CAPS MISTO: UMA POSSIBILIDADE Jureuda Duarte Guerra [1] Resumo: O presente artigo tem a intenção de fomentar o debate em relação à portaria 336 de 2002 do Ministério da Saúde. A portaria trata dos diversos tipos de caps existentes e cumpre um papel definitivo no campo da saúde mental que é o de colocar o hospital psiquiátrico no banco dos réus. Embora seja um avanço para a saúde mental, existe um entrave muito grande, o de não perceber as múltiplas regionalidades do Brasil, suas culturas e saberes diferenciados, suas crenças que diferem de um lugar para o outro às vezes na mesma região, com é ocaso do lugar abordado no artigo. A idéia do artigo é um relato de experiência vivido pela autora nos anos em que gerenciou o serviço de saúde mental de Mosqueiro e pela necessidade de se ajustar às precárias condições locais; denominando assim o serviço de Caps Misto, apresentando ao MS, uma saída criativa e inovadora para as localidades mais distantes dos grandes centros urbanos. A iniciativa teve o reconhecimento, através de uma emenda à portaria 336 dizendo que de acordo com as necessidades de cada localidade os Caps I poderiam se transformar em Caps misto e atender a mais de uma clientela. Dessa forma essa iniciativa deu uma contribuição a construção de novos olhares para a saúde mental, no âmbito da reforma psiquiátrica, no Pará e no Brasil. CAPS MISTO: UMA POSSIBILIDADE
Este tema cujo qual nos propomos a apresentar será feito na forma de artigo. Anterior a organização dos caps, está à remodelação do sistema de saúde que através das reivindicações dos trabalhadores e usuários na IX Conferencia Nacional de Saúde em meados da década de oitenta e em 1988 com a aprovação da nova constituição federal foi criado o SUS, Sistema Único de Saúde. Esse sistema alicerça-se nos princípios de acessos universais, públicos e gratuitos às ações e serviços de saúde, integralidade das ações, cuidando do indivíduo como um todo e não como um amontoado de partes; eqüidade, como o dever de atender igualmente o direito de cada um, respeitando suas diferenças; descentralização dos recursos de saúde, garantindo cuidado de boa qualidade o mais próximo dos usuários que dele necessitam, controle social exercido pelos Conselhos Municipais, Estaduais e Nacionais de saúde com representação dos usuários, trabalhadores, prestadores, organizações da sociedade civil e instituições formadoras (M.S. 2004). A partir de 1986 com a criação do 1º CAPS Centro de Atenção Psicossocial Profº Luiz da Rocha Cerqueira (S.P.) possibilitou a criação de tantos outros, como o caps de Angra dos Reis-RJ, e em outros lugares pelo Brasil (mais centralizado na região sul e sudeste) influenciando a organização de um amplo e legítimo movimento social, pelo fim dos hospitais psiquiátricos que naquele momento ainda eram o único recurso destinado aos usuários de transtornos mentais. Nesta perspectiva, os serviços de saúde mental surgiram em vários municípios do país e foram se consolidando como dispositivos eficazes na diminuição de internações e na mudança do modelo assistencial. Através da portaria 336/ GM de 19 de Fevereiro de 2002, todos os serviços substitutivos que surgiram no país, foram então regulamentados os que ampliaram, reconheceu e deu funcionamento à complexidade dos caps que tem a missão de dar um atendimento diuturno às pessoas que sofrem com transtornos mentais severos e persistentes, num dado território, oferecendo cuidados clínicos e de reabilitação psicossocial, com o objetivo de substituir o modelo hospitalocêntrico, evitando as internações e favorecendo o exercício da cidadania e da inclusão social dos usuários e de seus familiares (MS, 2004-p. 12). Dessa forma fica estabelecido que as cidades e/ou municípios serão contemplados com caps, conforme suas necessidades e situação populacional. No nosso caso específico da cidade de Belém, onde já existia uma rede razoável de caps, mosqueiro também foi contemplado. Para o Ministério da Saúde os caps se dividem em: Caps I, Caps II, Caps III, Caps AD e Caps i.
Cada caps tem uma população especifica de atendimento de acordo com o numero de habitantes de sua área, por ex. Caps I: de 20.000 a 70.000 hab. Caps II: de 70.000 a 200.000hab, Caps III: a partir de 200.000hab, e os caps ad e infantil acima de 200.000 habitantes. Com exceção do Caps III, que deve funcionar 24:00h, os outros todos funcionam de segunda a sexta e no período de 12:00h. Em Mosqueiro, denominação indígena da prática de moquear o peixe, é uma ilha distrito de Belém situada à cerca de 80km da capital paraense e possuindo uma população fixa de 40.000 hab., mas que em tempos de veraneio pode chegar a triplicar o número da população permanente, é banha da pelo rio Pará braço sul do rio Amazonas. Formando as baías: de Stº Antonio, do Marajó e do Sol. Recebendo todas as influências positivas e negativas que a aproximação a um grande centro possibilita e possuindo uma população na sua grande maioria de pessoas que vivem de uma atividade econômica muito precária, com restritas alternativas econômicas, sociais e educacionais. Sendo a atividade mais comum à pesca artesanal, pequenos comércios e a atividade de caseiros uma prática de vigiar as casas dos moradores (veranistas) de Belém que a utilizam nos fins de semana. A partir da década de 90 esta realidade tem conseguido alguns avanços com implantações de muitos programas de atenção à saúde local através dos PSF- Programa Saúde da Família-que tem desenvolvido uma tarefa muito importante e através de incentivos econômicos com investimentos do programa do Banco do Povo da Prefeitura Municipal de Belém -PMB- dos programas de Bolsa Escola dos Governos Federal e Municipal que atendem grande parcela da população infantil da ilha. Com isso Mosqueiro foi contemplado com o que a portaria 336/ MS, 2002. Entende de caps I, atendendo no início somente a população adulta com história de transtorno mental. O dia-a-dia na nossa realidade mosqueirense teve que ser reavaliado, pela complexidade existente, pelas dificuldades econômicas e de locomoção da população que muitas das vezes ao procurar aums-unidade Municipal de Saúde eram referenciados para Belém e pela grande procura que recebíamos, percebemos que nosso caps I tinha a tarefa de ir mais além. Assim surge um serviço de vanguarda, carinhosamente denominado de CAPS MISTO e com todas as suas demandas, surge à pergunta: Esse caps é possível? Nesse caps que não está inserido em nenhum dos critérios estabelecidos pela portaria, atendemos as crianças de mosqueiro a partir de 03 anos de idade os adolescentes, adultos com transtorno mental e pessoas que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas.
A idéia é inovadora, pois tentamos dar escuta e acolhimento às demandas da população atendendo as crianças e adolescentes não só com transtornos moderados e graves, mas com transtornos de conduta e com isso tornamo-nos rapidamente em 1 ano e 06 meses de caps misto uma referencia para o distrito, nas atividades com a comunidade, nas escolas, centros comunitários e ministério público, ampliando a rede de apoio com outros órgãos da rede municipal. Foi observada a necessidade de se criar espaços dentro do caps, que atendessem a tão especificada demanda, com grupos específicos para atendimento e acompanhamento aos familiares e quando necessário à escola. A razão principal pela qual os profissionais do caps viram a necessidade de atender as tantas demandas e suas complexidades foram em primeiro lugar o compromisso profissional e ético, em segundo a grande procura surgida e as necessidades de resolvê-las, pois estas sempre existiram, mas não havia um serviço e/ou equipe que se propusesse a realizar tal feito. Em dois anos (2002 a 2004) de serviço o caps já registrou e matriculou em seu programa cerca de 420 pessoas entre crianças, adultos e adolescentes e essa procura ocorre de forma espontânea ou referenciada pelas instituições de saúde, educacionais e de justiça entre outras. Um número muito significativo em tão pouco espaço de tempo: sendo que 196 a 210 casos possuíam plano terapêutico, sendo que 20% são de crianças, 10% de adolescentes e 70% de adultos. Principais demandas: Psicoses, Epilepsias com transtornos associados, Transtornos de Ansiedade Generalizado, Transtorno Obsessivo Compulsivos, Transtornos de e Déficit de Atenção ehiperatividade e na grande maioria Depressão. Objetivamos através deste programa de caps misto atender a uma demanda reprimida que não tinha acesso ao atendimento que fora excluído e desassistida em função de suas condições e pela omissão do poder público. Antes de o caps tornar-se realidade em mosqueiro, funcionava um pólo de psiquiatria dentro da UMS de Carananduba e foi lá que a enfermeira psiquiátrica (hoje, trabalhadora da C.M.M.) realizou um levantamento da população nos meses de Fevereiro a Agosto de 2001, chegando a conclusão juntamente com a Referencia Técnica em saúde mental da SESMA-Secretaria Municipal de Saúde a necessidade de se criar um serviço especializado para mosqueiro. Outro objetivo é o de oferecer a população de sua área de abrangência (no caso de mosqueiro a abrangência é a ilha toda) realizando o acompanhamento clínico e a reinserção social dos usuários pelo acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários. É um serviço de atendimento
de saúde mental criado para ser substitutivo as internações em hospitais psiquiátricos (MS. 2004). Mesmo sendo um serviço novo e inovador na sua proposta até para o próprio Ministério da Saúde, preocupamo-nos com nossas metodologias. Utilizamos as reuniões de equipe técnicas diárias como instrumentos de funcionamento organizacional na estrutura da dinâmica da casa. As técnicas de reflexão e de supervisão com um supervisor (psicólogo) contratado pela Sesma / PMB, para que nesse momento possamos estar nos autoavaliando, refletindo nossas ações, nosso trabalho e nossas atitudes conosco enquanto equipe multidisciplinar e interdisciplinar, com os usuários e com a comunidade. Também as várias capacitações com profissionais de Belém e de outras cidades e Estados brasileiros nas mais diversas linhas profissionais que permitem estarmos sempre em contato e em movimento com o que se está pensando de inovador em S. Mental. O que há de tão inovador assim? Tudo... Podemos afirmar, pois é um serviço complexo que atende as três demandas, de usuários e a equipe que é reduzida contribuindo com um certo enxugamento nas despesas, procura encontrar nas condições da ilha, no próprio território, a sua intervenção. No I Fórum Amazônico de Saúde Mental realizado em Belém em 2004, que reuniu profissionais dos mais diversos serviços e dos 06 estados da região norte e mais o Estado do Maranhão. Podemos concordar que não há um modelo único para os caps e eles devem se estabelecer de acordo com as complexidades locais, culturais e regionais. O caps mosqueiro foi concebido assim, com muito respeito a sua singularidade e subjetividade é um serviço que se diferencia em todos os seus aspectos, pois até no que se chama de leito que nos outros serviços é a maca hospitalar, em mosqueiro é uma rede ; cadeiras reclináveis... O que ajuda em muito a não caracterizar o local como um espaço de doenças, mas sim o contrário, um lugar de saúde. A rede como leito foi introduzido no serviço, por questões culturais, a maior parcela de nossa população possui em seus hábitos o de descansar na rede, em suas residências, e a idéia da rede na casa é isso, propor criar um ambiente descontraído inclusive de casa de veraneio como são os casos das maiorias das residências daquele lugar. Uma das maiores singularidades do caps misto é que não é apenas um serviço para o mosqueiro, mas um serviço do mosqueiro no sentido de ter sido uma construção em conjunto a cada dia, dos trabalhadores dos usuários, familiares e comunidade.
Os resultados do nosso serviço nas ações qualitativas são as muitas ações que desenvolvemos: desde as oficinas terapêuticas que visam ir além das práticas do uso de consultas e de medicamentos e caracterizam o que vem sendo chamado de clínica ampliada. Essa idéia de clínica vem sendo (re) construída nas práticas de atenção psicossocial, provocando mudanças nas formas tradicionais de compreensão e tratamento dos transtornos mentais (MS, 2004). As relações sociais, familiares e educacionais que os nossos usuários desenvolveram através do caps misto com êxitos em ações nas férias de julho (2004) onde possibilitou aos usuários inclusive os nascidos em mosqueiro e que por várias razões (econômicas e sociais) não conheciam sua própria ilha não ocupavam o território, seu próprio território. Pretende-se alcançar com essas ações o desafio de articular o cuidado clínico com programas de reabilitação psicossocial. Assim, os projetos terapêuticos devem incluir a construção de trabalhos de inserção social, respeitando as possibilidades individuais e os princípios de cidadania que minimizem o estigma da loucura e promovam o protagonismo de cada usuário frente a sua vida (MS p.18,2004). Os caps são um espaço onde muitas coisas podem ser feitas, desde que tenham sentido para promover as melhores oportunidades de trocas afetivas, simbólicas, materiais, capazes de favorecer vínculos e interação humana. Para o caps misto continuar tendo êxito em suas ações, precisa sempre estar contando com uma ampla rede de apoio onde o caps esteja no centro dessa rede e interagindo com centros comunitários, os outros caps da rede, os vizinhos, a família, hospitais-gerais, Programa Saúde da Família, associações, cooperativas, enfim os recursos importantes na (re) construção de cidadania. Na construção desses serviços há toda uma parceria com os gestores municipais de saúde com a preocupação de estarem investindo na capacitação dos trabalhadores de saúde mental. A participação dos familiares e usuários através do movimento de luta anti-manicomial nas ações das assembléias realizadas semanalmente nos serviços, pois com a participação dos familiares visamos uma maior inserção social. Todas as ações desenvolvidas no caps misto são operacionalizadas pela equipe de: 01 Gerente, 01 Psicólogo, 01 Terapeuta Ocupacional, 01 Assistente Social, 01 Enfermeiro, 01 ASG, 01 Aux. Administrativo, 02 Técnicos de Enfermagem e 01 Médica Psiquiátrica. A importância de todas essas ações que vimos desenvolvendo no caps misto e todas as articulações que foram estabelecidas possibilitando um estado de bem-estarsocial é a nossa questão central e os êxitos em nossas ações indicam que é possível desenvolver as atividades que estamos realizando, que o compromisso na construção
de uma reforma psiquiátrica passa pelas diferenças regionais e pela criatividade, compromisso e desejo de realizar. Referencias: Brasil.Ministério da Saúde.Secretaria de Atenção à Saúde.Departamento de Ações programáticas Estratégicas. Saúde mental no SUS: os centros de atenção psicossocial / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas.- Brasília: Ministéio da Saúde, 2004. 1 Psicóloga, graduada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1995. Especialista em Saúde Mental e Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública, FIOCRUZ-Rj, 1996 e 1997. Psicóloga Voluntária nos Serviços de Saúde Mental em Trieste e Imola, Itália em 1997e 1998. Psicóloga da SESMA-Prefeitura Municipal de Belém, 1998 a 2005. Psicóloga da Sociedade Paraense em Defesa aos Direitos Humanos, 2006. Aluna especial no mestrado de Ciências Sociais UFPA, 2006. Militante do Movimento de Luta Antimanicomial.