Neiruaitt Norberto de Sousa A partir das palavras do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, quais sejam: O inconsciente é a história não escrita do homem a partir de épocas imemoriais, podemos dizer que: O não escrito é a palavra e falar da palavra, é falar sobre o que nos diferencia dos outros animais. E mais que isto, não interpretá - la ao pé da letra. Interpretar ao pé da letra significa apreender a expressão verbal a um nível psíquico em que sua estrutura e dinâmica apresentam uma indiferenciação inconsciente consciente. A palavra ao ser dita e ao ser interpretada revela a estrutura psíquica, revela uma verdade ou uma ilusão. À psicologia de Jung interessa o diálogo com o inconsciente, é um diálogo dialético no sentido de tese, antítese e síntese. É o que se verifica na situação terapêutica, mas com algo mais amplo e profundo, o tempo do inconsciente não segue o tempo linear dos fatos históricos. No sentido da fala de Jung, o lugar psicoterapêutico se estrutura a partir da palavra, a palavra verdadeira no lugar da ilusão, da mentira, do embuste, produtores de doença mental e sofrimento psíquico. Ao ser humano que busca o sentido perdido de sua vida, este se apresentará mediante o face a face com suas ilusões e suas verdades. O face a face não é algo simples e menos ainda sustentar o olhar em complexidades. A ilusão humana se encontra nas formas coletivas tirânicas e petrificadas ao longo da história da humanidade, mantida por uma sedução instintivamente primária e enganadora. A palavra não é forma, é substância. Por ser substância, a palavra não está imune a um estado tirânico ou petrificado. Nas palavras de Jung a psicologia não pode se submeter à tirania da palavra. Brandão, estudioso de mitologia grega diz que a palavra tirano não é grega, significou em princípio, soberano, rei. Na Grécia o tirano é em princípio um líder aristocrático que
se une a classe média e ao povo para defendê los, mas que por não reconhecer limites constitucionais a seu poder, o tirano acabou por tornar-se um déspota esclarecido. A palavra, tirânica em si mesma, é obstáculo e impedimento, é o reflexo de uma cultura doente, não suporta a estranheza, a alteridade. E a doença é o reflexo de uma sociedade decadente e tudo o que se faz permeado por valores decadentes é dar a esta mesma sociedade mais fôlego e resistência. A palavra é tirânica e obstáculo quando possui poder mágico, possui mana. Jung usa o termo participação mística, que é uma identificação inconsciente para definir o que é mana ou poder mágico. O mago, o médico da selva, tem poder mágico. O mago entende que existe um poder onipotente da natureza e que os deuses vivem nas criaturas, o que o mago não sabe é que o animismo, seu suporte central se ancora nesta identificação inconsciente, que compõe a regência mítica de relações sócio - grupais reveladas em suas relações homogêneas. O mago não elabora, é um representante atuante da natureza. Diferente do mago, o psicanalista, o terapeuta que tem como objeto de estudo o inconsciente, é lhe exigido que tenha conhecimento e predisposição para elaboração e não racionalização dos conteúdos e das forças atuantes do inconsciente que lhe são apresentados. Jung diz que o ser humano na luta em querer diferenciar se da natureza, deste poder mana, desenvolveu um pensamento independente que não mais estava submetido ao efeito emocional da impressão estética. Não estar submetido, quer dizer não estar sob o poder de uma força instintiva, tirânica e natural. Precisamos apreender o sentido das palavras que expressem pensamentos e afetos neste nível estrutural. O logos é algo que se apreende mediante perdas de instintos. Jung identifica o inconsciente com o princípio criador do mundo do qual nasce a consciência. A psique é o que pertence ao psíquico e se estrutura historicamente em camadas. Os arquétipos, a camada mais antiga, com base nos instintos, são estruturas da filogênese, uma vez que se reproduzem espontaneamente como herança, legado, sem a necessidade da tradição. O instinto contém carga libinal e a história da humanidade reflete a tentativa da libido, através de sua transformação, de se libertar da repetição compulsiva
do que é instintual. O diálogo com o inconsciente supõe ser necessário ter conhecimento das representações culturais coletivas e simbólicas da luta da humanidade em diferenciar a consciência do inconsciente. E mais, Jung fala que ao que busca a verdade, a experiência individual em sua ontogênese é mais persuasiva que qualquer tradição, o indivíduo, o sujeito é o sustentáculo da Vida. A personalidade inconsciente não se diferencia dos conteúdos de suas projeções e os elementos que a cercam, e se identifica por participação mística, identificação inconsciente. O auto conhecimento implica trabalhar com as projeções, e trabalhar com as projeções quer dizer dês - animação do mundo, onde há uma lacuna, onde falta o verdadeiro saber, ainda hoje o espaço é preenchido por projeções. Através deste conhecimento o material que obstaculiza é elaborado. Uma psique primitiva não se conhece a si mesma, esta frase de Jung é fundamental em sua psicologia. Os arquétipos e os motivos mitológicos estruturam e dinamizam a psique. Quando falamos de vivências psíquicas, falamos de psique e também que a experiência humana é um acontecimento psíquico. O ser humano e suas relações estruturais do clã e posteriormente estruturais familiares não está descolado do meio natural e posteriormente social em que vive. Nesta relação dialética o ser humano produz ritos, mitos, símbolos, cultura. Os mitos tem a sua origem no arquétipo e são experienciados na história de vida individual. O motivo mitológico interpretado em sua complexidade e profundidade traduz simultaneamente o legado ancestral da humanidade e seus lugares de transformações. Intuir estes lugares de transformações não é suficiente, precisamos trabalhar muito se quisermos saber do lugar que queremos perguntar e responder o que nos é proposto pela Vida. Nietzsche diz que Dante enganou - se quando gravou ingenuamente na porta do seu inferno esta inscrição: também a mim o amor eterno me criou. O filólogo e filósofo foi bastante intuitivo, e deixou muito trabalho a fazer, nos mostrou que a morte, a violência e a loucura não são obras de Eros. É verdade que o núcleo da doença psíquica se encontra na afetividade, mas em energias desagregadoras da personalidade, o amor, o antigo poderoso deus grego Eros é uma energia, uma dinâmica da estrutura da Vida e por
isto se opõe a qualquer poder destrutivo do Ódio. Quando Eros dinamiza a estrutura psíquica e sua consciência, o indivíduo, o sujeito não se deixa aniquilar pela tragédia humana, obra de Dioniso também um deus grego. Há que se diferenciar transformações pela via de Eros e metamorfoses pela via de Dioniso. Cabe a cada ser humano, perceber o que são suas ilusões. No face a face ao sair da esfera coletiva, no diálogo, impõe-se questões que só serão estruturadas e elaboradas no ser humano individual, nunca no homem das massas. A via primeira de acesso ao inconsciente, o sonho, é a produção imediata da representação do estado psíquico. Nietzsche fala que os sonhos revelam estados arcaicos da humanidade, longínquos estados de civilização e nos dá um meio melhor de compreendê - los. O sonho revela a filogênese, a história coletiva própria da espécie humana, e a ontogênese, uma história individual. Interpretar o sonho, perceber o seu significado, é dialogar com o inconsciente, a partir deste diálogo podemos perceber as ilusões e as verdades e também o quanto é preciso trabalhar para transformar as verdades dos sonhos em vivências. Esta é uma das vias pela qual se chega, mediante elaboração, ao sentido da Vida. Dialogar com o inconsciente, é ampliar a consciência sobre os fatores instintuais, arquetípicos, que influenciam nosso comportamento sem que o saibamos. Jung fala que a psicologia é a única ciência que precisa levar em conta o fator valor (isto é o sentimento), pois é o elemento de ligação entre ocorrências físicas e a vida. Que é preciso e necessário se dar ao sentimento a devida atenção. O valor emocional, o valor afetivo, quais sentimentos são vividos em meio às experiências humanas indicam aspectos positivos e negativos da psique individual e coletiva. A hermenêutica que porta em si mesma premissas psicológicas, isto é óbvio em qualquer área do conhecimento, é a arte de interpretação que Jung utilizou na compreensão das coisas do inconsciente, os sonhos, fantasias, mitos, símbolos. A hermenêutica é a arte de desenredar o significado de alguma coisa que não está obviamente clara. Deixa transparecer questões fundamentais em profundidade e complexidade. O sujeito é atravessado pelo universal, a experiência singular daquilo que lhe atravessa exige que tenha significado, a
hermenêutica desta experiência permite compreender o estruturado, o significado, o humano em sua subjetividade. O psicoterapeuta tem a partir de seu trabalho de ser capaz de transformar a doença do ser humano em saúde, é uma tentativa aleatória, nas palavras de Jung, a natureza é aristocrática. Mas, é o que importa verdadeiramente, é o que há demais humano, saber e enfrentar sem cisão, sem psicose, sem loucura a delicada situação trágica dos mortais que tem o destino ditado pelos deuses. Jung fala que a personalidade do psicoterapeuta é seu instrumento de trabalho. Isto quer dizer que o psicoterapeuta tem necessidade ética de se tratar, de saber de seus complexos, não há outra trilha ao que trabalha junto ao paciente o inconsciente. Nas palavras de Jung, e como poderá ver claramente, quem não se vê a si mesmo, nem às obscuridades que inconscientemente impregnam todas as suas ações? Também temos, a partir da nossa própria história de vida de dialogar com o inconsciente. Diante das situações trágicas, o que Jung diz faz sentido, o consciente busca sem perceber, o seu oposto inconsciente, sem o qual está condenado à estagnação, à obstrução ou à petrificação. É no oposto que se acende a chama da Vida. O processo de individuação quando estruturado no processo terapêutico, leva a personalidade a elaborar e suportar as projeções. Auxilia nos, mortal na presença de Zeus, não ser fulminada igual a Sêmele, não ser petrificada diante de Medusa e a mergulhar nas profundezas do oceano tal qual Icaro e não se afogar. Nas palavras de Emma Jung, quando Cibele, Afrodite ou a própria natureza se opõe a alguém, é compreensível que se seja dominado e vencido por ela. O lugar do humano, é deste lugar e não de outro que o sujeito e sua subjetividade, através de Eros que dinamiza a estrutura da vida e Logos que separa, que fala a palavra que traduz, se diferencia do estado de natureza por elaboração. A personalidade que se desenvolve na busca deste sentido, não se deixa dominar ou vencer e mais, sabe haver com aquilo que lhe cabe, com as questões que verdadeiramente importam, sabe o sentido da morte e o sentido da Vida.
Neiruaitt Norberto de Sousa é psicoterapeuta, professora e estudiosa da Psicologia de Jung. Goiânia, 07 de junho de 2011