DESMARCANDO O CORPO, DESNUNDANDO IDEIAS: A PÓETICA EPISTÊMICA DE MIRIAM ALVES Juliana Cristina Costa 1 Resumo: O presente artigo visa analisar os poemas Pés atados, corpo alado, presente no primeiro livro de Miriam Alves, escritora negra brasileira, Momento de busca (1983); e, o poema Eu sou quem? - publicado na internet, na rede social da referida autora - como instrumentos de desconstrução de determinações e representações sobre o corpo negro e feminino, podendo ser vistos como a expressão de uma poética epistêmica, conceito cunhado por mim, definida como uma poética capaz de questionar, contra-argumentar, saberes presentes no imaginário social brasileiro. Palavras-chave: Poesia; sistema simbólico; resistência; literatura negra. Miriam Alves é escritora negra contemporânea, poeta, ativista e assistente social, tem 65 anos e reside em São Paulo. Iniciou a carreira literária em 1982, enquanto escritora dos Cadernos Negros, antologia poética paulista que desde a década de 70 vem realizando através da literatura um combate discursivo e literário ao racismo. Em 1983, lança seu primeiro livro, Momentos de Busca, depois em 1985 lança o livro Estrelas nos Dedos, ambos livros de poemas. Em 2011, lança o livro Mulher Ma(t)riz, obra de contos e em 2015 lança seu primeiro romance Bará na trilha do vento. A poeta também realizou obras críticas, sendo que em 1995 organizou Finally us Enfim nós: contemporary Black Brazilian woman writers publicado no Colorado (EUA) e em 2005 organizou Women righting: Afro-Brazilian women's short fiction Mulheres escre-vendo publicado em Londres. Em 2011, também lança pela editora Nandyala, o livro Brasil Afro- revelado: literatura brasileira contemporânea. Como já foi possível perceber com esta exposição, a escritora Miriam Alves exerce concomitante a sua produção literária, uma produção teórica, sendo possível considerá-la como uma intelectual negra contemporânea de forte contribuição para a crítica literária, entretanto no âmbito da crítica literária, como em outras áreas de produção de conhecimento observamos a invisibilidade da intelectualidade negra. Ao realizar uma representação literária que questionam estereótipos raciais e visibilizam condutas sociais 1 Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, Minas Gerais Brasil. 1
excludente, poetas negras e negros desconstroem uma gama de saberes que circulam no imaginário social, sendo que além de escritores, exercem simultaneamente o ativismo e a intelectualidade. É notório os exemplos de intelectuais que analisam obras literárias negras sem se despirem do racismo, transformando estereótipos e achismos em "verdades científicas", como bem apontou o pesquisador Uruguay Cortazzo em seu artigo "Crítica Literária e Racismo" (2015). Normalmente, as grandes referências teóricas sobre a literatura negra são pessoas brancas, o pioneirismo branco sobre tudo que não é branco é digno de ser pensado como consequência das relações de poder racializadas presentes em nossa sociedade. Este trabalho visa iniciar a discussão do viés epistemológico da escrita de Miriam Alves na literatura contemporânea. Em 2014, a autora publicou pela antologia Ogum toques o seguinte poema " Eu falo/ a minha fala é um falo/ que atravessa suas certezas culturais", expressando como percebe a sua própria voz, no jogo entre verbo e substantivo, falar e falo, expressa sobre o poder da fala e também da capacidade que a mesma tem de desconstruir certezas, sendo o poder da palavra (falada ou escrita) como uma possibilidade de combate e que se iguala, neste poema citado, ao poder falocêntrico. Em tempos em que surge nas discussões do movimento negro, fortemente, além do genocídio negro, a questão do epistemicídio, este que segundo Sueli Carneiro (2005) consiste em " um processo de indigência cultural", que através das barreiras de acesso à educação como também da deslegitimação da intelectualidade negra promove a inferiorizarão epistêmica dos sujeitos negros. O epistemicídio consiste no extermínio simbólico da cognição do negro, imputando uma noção social de que pessoas negras não tem capacidade de pensar, raciocinar, por isto não conseguiram ocupar os cargos ou títulos que são ligados ao "trabalho mental", um mecanismo de desumanização, talvez herança dos tempos escravocratas, onde sujeitos negros eram destinados ao trabalho braçal. É abundante o número de relatos da dificuldade da sociedade de aceitar as pessoas negras em cargos não subalternos, exemplos grotescos tem-se aos montes, sendo um deles, o caso ocorrido em 2013, que teve divulgação midiática, em que uma jornalista do Rio Grande do Norte (Brasil) fez o comentário de que médicas cubanas pareciam empregadas domésticas, manifestando a noção de que mulheres não - brancas só poderiam ocupar posições subalternas ou cargos que não exigissem muita instrução escolar. A relação da subalternização a perfis específicos, não - brancos, na sociedade brasileira e o enaltecimento e naturalização de um perfil específico, branco, como padrão de beleza, inteligência e moral faz com que pensemos como o imaginário social está sobre o controle simbólico de uma ótica eurocêntrica. Nas universidades, refiro-me especificamente na área de letras, apesar das muitas e dos 2
muitos (as) intelectuais negros (as) e negros nas Américas, são pouquíssimas as utilizações dos textos dos mesmos. Um exemplo é que mesmo o reconhecimento da escritora Conceição Evaristo enquanto escritora que integra o cânone literário nacional, sua produção teórica é reduzida ao conceito de escrevivência, sendo que as reflexões que faz acerca do feminino negro não são referendadas com profundamento em sua teoria. No artigo " Cadernos Negros I: Literatura afro-brasileira?", Florentina Souza expressa que a autoria de discursos literários, históricos ou políticos possibilita privilégios ao sujeito, sendo que a escrita, leitura e, principalmente, publicar eram restritos. E durante o período colonial existia uma legislação que impediam os negros de escrever, publicar ou falar de si, individual ou coletivamente, pois a sua incapacidade para tais questões era atestada pelos conhecimentos científicos da época. Embora diante desta crença da incapacidade do negro para escrita e fala de si, a autora apresenta-nos exceções, sujeitos negros que realizaram registros fundamentais questionando a noção científica, como exemplo cita o " tratado proposto a Manuel da Silva Ferreira pelos seus escravos" (1789), além dos membros da revolta de búzios que faziam circular em Salvador informações e as atas produzidas pelas irmandades e sociedades negras. Ressaltando que sendo ou não do próprio punho, os negros participam diretamente do campo da textualidade, citando Caldas Barbosa, poeta satírico do século XVIII, exemplifica ainda que quando eram fornecidas oportunidades, o negro atuava como sujeito do discurso, podendo caso quisesse relacioná-lo com sua história e tradições de origem. O texto literário enquanto difusor ideológico é criado de modo diverso por cada escritor, já que este é sujeito social em constante interação com os sistemas ideológicos e simbólicos presentes na sociedade. A premissa horaciana de que a literatura teria como funcionalidade "instruir e agradar" é colocada em cheque a partir da presença de perfis de escritores contrastantes com aquele que foi consolidado, isto é, quando a literatura perde o seu caráter de privilégio de uma classe e de um perfil étnico - racial hegemônico. Em Da Diáspora: Reflexões e intermediações culturais (2003), Stuart Hall expressa a noção do corpo enquanto " tela de representações" (HALL, 2003, p.342). A partir disso, será analisado os poemas " Pés atados, corpo alado" presente no primeiro livro de Miriam Alves e " Eu sou quem?", publicado na rede social da autora, considerando estes textos como instrumentos de desconstrução de determinações e representações sobre o corpo negro e feminino, podendo ser vista como uma poética epistêmica, definida aqui como uma poética capaz de questionar, contra-argumentar, saberes presentes no imaginário social brasileiro. 3
" Posso pensar"? Desmarcando o corpo, desnudando ideias. O livro Momento de Busca (1983) é a primeira publicação da escritora Miriam Alves, composto por 23 poemas em que se pode perceber o jogo de pergunta e resposta, lembrando o método socrático, marcando uma reflexão do eu- lírico, um diálogo consigo ou com o mundo, um processo de desnudar de ideias. O poema "pés atados, corpo alado" trata do aprisionamento do corpo negro, tanto simbólico como físico. Na primeira e segunda estrofe pode-se observar o advérbio de negação " NÃO", sendo que na primeira utilização pode-se perceber o uso de três "nãos" ocorrendo em uma entonação diferente, marcada textualmente pela presença de reticências, na segunda os "nãos" são separados por vírgulas. Observemos a primeira estrofe do poema: Não... Não... Não mãos atadas pés acorrentados sinto todas as vontades todas humanas desumanas morais iguais desiguais adversas ou não (ALVES, 1983, p.17) Nesta estrofe percebe-se que o corpo aprisionado não impede a manifestação de vontades, as ideias se manifestam em sua contradição, típico do humano, o sujeito enuncia uma impossibilidade oriunda da imobilização de seu corpo, mas, independentemente disto, a mente se mantém livre. Na segunda estrofe, a negação é expressada como a impossibilidade do eu-lírico de agir, entretanto surge a indagação da possibilidade de se desprender os pés, porém há também uma noção de proibição que não fica expresso de onde que vem, que pode ser compreendida como um mecanismo coercitivo internalizado, o poema parece manifestar uma luta interna, o eu-lírico sobre o domínio, controle, psicológico. Na terceira estrofe, observa-se a manifestação das mãos presas, sendo que o termo "algemado" é usado ao invés de "atadas", estes usos demonstram referências diferentes, sendo que o termo "atadas" pode ser relacionado como uma ação simbólica, o uso do termo "algemado" promove uma referência ao sistema prisional, o qual os dados dos censos de pesquisas demonstram que a 4
população carcerária é majoritariamente negra. Ainda nessa estrofe é expresso a pergunta " Fazer gestos obscenos?", as mãos imobilizadas também são associadas a impossibilidade de gesticular ou acariciar, sendo uma metonímia do sujeito, que é impossibilitado de qualquer manifestação de liberdade. Na quarta estrofe surge a pergunta "Posso pensar?" Uma indagação feita ao leitor ou ao eulírico para sim mesmo e depois uma exclamativa "posso pensar!" enunciando a liberdade da mente, o que era dúvida se torna uma certeza, promovida talvez pelo exercício de autocrítica do sujeito lírico. Nas quinta e sexta estrofes a liberdade é manifestada como sendo aquela que rompe barreiras, que permite transitar em " espaços novos", como um processo de descolonização da mente de tudo aquilo que prendia. O poema todo permite compreender o embate do sujeito com a sua subjetividade e com a existência social enquanto coletividade, possibilitando entender que a subjetividade realiza uma dialética com o externo, a sociedade. de 2016: O outro poema em análise foi publicado pela autora em sua rede social em 27 de novembro Eu sou quem? Aquela que você Não se atreva colocar um adjetivo de posse antes da apresentação Nossa escritora Minha isso ou aquilo Não lhe pertenço Sou natureza sou mundo sou minha sempre minha e de mais ninguém (ALVES, 2016) O poema começa com uma interrogação "Eu sou quem?" que permite lembrar de uma expressão de cunho pejorativo "quem você pensa que é?" usada para estabelecer relações de hierarquias. Neste breve poema, se pode observar a recusa da autora que se confunde com o eu-lírico de ser tomada enquanto posse ao invés de sujeito. Ao se manifestar contra a objetificação, observamos a própria definição da autoria sobre si, diz " Sou natureza", talvez impossível de ser controlada. " Sou mundo", referindo a impossibilidade de ser conhecida devido a multiplicidade que lhe abrange, " sou minha", mostrando a consciência e o controle sobre si mesma. No verso final manifesta, podendo ser lido em tom de teimosia," sempre minha e de mais ninguém" permitindo compreender a recusa do assujeitamento. A pesquisadora Luciana Martinez (2013) faz uma relação da literatura com a epistemologia ao tratar da obra de Marcelo Cohen, escritor argentino, compreendendo a escrita do referido autor 5
como uma ferramenta filosófico-epistemológica, associando com o realismo, considerando que o ficcional exerce uma forte influência na indagação sobre a vida social. Ainda não existem estudos acerca da relação literatura negra brasileira e epistemologia, nem mesmo o reconhecimento de escritores negros como fontes de discurso teórico, embora os mesmos tenham a formação acadêmica na área de letras como Luiz Silva Cuti e Conceição Evaristo. Em Literatura Negro-brasileira (2010) expressa a seguinte colocação: Os discursos (todos) passam pelo poder dizê-lo. O silêncio pertence à maioria que ouve e, quando muito, repete. Falar e ser ouvido é um ato de poder. Escrever e ser lido também (CUTI, 2010, p.47) E através de discursos se pode construir saberes, questioná-los, refazê-los, sendo assim, repito, como um mantra que permite a coragem de dizer "Eu falo/ a minha fala/ atravessa suas certezas culturais". Referências ALVES, Miriam. Momentos de Busca. São Paulo: edição da autora, 1983.CORTAZZO, Uruguay. Racismo y crítica literária. CADERNOS DE LETRAS, Pelotas, N.25.p.141 p.153, 2015. CUTI, Luiz Silva. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010. HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais.belo Horizonte: UFMG, 2013. MARTINEZ, Luciana. La literatura hacia la epistemología en Marcelo Cohen: Postulaciones de un nuevo realismo. Revista Criação & Crítica, São Paulo, n. 11, p. 61-72, nov. 2013. ISSN 1984-1124. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/criacaoecritica/article/view/59989/68021>. Acesso em: 28 Jul. 2017. doi:http://dx.doi.org/10.11606/issn.1984-1124.v0i11p.61-72 SOUZA, Florentina. Cadernos Negros: Literatura afro-brasileira? In: PERREIRA, Edmilson de Almeida (org). Um tigre na floresta de signos: Estudos sobre poesia e demanda social no Brasil. Belo Horizonte: Mazza, 2010. p.212- p.227. 6
Unmarking the body, undressing ideas: Miriam Alves epistemic Abstract: The present article aims to analyze the poems Pés atados, corpo [Tied feet, body]", present in the first book of Miriam Alves, Brazilian black writer, Momento de busca (1983) [Moment of quest]; and the poem Eu sou quem? [Who am I?] - published on the Internet, in the social network of the author - as instruments for the deconstruction of determinations and representations about the black and female body, and can be seen as the expression of an epistemic poetics, defined by me as a poetics capable of questioning, counter-arguing, knowledge present in the Brazilian social imaginary. Keywords: poetry; symbolic system; resistance; black literature 7