Patologias alimentares e adolescência: a questão do feminino



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Transcrição:

Lilia Frediani Martins Moriconi, Tatiana Luisa Cerqueira da Silva e Marta Rezende Cardoso Patologias alimentares e adolescência: a questão do feminino Apresentamos um breve estudo teórico-clínico sobre patologias envolvendo aspectos compulsivos, em particular aquelas que convocam diretamente o corpo, como a bulimia e anorexia, tendo em vista especialmente a sua grande incidência na adolescência feminina. A noção de feminilidade, sua relação com a questão da passividade e do narcisismo são os eixos centrais de nossa análise. Trata-se de uma problemática muito presente no contemporâneo cuja cultura é marcada pela exaltação do corpo, o que nos parece favorecer a utilização, no sujeito, de defesas de caráter elementar e imediatista. >Palavras-chave Palavras-chave: Anorexia-bulimia, feminino, adolescência, contemporâneo artigos > p. 24-28 This is a short theoretical-clinical study on pathology, involving compulsive aspects, particularly those which directly involve the body,such as bulimia and anorexia, in view of their widespread incidence in female adolescence. The notion of femininity and its relation to the matter of passivity and narcissism are the central lines of our analysis. This type of compulsion is foun frequently today, when the exaltation of the body seems to enhance elementary and immediatist character defenses in the subject. >Key Key words: Anorexia-bulimia, femininity, adolescence, contemporary >24 Nossa atenção foi despertada pelo número cada vez mais elevado de moças que vêm se tornando anoréxicas ou bulímicas no período da adolescência. Vamos, então, explorar esta questão interrogandonos, dentre outros aspectos, até que ponto a sociedade contemporânea estaria favorecendo o surgimento dessas patologias. Pretendemos também analisar o papel da dimensão do feminino nessas patologias. O interesse por essa temática surgiu igualmente a partir de um caso clínico que nos incitou a buscar na teoria respaldo para a prática terapêutica. Sendo assim, a título de ilustração, utilizaremos o material referente ao caso de M., atendido há mais de um ano por uma das autoras do presente trabalho, estagiária em clínica e pesquisa da equipe coordenada pela Professora Marta Rezende Cardoso.

Histórico do Caso M. é uma jovem de vinte anos, chegando ao atendimento com queixa de se sentir dependente em seus relacionamentos, e de nutrir preocupação excessiva com o próprio corpo. Relatou ter ingerido, durante o período da adolescência, grande quantidade de remédios para emagrecer, considerando ter passado, naquela época, por momentos de anorexia e bulimia. Na patologia da bulimia, o sujeito não retém os alimentos, provocando voluntariamente sua expulsão através de vômitos e/ ou laxantes, podendo chegar, em estados mais graves, a praticar este ato de forma involuntária. Já o anoréxico recusa completamente a ingestão de qualquer alimento. Consideramos que essas síndromes estão de alguma forma articuladas, podendo os dois comportamentos aparecerem, em momentos diversos, num mesmo sujeito. M. é filha única e mora com os pais. Um ponto importante do material trazido em seu atendimento diz respeito à grande dependência sentida em relação à figura materna, o que, segundo ela, a vem impedindo de efetivamente ingressar na vida adulta. A paciente descreve essa mãe como alguém que sempre se antecipa a todos, fazendo tudo para ela, antes mesmo de ser solicitada. Isso é vivido por M. por um lado, como extremamente confortável; por outro, como algo que a paralisa, pois tem muita dificuldade de se imaginar sozinha, de vir a dar conta de sua própria vida. No que diz respeito aos seus relacionamentos, afirma buscar constantemente alguém que cuide dela e a ame desesperadamente, pois acredita que só assim pode se sentir segura, o que implica um alto preço: intensa dependência mantida com seus pares. M. diz que não é capaz de ficar sozinha, só conseguindo se sentir alguém quando existe um outro para lhe dizer quem ela é. Relata que quando se vê só, entra em contato consigo mesma e só percebe um vazio, o que lhe provoca enorme angústia. Outro ponto de essencial importância nesse material, é a dimensão central que o corpo ocupa em sua vida, corpo este que, segundo ela, é a garantia de sua própria existência, tendo que ser constantemente manipulado e controlado. Segundo suas próprias palavras: Para mim, tudo é o corpo! Se estou magra, sinto-me bem, mas se acho que estou gorda, o que ocorre sempre, sinto-me péssima; olho no espelho, vejo aquela coisa e não me reconheço. Atualmente, a paciente está grávida, fato de extrema importância em seu atendimento, já que diversas questões que já faziam parte de sua problemática estão podendo agora emergir com maior clareza. Agora seu corpo toma novas formas impossíveis de serem contidas ou controladas, tendo a paciente que lidar com esse momento assim como abrir novas possibilidades de significação. M. agora se questiona sobre o lugar que ocupa em seus relacionamentos, e como é estar no papel de mãe, e não apenas de filha, no lugar daquela que cuida e não só depende. Adolescência e Contemporaneidade Vivemos em uma sociedade na qual se multiplicam as maneiras de manipulação do corpo em busca de um ideal estético dificilmente alcançável. Os meios utilizados para alcançar esse ideal cada vez mais se diversificam: pílulas que emagrecem, artigos >25

artigos >26 bombas que incham os músculos, plásticas e cirurgias, tudo para se obter o tão sonhado corpo perfeito, de forma rápida. O corpo se tornou um lugar de visitação constante, quase uma entidade separada, um objeto, um troféu a ser exibido. Num de seus trabalhos, Joel Birman (1997) falanos dessa sociedade marcada pela estetização da própria existência, em que os indivíduos fazem de suas próprias vidas um grande espetáculo, uma obra de arte a ser admirada pelo outro, apenas para que seu próprio eu se enalteça. O olhar do outro passa a ser fonte de existência, pois ele é espectador necessário, ou melhor, indispensável, para a confirmação da grandeza de minha obra. A alteridade perde aqui seu lugar de troca e vira fonte de exaltação constante de meu próprio eu. Essa intensa exaltação do corpo é um fenômeno próprio da sociedade contemporânea marcada por esta dimensão narcísica. Porém, o que percebemos é que na adolescência essas questões referentes ao corpo tendem a se evidenciar de forma bastante particular. A adolescência constitui um momento da vida marcado por sensíveis transformações não só corporais, mas também psíquicas, onde o sujeito se vê exigido a lidar com a perda de sua condição infantil. No decorrer desse período, ocorre a intensificação e a repetição da vivência de certos conflitos primários. Diante das modificações próprias da puberdade, o sujeito pode ter uma vivência psíquica violenta de sua sexualidade, já que há precariedade das vias de simbolização que, por sua vez, é correlativa a um excesso de energia pulsional, o que acaba por fragilizar a capacidade egóica de ligação. Diante disso, o adolescente pode vir a usar o próprio corpo para expressar e tentar dar conta de seus conflitos, até mesmo de maneira compulsiva, tentativa, ainda que precária, de elaboração desses conflitos. As atuações podem ir, por exemplo, desde pequenas marcas no corpo, como as tatuagens, chegando até a casos extremos e violentos, como ocorre nas patologias da anorexia e da bulimia. Consideramos que um aspecto fundamental a ser explorado nesses distúrbios alimentares diz respeito à dimensão do feminino que parece ter aí, como tentaremos mostrar a seguir, um lugar bastante relevante. Como vimos e esta constatação representa apenas uma das vias que nos levaram a essa articulação, essas patologias atingem, em sua grande maioria, as adolescentes. Dimensão Feminina da Sexualidade Em psicanálise, a noção de feminino não pode ser dissociada da noção de passividade. Trata-se de uma dimensão própria à constituição psíquica dos sujeitos, tanto homens quanto mulheres, ou seja, não está relacionada ao sexo biológico. Para uma melhor compreensão do conceito de feminino, entendido a partir dessa perspectiva da constituição psíquica, faz-se necessário remeter-nos à primeira relação mãe-bebê, modelo e fonte das futuras relações de todos os sujeitos. A relação com a figura materna marca o primeiro encontro com a alteridade, constitutivo do próprio psiquismo. Para entendermos como essa relação funda o sujeito psíquico, vamos recorrer às idéias de Jean Laplanche, autor que se dedicou a essa questão, a partir dos seus estudos sobre o tema da sedução, nos

quais ele fundou a sua teoria da sedução generalizada. Para este autor, a mãe, ou adulto que cuida, ao atender as necessidades do bebê, amamentando-o, acariciando-o e manipulando seu corpo, transmite uma infinidade de significantes verbais e não-verbais que, para ele, se configuram como mensagens recebidas passivamente. Essas mensagens possuem caráter sexual e, ao serem recebidas pela criança, encontram uma inadequação, ou seja, a criança se depara com um mundo adulto inconsciente pleno de desejo, e que a invade de forma violenta. A sedução é marcada por esse encontro do bebê com a sexualidade adulta, encontro que será, ao mesmo tempo, traumático e essencial para que essa criança se constitua como sujeito psíquico. Porém, essa sedução materna é vivida pelo bebê como invasora, atravessando o seu corpo, erogenizando-o pela implantação de seu conteúdo sexual. A criança é passiva diante desse adulto que a seduz e invade. Essa posição de passividade diante da penetração/invasão da sexualidade inconsciente do outro nos remete à dimensão feminina de passividade da sexualidade humana. Esse momento fundante, constitutivo, que se articula com essa dimensão de feminilidade, nos leva ao conceito de narcisismo. De maneira muito sintética, podemos avançar que o narcisismo consiste neste movimento estruturante e libidinal de investimento em si mesmo, no próprio ego. Esse investimento só é possível a partir da identificação com o outro e da introjeção da libido que a ele foi direcionada. Essa introjeção irá caracterizar a própria constituição egóica. (Laplanche e Pontalis, 1999) Prosseguindo em nossa articulação entre feminilidade e narcisismo, passamos a explorar algumas das idéias de Jacques André (1996), que nos mostram que a vivência da feminilidade e da penetração a ela referida só não é sentida como destruidora da integridade egóica, quando, através da passagem e da elaboração narcísica, é possível separar o que é do eu daquilo que é do outro, delimitando-se, assim, os limites para a própria invasão. Dessa forma, é na passagem pelo narcisismo que o sujeito irá realizar o movimento de autonomização e de fechamento em si. Consideramos que os sujeitos anoréxicos ou bulímicos recusam sua feminilidade, negando, com violência, a possibilidade de penetração. O anoréxico impede a entrada do alimento e, através do corpo, demonstra essa recusa. Já o bulímico enche e esvazia o corpo compulsivamente, num ciclo permanente de negação e vergonha. Podemos, então, pensar que o que está subjacente a essa recusa é, dentre outros aspectos, a elaboração insatisfatória do narcisismo, o que leva esses sujeitos anoréxicos e bulímicos a estabelecerem suas relações com os objetos de forma indiferenciada. Como nos diz Jacques André:... o sinal dessas patologias da diferenciação é um estado de dependência que se traduz na vida pelas mais diversas soluções viciantes (1996, p. 136). Podemos concluir que o que estaria na base dessas patologias seria uma intensa dificuldade, por parte desses sujeitos, de se diferenciarem. Isso pressupõe um fracasso no processo de elaboração narcísica. Durante a adolescência, problemáticas dessa ordem tendem a retornar e a de- artigos >27

artigos mandar uma ressignificação, o que vem a se somar a outras particularidades próprias deste momento de vida. Assim, ao se deparar com as mudanças que ocorrem ao nível do corpo, com sua sexualidade feminina, a adolescente anoréxica ou bulímica está, mais uma vez, diante da possibilidade de ser invadida, diante de suas brechas narcísicas. Estas brechas apontam para uma necessidade constante de buscar algo que venha a mascará-la, negá-la. Pela dependência extrema que estabelece com o outro, o sujeito fantasia a si mesmo como estando por ele preenchido, à custa, porém, da perda de sua própria identidade. Vale observar que essa dependência pode se desdobrar num plano que ultrapassa essa relação com o outro, podendo também atingir a relação estabelecida com o próprio corpo. Como vimos no caso M., apesar de a paciente não apresentar atualmente sintomas bulímicos ou anoréxicos, ela continua a expressar, por meio de outros sintomas, um modo de funcionamento psíquico próprio a essas patologias. A dependência que sente em relação à mãe pode ser entendida como expressão da imensa dificuldade que apresenta diante da ameaça de perda, de separação. M. reproduz com seus pares esse modo de relação, mantendo-se à mercê do amor do outro para sentir-se minimamente segura, além de exercer diversas formas de manipulação para poder alcançar esse objetivo. A mesma tendência à manipulação é percebida na relação que ainda trava com seu corpo, corpo este que lhe aparece em constante estado de exaltação, essa fronteira entre o eu e o outro que parece, aqui, demasiado tênue, vivida como abertura permanente à invasão, fonte de insuportável angústia. Referências ANDRÉ, J. As origens femininas da sexualidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. BIRMAN, J. As alquimias no mal-estar da atualidade. (Artigo para o Jornal do Brasil, 1997). LAPLANCHE, J. Da teoria da sedução restrita à teoria da sedução generalizada. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988. e P ONTALIS, J.-B. Vocabulário da psicanálise. 2 a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. URRIBARI, R. (org.). Anorexia e bulimia. São Paulo: Escuta, 1999. Artigo recebido em junho/2002 Aprovado para publicação em outubro/2002 >28 A redação da Pulsional Revista de Psicanálise recebe até o dia 15 as notícias a serem veiculadas no mês subseqüente. O cumprimento deste prazo é essencial para a sua divulgação.