V Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental XI Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental. Trabalho Completo para Mesa Redonda 88

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Transcrição:

V Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental XI Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental Trabalho Completo para Mesa Redonda 88 (Sala 1305 / 09 de setembro de 2012, domingo, 08:00h às 09:45h) Passagem ao ato sexual violenta: apelo radical ao corpo frente à passividade AUTORES: ANDRÉ LUIZ ALEXANDRE DO VALE Psicólogo. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, bolsista CNPq. Atualmente vinculado ao projeto de pesquisa Trauma, violência e representação: entre a destruição e a criação, coordenado pela Prof. Dra. Marta Rezende Cardoso (PPGTP / IP / UFRJ). ENDEREÇO: Rua São Salvador, 14/402, CEP 22231-130, Rio de Janeiro, RJ. EMAIL: andre_luiz_vale@yahoo.com.br MARTA REZENDE CARDOSO Psicanalista. Doutora em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise Universidade de Paris Diderot (França). Professora Associada II do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Pesquisadora do CNPq. ENDEREÇO: Rua Gustavo Sampaio, 710/1805, CEP 22010-010, Rio de Janeiro, RJ. EMAIL: rezendecardoso@gmail.com OBSERVAÇÃO: PEDIMOS QUE NOSSO TRABALHO NÃO SEJA PUBLICADO NOS ANAIS DO CONGRESSO.

Passagem ao ato sexual violenta: apelo radical ao corpo frente à passividade André Luiz Alexandre do Vale Marta Rezende Cardoso O presente trabalho encontra-se vinculado ao projeto de pesquisa Trauma, violência e representação: entre a destruição e a criação, coordenado pela Prof. Marta Rezende Cardoso, do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ, do qual faço parte desde março deste ano. Neste trabalho, buscaremos explorar algumas linhas gerais que parecem marcar o funcionamento psíquico dos sujeitos que recorrem à passagem ao ato de natureza sexual e violenta. Partiremos do pressuposto que a passagem ao ato, em seu arcabouço, comporta uma transgressão de limites seja o limite externo, seja o limite interno. O Código Penal desempenha sua função ao estabelecer os limites das condutas sexuais, assim como a pena referente à sua transgressão. No entanto, os limites internos, aqueles que são transgredidos no psiquismo do sujeito que abusa sexualmente de outro, não são tão explícitos. Mais ainda, não podem ser estabelecidos de forma generalizada, sem levar em consideração a singularidade de cada sujeito. Quando se qualificam os autores de atos infracionais, utilizam-se termos que geralmente variam em torno da ausência de sentimentos por parte desses autores, que são então qualificados como insensíveis, desprovidos de emoções, ausentes de culpa, como se ao horror de seus atos correspondesse uma aparente insensibilidade; como se não houvesse nenhum sofrimento, nenhum sentimento humano e, portanto, nenhuma possibilidade de mobilização interna para mudar seu modo de ser no mundo. Será esse o destino dos sujeitos em questão: relegá-los ao plano da inumanidade inescusável? Ao buscar reconhecer e tentar compreender as motivações psíquicas dessas passagens ao ato, não estamos, evidentemente, legitimando-as e encontrando subterfúgios para seus autores. Tendo isto sempre em vista, nos perguntamos: o que estaria na base da problemática da agressão sexual em determinados homens? Em seu estudo acerca de agressores sexuais, Claude Balier (2000) tenta determinar o que uniria as diferentes modalidades de comportamentos sexuais violentos dentre elas, o estupro, a pedofilia, o incesto, o exibicionismo e o sadismo. Apesar de haver especificidades próprias a cada modalidade, o autor nos mostra que os agressores sexuais apresentam uma mescla de diferentes configurações psíquicas, que variam da neurose à psicose, passando pelos estados limite, entre as quais parece haver um ponto 1

comum: o medo aterrador de ser penetrado. E de que forma o psiquismo maneja esse medo aterrador? Uma das dimensões fundamentais que se encontra nos comportamentos sexuais violentos é a sua inexorabilidade: o ato sexual se passa como se, em algum momento da história daquele que o comete, algo o conduzisse, de modo irremediável, imperativo, impulsivo e repetitivo, em direção a um acontecimento grave, sobre o qual ele não tem domínio. O ato sexual violento encontra-se, desta forma, marcado essencialmente pela compulsão à repetição, mecanismo indissociável do movimento da pulsão de morte. A compulsão à repetição, neste caso, fala de uma morbidade que se repete, mas que, paradoxalmente, parece ter como fim uma tentativa de sobreviver psiquicamente (COURAUD, 1997). Repetir compulsivamente um ato violento nos remete à irrepresentabilidade de um pulsional mortífero que invade o psiquismo do sujeito e exige um destino. O ego desses sujeitos passa a ser invadido, de dentro, por um pulsional desligado, demoníaco, que não pode ser efetivamente interiorizado ou recalcado, restando apenas sua expulsão violenta através da convocação do corpo e do apelo ao ato sexual. O ego encontra-se, portanto, em uma situação de intensa passividade diante da força pulsional que comporta um caráter excessivo para o sujeito. Neste ponto, a questão da passividade ganha destaque na nossa elaboração. Ao considerarmos o medo aterrador de ser penetrado como uma das dimensões que marca o psiquismo dos sujeitos em questão, somos diretamente remetidos a uma situação violenta de passividade. Ser penetrado nos reenvia a um tempo primitivo da constituição do psiquismo, a saber, o momento de confrontação da criança com o mundo adulto, caracterizado pela dissimetria que os dois pólos do confronto ocupam. O encontro adulto-criança engloba uma relação essencial de atividade-passividade, que tem em si um caráter violento, apesar de inescapável e imprescindível. Este encontro caracteriza o que Laplanche (1988) denominou de sedução originária. Diante da passividade com a qual a criança se depara frente à sedução originária, o ego infantil vai incessantemente buscar vias de captura e de simbolização dessa passividade. Afirmar isto implica dizer que haveria prevalência de determinadas fantasias defensivas nesse momento. De acordo com Jacques André (2001), o primeiro arranjo defensivo que a criança consegue fazer da passividade frente ao trauma da sedução originária é a aptidão de ser penetrada. Diante da intromissão sexual do mundo adulto, a aptidão para ser penetrada vai constituir-se como modelo que permite 2

circunscrever o trauma, uma vez que ela vai tratar, sobretudo, da tentativa de elaboração da passividade que marca as origens da sexualidade. No momento inaugural do psiquismo, são as fantasias de ser dominado e ser penetrado que dominam o ser humano. Em um primeiro momento, todos os estímulos externos e internos impõem-se ao bebê, sem que este tenha os meios de simbolizá-los, traduzi-los. Posteriormente, será necessário haver a ligação e a simbolização deste primeiro momento, de modo que a passividade originária excessiva, violenta, traumática, mas também constitutiva se torne alvo do recalque. Tal situação de passividade nos remete ao conceito de desamparo, fundamental para nossa elaboração teórica. É no momento do desamparo originário que o ser humano encontra-se em estado de completa passividade, sendo acometido pelas inúmeras e incessantes excitações externas, que o mobilizam, sem que delas consiga dar conta. No entanto, Freud vai se afastando cada vez mais de uma concepção do desamparo como estado objetivo de impotência psicomotora do recém nascido diante de suas necessidades, indo em direção a uma concepção do desamparo como condição fundamental e inescapável do ser humano. Freud nos diz que o próprio fato de estarmos vivos é uma condição de desamparo, uma vez que nossa capacidade de ligar e de simbolizar sempre falha. A incapacidade de tudo simbolizar leva o desamparo a sair de uma ideia de situação para uma de condição fundamental do humano (Freud, 1927/1996b; 1930[1929]/1996c). E como essa situação de desamparo é manejada pelos sujeitos em questão? Ao procurar compreender alguns elementos marcantes no funcionamento psíquico dos sujeitos que recorrem à passagem ao ato sexual violenta como mecanismo de defesa arcaico diante de angústias irrepresentáveis que os assolam, podemos perceber como certos homens, incapazes de dominar o excesso pulsional, acabam por descarregálo através da convocação do corpo e do apelo ao ato evidenciando, desta forma, a fragilidade dos processos de subjetivação que estão no arcabouço de seu psiquismo. Diante da ameaça de irrupção de um excesso pulsional na tópica psíquica e com o fracasso do princípio de prazer evidenciado pela inexorabilidade da compulsão à repetição, outras formas de ação são requeridas para dominar o excesso. O psiquismo recorre a modalidades de defesa de tipo mais arcaico, o que aponta para um curtocircuito dos processos psíquicos mais elaborados. A repetição de vivências traumáticas surge, então, como tentativa de dominação das intensidades que inundam o aparelho 3

psíquico e invadem o ego, podendo resultar em uma compulsão, apresentada como exigência interna de agir (Freud, 1920/1996a). O recurso ao ato evidencia precariedade nos processos de simbolização do psiquismo, mas não deixa de representar uma busca por essa simbolização. Há, nessa modalidade de resposta, a exteriorização de algo que é interno ao sujeito, com o endereçamento do ato a um outro externo. No entanto, o fato de se buscar uma solução atuada para uma questão psíquica evidencia a precariedade dessas respostas, que só dão um destino à angústia que toma o sujeito de forma momentânea, fazendo com que o ego retorne à situação de passividade ante a pulsão. O psiquismo dos sujeitos que cometem atos de violência sexual parece estar marcado por uma constante exigência de virilidade, de maneira que alguns homens são convocados a agir frente ao mal-estar psíquico que os acomete quando se deparam com a ameaça tão repudiada de passividade. Mas por que a passividade é tão difícil de ser dominada pelos sujeitos em questão? Há algo da ordem do demoníaco, do indomável, presente aqui, frente ao qual só resta a atuação. Nesses sujeitos, a passividade é recusada não apenas porque dá notícia da angústia de castração, mas, mais fundamentalmente, porque se assimila a uma passivação mortífera termo utilizado por André Green (1999) para falar de um estado de completa impotência sem recursos na qual o sujeito é mergulhado, fazendo referência a um retorno à dependência em relação ao objeto. Em última instância, a passivação mortífera remete à angústia de inexistência do sujeito enquanto diferenciado de um objeto. Green (1999, op. cit.) vai marcar duas dimensões distintas no campo da passividade. Dirá que o termo passividade, conforme delimitado por Freud, dá conta somente de forma parcial do campo a que o termo se refere. Para falar disso que está para além do que Freud chamou de passividade, utiliza o termo passivação. Enquanto o termo passividade está ligado a um objetivo da libido erótica modo de prazer buscado pela libido, cujo objetivo é passivo o termo passivação refere-se à ideia de inescapabilidade da posição de passividade, pensada a partir da mudança de paradigma introduzida com a noção de desamparo originário na obra freudiana. Conforme nos mostra igualmente Balier (2000, op. cit.), haveria algo muito mais temível do que a experiência de passividade no mundo masculino, que remete à angústia de castração. A passivação é um retorno à dependência e à fusão com o objeto. O perigo da passivação torna-se impossível de manejar, uma vez que coloca em jogo o 4

desaparecimento do sujeito. Desse modo, o meio para dar a volta por cima nesta angústia insuportável é recuperar a onipotência em um movimento ativo: é preciso apelar a meios de defesa que restaurem a unidade egoica ameaçada. Tais meios de defesa podem ser caracterizados a partir do assujeitamento dos objetos. Como nos explicita Cardoso (2002), ao tomar os objetos como coisa a ser manipulada, o sujeito coloca-se diante da afirmação de uma onipotência narcísica. Ao assujeitar o objeto, nega-se sua alteridade, a singularidade de seu desejo, afirmando-se, em contrapartida, o predomínio do desejo daquele que domina. Contudo, o domínio sexual ativo sobre o outro parece surgir como inversão de uma posição de absoluta passividade diante da alteridade. A polaridade passivo/ativo encontra-se no centro da problemática, sendo constantemente reatualizada. Se o domínio ativo sobre o outro aparece como resposta a uma condição prévia de passividade, temos nos dois momentos a presença de ambos os movimentos: dominar/ativo e ser dominado/passivo. A passivação coloca em risco a identidade, de modo que as estratégias defensivas que tentam reafirmar a onipotência narcísica se fazem presentes. É neste contexto que pensamos que o abuso sexual aparece como meio extremo e elementar de recuperar essa unidade egoica; como última defesa frente à angústia de morte psíquica. Deste modo, podemos pensar como a problemática da agressão sexual envolveria, em determinados homens, o ato de penetrar para não correr o risco de ser penetrado, expressão de uma defesa radical frente a uma angústia insustentável de passivação mortífera. Podemos afirmar que a base desta problemática ancora-se na sexualização da economia defensiva do psiquismo desses sujeitos, vinculada a uma angústia de morte psíquica. A violência sexual, enquanto defesa frente à angústia de morte psíquica envolve o predomínio de uma violência destrutiva sobre o prazer erótico; a redução do objeto externo ao estado de coisa para anular sua existência ameaçadora; a repetição atuada e inexorável como desejo de reverter a passividade em atividade, mas que acaba com a possibilidade de representação; e a inextricável relação com o desamparo originário, que se reatualiza constantemente. Tudo isto frente à angústia de inexistência, que se configura como força interna imperativa, que demanda ação. O medo da morte psíquica é, portanto, a expressão da mais inominável das angústias, representação de uma passivação mortífera que poria em risco a unidade egoica e a vida psíquica do sujeito como um todo, deixando-o em uma passividade absoluta em relação à pulsão, à mercê do aniquilamento. Incapazes de dominar a 5

pulsionalidade, certos homens acabam por descarregá-la através da convocação do corpo e do apelo ao ato sexual evidenciando, desta forma, a fragilidade dos processos de subjetivação que estão no arcabouço de seu psiquismo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ANDRÉ, J. Feminilidade adolescente. In: CARDOSO, M. R. (Org.) Adolescência: reflexões psicanalíticas. Rio de Janeiro: NAU, 2001, p. 29-39. BALIER, C. Psicoanálisis de los comportamientos sexuales violentos: una patología del inacabamiento. Buenos Aires: Amorrortu, 2000. CARDOSO, M. R. Sade e o poder do outro. In:. Superego. São Paulo: Escuta, 2002, p. 197-208. COURAUD, S. L acte criminel à l adolescence. In: MARTY, F. L illégitime violence: la violence et son dépassement à l adolescence. Ramon-ville Saint-Agne: Editions Érès, 1997. p. 111-128. FREUD, S. Além do princípio do prazer (1920). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996a.. O futuro de uma ilusão (1927). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996b.. O mal-estar na civilização (1930[1929]). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996c. GREEN, A. Passivité-passivation: jouissance et détresse. Revue Française de Psychanalyse, n. 5, tomo LXIII, p. 1587-1600, 1999. LAPLANCHE, J. Teoria da sedução generalizada e outros ensaios. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988. 6