37: 246-252, jul./dez. 2004 Capítulo VI ICTERÍCIA JAUNDICE. Ana L. Candolo Martinelli



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Medicina, Ribeirão Preto, Simpósio SEMIOLOGIA 37: 246-252, jul./dez. 2004 Capítulo VI ICTERÍCIA JAUNDICE Ana L. Candolo Martinelli Docente. Departamento de Clínica Médica. Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP CORRESPONDÊNCIA: Divisão de Gastroenterologia. Departamento de Clínica Médica. Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP. Campus da USP - CEP 14049-900 Ribeirão Preto - SP, Brasil. Fone: 16-602 2456 Fax: 16-633 6695 e-mail:adlcmart@fmrp.usp.br MARTINELLI ALC. Icterícia. Medicina, Ribeirão Preto, 37: 246-252, jul./dez. 2004. RESUMO: A icterícia reflete perturbações no balanço entre a produção e o clareamento hepático da bilirrubina. São discutidos o metabolismo da bilirrubina e aspectos da fisiopatologia, manifestações clínicas e causas da hiperbilirrubinemia. São abordados ainda parâmetros clínicos que devem ser valorizados na avaliação do paciente ictérico. UNITERMOS: Icterícia. Bilirrubinas. Hiperbilirrubinemia. A icterícia é definida como coloração amarelada da pele, escleróticas e membranas mucosas conseqüente à deposição, nesses locais, de pigmento biliar (bilirrubina), o qual se encontra em níveis elevados no plasma (hiperbilirrubinemia). A icterícia é clinicamente detectada quando a concentração sérica de bilirrubina ultrapassa 2-3mg/100ml (valor normal: 0,3-1,0mg/100ml). A detecção de icterícia tem importante valor semiológico e deve ser sempre valorizada. A icterícia reflete perturbações na produção e/ou em passos do metabolismo/excreção da bilirrubina e pode ser manifestação clínica de numerosas doenças hepáticas e não hepáticas. A icterícia pode ser a primeira ou mesmo a única manifestação de uma doença hepática. Para a detecção da icterícia é fundamental que o paciente seja examinado em ambiente com luz natural adequada, uma vez que, com pouca claridade ou com iluminação artificial, sua percepção pode ser prejudicada. Os locais onde a icterícia é mais freqüentemente percebida são conjuntiva ocular (em casos mais discretos particularmente na periferia) e pele. Essa distribuição faz-se como conseqüência da afinidade da bilirrubina por tecido elástico. Essa afinidade pode explicar ainda a discrepância entre a intensidade da icterícia e os níveis séricos de bilirrubina em fases de recuperação de doenças que se acompanham de icterícia. A localização da pigmentação pode ser importante para a distinção clínica entre outras causas de pigmentação amarelada da pele, como carotenemia, condição em que o pigmento (betacaroteno) se deposita na pele, particularmente nas palmas das mãos, mas poupa escleróticas e membranas mucosas. A bilirrubina também pode impregnar a urina, o suor, o sêmen e o leite, além de, em casos de icterícia intensa, o fluido ocular, podendo determinar queixas de xantopsia (objetos são vistos de cor amarela). 1- METABOLISMO DA BILIRRUBINA Os pigmentos biliares são constituídos por uma cadeia de quatro anéis pirrólicos ligados por três pontes de carbono. É o principal produto de degradação do heme cujas fontes no organismo, são a hemoglobina, a mioglobina e as hemoproteínas. 246

Icterícia A principal fonte de bilirrubina é a hemoglobina proveniente da quebra de eritrócitos maduros, a qual contribui com cerca de 80-85% da produção total (Figura 1). Dos restantes 15-20%, uma pequena proporção é proveniente da destruição prematura, na medula óssea ou no baço, de eritrócitos recém-formados e o maior componente é formado no fígado, derivado do heme não eritróide e de hemoproteínas hepáticas tais como mioglobina, citocromo e catalases. Em adultos, são quebrados diariamente cerca de 35g de hemoglobina, resultando na produção de 300mg de bilirrubina. Em condições fisiológicas, a maioria dos eritrócitos normais é seqüestrada da circulação após 120 dias de vida pelas células reticuloendoteliais do baço, do fígado e da medula óssea. Dentro das células fagocíticas ocorre a lise dos eritrócitos e a degradação da hemoglobina. A molécula globina é degradada, o anel de ferroprotoporfirina é quebrado e o ferro parcialmente reutilizado para a síntese do heme. O produto tetrapirrólico resultante é a biliverdina, que é convertida em bilirrubina pela enzina beliverdina redutase. Essa forma de bilirrubina é denominada não conjugada e é lipossolúvel. A bilirrubina não conjugada ou indireta liga-se reversivelmente à albumina, forma pela qual é transportada no plasma (Figura 2). É encontrada em fluidos corpóreos de acordo com seu conteúdo de proteínas, o que explica sua maior concentração em exsudatos que em transudatos. Ressalta-se que as sulfonamidas e salicilatos competem com a bilirrubina pela ligação com a albumina. A bilirrubina não conjugada tem afinidade pelo tecido nervoso e, quando em concentrações elevadas no sangue em recém-nascidos impregna os gânglios da base causando kernicterus. O fígado ocupa papel central no metabolismo da bilirrubina, sendo responsável por sua captação, conjugação e excreção. Em condições normais, a bilirrubina não conjugada é rapidamente captada e metabolizada pelo fígado que a prepara para ser eliminada. Estudos sugerem que a bilirrubina se dissocia da albumina nos sinusóides e é transportada através da membrana plasmática dos hepatócitos envolvendo a participação de proteínas transportadoras. Uma vez transferida para dentro do hepatócito, a bilirrubina provavelmente se liga, pelo menos em parte, a uma proteína citoplasmática denominada ligandina. Essa ligação pode impedir o efluxo dessa substância do hepatócito para o plasma. Acredita-se que existam proteínas transportadoras responsáveis pelo transporte da bilirrubina da membrana plasmática até o retículo Figura 1: Fontes de bilirrubina. SER: sistema retículoendotelial. M.O.: medula óssea. 247

Martinelli ALC Figura 2: Metabolismo da bilirrubina. endoplasmático. No retículo, a bilirrubina não conjugada, que é lipossolúvel, é convertida pela ação da enzima UDP-glicuronosil transferase em compostos solúveis em água que são o monoglicuronato (15% do total) e o diglicuronato (85% do total) de bilirrubina. Esses compostos são passíveis de rápido transporte através da membrana canalicular para a bile. O processo de excreção de bilirrubina para o canalículo biliar requer energia, sendo um dos passos mais susceptíveis de comprometimento quando a célula hepática é lesada. Quando esse passo do metabolismo da bilirrubina é comprometido, ocorre diminuição da excreção de bilirrubina para a bile e regurgitação da bile para o sangue. No sangue, a bilirrubina conjugada também se liga à albumina, entretanto, isso se faz tanto de forma reversível como não reversível. Da ligação não reversível resulta a formação de complexos que não são filtrados pelos rins e podem ser detectados na circulação durante várias semanas após a resolução do processo causador da icterícia. Uma vez excretada do hepatócito, a bile é transportada dos canalículos biliares para os dúctulos, destes para os ductos interlobulares e destes para os ductos septais, e, assim, sucessivamente, até atingir os dois principais ductos hepáticos que emergem dos lobos direito e esquerdo do fígado. Os dois ductos formam o ducto hepático comum, o qual, após unir-se com o ducto cístico e formar o ducto biliar comum, desemboca no duodeno. A bilirrubina conjugada ou direta é polar e não absorvida pelo intestino delgado. Uma vez no íleo terminal e cólon, a bilirrubina é hidrolisada por enzimas bacterianas (betaglicuronidases) formando-se o urobilinogênio. Este é não polar e somente uma mínima parcela é absorvida no cólon. Em condições normais essa parcela é reexcretada pelo fígado na bile (90% do total) e pelos rins (10% do total). Em situação de disfunção hepática, a reexcreção biliar de urobilinogênio pode diminuir, aumentando a parcela eliminada na urina. Em condições em que há diminuição da excreção de bilirrubina ao intestino ou diminuição da flora intestinal (uso de antibióticos, por exemplo) pode haver diminuição da produção de urobilinogênio. Ao contrário, em situações de aumento da produção da bilirrubina, pode haver aumento da síntese de urobilinogênio e de seus níveis na urina. As fezes normais de indivíduo adulto contêm uma mistura de urobilinogênio e seu produto de oxidação correspondente, de cor laranja, a urobilina. A diminuição ou ausência de excreção de bilirrubina na luz intestinal provoca alterações na cor das fezes tornando-as mais claras (hipocolia fecal) ou esbranquiçadas (acolia fecal) (Figura 3). A bilirrubina conjugada, por ser solúvel em água, penetra mais facilmente em fluidos corpóreos e é capaz de provocar graus mais acentuados de icterícia que a bilirrubina não conjugada. A pele pode tornar-se esverdeada, nos casos de hiperbilirrubinemia conjugada, prolongada, possivelmente pelo aumento da biliverdina. Em condições normais, a urina contém somente traços de bilirrubina. A bilirrubina não conjugada, como é firmemente ligada à albumina, não é filtrada pelos glomérulos renais e, não sendo também secretada pelos túbulos renais, não é excretada na urina. Uma fração da bilirrubina conjugada liga-se à albumina, enquanto uma pequena fração permanece não ligada, sendo filtrada pelos rins e eliminada na urina. Tal fração é responsável pela mudança da cor da urina, a qual pode ser cor de chá forte ou mesmo cor de cocacola (colúria), na dependência da quantidade de bilirrubina presente (Figura 3). 248

Icterícia HIPERBILIRRUBINEMIA MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS ASSOCIADAS NA DEPENDÊNCIA DA FRAÇÃO DA BILIRRUBINA QUE SE ENCONTRA ELEVADA Hiperbilirrubinemia não conjugada (indireta): icterícia Hiperbilirrubinemia conjugada (direta): icterícia colúria hipocolia ou acolia fecal (pode estar ausente) Figura 3: Manifestações clínicas associadas à hiperbilirrubinemia na dependência da fração da bilirrubina que se encontra aumentada no sangue. 2- FISIOPATOLOGIA DA HIPERBILIRRUBI- NEMIA A concentração plasmática de bilirrubina reflete o balanço entre a taxa de produção e o clareamento hepático. Assim, se sua produção estiver aumentada, se houver prejuízo em um ou mais passos do processo de metabolização ou excreção hepática, como anormalidades na captação e transporte da bilirrubina do plasma para o hepatócito, déficit na sua conjugação com o ácido glicurônico, ou na sua excreção para o canalículo biliar ou ainda se houver obstáculo ao fluxo de bile na árvore biliar no seu trajeto até o duodeno, poderá haver elevação dos níveis séricos de bilirrubina (Figura 4). Dependendo da causa de hiperbilirrubinemia podemos observar predomínio de uma das duas frações da bilirrubina, da não conjugada ou da conjugada. A seguir, são discutidos causas e mecanismos de hiperbilirrubinemia, de acordo com a fração predominante no soro. As causas e mecanismos de hiperbilirrubinemia (Figura 4) podem ser: A. Hiperbilirrubinemia não conjugada A1. Aumento da produção de bilirrubina a) hemólise (esferocitose, anemia falciforme) b) eritropoiese ineficaz Geralmente, acompanhamse de hiperbilirrubinemia leve (até 4mg/100ml) e os níveis de urobilinogênio fecal e urinário podem estar aumentados. A2. Diminuição da captação hepática/ transporte de bilirrubina a) drogas (rifampicina, ácido flavaspídico, probenecide) b) jejum c) sépsis Figura 4: Causas de hiperbilirrubinemia de acordo com o passo metabólico comprometido. 249

Martinelli ALC A3. Distúrbio da conjugação da bilirrubina (atividade diminuída da enzima glicuronosil transferase) a) deficiência hereditária a1. Síndrome de Gilbert (leve diminuição da atividade da enzima; níveis séricos de bilirrubina menores que 6mg/100ml); a2. Síndrome de Crigler-Najjar tipo II (moderada diminuição da atividade da enzima; níveis séricos de bilirrubina maiores que 6 mg/100ml); a3. Síndrome de Crigler-Najjar tipo I (ausência da atividade da enzima; níveis séricos de bilirrubina maiores que 20mg/100ml; é fatal). b) deficiência adquirida a. drogas b. doença hepatocelular c. sépsis Nos casos de hiperbilirrubinemia não conjugada há icterícia, mas não colúria ou hipocolia/acolia fecal. B. Hiperbilirrubinemia conjugada B1. Defeitos na excreção da bilirrubina (defeitos intra-hepáticos) a) doenças hereditárias ou familiares a1. Síndrome de Dubin-Johnson (bilirrubina sérica: 2-5mg/100ml); a2. Síndrome de Rotor (bilirrubina sérica: 2-5mg/ 100ml). b) desordens adquiridas a. doença hepatocelular; b. drogas (contraceptivos orais, metiltestosterona); c. sépsis B2. Obstrução biliar extra-hepática a) obstrução mecânica das vias biliares extra-hepáticas, por cálculo, estenoses e tumores (câncer das vias biliares, câncer da cabeça do pâncreas, câncer de papila ou do duodeno, linfomas). Nos casos de hiperbilirrubinemia conjugada há icterícia e colúria. A hipocolia/acolia fecal pode estar presente ou não. C. Multifatorial (defeito em mais de uma fase do metabolismo da bilirrubina) a) doença hepatocelular (cirrose, hepatite): em geral, as funções de captação, conjugação e excreção estão prejudicadas, sendo que a de excreção é a mais comprometida, o que faz com que predomine a hiperbilirrubinemia conjugada. b) sépsis: as funções de captação, conjugação e de excreção da bilirrubina podem estar comprometidas. c) icterícia neonatal: acredita-se que participem fatores como diminuição dos níveis de ligandina hepática, comprometimento da conjugação e da excreção da bilirrubina, aumento da circulação enterohepática da bilirrubina, além de quebra acelerada de eritrócitos. Os níveis de bilirrubina no sangue variam entre 6-8mg/100ml, com predomínio da fração não conjugada. 3- ABORDAGEM DO PACIENTE ICTÉRICO Na abordagem do paciente ictérico, alguns dados da história clínica e do exame físico são fundamentais para o esclarecimento da possível causa da icterícia. O emprego de exames complementares não será abordado nesta discussão. 3A. História clínica a) idade: a idade do aparecimento da icterícia pode auxiliar quanto à etiologia de certas doenças, que são prevalentes em certas faixas etárias, como por exemplo, hepatite A em crianças e adolescentes, câncer de vias biliares em pacientes mais idosos. b) profissão: certas profissões possibilitam a exposição a infecções virais, como ocorre com médicos, enfermeiros, dentistas, técnicos de laboratório e estudantes da área de saúde, enquanto em outras, o indivíduo pode estar exposto a tóxicos, álcool, etc. c) procedência/viagens: é importante saber se o paciente é procedente ou permaneceu em regiões endêmicas de esquistossomose, hepatites e outras doenças que cursam com icterícia. Deve ser investigado se o paciente esteve em regiões de ocorrência de febre amarela, leptospirose. Pesquisar contacto com excrementos de ratos. d) raça: certas doenças ocorrem mais freqüentemente em certas raças, como anemia falciforme em negros. e) hábitos: uma das etiologias mais comuns de doença hepática em nosso meio é a alcoólicaportanto, é fundamental a informação referente ao uso de bebida alcoólica (quantidade, tipo de bebida, tempo de uso, história de abuso recente de álcool). A infecção pelo vírus das hepatites B e C é freqüente 250

Icterícia em usuários de drogas injetáveis, a infecção viral também é freqüente em homossexuais. f) antecedentes: é muito importante pesquisar história de transfusões de sangue ou derivados, contacto com ictéricos, história familiar de hepatite, icterícia ou anemia, antecedente de operações, particularmente em vias biliares, antecedente de tumores, tatuagens, tratamento dentário, entre outros. g) uso de medicamentos e exposição a tóxicos: é fundamental a pesquisa do uso de medicamentos (uso crônico, uso recente, uso esporádico ou uso atual) em todo paciente ictérico. Inúmeras drogas podem causar icterícia por diferentes mecanismos e diversos tipos de lesão hepática podem ser causados por drogas. Vale ressaltar que o uso de chás ou medicamentos feitos a partir de plantas ou ervas pode ser a causa da lesão hepática. Exposição a diferentes tóxicos (qualquer via, incluindo inalatória) pode provocar doenças hepáticas, que podem ser agudas, fulminantes ou crônicas. 3B. Sintomas a) pródromos de hepatite: queixas de náusea, anorexia e aversão ao cigarro, precedendo o aparecimento de icterícia, sugerem hepatite viral. b) febre b1. baixa, sem calafrios, pode ocorrer na hepatite aguda viral e na hepatite alcoólica; b2. com calafrios, sugere contaminação bacteriana da bile (colangite) e pode acompanhar-se de hepatomegalia dolorosa. Em cirróticos, sugere bacteremia. A febre pode fazer parte de um quadro infeccioso de qualquer natureza e a icterícia ter, como causa a sépsis. c) manifestações de anemia: podem ocorrer nas anemias hemolíticas, na hipertensão portal, na cirrose e em casos de neoplasia. d) colúria: é uma indicação da presença de pigmento biliar (bilirrubina conjugada) na urina; indica que a doença provoca hiperbilirrubinemia às custas da fração conjugada. e) acolia/hipocolia fecal: indica deficiência de excreção de bilirrubina para o intestino. Em casos de obstrução completa as fezes tornam-se acólicas. O urobilinogênio fecal e o urinário não são detectados. Acolia persistente sugere obstrução biliar extra-hepática. f) dor abdominal f1. cólica biliar: dor em cólica no hipocôndrio direito ou no quadrante superior direito do abdômen sugere cálculo biliar. f2. dor ou desconforto no hipocôndrio direito: pode ocorrer em casos de aumento rápido do volume do fígado como na hepatites agudas, tumores e congestão hepática. Abscesso hepático também é causa de dor no hipocôndrio direito; nesses casos, são comuns a ocorrência de febre e o comprometimento do estado geral. f3. dor pancreática: ocorre em casos de pancreatites e de tumores pancreáticos que obstruem as vias biliares ou pode ser uma complicação da obstrução das vias biliares, extra-hepáticas, por cálculos. g) prurido cutâneo: é comum em doenças hepáticas colestáticas intra ou extra-hepáticas. Pode ser a primeira manifestação de doença hepática como ocorre na cirrose biliar primária. h) perda de peso: é comum em doenças hepáticas agudas e crônicas particularmente nas fases finais da doença crônica e nos casos de malignidade i) vesícula biliar palpável: a vesícula biliar pode ser palpável nos casos de obstrução biliar extra-hepática e sugere neoplasia justa-ampolar; entretanto, pode ser observada em casos de coledocolitíase. j) manifestações de hipertensão portal: circulação colateral portossistêmica, esplenomegalia e ascite. Deve ser feito diagnóstico diferencial entre as causas de hipertensão portal que se acompanham de icterícia. l) manifestações de insuficiência hepática: aranhas vasculares, eritema palmar, diminuição dos pelos, atrofia testicular, ginecomastia, distúrbios da coagulação (sangramentos), hálito hepático, encefalopatia hepática. A icterícia faz parte do quadro de insuficiência hepática. m) exame do fígado: hepatomegalia dolorosa em hepatites agudas, colangites, tumores, congestão hepática, abscesso hepático; fígado nodular em tumores e cirrose; fígado diminuído de tamanho em casos de hepatite grave e de cirrose. n) esplenomegalia: pode ser manifestação da síndrome de hipertensão portal, fazer parte do quadro de hemólise e acompanhar infecções. 251

Martinelli ALC o) ascite: pode ser manifestação de hipertensão portal e de carcinomatose peritoneal. p) edema periférico: pode ser manifestação de hipoalbuminemia que acompanha as hepatopatias graves, nesses casos, o edema é frio, depressível e indolor. q) manifestações de colestase crônica: sinais de coçagem são comuns em quadros colestáticos de qualquer etiologia. Xantomas, xantelasmas, hiperceratose e pigmentação da pele e baqueteamento dos dedos podem ser observados em quadros colestáticos crônicos. A avaliação clínica, cuidadosa e minuciosa, é fundamental no diagnóstico etiológico da icterícia e na orientação da condução clínica do caso. MARTINELLI ALC. Jaundice. Medicina, Ribeirão Preto, 37: 246-252, july/dec. 2004. ABSTRACT: Jaundice reflects impaired balance between bilirrubin production rate and its hepatic clearance. Bilirrubin metabolism and pathophysiology, the causes and clinical features of hyperbilirubinemia as well as the clinical approach of the jaundiced patient are discussed. UNITERMS: Jaundice. Bilirrubin. Hyperbilirubinemia. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1 - ROY-CHOWDHURY J & JANSEN PLM. Bilirrubin metabolism and its disorders. In: ZAKIM D & BOYER T D, eds. Hepatology - A textbook of liver disease, 3 rd ed., W. B. Saunders Company, Philadelphia, p. 323-361,1996. 2 - FEVERY J & BLANCKAERT N. Bilirrubin metabolism. In: McINTYRE N; BENHAMOU JP; BIRCHER J; RIZZETTO M & RODES J; eds. Oxford textbook of clinical hepatology, 2nd.ed, Oxford University Press, Oxford, p. 107-115, 1992. 3 - SHERLOCK S & DOOLEY D. Diseases of the liver and biliary system. 11th ed., Blackwell Science, Oxford, 2002. p. 205-218: Jaundice. 252