Outras Memórias de um Grupo 4 Período: Vespertino 1º semestre/2012 Professor auxiliar: Martim Pimenta Coordenadora Pedagógica: Júlia Souto Guimarães Araújo
O Grupo formou caminhos. Com um início borbulhante, de pulos incansáveis na busca ou na fuga do outro, um caldeirão formava-se em nossa sala. Afetos intensos, novos e estranhos gerando vontades que extrapolavam o próprio corpo, provocando medos, barulhos, silêncios, choros, risos, disputas, alegrias. Uma intensidade difícil para o corpo de 20 estudantes mais dois adultos. A chegada à Escola encontrava muitas paredes, tanto na sala quanto nos corpos de todos os outros que ali estavam, prontos ou não, para se relacionarem. Afinal, escola, entre tantos Temas e cores, é isso, descobrir-se na presença de estar com os outros. O Grupo 4 entrou assim, em um processo custoso e gradual para que as relações fossem gerando harmonia e sintonia. São corpos intensos construindo seus primeiros contornos a fim de lidar com o outro em sua vida, em seu espaço, de maneira mais real e concreta. São corpos intensos lidando com o inesperado desafio de conviver com outros tantos. São corpos intensos deparando-se com a bruta necessidade de contornar, de encontrar limites para suas empreitadas e produzir desvios para conquistarem rumos gostosos para seus ímpetos de vida. O grupo formou caminhos. A linguagem, a cultura, o estar na escola foram ficando mais claros. Os afetos ganharam rumos mais tranquilos, sem diminuir suas intensidades. Encontraram mais acolhimento e menos paredes. O Quintal foi fundamental para estes encontros. O EU diminuiu, desinchou. Compartilhar já é mais calmo, comum. O coletivo já encontra mais espaço no EU, mais abertura para conviver. Os acordos foram se estabelecendo, as relações, movimentando-se e o caminho do grupo, formando-se. O Grupo, a partir destas pequenas concessões e aberturas para fora, para o mundo, ganhou muita fluidez. Cada vez mais há sintonia das ondas que vibram em cada estudante buscando frequências parceiras. O caldeirão cozinha em fogo brando e já em panela de barro. Borbulhas sempre hão de existir e são fundamentais na incessante busca das construções dos contornos e desvios necessários. Borbulhas produzem e pedem a transformação, a atualização das receitas do grupo, de seus caminhos sempre abertos.
Duas trilhas são muito importantes para esta caminhada do grupo: o novo e ininterrupto processo de estar com o outro; e a vivência de momentos de trabalhos, de manuseios, de realizações e de transformações das coisas, sempre implicados na convivência e no estar no mundo. Trabalhamos com o Grupo, nesse semestre, o Tema do lixo que deve deixar de ser lixo. Lixo é o resíduo da nossa cultura, do nosso tempo. São os restos, o excedente, o descartável. Diariamente, segundo a segundo, desembrulhamos embrulhos, embalagens; trocamos de televisão, de celular, de cozinha, de tênis... Nossa cultura do descarte, ávida pela próxima novidade a ser consumida, apresenta-nos duas importantes questões quanto ao lixo: primeiro, como reduzir sua incessante produção de itens e necessidades sempre novas e, segundo, qual o destino de toda essa produção necessariamente descartada para que dê espaço às próximas que virão. A abordagem do Tema foi diretamente sobre a segunda questão. O que podemos fazer com tudo o que, a princípio, jogamos FORA? Para onde vai tudo isso? São sacos e sacos, literalmente cheios, todos os dias. Quem tem de lidar com isso? Damos a muitas matérias o seu fim e decretamos LIXO, uma morte. Como trazer para DENTRO? Como não matar essas matérias e considerá-las possibilidades? Conversando com nossos estudantes, vimos que, para muitos, o lixo morre nas mãos do lixeiro, acaba ali. Para outros, o lixo percorre o caminho do esgoto e acaba no rio, ou mar. Para poucos, podemos dar continuidade ao que se chama lixo. Assim, quando o retiramos do cesto, lavamos e o colocamos à disposição para uso. Estamos trazendo de FORA para DENTRO, do fim para o início. A intenção deste Tema foi justamente este caminho já realizado por alguns estudantes: dar a condição de continuidade às matérias que utilizamos e que já estão produzidas, dar permanência e vida para o que já existe e a todos os instantes é considerado lixo, nojo, fora, morto. O lixo, sendo lixo, é jogado fora, está escondido, descartado, sumido e um problema crucial do nosso presente e, principalmente, futuro. Mantê-lo neste sumiço não nos interessa.
Abordar o lixo desvelando-o como matéria, como possibilidade de criação e necessidade de transformação, isso nos interessa. Colocar matérias usadas em circulação é dar preferência à vida, à continuidade, ao ciclo. Nossos estudantes têm criatividade de sobra para transformar, para contar uma história diferente da qual conhecemos. Produzimos, ao longo do semestre, diversas atividades em que buscamos trabalhar da maneira mais compartilhada possível, a todas as mãos, e construir a partir do que antes era findo, inútil. Realizamos, por exemplo, a transformação do papel jornal lido em casa e com destino antes certo, o lixo, em uma massa desconhecida, de cor e textura nova e com possibilidades novas para ser, para poder ser. A experiência de todos nesta atividade foi muito gostosa e intensa. Picamos juntos, misturamos com água, picamos mais, mexemos, misturamos com cola, mexemos mais e mais. A transformação do conhecido em uma novidade, do lixo em uma vontade moldada pelas próprias mãos, foi muito envolvente para todos. Outro material bastante utilizado foi uma grande sobra de tecidos esportivos, retalhos, que serviram de muitas maneiras para dar vazão às possibilidades que brotam na intensidade de nossos estudantes. Enfeitamos a sala, amarramos cadeiras e mesas, construíram-se casas e trenós, cordas, faixas na cabeça, cintos etc. Outra construção importante e de ênfase coletiva foi a nossa máquina do tempo. De uma caçamba de rua, trouxemos canos jogados fora. Conversamos sobre esta condição, sobre o resgate de uma matéria, e construímos, a partir dela, uma estrutura para que nós todos pudéssemos imaginar, viajar e experimentar outros lugares. Construímos, a partir dos resíduos de nosso tempo, do lixo, a possibilidade de irmos para outros tempos da história, de nossos familiares-crianças, por exemplo. O Grupo 4 forma seu caminho dissolvendo um Eu individual, por vezes muito resistente, num bom caldo cozido lentamente. Um caldo que agrega ingredientes variados, não homogêneos e sem a necessidade de ser igual. Cada estudante tem sua presença, seus interesses. Nossos caminhos apenas trazem uma plasticidade maior para que a vida em coletivo seja mais agradável e tranquila. Para que as vontades não choquem em tantas paredes, mas sim produzam possíveis desvios e curvas que encontrem novidades adiante. A
dificuldade em estar com o outro não pode brecar nosso estudante, torná-lo rígido. A diluição busca justamente a fluidez nas relações. O lixo é rígido se considerarmos seu fim, sua morte. Ao propormos seu novo uso, uma possibilidade qualquer, ele flui, a matéria ganha novidade e acontece. Assim é, trilhando estes múltiplos espaços, que o Grupo 4 forma seus caminhos.