Modelos de abordagem da obra de José Saramago



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SBORNÍK PRACÍ FILOZOFICKÉ FAKULTY BRNĚNSKÉ UNIVERZITY STUDIA MINORA FACULTATIS PHILOSOPHICAE UNIVERSITATIS BRUNENSIS L 29, 2008 Mioara Caragea Modelos de abordagem da obra de José Saramago A obra de Saramago, particularmente complexa, abre-se a uma multiplicidade de interpretações e de abordagens concorrentes e complementares: desde a interpretação pós-moderna à análise hermenêutica ou intertextual. O próprio autor, nas suas intervenções, sugere várias pistas de abordagem dos seus romances expressando às vezes a sua opinião acerca das leituras críticas dos mesmos. Saramago rejeita, por exemplo, o paradigma teórico pós-moderno aplicado à sua obra, considerando o pós-modernismo um mero rótulo literário com o qual não se identifica 1. A abordagem pós-moderna oferece, porém, perspectivas particularmente fecundas sobre a escrita romanesca, motivo pelo qual é largamente praticada hoje. Outro motivo é sem dúvida o seu estatuto de paradigma dominante. A aversão de Saramago de se ver rotulado como um escritor pós-moderno levanta por isso um interessante problema de ética literária: por um lado, o crítico utiliza largamente extractos da obra que sirvam os seus propósitos teóricos, por outro lado, ignora deliberadamente os posicionamentos teóricos do autor. O autor continua a ser, para certa crítica, aquela entidade ambígua, parte génio, parte criança, imaginada pelos românticos. Parte génio, pela inventividade e complexidade da obra, parte criança, pela incapacidade estatuída de ter uma distância crítica em relação a um discurso poético produzido sob o império do êxtase criador. A propósito da literatura sul-americana, Jean Franco 2 perguntava-se há alguns anos se é legítimo considerar pós-modernas obras como O Outono do Patriarca de Garcia Marques ou Eu supremo de Roa Bastos. Esses textos são considerados pós-modernos por incluírem muitas características familiares ao pós-modernismo intertextualidade, dissolução das metanarrativas, pastiches que representam uma denúncia do modo como o estado-nação é legitimado por um discurso pedagógico 3. Mas, comentava Jean Franco, a caracterização pós-moderna é uma 1 Comunicação pessoal de Abril, 1997. 2 Franco, Jean, The Nation as Imagined Community, in: H. Aram Veeser, (ed.), The New Historicism, NY and London, Routledge 1989, p. 204-224. 3 Idem, p. 207.

10 Mioara Caragea extrapolação que despreza toda uma história cultural em que o ensaio, a crónica e o documento histórico foram incluídos no romance, uma história de releituras e reescritas 4. Esta observação parece-nos válida também no caso da obra de José Saramago, onde certas características que poderiam ser atribuídas à influência pós-moderna, como o fascínio pela história ou o interesse pelas formas de expressão popular, poderiam ser explicadas por condições e modelos culturais portugueses. Também, a contrafactualidade tão típica do pós-modernismo, o modelo What if?, presente em Saramago como figura geradora da narração, está presente de modo explícito no pensamento modernista português. Substituindo o actual, o que realmente aconteceu, pelo inactual, o que nunca chegou a cumprir-se, diz Saramago, a ficção contará o que Álvaro de Campos, em Pecado original, citado em A Jangada de Pedra, chamava a verdadeira história da humanidade : Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido? Será essa, se alguém a escrever, A verdadeira história da humanidade. Como a referência pós-moderna não pode ser eliminada a propósito da obra de Saramago, é preciso contudo mencionar, se se empreender tal démarche crítica, que, neste caso, o pós-modernismo deve ser entendido mais como uma conjuntura memorial e estética 5, definida por um kunstwollen, a way of operating 6, do que como uma pertença explícita e programática a uma determinada escola ou corrente literária, ideia que o autor, como vimos, recusa. O que é pós-moderno na obra de Saramago é, na realidade, a potenciação de certos processos literários já existentes e praticados há muito tempo, que se tornaram dominantes na literatura actual. O pós-modernismo não é a única tipologia que constitua objecto da adversidade do autor. Saramago é também avesso à inscrição dos seus romances dentro do espartilho dos géneros literários, nomeadamente o do romance histórico. Aqui, aliás, o autor vai ao encontro da crítica literária que adoptou o modelo da metaficção historiográfica contrafactual, destacado por Elizabeth Wesseling 7 e Linda Hutcheon 8. Curiosamente, Saramago teoriza ele próprio um modelo narrativo da escrita metaficcional entendida mais como uma escrita metahistórica, 4 Idem, p. 211. 5 Robin, Régine, Le roman mémoriel: de l histoire à l écriture du hors-lieu, Thèse de doctorat, 3-e cycle, Paris, EHESS 1989, p. 200. 6 Na Apostila ao Nome da Rosa, Uberto Eco escreve: Actually, I believe that postmodernism is not a trend to be chronogically defined, but, rather, an ideal category - or better still, a kunstwollen, a way of operating (Umberto Eco, From Reflections on The name of the Rose, in Mark CURRIE (ed.), Metafiction, London and New York, Longman 1995, p.173). 7 Wesseling, Elisabeth, Writing History as a Prophet. Postmodernist Innovations of the Historical Novel, Amsterdam/ Philadelphia, Johns Benjamins Publishing Company 1991. 8 Hutcheon, Linda, A Poetics of Postmodernism. History, Theory, Fiction, New York and London, Routledge 1988.

Modelos de abordagem da obra de José Saramago 11 porque o quadro da referência é o discurso histórico. Toda a teoria da relação entre ficção e história, largamente elaborada e várias vezes reiterada e matizada, baseia-se em referências ao discurso da Nova História francesa, domínio familiar a José Saramago que até chegou a traduzir um livro de Georges Duby, O Tempo das Catedrais. O pensamento de Saramago é surpreendentemente paralelo ao da Nova História que passou, nas últimas décadas, por um amplo processo de autoreflexão, focalizado sobre a relação da história enquanto discurso construído com a ficção. Como Georges Duby, por exemplo, para quem a história é um tecido amarrotado, coçado, rasgado ( ) com enormes buracos 9, Saramago considera que o discurso histórico deixa inexploradas vastas zonas de obscuridade, espaços de indeterminação e de dúvida, por onde pode e deve entrar o romancista 10. São essas zonas obscuras, essas lacunas da história que o romancista aproveita para implantar o what if ficcional. Curiosamente, por aí, o autor aproxima-se muito mais do que gostaria de reconhecer da narrativa histórica clássica um Walter Scott ou um Alexandre Herculano, que também situava a intriga ficcional no não-dito da história, sem intervir sobre a grande narrativa construída pela historiografia. Num ensaio publicado em 1991 11 e apresentado numa primeira forma numa conferência da Universidade de Lisboa, Douwe Fokkema perguntava-se se Memorial do Convento é ou não um romance pós-moderno. Ao longo duma minuciosa argumentação, o crítico decidiu pela afirmativa, mas curiosamente com base numa premissa errada. Notando que a narrativa histórica propriamente dita, ou seja, a história do rei e da construção do convento, era tratada em tom irónico, até polémico, o comentador pensou que isso representava uma distorção da narração historiográfica oficial, suposta elogiar os feitos dos grandes. Esta premissa talvez válida no caso de outras historiografias nacionais não se aplica contudo no caso da portuguesa, que, desde o século XIX, fustigou o reinado beato e dissipador de D. João V. Longe portanto de contradizer a narrativa historiográfica, Saramago recupera a energia polémica da História de Portugal de Oliveira Martins, dando uma imagem acidamente satírica da historia rerum gestarum, sem falsificar a descrição geralmente aceite do reinado joanino. As hipóteses contrafactuais de Saramago, por mais ousadas que sejam, não perturbam portanto a história dos historiadores; elas limitam-se a introduzir uma instabilidade, uma vibração na história canónica. Desde o ponto de vista da contrafactualidade, essencial para uma definição pós-moderna, os romances de José Saramago parecem-nos por isso apenas moderadamente pós-modernistas. 9 Duby, Georges, Lardreau, Guy, Diálogos sobre a Nova História, Lisboa, Publ. Dom Quixote 1989, p. 37. 10 Saramago, José, La Historia como ficción, la ficción como historia, Debats, nº. 27, 1989, p. 9. 11 Fokkema, Douwe, How to decide whether Memorial do Convento by José Saramago is or is not a postmodernist novel?, Dedalus, nº.1, 1991, p. 293-302.

12 Mioara Caragea Para além da discussão bastante articulada sobre a relação da sua obra ficcional com o discurso histórico, Saramago oferece também uma reflexão aparentemente não sistemática sobre a memória, repetidamente afirmada como o ethos de toda a obra, sob a forma do dever da memória. Apesar de a extensão dos textos dedicados à relação do romance com a história ser visivelmente maior do que a dos textos que comentam o relacionamento mnemónico, a relação com a memória é, em Saramago, primordial, a leitura da história subordinando-se ao que poderíamos chamar uma arte da memória, que supõe um cenário de intervenção sobre uma memória já constituída. Saramago afirma explicitamente que para si o romance e a memória são entidades indissociáveis, situando a sua obra no contexto das ficções que exploram a memória individual, familiar, social, cultural. Os romances obedecem assim a um projecto comum que é um processo de releitura e reinterpretação da memória do passado, de que a história é apenas a parte sistematizada, um primeiro livro, cujas lacunas, erros ou simples espaços de indeterminação exigem uma reescrita ficcional que visa implantar as suas raízes nos lugares elípticos da malha do tecido histórico, parasitando o factual. Longe de pretender apresentar-se como total, esta memória é subjectiva e parcial e abrange aquilo que já foi digerido através da experiência, chegando a integrar um campo de consciência unificado, que se dá a conhecer pela escrita. As peripécias da construção da memória pessoal enformam a organização da matéria ficcional e os romances podem ser lidos como episódios de uma biografia da memória. Um problema que se põe ao crítico da obra do autor português é integrar os romances num quadro de referência comum. A obra pode ser dividida em dois ciclos diferenciados cronologicamente mas parcialmente entremeados: o ciclo histórico e o ciclo ucrónico. Ao primeiro ciclo, historicamente referenciado, pertencem os romances escritos até 1991 (Levantado do Chão, Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, História do Cerco de Lisboa e O Evangelho segundo Jesus Cristo), com a excepção de Jangada de Pedra. Ao ciclo ucrónico, pertencem, com a Jangada de Pedra, todos os romances depois de 1991: Todos os Nomes, Ensaio sobre a Cegueira, A Caverna etc. O que têm de comum esses romances do ponto de vista do autor? É justamente a memória que, na visão de Saramago, une os dois tipos romanescos numa tipologia comum. Os romances são ensaios com personagens, experimentações no mundo do possível. A única diferença consiste no mundo escolhido para a experimentação. Romances como Memorial do Convento ou História do Cerco de Lisboa experimentam em mundos históricos e historiados, romances como Todos os Nomes ensaiam o presente e as suas virtualidades. Tanto uns como outros jogam com os truísmos do comportamento humano, individual e colectivo, só que aqueles falam do acontecido e do registado, ao passo que esses desenvolvem uma história potencial da humanidade. Por aí, Saramago oferece sugestões para uma teoria unificada da sua obra que passaria pela retórica e pela hermenêutica. A primeira vertente valorizaria o papel

Modelos de abordagem da obra de José Saramago 13 da memória no sentido da retórica clássica: como parte intrínseca do discurso, inseparável da inventio, da dispositio e da elocutio. A vertente hermenêutica, por outro lado, relacionaria a memória com o tempo, como processo de interiorização e vivência da temporalidade.