LUDWIK FLECK E GEORGES CANGUILHEM: UM PROBLEMA DE HISTÓRIA INTELECTUAL COMPARADA

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Transcrição:

LUDWIK FLECK E GEORGES CANGUILHEM: UM PROBLEMA DE HISTÓRIA INTELECTUAL COMPARADA Tiago Santos Almeida Doutorando em História Social na Universidade de São Paulo tiagoalmeida@usp.br Resumo: A historicização das ciências é uma das principais conquistas da filosofia contemporânea. Na primeira metade do século passado, as estratégias de Gaston Bachelard para afirmação do caráter histórico das verdades científicas deram forma e conteúdo à filosofia da ciência feita na França. Embora esse esforço de historicização tenha alcançado resultados excepcionais naquele país, não devemos dar cores nacionais ao problema: Thomas Kuhn apresentou ao mundo o polonês Ludwik Fleck, que em 1934 já reconhecia a necessidade da história das ciências para a realização de uma crítica à teoria do conhecimento. Nesse breve texto, apresentaremos algumas semelhanças entre a crítica de Fleck e aquela realizada pelo filósofo francês Georges Canguilhem, que sempre se reivindicou da filosofia bachelardiana. Palavras-chave: Georges Canguilhem Ludwik Fleck Epistemologia Teoria do Conhecimento História das Ciências O verbete História da história da medicina do Dicionário do pensamento médico chama atenção para o fato de que, em diferentes pontos, Fleck está próximo das posições que Canguilhem desenvolveria de maneira independente um pouco mais tarde 1. No entanto, a proximidade, do ponto de vista da teoria da história das ciências, entre as obras de Ludwik Fleck (1896 1961) e Georges Canguilhem (1904 1995) permanece um problema pouco explorado. De fato, o rastreamento das semelhanças entre diversos aspectos do pensamento desses médicos historiadores sem que um houvesse tomado conhecimento do outro 2 é um problema relativamente novo, construído pela história intelectual, localizado no entrecruzamento da teoria da história das ciências e da história da historiografia científica. 1 SINDING, Christiane. Histoire de l histoire de la médecine. In : LECOURT, Dominique (dir.). Dictionnaire de la pensée médicale, p. 577. 2 Segundo Jean-François Braunstein, Canguilhem teria lido apenas um artigo de Fleck: Un nouveau phénomène inflammatoire: la leukergie, publicado em 1947 nos Comptes rendus de la Société de biologie de Strasbourg. Cf. BRAUNSTEIN, Jean-François. Deux philosophies de la médecine: Canguilhem et Fleck, p. 64.

Entre os autores dedicados a esse estudo comparativo das obras de Fleck e Canguilhem, destaca-se o filósofo e historiador francês Jean-François Braunstein, responsável pelo estabelecimento da edição crítica, em cinco volumes, da obra completa de Georges Canguilhem. Para Braunstein, longe de serem superficiais, as similitudes e o air de famille que identificamos entre os dois autores dizem respeito aos pontos centrais de suas filosofias: a crítica da teoria do conhecimento, a concepção de história das ciências, as relações entre ciência e sociedade, até mesmo o questionamento sobre a fundamentação da verdade científica 3. Se a independência na produção dos seus trabalhos determina a natureza comparativa do nosso problema, o esforço de aproximação entre Fleck, o fundador mítico da sociologia das ciências 4, e Canguilhem, bastião da epistemologia histórica, nasce de uma preocupação coletiva em alargar não apenas a compreensão sobre o pensamento desses autores, mas também a compreensão sobre o que é e o que pode ser a história das ciências, qual o seu objeto e como ela deve ser escrita. Esse texto é um produto da firme convicção de que o estabelecimento de uma relação conceitual ou metodológica entre as obras de Fleck e Canguilhem pode ter algum valor tanto para a historiografia das ciências da vida e da medicina quanto para a teoria geral da história das ciências 5. Limitemo-nos, temporariamente, à apresentação de apenas um daqueles elementos que, segundo Braunstein, justificam a aproximação entre Fleck e Canguilhem: a crítica da teoria do conhecimento. É importante dizer que foram preocupações de epistemólogo que levaram Fleck e Canguilhem à história das ciências. Embora o título do livro possa sugerir um trabalho eminentemente histórico, Fleck não hesita em apresentar Gênese e desenvolvimento de um fato científico como um estudo epistemológico 6 no qual a crítica à teoria do conhecimento é realizada através da história das ciências. Braunstein chama atenção para o fato de que, nesse livro, Fleck apresenta um capítulo inicial sobre o surgimento e a história do conceito atual de sífilis para, no capítulo seguinte, investigar as Consequências para a teoria do conhecimento da 3 BRAUNSTEIN, Loc. cit. 4 BRAUNSTEIN, Op. cit., p.62. Braunstein se refere, claro, ao redescobrimento de Ludwik Fleck depois do prefácio do livro de Thomas Kuhn. 5 É o que, no Grupo de Pesquisa em História Intelectual (vinculado ao Laboratório de Teoria da História e História da Historiografia da USP), chamamos de história intelectual da historiografia, um tipo de investigação histórica que toma a historiografia como objeto, mas para realizar um exame crítico sobre as bases do conhecimento histórico. 6 FLECK, op. cit, Prefácio.

história apresentada de um conceito ; ele discorre sobre a descoberta da reação de Wassermann para, em seguida, propor um capítulo sobre os Aspectos epistemológicos da história da reação de Wassermann, indicando que, na obra maior de Fleck, a história das ciências aparece como uma etapa necessária da investigação epistemológica. É preciso lembrar que o livro de Fleck começa com uma pergunta desconcertante, que problematiza aquilo que tomamos por quase natural: O que é um fato?. Em Gênese e desenvolvimento de um fato científico, o alvo de Fleck é justamente a noção do fato como sendo a correspondência lógica entre a proposição e o dado, o fato descoberto e cuja verdade é legitimada pela sua evidência. Ao invés disso, Fleck propõe o fato científico construído 7, sobre o qual só podemos nos informar a partir da sua historicidade intrínseca: não se chega a um conceito de sífilis sem uma abordagem histórica, afirma Fleck 8. Para ele, essa historicidade necessária à ciência exige uma revisão de toda teoria do conhecimento que se apresente como mera crítica aos métodos para se chegar ao fato 9. Difícil não pensar no filósofo francês René Descartes, para quem o saber não possui história e cuja teoria do conhecimento, como nos lembra Gerard Lebrun 10, jamais poderia se passar por uma verdadeira epistemologia. Afinal, se Descartes desceu até o domínio particular da matemática, não foi com o objetivo de responder a pergunta Por que é assim e como se sabe que é assim? questões propriamente epistemológicas, mas para retirar da matemática exemplos para o Método. As teorias do conhecimento clássicas tinham como objeto uma ciência que não existia senão para os filósofos. Para Fleck, a atenção à prática real das ciências que ele mesmo experimentou em sua atuante carreira como médico e microbiologista exige uma teoria do conhecimento que não se limite à busca por legitimação, com provas objetivas e construções lógicas, de um fato científico, mas que assuma a tarefa de estabelecer os vínculos históricos que presidem a construção dos fatos científicos: qualquer teoria do conhecimento sem estudos históricos ou comparados permaneceria um jogo de palavras vazio, uma 7 FLECK, Gênese e desenvolvimento de um fato científico, p. 132: Podemos definir o fato científico provisoriamente como uma relação de conceitos conforme o estilo de pensamento, que, embora possa ser investigável por meio dos pontos de vista históricos e psicologia individual e coletiva, nunca poderá ser simplesmente construída, em sua totalidade, por meio desses pontos de vista. 8 FLECK, op. cit, p. 62. 9 FLECK, op. cit, Prefácio. 10 Cf. LEBRUN, A ideia de epistemologia, p. 130.

epistemologia imaginária (Epistemologia imaginabilis) 11. Impressiona a semelhança com o pensamento de Canguilhem, para quem o interesse pela história das ciências é uma vocação da epistemologia, que, de fato, sempre foi histórica. Canguilhem explica: No momento em que a teoria do conhecimento deixou de ser fundada sobre uma ontologia, incapaz de dar conta das novas referências adotadas pelos novos sistemas cosmológicos, é nos próprios atos de saber que devemos buscar não sua razão de ser, mas seus meios de se tornar 12. Vemos aparecer a mesma crítica à teoria do conhecimento como simples legitimação científica, apontando para a verdadeira tarefa epistemológica de investigação dos processos históricos que permitem a edificação das ciências. As formulações teóricas distintivas da chamada Escola Francesa de Epistemologia Histórica (cuja espinha dorsal é composta pelas obras de Gaston Bachelard, Georges Canguilhem e Michel Foucault) são tentativas de responder a pergunta que bem poderia ter sido formulada por Fleck: Como uma ciência particular produz, ao longo de sua história, os seus próprios critérios de racionalidade?. A obra de Canguilhem criou, na França, uma espécie de interdição intelectual à compreensão da História das Ciências e da Epistemologia como disciplinas independentes uma da outra, daí a conhecida fórmula: Se a epistemologia é histórica, a história das ciências é necessariamente epistemológica 13. E, também aqui, é o conhecimento sobre as regras de produção das verdades científicas, enfim, a própria história das ciências, que serve como ponto de apoio para a crítica da teoria do conhecimento. Segundo Pierre Macherey, filósofo próximo de Georges Canguilhem e que voluntariamente se inscreve em sua tradição epistemológica, a primeira novidade trazida pelos trabalhos de Canguilhem à história das ciências foi uma exigência elementar e, por isso mesmo, frequentemente negligenciada: o respeito escrupuloso à realidade da ciência real : Os novos epistemólogos [o artigo citado é de 1964] são semelhantes aos etnólogos, que vão ao campo : eles vão ver a ciência de perto, e não aceitam falar daquilo que eles ignoram, ou daquilo que conhecem apenas de segunda ou terceira mão (infelizmente é o caso de Brunschvicg) ou percebem de fora, quer dizer, de longe. Essa simples exigência de honestidade e de conhecimento científico frente a frente com a realidade de que se fala subverteu os problemas da epistemologia clássica. Os epistemólogos modernos simplesmente descobriram que as coisas não se 11 FLECK, op. cit, p. 62. 12 CANGUILHEM, Le rôle de l épistémologie dans l historiographie scientifique contemporaine, p. 20. 13 LECOURT, L épistémologie historique de Gaston Bachelard, Introdução. Essa é a dissertação de Mestrado de Dominique Lecourt, realizado sob a orientação de Georges Canguilhem.

passam nas ciências como nós acreditávamos, e em particular como acreditavam os filósofos. 14 Os trabalhos de Canguilhem condenavam os dois principais tipos de história das ciências escritos até então: a história contingente, na medida em que eliminava a impressão da história como uma sucessão de descobertas e invenções, mostrando todo o trabalho de maturação conceitual e experimentação racional que fundamenta o discurso científico, mas também condenava a história lógica, que seguia pela determinação dos avanços científicos como progressos da razão, como se a ciência se resumisse ao processo de resolução de problemas e acúmulo contínuo de conhecimentos. Foi essa crítica da teoria do conhecimento através da história das ciências que, no início dos anos 1960, levou um grupo de jovens filósofos reunidos em torno de Louis Althusser (basta citar Dominique Lecourt, Alain Badiou, Étienne Balibar, Michel Fichant e Pierre Macherey) a acreditar ter encontrado em Canguilhem que não era marxista, mas um leitor atento de Marx o caminho seguro para a aproximação entre a ciência da história e a epistemologia. Segundo esses filósofos, que se reivindicavam do marxismo, a profunda unidade entre epistemologia e história das ciências na obra de Canguilhem teria permitido uma concepção verdadeiramente racional dos seus objetos, na medida em que conduziu o racionalismo do idealismo para o materialismo. A obra de Canguilhem emerge de um contexto intelectual de crítica às chamadas filosofias do imobilismo (em especial o positivismo, o espiritualismo e o idealismo), crítica que se estabelece em função do reconhecimento da solidariedade entre as teorias do conhecimento, em especial o idealismo e o empirismo, e a teoria continuísta da história das ciências. A obra de Gaston Bachelard e Canguilhem faz questão de esclarecer que, ao estabelecer uma ligação tão íntima entre o desenvolvimento da epistemologia e a elaboração de estudos de historiografia científica, nos inspiramos nos ensinamentos de Gaston Bachelard 15 era um ataque em particular à filosofia de Émile Meyerson. Como a maioria dos filósofos apoiados nas teorias clássicas do conhecimento no início do século XX, Meyerson estava convencido da continuidade entre o conhecimento comum e o conhecimento científico, pois acreditava na identidade do espírito humano nas suas múltiplas manifestações, e atribuía a aparência de descontinuidade das novas teorias 14 MACHEREY, La philosophie de la science de Georges Canguilhem: Epistémologie et Histoire des Sciences, p. 63. 15 CANGUILHEM, Le rôle de l épistémologie dans l historiographie scientifique contemporaine, p. 20.

científicas (como a Teoria da Relatividade, sobre a qual Bachelard e Meyerson tinham divergências inconciliáveis) à ignorância filosófica dos cientistas. Meyerson partiu de uma teoria do conhecimento apoiada no caráter imutável da Razão e construiu uma História das Ciências que servia para justificar as novas teorias científicas a partir das categorias a priori da razão humana. Vê-se bem o caráter mercenário que a História das Ciências tem para uma filosofia assim constituída. Afinal, se esse programa atribui um papel filosófico à História das Ciências, também a submete à obrigação de comprovar a teoria do conhecimento da qual parte o filósofo, o que abre espaço para as generalizações apressadas e conduz à desatenção em relação à novidade essencial reivindicada pelas ciências contemporâneas, à desatenção em relação à realidade da ciência real. A exigência historiográfica decorrente dessa teoria do conhecimento consiste, como resumiu Hélène Metzger, em deduzir os fatos de seus antecessores, estabelecendo como esses fatos derivam obrigatoriamente uns dos outros, enfim, demonstrando ou aspirando a demonstrar, que eles são logicamente necessários 16. Para as filosofias do imobilismo, é mais fácil sujeitar a prova histórica à teoria do conhecimento que abrir a filosofia à história das ciências, como fizeram Fleck e Canguilhem, ou Kuhn e Bachelard. Certamente podemos incluir Fleck entre esses novos epistemólogos que surgem na primeira metade do século XX e que, segundo Macherey, são semelhantes aos etnólogos, mas não podemos deixar de reconhecer que, apesar da similitude entre as críticas de Fleck e Canguilhem à teoria do conhecimento, estamos diante de dois fenômenos distintos da cultura intelectual. A obra de Fleck nasce no interior de uma tradição em filosofia da medicina que emerge na Polônia no final do século XIX, dedicada ao estatuto epistemológico do saber médico, à classificação das doenças e à interação entre ciência e sociedade 17. É desse lugar institucionalmente reconhecido à história e à filosofia da medicina no interior da formação médica que sairá a crítica de Fleck à condição a-histórica da teoria do conhecimento do positivismo lógico e, em particular, ao pensamento de Carnap e ao Círculo de Viena. Uma primeira hipótese, ainda em sua primeira formulação, é que a similitude entre as filosofias de Fleck e Canguilhem se explica por uma reação independente, 16 METZGER, La philosophie d Émile Meyerson et l histoire des sciences, p. 100. 17 SINDING, Histoire de l histoire de la médecine, p. 577.

isto é, no interior das suas respectivas tradições filosóficas, à pretensão das teorias clássicas do conhecimento em fundar uma ciência da ciência, uma ciência situada fora das ciências, mas de onde pretenderia determinar as regras do conhecimento científico. Segundo Dominique Lecourt, é nesse ponto que se observa mais claramente o pressuposto idealista do positivismo, isto é, na pretensão de isolar uma essência comum a todas as ciências que permita falar do conhecimento científico como um todo, a fim de elaborar uma teoria do conhecimento unitária, em vez de procurar as condições histórico-epistemológicas que determinam a construção das verdades e dos fatos científicos no interior de cada disciplina. Aí, pouco importa se, como na filosofia idealista, uma ciência particular é encarregada de fornecer as categorias, ou, como no positivismo lógico, se faça da epistemologia uma espécie de encruzilhada, onde uma série de disciplinas heteróclitas com pretensão científica vêm conjugar seus conceitos discordantes, a fim de constituir uma teoria geral das ciências. 18 Uma ciência pensada dessa forma seria sempre uma ciência de filósofos, como ironizava o filósofo Bachelard, e nunca a ciência dos cientistas, ou seja, a história das ciências nunca estaria totalmente no reino dos fatos científicos, por mais que fizesse uso deles. REFERÊNCIAS SINDING, Christiane. Histoire de l histoire de la médecine. In : LECOURT, Dominique (dir.). Dictionnaire de la pensée médicale. Paris : PUF, 2004. (Quadrige). BRAUNSTEIN, Jean-François. Deux philosophies de la médecine: Canguilhem et Fleck. In : A. Fagot-Largeault, C. Debru, M. Morange (Orgs.). Philosophie et médecine. En hommage à Georges Canguilhem. Paris: Vrin, 2008 FLECK, Gênese e desenvolvimento de um fato científico: Introdução à doutrina do estilo de pensamento e do coletivo de pensamento. Tradução de George Otte e Mariana Camilo de Oliveira. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. LEBRUN, Gérard. A idéia de epistemología. In:. A filosofía e sua história. Trad. de Maria Adriana Camargo Cappello. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 129-144. CANGUILHEM, Le rôle de l épistémologie dans l historiographie scientifique contemporaine. In :. Idéologie et rationalité dans l histoire des sciences de la vie. 2ª ed. rev. e cor. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 2000. (Problemes & Controverses). 18 LECOURT, Pour une critique de l épistémologie, p. 09.

MACHEREY, La philosophie de la science de Georges Canguilhem: Epistémologie et Histoire des Sciences. La Pensée, n 113, Fev., 1964, p. 62-74. METZGER, Hélène. La philosophie d Émile Meyerson et l histoire des sciences. In:. La méthode philosophique en histoire des sciences. Paris: Fayard, 1987. LECOURT, Dominique. Pour une critique de l épistémologie. Paris: Maspero, 1972.