O roteiro freudiano do corpo



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Transcrição:

Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., VII, 4, 258-262 Corpo Maria Helena Fernandes São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003 O roteiro freudiano do corpo Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes 258 Maria Helena Fernandes é psicóloga formada pela Universidade Federal de Pernambuco. A partir de sua graduação, em 1983, dedicou-se à pesquisa, à investigação e ao estudo do sofrimento psíquico e às formas corporais de sofrimento. Estudou durante seis anos em Paris onde realizou suas pesquisas sob a orientação de Pierre Fédida na Universidade de Paris VII. Obteve, em 1993, o Diplome D Etudes Approfondies em Psicopatologia e Psicanálise com o trabalho L hypertension Arterielle essentielle: la maladie du silence e, em 1997, concluiu o doutorado em Psicopatologia e Psicanálise com a tese L hypocondrie du revê et le silence des organes: une clinique psychanalytique du somatique. Com o trabalho A função do corpo na teoria freudiana obteve o Pós-Doutorado em Psicanálise no Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina- Unifesp, em 2001. A função de transmissão e formação é efetivada através de atividades clínicas em consultório e como supervisora, orientadora e professora, em diferentes instituições de saúde e/ou acadêmicas. Desde 1998 é professora no Instituto Sedes Sapientiae em São Paulo, no Curso de Psicossomática. O interesse pelo sofrimento psíquico e o sofrimento do corpo, rastreando as possíveis interfaces com apoio na teoria freudiana, são a principal vertente de seus textos. A refração que daí se expande foi sendo

RESENHA DE LIVROS compartilhada com seus leitores a partir de suas produções apresentadas em debates, simpósios, seminários teórico-clínicos e em seus diversos artigos publicados. Entre seus trabalhos, o livro Corpo, inserido dentro dos temas da Coleção Clínica Psicanalítica, dirigida por Flávio Carvalho Ferraz, e editada pela Casa do Psicólogo, reúne importantes concepções de seu pensamento. Do corpo excluído ao corpo doente é o percurso que Maria Helena convida o leitor a acompanhar, desfiando suas hipóteses, das quais, ao final, dificilmente se poderá discordar. A exclusão do corpo do cenário psicanalítico, em que o primado da linguagem e do pensamento restringiram a psicanálise ao mundo da representação, levou a uma espécie de recalcamento da problemática do corpo na psicanálise, conforme concepção de Joel Birman (p. 20), deixando vago este lugar. Teóricos da psicossomática tiveram, então, a primazia no estudo do corpo deixado à deriva e passaram a abordá-lo a partir do estudo do corpo doente. Vários psicanalistas, diz a autora, entre os quais Reich e Ferenczi, interessaram-se pela influência dos fatores subjetivos no processo de adoecimento do corpo e, a partir de 1940, além do trabalho de Balint, desenvolvem-se, no seio do movimento psicanalítico, duas escolas de psicossomática: a Escola de Chicago e, posteriormente, a Escola de Paris com Pierre Marty. Os trabalhos da Escola de Chicago são principalmente sobre a doença orgânica e certas características da personalidade, e os da Escola de Paris rompem com a causalidade características da personalidade e eclosão de uma doença e formulam o conceito de mentalização, como uma dificuldade específica dos pacientes somáticos e/ou somatizadores. A contribuição sobretudo destas duas escolas de pensamento colocaram definitivamente face-a-face psicanálise e medicina, em imbricações expressivas do sofrimento humano. Maria Helena se filia ao conjunto de psicanalistas que estudam Freud e querem retomar para a psicanálise, em parceria com outros saberes, a compreensão sobre o corpo. As conseqüências epistemológicas dessa relação, e sobretudo sua expressão na clínica, já em 1913 foi expressa por Freud: Apesar de todo nosso esforço para não deixar os termos e os pontos de vista biológicos chegarem a dominar o trabalho psicanalítico, não podemos deixar de utilizá-los para a descrição dos fenômenos estudados por nós. Não podemos deixar de considerar a pulsão como conceito-limite entre a concepção psicológica e a biológica... (p. 24). Se a questão do corpo dentro do setting psicanalítico era uma questão de escolha, a presença contemporânea do sofrimento do corpo em suas múltiplas manifestações passou a se impor como uma necessidade de escuta, e psicanalistas como Joyce McDougall dizem que a manutenção do equilíbrio psíquico se realiza, na maior parte das situações de vida, pela produção de sintomas somáticos, muito mais do que pela produção de sintomas psíquicos, neuróticos 259

260 ou psicóticos (p. 27). Maria Helena não só concorda com esta concepção, como ao longo do seu texto fala de sua experiência como psicanalista em instituições de saúde, e apresenta sua tese de que o corpo se encontra no centro da construção teórica freudiana. Para isso, conduzindo o leitor através da metapsicologia, explicita, no terceiro capítulo, que a especificidade psicanalítica da abordagem do corpo confere à alteridade uma posição estratégica. A construção sobre alteridade, ausência e dor pode ser espacialmente apresentada com uma figura de tríplice face, que se expressa no corpo ou na alma, conforme o investimento. A partir do texto Inibição, sintoma e angústia (1926), a concepção freudiana da dor sugere que a ausência da mãe provoca dor e não angústia, no bebê. Assim por meio de uma operação analógica, Freud inscreve o Outro em toda dor, seja ela somática ou psíquica. Esta inscrição constitui uma contribuição essencialmente psicanalítica à abordagem, não somente do corpo, mas especificamente da dor, cujo caráter enigmático nunca deixou de ser apontado pela clínica médica, o que permite compreender claramente que, afetado pela ausência, o corpo dói (p. 84). Ao lado da dor, o transbordamento somático e/ou psicossomático terá suas mais intrigantes expressões nas formas de adoecer que hoje chegam em busca de acolhimento na clínica psicanalítica. Esse corpo que aporta à clínica é um corpo investido pela alteridade, um corpo erógeno, muito mais que biológico, pois articula a necessidade com a demanda. A autora recorre a P.-L. Assoun: O corpo é, portanto, o instrumento vivo por meio do qual a mensagem do Outro se encontra literalmente incorporada (p. 91). Partindo do conceito de pulsão e da experiência do sonhar, escutando a dor e o corpo nas relações de alteridade, há uma clara demonstração de que o corpo esteve, desde o começo, na metapsicologia freudiana; foi despertado pelo Outro e assumido pelos que se propõem a escutá-lo mais do que a enxergá-lo apenas. As implicações clínicas e metapsicológicas desta compreensão tornam-se irreversíveis e as contribuições de estudos como este são a garantia de que, sem apostasias, pode-se receber o corpo na sala com divã, transformando-o em corpo falado. Se, apesar de tudo, permanecerem dúvidas em relação à presença do corpo no campo freudiano, o capítulo 2 Retorno à feiticeira metapsicológica serve como suporte para o trânsito entre os escritos de Freud que fazem referência à questão do corpo, desde as suas cartas a Fliess, a Groddeck, a Abraham, a Lou Andreas-Salomé, entre outras, atravessando conferências, livros e ensaios, chegando até os textos tardios de 1937 e 1938, Construções em análise ; Análise terminável e interminável e Esboço da psicanálise. Nas questões relativas à clínica, a autora chama a atenção para a delicadeza da escuta já que o corpo, antes de ser falado, é um corpo fechado em sua construção e em sua

RESENHA DE LIVROS dor. O fazer clínico permite que a dor, além de ser sentida, possa ser nomeada. As velhas histórias podem se tornar outras histórias quando o trabalho em análise acolhe o corpo. Há uma instigante comparação que Freud faz, em Estudos sobre a histeria, entre a doença orgânica, a histérica e a hipocondríaca: o paciente orgânico descreve a dor com tranqüilidade e precisão, descrevendo onde começa e seu percurso; o hipocondríaco se apega intensamente à descrição tentando ligar seu discurso ao discurso médico, querendo impressionar, e sempre se sente fracassado porque acha que não se fez entender, enquanto o histérico descreve uma anatomia fantasmática, parte indissolúvel de seu sintoma. Ao fazer esta distinção Freud confere uma particularidade ao discurso de cada um e é esta a vertente variável que sedimenta este estudo. É a relação da palavra com o corpo o que nos deve ocupar, supondo que a fissura entre o corpo falado e corpo doente possa ir desaparecendo. O corpo é um só, o sintoma é próprio de cada sujeito; ao psicanalista cabe escutar e olhar este corpo que sofre e acompanhar a nova história que vai sendo construída. A passagem da lógica da anatomia para a lógica da representação permite que a linguagem atravesse o corpo e equivale à distinção de Freud entre o corpo biológico e o corpo psicanalítico. A partir de Joel Birman, esta construção vai além quando retomada no texto de Maria Helena, onde encontramos, na Conclusão, a afirmação: No entanto a lógica da representação não esgota a problemática do corpo em Freud. Como vimos, no interior do pensamento freudiano duas lógicas diferentes, a da representação e a do transbordamento, coexistem e constituem dois pilares fundamentais para se refletir sobre o corpo em Freud (p. 111). No corpo do transbordamento o sintoma é pensado como uma descarga do excesso que atravessou o aparelho psíquico e não conseguiu ser representada porque os recursos estariam empobrecidos, inacessíveis ou, ainda, pouco elaborados. O corpo é então palco do encontro entre o psíquico e o somático e não um corpo biológico stricto sensu. O transbordamento ocorre ou porque o excesso é precoce e prematuro ou porque impossível acessar recursos simbólicos e da ordem da linguagem. Este é o principal fascínio que o corpo doente exerce na psicossomática identificada com a psicanálise ou na psicanálise identificada com a psicossomática que acolheu estes pacientes em dor e sem palavras para nomeá-la. Maria Helena acrescenta ainda uma contribuição de Pierre Fédida O itinerário da psicanálise freudiana é o itinerário de uma pesquisa que, evitando se deixar levar pela ilusão do realismo do corpo-função, ou do corpo-imagem, ou ainda do corpo-vivido, permanece atenta àquilo que do corpo reside nas palavras, se inscreve nos traços de recordações e fica gravado na memória, a 261

262 ponto de aparecer, às vezes, somente como uma lembrança (p. 117). Parafraseando Freud, recordar, repetir e elaborar, Maria Helena retoma as palavras de Fédida para dizer que o trabalho do analista consiste em receber, conservar e reconstituir. Os avatares do corpo no século XXI, corpo fragmentado e recortado, corpo esbelto e anorético, corpo de aluguel e corpo alugado, corpo bomba e corpo sacrificado, corpo em véus e silenciado, ocuparam definitivamente a cena pública, social, cultural, científica e política. O que antes era retratado pelo artista ou furtivamente buscado através da fechadura e com o binóculo, hoje é desnudado, em tempo real, on line. Não poderia a psicanálise e os psicanalistas deixarem de se comprometer com esta viagem e de se comprometer nesta viagem, sob pena de serem ultrapassados. A contribuição dos estudos sobre o corpo, abertamente transitando dentro dos textos psicanalíticos, invocando a filiação a Freud e a seus melhores seguidores, explicitam a decisão dos estudos contemporâneos de acrescentar à psicanálise a contribuição que nos é pedida. O rigor da pesquisa de Maria Helena, iniciada há vinte anos, e em permanente parceria com o fazer clínico, segue os preceitos de que a teoria viceja a partir da clínica. A concepção de que o corpo pode ser recebido através de um tratamento que estimule a cadeia associativa a ser criada para que a doença possa adquirir uma imagem permitindo ao paciente inscrevê-la em sua história pessoal foi uma das propostas da Escola de Paris, de Pierre Marty, fundando a clínica da psicossomática psicanalítica. Corpo é uma leitura necessária aos que se vêem frente-a-frente no campo epistemológico e clínico com as parcerias entre corpo em si, corpo para si e corpo para o outro, e leitura indispensável para os que se interessam pelas concepções que estabelecem aliança entre psicanálise, psicossomática e prática psicanalítica contemporânea. Flávia, Lígia, Pierre, Eduardo e Marília são os pacientes de Maria Helena que trazem através de suas queixas as imagens da clínica psicanalítica e do mal-estar na atualidade. Vamos conhecê-los!