureza imagética da imagem. O filme transforma-se assim no lugar de conexão entre todas elas e de ressonância com os acontecimentos do mundo. Apropriar-se criticamente de um material pré-existente como faz Marker é uma característica essencial do ensaio tal como definiu Lukács: um gênero literário que reorganiza o que já existe, pois o que importa não são as

coisas, mas a relação entre elas 2. Ao mesmo tempo, converge com um movimento no campo das artes plásticas dos anos 70 que é o da emergência da apropriação das imagens, o fato de um artista retomar por conta própria imagens já possuindo significação e identidade estabelecidas, e dotá-las de uma significação e identidade novas. 3 Em Sans Solei (1982), um dos filmes mais emblemáticos de Chris Marker, a distância que o comentário mantém em relação às imagens é reflexiva, nostálgica, irônica. A voz tensiona a diferença temporal entre a imagem no momento da captura e depois na montagem, entre presente, passado e futuro, entre visão atual do espectador e comentário retrospectivo. É o filme onde Marker vai mais longe no questionamento das imagens pois a própria presença do filme diante do olhar do espectador é colocado em questão pela voz off, já nos primeiros momentos: A primeira imagem da qual ele me falou é a das três crianças em uma estrada na Islândia em 1965. Ele me dizia que era para ele a imagem da felicidade e também que ele havia tentado várias vezes associa-la a outras imagens mas que não tinha dado certo. Ora, é essa imagem que estamos vendo; que filme é esse então? E a narração continua: Será necessário que eu a coloque um dia sozinha no início de um filme, seguindo de uma tela negra. Se as pessoas não virem a felicidade na imagem, ao menos verão o negro. Portanto, a projeção desse filme futuro, impossível, acaba de começar. Mais a frente ele dirá: Na Islândia, coloquei a primeira peça de um filme imaginário. Naquele verão encontrei três crianças na estrada e um vulcão saiu do mar. E ainda: Claro que eu não farei jamais esse filme. No entanto, eu coleciono cenários, invento desvios, disponho minhas criaturas favoritas, e dou a ele até um titulo, o de uma das melodias de Moussorski justament: Sans soleil. Assim, a voz compartilha da visão do espectador expressando uma presença que recusa às imagens, mas também como artifício porque ela também é passado. Em Sans soleil, a comunicação em rede substitui a causalidade linear, criando pontes entre a distância geográfica e a distancia temporal do que vemos na imagem. Uma concordância de tempos que reúne as imagens do Cabo Verde e da Guinée Bissau, do Japão e da Islândia. Na verdade, não se trata nem de tempo nem de espaço mas de uma 2 Citado por Adorno em O ensaio como forma, in Notas de Literatura 1. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, p. 16. 3 Arthur Danto, L art contemporain et la clôture de l histoire, in Y. Ishagpour, Orson Welles. Paris: Pol, p. 757.

memória onde tudo comunica, onde um olhar africano pode lembrar um olhar japonês. O filme leva o espectador a voltar do seu presente atual ao presente passado das imagens, e também ir em direção ao futuro, de onde ele as vê e de onde ele vai se lembrar. Nesse movimento, se tramam uma visão compartilhada, uma memória comum e se prolonga o devir das imagens. Ensaio fílmico e humor: o cinema de Agnès Varda Se Chris Marker é o primeiro cineasta a fazer uma ficção quase inteiramente de fotografias - La Jetée (1962) -, Agnès Varda é quem, um ano depois, retoma esse mesmo dispositivo formal deslocando-o para o campo do documentário. Convidada pelo Instituto Cubano da Arte e da Indústria Cinematográficas (ICAIC) para passar alguns meses em Cuba, Varda leva consigo duas máquinas fotográficas e o projeto de fazer um filme a partir das imagens capturadas na ilha 4. Das três mil fotos obtidas, 1500 se transformam em Salut les cubains (1963). De imediato o que surpreende nessa pequena obra prima do documentário moderno é o modo como Varda extrai cinema de imagens paradas através de uma montagem que nos faz ver o movimento, mostrando já no início dos anos 60 o quanto o cinema tinha a ganhar associando-se a outros procedimentos técnicos. Nas duas mais belas seqüências do filme, o ritmo da trilha sonora e pequenas fusões nas imagens restituem ao filme o que a imagem parada poderia lhe tirar. Na primeira, Beni Moré dança e canta uma música inspirada nos cantos camponeses. Na segunda, a cineasta Sarita Gomez e outros técnicos do ICAIC dançam o cha-cha-cha. É como se essas seqüências tão cheias de graça contivessem, ainda intocados por tudo o que aconteceu depois, o potencial de transformação trazido pela revolução cubana no início dos anos 60, a possibilidade de outras formas de vida e política, a fabricação de um socialismo afro-cubano (Varda) inédito, distante de todos os modelos corroídos da esquerda de então. Contudo, o que mais chama a atenção em Salut les cubains são as intervenções sonoras da própria Varda, as primeiras da sua trajetória fílmica. Ela divide os 4 Varda já era conhecida pela realização do longa-metragem Cléo de 5 a 7 e foi recomendada ao ICAIC por Chris Marker, que realizou Cuba si em 1960.

comentários em off nada convencionais do filme com Michel Piccoli e pontua com certas frases a narração do ator. Saúdo os revolucionários que enjoaram diz, quando Piccoli conta a travessia dos guerrilheiros do México à Cuba em um barco que enfrentou todo tipo de riscos; mais a frente, retoma a palavra: saúdo os revolucionários líricos, e ainda: saúdo os revolucionários românticos. Nos curtas iniciais da diretora - O saisons ô châteaux (1957) e Du côté de la côte (1958) -, o comentário é realizado por outras pessoas e mantém características bastante clássicas, embora os textos não sejam didáticos e já tenham um certo humor. L Opéra-Mouffe (1958) é um pequeno musical sobre a rua Mouffetard sem narração. Trata-se, segundo a diretora, do seu primeiro documentário subjetivo, mas o filme é bem mais sobre as pessoas que circulam por essa rua de Paris do que sobre Varda propriamente. O filme tem como sub-título caderno de anotações de uma mulher grávida em 1958. Se hoje a narração em off feita por uma mulher pode parecer opção banal, é fundamental lembrar que esse procedimento inexistia na tradição do cinema documental. Desde que o documentário tornou-se falado no final dos anos 20, desde que as imagens tornaram-se ilustrações de um comentário, que a voz que narra é uma voz masculina. Em Salut les cubains Varda não apenas ousa falar mas expressa no que diz engajamento, afetividade e humor. Reivindica para si o filme, distanciando-se de qualquer objetividade, deixando claro que se trata de uma certa maneira de olhar o mundo em um determinado momento da história. Agnès Varda é quem, ao lado de Jean Rouch, traz para o documentário humor e leveza; e ao lado de Rouch e Marker, paradoxos e contradições, características desprezadas por essa forma de cinema séria e com uma função social a cumprir. Esteticamente, Varda está mais próxima do cinema de Marker na forma de realizar ensaios cinematográficos. O ponto de partida pode ser uma país em processo revolucionário, um tio distante (Uncle Yanco - 1967), os comerciantes da sua rua, uma foto antiga (Ulysse -1982), as fotos de outros (Ydessa, les ours et etc 2004), a atividade de catar (Les glaneurs et la glaneuse- 2000). Ao final de Daguerréotypes (1975), em que filma a lentidão e a paciência do trabalho diário dos artesãos, comerciantes e vendedores vizinhos a sua casa, a cineasta se pergunta se as imagens que realizou são uma reportagem, uma homenagem, um ensaio.... E conclui: Em todo o caso é um filme que

eu assino Agnès.... Assim é o tipo de articulação que Varda estabelece entre a sua subjetividade e as coisas e pessoas que filma. Ela constrói dispositivos de filmagem para se liberar de suas histórias pessoais, dos seus dramas, dos seus segredos, e capturar o que surge do seu encontro com o mundo. Não são poucas as vezes que Varda insiste na idéia de que o que lhe interessa são os outros, e quando ela está em questão, quando vemos seus filhos, sua casa, suas mãos, seu corpo, é sempre em relação ao que ela não é, a um fora que lhe seduz e com condições de modifica-la por ser justamente exterior a ela. Essa é a forma que ela inventou para se desprender de si, transformando a si e sua maneira de ver o mundo. Mesmo quando parte de algo que lhe é muito caro, como é o caso da foto tirada por ela em 1954, transformada em dispositivo de filmagem para a realização de Ulysse, em 1982. Ao invés de extrair cinema de muitas imagens fixas, como no filme de Cuba, Varda trabalha agora com apenas uma fotografia, investigando os elementos que compõem essa imagem imóvel: um homem nu de costas olhando o mar, uma criança nua sentada na areia e uma cabra morta. Tal como uma arqueóloga, ela quer decifrar os diferentes mundos que essa foto abriga: Será que eu sei o que me passava pela cabeça há 28 anos ao fazer essa foto? Do que nos lembramos precisamente ao ver uma imagem do passado Trata-se de um filme em que assistimos a ação de tentar alguma coisa e ao mesmo tempo os resultados da tentativa propriamente dita 5. O homem, um egípcio, diretor de arte da revista Elle em 1982, recorda-se de pouca coisa. Não da foto em questão, mas da timidez de posar nu, da desenvoltura de Varda na direção da cena, da criança, que não andava. Não me lembro dessa pessoa diz, ao ver sua própria imagem. O garoto, Ulysses, livreiro em Paris, não se lembra de nada, mesmo tendo feito na época um desenho a partir da fotografia. Para ele, a imagem é ficção. É a minha versão dos fatos, diz Varda, e não a dele. A cabra morta virou pó. E o que era real nesse 9 de maio de 1954?, pergunta a cineasta: a derrota da França em Dien Bien Phu nas atualidades cinematográficas, as novidades culturais, artísticas, da moda... Mas tudo o que diz, Varda adverte, não é de memória, foi obrigada a vasculhar nas atualidades cinematográficas e nos jornais desse dia. 5 Dois aspectos semânticos do termo ensaio entre vários outros, como lembra Alain Ménil, Entre Utopie et Herésie: quelques remarques à propos de la notion d essai, in Liandrat-Guigues, Suzanne (dir.), in L essai et le cinema. Champ Vallon, 2004, p. 95.

Em outras palavras, nada do que vimos no filme (anedotas, interpretações e histórias) aparece na imagem fotográfica. A imagem está aí, e isso é tudo, constata Varda. O que não significa uma descrença nostálgica da cineasta nas imagens como um todo, mas uma aceitação da natureza precária, lacunar e enigmática de uma imagem. A imagem não é tudo mas está longe de ser nada. O filme nos mostra com vigor essa verdade simples, que, apesar de todas as insuficiências, é possível arrancar dela aprendizado, associando-a com outras imagens, outros depoimentos, outras percepções de mundo, em suma, trabalhando-a na montagem. Por isso Ulysse não é, em absoluto, uma busca do tempo perdido, mas um filme voltado para o presente da foto tornada cinema e para o futuro de Varda cineasta. É menos a exploração da memória e do passado, que intervém como dispositivo de base, e mais a narrativa de um aprendizado do trabalho do tempo e das singularidades da imagem. O essencial portanto não é lembrar, mas aprender. Aprender nos diz Deleuze - é considerar uma matéria, um objeto, um ser como se emitissem signos a serem decifrados... Não existe aprendiz que não seja egiptólogo de alguma coisa 6. *** Os ensaios fílmicos de Marker e Varda nos ajudam a pensar e estender as possibilidades estéticas do documentário contemporâneo e particularmente vislumbrar novos usos da narração. Se o ensaio é, como afirma Adorno, uma forma literária que se revolta contra a obra maior e resiste à idéia de obra-prima que implica acabamento e totalidade, podemos pensar que é contra a maneira clássica de se fazer documentário que os filmes ensaísticos se constituem. São filmes em que essa forma surge como máquina de pensamento, como lugar e meio de uma reflexão sobre a imagem e o cinema, que imprime rupturas, resgata continuidades, traduz experiências. Se olharmos a história do documentário moderno brasileiro desse ponto de vista, veremos que alguns filmes à margem da produção mais corrente do início dos anos 70 para cá são marcados por essa forma expressiva: Congo, de Arthur Omar, Di/Glauber, de Glauber Rocha, Ilha das Flores, de Jorge Furtado, Mato Eles, de Sérgio Bianchi. São obras em que a intervenção 6 G. Deleuze, Proust e os signos. São Paulo: Forense Universitária, 2003, p. 4.

dos cineastas na relação com os objetos é central e explícita; filmes realizados a partir de um material imagético heterogêneo, e nas quais o que importa não são as coisas propriamente, mas a relação entre elas. Mais recentemente, são os filmes ligados à chamada produção subjetiva ou performática que adquirem mais claramente características ensaísticas e recuperam a narração em off para o documentário, fabricando associações inauditas do espaço sonoro do cinema com o espaço visual. Seams (1997), de Karin Ainouz e Santiago (2007), de João Salles, são exemplares dessa forma de cinema no Brasil. Ainouz realiza nesse curtametragem uma reflexão sobre a cultura machista brasileira através da própria experiência de ter sido educado apenas por mulheres nordestinas, suas tias e a avó. João Salles faz de um filme inicialmente sobre o mordomo de sua família um exercício de pensamento sobre sua prática de filmar e sobre as relações entre cineasta e personagem de uma maneira mais geral. Obras que complexificam a relação entre a imagem e o som e ampliam o repertório estético do campo do documentário. Não, a narração em off não é, em si, algo a ser evitado; na verdade, o que os ensaios fílmicos nos mostram é que não há normas, regras, elementos estéticos a serem evitados; ou para retomar, subvertendo, uma fórmula célebre de André Bazin: não há filmagens nem montagens proibidas. Apropriação, citação, deslocamentos de imagens pré-existentes, decupagem de materiais pré-formados, conversas, entrevistas, especialistas, personagens, animação, reconstituição, ficção: a pertinência desses recursos se verifica pela maneira como eles são articulados nos filmes, pelos efeitos que as imagens e sons produzem, enfim, pela qualidade das obras.