RETROCESSÃO: QUAL SERÁ REALMENTE SUA NATUREZA JURÍDICA? Por Carlos Augusto F. S. Ahringsmann BREVÍSSIMAS CONSIDERAÇÕES INICIAIS Antes de tecer qualquer consideração acerca da natureza jurídica do instituto da retrocessão é necessário dizer que qualquer conclusão alcançada será alvo de críticas e questionamentos. É certo ainda que não há na doutrina, absolutamente, unanimidade sobre o assunto. Grandes mestres do direito se posicionam de forma antagônica e seria muita pretensão de nossa parte pretender lançar uma pá de cal sobre o tema. Há autores inclusive, que, com o passar dos anos, mudaram seu convencimento, ficando contra os argumentos que antes afirmavam. O objetivo principal do presente artigo é sintetizar as correntes existentes e justificar nossa posição, despertando no leitor a curiosidade sobre o tema e dando-lhe argumentos para filiar-se também a uma das vertentes. Logicamente, dependendo da posição adotada, o tratamento dispensado ao tema será muitíssimo diferenciado. Assim, por exemplo, as medidas cabíveis no caso de violação do direito serão diametralmente distintas a depender do entendimento adotado, bem como os prazos prescricionais a serem aplicados. RETROCESSÃO: CONCEITO, ORIGEM E LOCALIZAÇÃO Primeiramente, imprescindível trazer aqui o conceito de retrocessão, isto é, dizer em que consiste tal instituto, o que é. Vamos então à sua definição: Segundo consta no dicionário jurídico da Academia Brasileira de Letras Jurídicas: RETROCESSÃO.s.f. (Lat., de retrocessus) Dir. Obr. Ato pelo qual o poder expropriante oferece ao 1
Retrocessão nas palavras de: antigo dono o imóvel desapropriado, pelo preço por que o foi, caso não obtenha o destino para o que o desapropriou. CF art. 5(XXIV); CC, 1150 (atual 519). Helly Lopes Meireles é a obrigação que se impõe ao expropriante de oferecer o bem ao expropriado mediante a devolução do valor da indenização, quando não lhe der o destino declarado no ato expropriatório. Celso Antônio Bandeira de Mello é o direito do exproprietário de reaver o bem expropriado, mas não proposto a finalidade pública. Maria Sylvia Zanella di Pietro é o direito que tem o expropriado de exigir de volta o seu imóvel caso o mesmo não tenha o destino para que se desapropriou Na legislação a matéria era tratada no Código de 1916 no art.1.150, que rezava: A União, o Estado, ou o Município, oferecerá ao ex-proprietário o imóvel desapropriado, pelo preço por que o foi, caso não tenha o destino, para que se desapropriou. diz: No Código Civil de 2002, a matéria é tratada no art.519, que Se a coisa expropriada para fins de necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, não tiver o destino para que se desapropriou, ou não for utilizado em obras ou serviços públicos, caberá ao expropriado o direito de preferência, pelo preço atual da coisa. A questão que se impõe é saber se este dever da administração de oferecer o bem não utilizado para o fim que justificou a 2
desapropriação corresponde a um direito pessoal ou real do exproprietário. O problema pode parecer simples, mas, como veremos, não é assim tão fácil sua resolução. Bem assim, a depender de como se classifique o instituto, o tratamento dispensado no caso de inobservância do direito será absolutamente distinto. A CONFUSÃO LEGISLATIVA E AS CORRENTES DOUTRINÁRIAS No começo dos séc XX, a retrocessão era unanimemente classificada como direito real. Era tratada pela Lei 1.021/1903 e regulada pelo Decreto 4.956 do mesmo ano. A disciplina da matéria em tais diplomas deixava claro tratar-se de direito real e assim pensava a doutrina de forma unânime. Todavia, o legislador (sempre ele) semeou a discórdia ao tratar do tema no CC de 1916. O artigo supra-mencionado (1.150), combinado com o art. 1.156 1 daquele mesmo diploma diziam tratar-se de direito de preferência. Sendo o direito de preferência eminentemente de cunho pessoal estava criada a polêmica. 2 A partir de 1916 muitos doutrinadores bandearam-se para a corrente que defendia ser a retrocessão um direto pessoal. Em 1941, com o surgimento do Decreto-Lei 3.365 esta corrente se viu ainda mais prestigiada uma vez que um dos artigos deste Decreto diz expressamente que os bens expropriados não podem ser objeto de reivindicação e toda ação a eles referente deveria ser resolvida em perdas e danos (característica dos direitos pessoais). Assim, pode-se dizer que aqueles que simplesmente observavam a letra das leis não tinham dúvidas em propalar e defender a natureza pessoal do direito à retrocessão, afirmando, pois, que toda vez que um particular tivesse um bem expropriado e o fim que justificasse sua desapropriação não fosse alcançado, caso o bem não fosse oferecido ao particular, a este somente restaria pleitear perdas e danos. Isto é, jamais poderia este compelir o estado a devolver-lhe o bem propriamente 1 Art. 1.156: Responderá por perdas e danos o comprador, se ao vendedor não der ciência do preço e das vantagens, que lhe oferecem pela coisa. 2 Obviamente ao aplicar o art. 1.156 para o caso de desapropriação, no lugar de comprador deverá ser visualizado o expropriante e no lugar do vendedor, o expropriado. 3
dito. Eis aí a primeira corrente, que dizia e diz ser a retrocessão espécie de direito pessoal, com eficácia puramente obrigacional. Pensavam assim, entre outros, Caio Mário da Silva Pereira, Clóvis Beviláqua, José Carlos Barbosa Moreira, Sílvio Rodrigues, Diógenes Gasparini, Orlando Gomes, Hely Lopes Meirelles 3 e Silvio de Salvo Venosa. Como se vê, são nomes de escol. Havia e há, porém, autores que preferiram interpretar as normas insculpidas no CC e confronta-las com o texto Constitucional extraindo deste exercício de hermenêutica a conclusão de que a retrocessão não poderia ter outra classificação senão na categoria de direito real. Explicamos melhor. Defendem estes autores, sempre agarrados à Lei maior (que não mudou neste aspecto com a Constituição de 1988) que a propriedade é direito básico do homem e somente poderia ser violado em nome do interesse público também protegido constitucionalmente. Assim, diziam eles, se a razão de interesse público que motivou a desapropriação não se confirmou, não haveria suporte jurídico para manter tal situação, devendo o bem retornar a seu antigo dono e não seria o CC ou um Decreto-Lei que teriam o condão de mudar tal determinação. Esta corrente conta também com defensores de peso e entre eles podem ser citados, entre outros, Pontes de Miranda, Barbosa Lima Sobrinho, Miguel Seabra Fagundes, Oliveira e Cruz, Vicente Ráo e Lúcia Valle Figueiredo. A jurisprudência sempre foi vacilante quanto ao posicionamento acerca da natureza do instituto. Todavia pode-se dizer que primeiramente prevalecia a tese de que se tratava de direito pessoal, entretanto, os julgados mais recentes, inclusive do STF, têm se mostrado partidários da tese de que se trata de direito real, reconhecendo aos exproprietários o direito de reaver o bem. Temos aí, até agora, duas correntes antagônicas e bem delineadas, com contornos e argumentos próprios e claros. Todavia por 3 O referido autor chegou a defender o caráter real da retrocessão, todavia, foi convencido, mais tarde, que, na realidade, se tratava de direito pessoal, passando a integrar as fileiras dos que defendiam tal entendimento. 4
tratar-se de instituto jurídico polêmico, como não poderia deixar de ser, era apenas uma questão de tempo até que surgisse uma terceira corrente apaziguando a discussão e atribuindo razão às duas vertentes : surgia a teoria mista. Esta terceira corrente, encabeçada por Roberto Barcellos de Magalhães conta também com defensores como Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Carlos Alberto Dabus Maluf e Antônio de Pádua Ferraz Nogueira. Para estes autores estaríamos diante de um direito de natureza mista (pessoal e real). Defendem eles que, uma vez desapropriada determinada área e não utilizada para o fim social 4 ensejador do ato, o exproprietário poderia optar por pleitear as perdas e danos, com base no CC, ou intentar ação para reaver o bem e integrá-lo novamente ao seu patrimônio (devolvendo, logicamente as importâncias recebidas como indenização devidamente corrigidas 5 ) com base na Constituição Federal. Assim, uma vez frustrada a utilização de bem desapropriado, a Administração Pública teria o dever de oferecer o bem ao ex-proprietário. Não o fazendo, caberá a este escolher, alternativamente (e excludentemente) entre ser indenizado, pleiteando as perdas e danos, ou buscar novamente o bem, através de ação de retrocessão. Muito próximos deste posicionamento estão Celso Antônio Bandeira de Mello, (em nossa opinião o mais crítico e perspicaz administrativista brasileiro) e Oliveira e Cruz. Posicionamo-nos, humildemente, com estes dois autores que, de forma resumida, dizem o seguinte: Não há falar-se em retrocessão como direito de natureza mista. A retrocessão (direito de reaver um bem expropriado e não utilizado para a finalidade pública) é direito real, com fundamento na Constituição e como tal deve ser tratado. 4 Importante dizer que uma vez desapropriado para atender a uma determinada finalidade pública e utilizado para outra (diversa do inicial, mas igualmente de interesse da coletividade) não há falar-se em retrocessão. Neste ponto doutrina e jurisprudência são uníssonas. Aliás tal entendimento foi acolhido pelo novo CC. 5 Em regra o valor a ser pago para readquirir o bem é o mesmo pago por ocasião da desapropriação. Todavia pode o valor ser maior que o originalmente pago se o expropriante realizou no bem melhorias, por exemplo, ou menor, se ao contrário o expropriante deteriorou o bem, por exemplo, demoliu uma casa, destruiu plantações etc. 5
Direito de preferência (direito de que o bem injustamente expropriado seja oferecido ao ex-proprietário para que possa readquiri-lo, pena de perdas e danos) previsto na legislação infraconstitucional é direito pessoal e com tais características deve ser concebido. Tem-se então, dois direitos, distintos, coexistentes, um de raiz constitucional e outro de base infraconstitucional, que não se digladiam, antes se completam. Cabe ao sujeito expropriado escolher o caminho a seguir, isto é, se pretende reaver o bem (direito real) ou buscar uma indenização a título de perdas e danos 6 (direito pessoal). SERÁ TRANSMISSÍVEL O DIREITO DE PREFERÊNCIA? Outra questão que tem gerado muita polêmica diz respeito à transmissibilidade ou não do direito de preferência previsto no CC. Outra vez divide-se a doutrina entre aqueles que se prendem ao texto da lei e aqueles que interpretam as normas como partes de um universo jurídico único e que assim deve ser estudado. Explicamos melhor. Tanto o CC de 1916 quanto o de 2002 trazem norma expressa no sentido de que o direito de preferência é intransmissível. Assim numa análise perfunctória, esta seria a interpretação mais clara a ser adotada. Todavia, há quem entenda que tais normas são aplicáveis apenas ao direito de preferência no âmbito do Direito Privado, casos em que tal direito deriva diretamente de um acordo entre as partes. Nos casos de desapropriação (onde o expropriado é privado de seu bem de forma violenta em nome do interesse coletivo), a ordem jurídica parece proteger aquele que sofreu tal situação, não havendo motivo para negar a este a transmissibilidade de seu direito de retrocessão, que afinal faz parte de seu patrimônio. Este é o entendimento do STF em diversos julgados. CONCLUSÃO 6 A jurisprudência e grande parte dos doutrinadores afirmam que as perdas e danos devem corresponder à diferença entre o valor do bem por ocasião da execução da sentença e o quantum recebido a titulo de indenização. 6
Sendo estas as poucas palavras que tínhamos a escrever sobre o tema num artigo tão resumido, resta somente concluir dizendo que cabe a todos nós operadores do direito a aplicação das teorias esposadas de acordo com nossas convicções pessoais sempre e sempre no sentido de que seja feita a justiça. Desta forma, esperamos ter sido claro o artigo e se este antes de convencer despertou o interesse e o debate sobre o tema, o seu objetivo foi plenamente atingido. E então, qual será a natureza jurídica da retrocessão? Bibliografia: Constituição Federal da República Federativa do Brasil Código Civil de 1916 Código Civil de 2002 Decreto-Lei 3.365/41 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo - 14ª Edição Malheiros Editores PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo 14ª Edição - Atlas MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro 22ª Edição Malheiros Editores SALLES, José Carlos de Moraes. A Desapropriação à Luz da Doutrina e da Jurisprudência - 3ª Edição- RT 7
8