Seminário 12 - Leitura e Produção na Educação Superior

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Transcrição:

Seminário 12 - Leitura e Produção na Educação Superior DIDASCÁLION, Da arte de ler: a leitura como instrumento educativo no século XII Medievo. OLIVEIRA, Terezinha (DFE/PPE/UEM) O objetivo desta comunicação é analisar a leitura como o instrumento e caminho essencial para o desenvolvimento da sabedoria. O ponto de partida para este estudo é a obra Didascálicon, Da arte de Ler, do mestre medieval Hugo de São Vítor. Do ponto de vista do autor, a sabedoria só é alcançada quando as pessoas se dedicam a leitura, pois todo o conhecimento que os homens já produzirem e que, portanto, possibilitam alcançar a sabedoria está registrado no escrito. Exatamente por isso, o mestre Vitorino explicita que os passos para se atingir a sabedoria estão todos no âmbito da leitura: primeiro precisa-se definir o que ler; em segundo lugar qual deve ser a ordem da leitura, ou seja, o que se deve ler antes e depois e, por último como se deve ler. É a partir da leitura que o ser pessoa pode conhecer a si mesmo e os outros. Na verdade, todo o saber medievo está pautado na leitura, desde Agostinho (século V) até Ockham (século XIV), a leitura é o instrumento para se chegar ao conhecimento (do Verbo/Saber). A originalidade da obra em análise incide no fato de que o autor precisa agora, dado o seu momento histórico, expor pela leitura as diferentes artes, as diferenças entre as pessoas, a leitura é o caminho para se definir um novo agir para as pessoas, pois o ambiente citadino do século XII o exige. PALAVRAS-CHAVE: Leitura, Didáscalicon, Educação, Hugo de São Vitor.

Seminário 12 - Leitura e Produção na Educação Superior DIDASCÁLION, Da arte de ler: a leitura como instrumento educativo no século XII Medievo. OLIVEIRA, Terezinha (DFE/PPE/UEM) O objetivo deste trabalho é analisar algumas formulações de Hugo de Saint Victor sobre a idéia de sabedoria e, em que medida, esta sabedoria veicula-se pela leitura. Nos dias atuais, em que o livro principia a deixar de ser o elemento presente e constante na nossa formação e gradativamente passa a ser substituído por veículos tecnológicos, uma discussão sobre a importância do livro e da leitura parece ser algo anacrônico, ainda mais se se tratar de um autor medievo. Contudo, uma análise mais atenta das formulações de Hugo de Saint Victor nos ensina muito sobre os homens e sobre a sociedade, independente do período histórico que tratemos, portanto, mesmo que vivenciemos um momento em que o livro e a leitura dele decorrente passe a fazer parte do passado, Didascálicon continua sendo atual. Assim, nosso ponto de partida é de que construímos nossas identidades a partir de nossas heranças culturais, de nossa história, enfim, de nosso passado. Valemo-nos de uma formulação de Ullmann para iniciarmos nossa discussão sobre Didascálicon. Desarraigados de sua origem e de sua história, o homem e as instituições perdem a identidade e, pior do que isso, o endereço. Sem tradição, não existe cultura, nem se preservam os valores, que dignificam o ser humano. [...] É preciso que, no mundo acadêmico brasileiro, seja recuperado do atraso nos estudos medievalísticos os quais, noutros países, já têm longa trajetória e apreço cada vez mais acendrado. Torna-se mister ombrearmos, nesse particular, com os centros vanguardeiros em assuntos medievais (ULLMANN, 2000, p. 25). Retomar os autores e as formulações medievais possibilitam, a nós ocidentais, compreender um pouco mais as nossas origens e com isso construir com maior tentáculo nossas identidades. Hugo de Saint Victor constrói em Didascálicon uma idéia que é a viga mestra do seu projeto. Aliás, inicia o Livro I de sua obra com esta máxima: De todas as coisas a serem buscadas, a primeira é a Sapiência, na qual reside a forma do bem perfeito (HUGO DE SAINT VICTOR, Livro I, cap. 1). A sabedoria a qual Hugo se refere, evidentemente, é a de se chegar a Deus 1, não se trata do conhecimento em si como os homens da modernidade o concebem, todavia, para os homens medievais, especialmente, os sábios citadinos, do século XII, toda e qualquer sabedoria provinha de Deus. Portanto, chegar a Deus significava chegar a ele pelo saber. Com efeito, por considerarmos que o conhecimento ao qual Hugo de Saint Victor nos remete é o conhecimento que nos torna sujeitos capazes de 1 La sabiduría que busca Hugo es el próprio Cristo. Aprender y, especificamente leer, son simplesmente dos formas de buscar a Cristo el remédio, Cristo el Ejemplo y la Forma que la humanidad caída ha perdido y desea recuperar. La necesidad que tiene la humanidad caída de reunirse com la sabiduría es central em el pensamiento de Hugo (ILLICH, 2002, p. 19).

conviver socialmente e partindo da premissa que o conhecimento do passado é um condicionante vital na formação de nossa identidade social consideraremos, as seguir alguns conceitos presentes em Didascálicon da arte de Ler que julgamos essenciais na formação de qualquer indivíduo, mas que não pode, em hipótese alguma estar ausente quando se trata da formação no ensino superior. Principiemos pela questão da Sabedoria uma vez que para Hugo de Saint Victor ela é o que deve ser buscada por todos. Observamos que para o autor há uma distinção significativa entre saber teórico e o saber prático das artes mecânicas. Trataremos aqui, por ora, do saber teórico. Aqueles que se dedicam ao saber teórico devem dispor de inteligência e de memória ao mesmo tempo, coisas que em qualquer estudo ou disciplina estão tão conexas que, se uma faltar, a outra não pode conduzir ninguém para a perfeição, da mesma forma que os lucros servem para nada se faltar o armazenamento e inutilmente constrói armazéns aquele que tem nada para guardar. O engenho descobre e a memória custodia a Sabedoria. [...] O exercício do engenho se dá mediante duas atividades: a leitura e a meditação. Na leitura, a partir de quanto foi escrito, ficamos formados nas regras e nos preceitos. E há três tipos de leitura: 1) do docente, 2) do discente e 3) do autodidata. De fato, nós dizemos leio um livro para ele e leio um livro apresentado por ele e leio um livro. Na leitura devem ser tidos em máxima consideração a ordem e o método (HUGO DE SAINT VICTOR, Livro III, cap. 7). Nesta passagem destacamos um aspecto que se faz presente ao longo de Didascálicon, concomitantemente a uma discussão sobre o saber intelectual Hugo destaca uma questão/ação humana prática. Do ponto de vista do mestre Vitorino, as pessoas que se dedicam aos estudos precisam antes de tudo possuir inteligência e memória. Inteligência para aprender e conhecer. Memória para conservar e recordar do que foi aprendido. A partir desta relação conexa entre o intelecto e a memória, a leitura e a meditação desempenham papeis fundamentais e imbricados. A leitura permite o conhecimento de todas as coisas escritas (diga-se de passagem que Hugo refere-se sempre a leitura do e no livro) e a meditação/reflexão possibilita a aprendizagem do lido. Seguindo os passos de Hugo de Saint Victor ainda sobre o conhecimento que conduz a sabedoria, o mestre destaca a importância da sabedoria para que possamos conhecer a nós mesmos. Somos reerguidos pelo estudo, para que conheçamos a nossa natureza e aprendamos a não procurar fora de nós aquilo que podemos encontrar dentro de nós. A procura da Sapiência é, com efeito, um grande conforto na vida. Quem a encontra é feliz, e quem a possui é beato (HUGO DE SAINT VICTOR, Livro I, cap. 1). De acordo com o mestre Vitorino a sabedoria permite o conforto da vida, pois permite que entendamos nossa própria natureza. Entender nossa natureza pressupõe entender o próprio homem, as coisas da natureza, mas acima de tudo, a sabedoria permite chegar se até Deus.

A sabedoria em Hugo de Saint Victor, portanto, não é conhecimento particular de algo, mas sim, o saber em profundidade. Deve-se sempre buscar a essência das coisas. É próprio da natureza dela [a razão da inteligência] investigar as coisas desconhecidas a partir das coisas conhecidas, e isto exige conhecer de qualquer coisa não somente se é, mas também o que é, como é, e porque é (HUGO DE SAINT VICTOR, Livro I, cap. 4). Este propósito fica explicitado na passagem acima, pois diferente dos dias atuais no quais cada vez mais particularizamos nossos conhecimentos, nossas atividades, o mestre Vitorino propõe que saibamos o todo de tudo aquilo que nos dispomos a conhecer e só podemos conhecer algo se sabemos a sua essência. Um último aspecto que destacamos acerca da questão da sabedoria, em Didascálicon, diz respeito a própria natureza do ser ser humano. A integridade da natureza humana, por sinal, se realiza de duas maneiras, pelo conhecimento e pela virtude, e esta é a única semelhança que temos com as substancias superiores e divinas (HUGO DE SAINT VICTOR, Livro I, cap. 5). Do ponto de vista do mestre Vitorino o ser humano é homem pelo conhecimento e pela virtude, ou seja, somos seres racionais quando usamos nosso intelecto e nossa memória com a finalidade de realizar o conhecimento e praticar um comportamento virtuoso. Em última instância, transformamo-nos em humanos pela sabedoria e esta sabedoria na mente do cristão do século XII, a aproxima de Deus. O segundo conceito que buscamos analisar em Ddascálicon por considerarmos essenciais a formação das pessoas é a questão do método. Para Hugo de Saint Victor, qualquer atividade humana para ser realizada exige um método e o conhecimento só se realiza mediante a ordenação de um método. Deve-se saber que em qualquer trabalho são necessárias duas coisas: a aplicação e o método da aplicação, e estas duas coisas são tão conexas entre si, que uma sem a outra é ou inútil ou pouco eficiente. Com efeito, se diz que a prudência é melhor que a força, porque às vezes levantamos com a habilidade os pesos que podemos mover com as forças físicas. O mesmo se dá em qualquer estudo. Aquele que trabalha sem método, trabalha muito, sim, mas, não avança e, como a chicotear o ar, espalha as forças ao vento. Repare em duas pessoas atravessando o bosque, uma suando através de desvios, a outra escolhendo os atalhos de um traçado reto: fazem o percurso com o mesmo ritmo, mas não chegam no mesmo tempo. E o que denominaria eu a Escritura senão a floresta, cujas frases colhemos na leitura como se fossem frutos dulcíssimos e as ruminamos na reflexão. Aquele, portanto, que em tão grande multidão de livros não mantém um método e uma ordem de leitura, este, como se vagueasse na densidade da floresta, perde o caminho do percurso certo sempre estudando como se diz nunca chegando ao saber (HUGO DE SAINT VICTOR Livro V, cap. 5).

A nosso ver, esta passagem de Hugo de Saint Victor é extremamente elucidativa, pois considera que o estudo só produz frutos quando se realiza a partir de um método e de uma ordenação/organização. Para se estudar precisa-se primeiro decidir o que estudar e como estudar. Não basta que se leia tudo e a todos para se tornar um sábio. Ao contrário, perde-se nas leituras sem chegar a nenhuma conclusão. Por isso é imprescindível uma sistematização e uma definição metodológica. Ler sem método é despender esforços inutilmente, não se chega ao conhecimento. Desse modo, para se compreender os textos, especialmente as Escrituras precisa-se definir o que ler e ruminar estas leituras. Assim, aprendemos quando sabemos o caminho que faremos de nossas leituras. De acordo com o mestre Vitorino, somente o método transforma o ócio útil: O método é tão importante, que sem ele qualquer ócio (dedicação ao estudo) é torpe e todo trabalho inútil. Oxalá todos nós abracemos esta convicção (HUGO DE SAINT VICTOR, Livro V, cap. 5) O método e a organização são os primeiros passos para o estudo. Estabelecidas estas premissas o mestre Vitorino define como deve feita a leitura para se buscar o conhecimento: São três as regras mais necessárias para a leitura: primeiro, saber o que se deve ler; segundo, em que ordem se deve ler, ou seja, o que ler antes, o que depois; terceiro, como se deve ler (HUGO DE SAINT VICTOR, Prefácio). Ainda dentro deste programa de estudos Hugo de Saint Victor chama a atenção para uma questão que consideramos extremamente oportuna aos dias de hoje: a necessidade de se estar aberto para o conhecimento. Algumas coisas devem ser conhecidas em si mesmas, outras, ainda que não pareçam merecer a nossa aplicação, todavia de maneira alguma devem ser preteridas negligentemente, porque sem elas não podem ser conhecidas exaustivamente aquelas outras. Aprenda tudo, e verá depois que nada é supérfluo (HUGO DE SAINT VICTOR, Livro VI, cap. 3). O conhecimento de tudo, ordenadamente, diga-se de passagem, é a condição para que os homens atinjam a sabedoria. Para Hugo de Saint Victor o conhecimento não se restringe somente às Escrituras. Ao contrário, os estudantes precisam conhecer as coisas, pois é este conhecimento que possibilitara chegar a Deus/Sabedoria e ao mesmo tempo ter um comportamento virtuoso. Para o mestre Vitorino, o conhecimento deve ser do todo, de todas as coisas e com muita ordenação, com método,mas precisa também ser profundo. Um conhecimento somente ganha corpus se tiver fundamentação. [...] toda edificação sem fundamento não pode ser estável, o mesmo se dá no estudo. E o fundamento e o princípio da ciência sagrada é a história, da qual deriva a verdade da alegoria, como o mel do favo. Dispondo-se a edificar, portanto, primeiro ponha o fundamento da história, depois, por meio da significação simbólica, erga o edifício da mente como fortaleza da fé. Por fim, por meio da beleza da

moralidade, pinte o edifício com uma belíssima mão de cor (HUGO DE SAINT VICTOR, Livro VI, cap. 3). O ponto de partida e de chegada para Hugo de Saint Victor em Didascálicon é o conhecimento. Estabelece caminhos precisos que devem ser trilhados na leitura para que esta gere o conhecimento. As discussões sobre a sabedoria e o método passam diretamente pelas questões do intelecto. É o intelecto que conduz a aproximação direta do homem a Deus. Todavia, estes não são os únicos caminhos apontados pelo mestre, ele dedica uma longa parte de sua obra ao trato da filosofia e das artes mecânicas. Didascálicon é um exemplo bastante ilustrativo de como o sábio do século XII, discutia e se envolvia com a filosofia. Não existe na obra uma separação entre a sabedoria e a filosofia. Ao contrário, ela é um dos ramos da sabedoria. Hugo de Saint aponta várias definições para a palavra filosofia e todos eles muito positivos. A filosofia é, portanto, o amor, a procura, e uma certa amizade para com a Sapiência, mas não aquela sabedoria que se ocupa de tecnologias e de ciências produtivas, e sim aquela Sapiência que, não carecendo de nada, é mente viva e única razão primordial das coisas (HUGO DE SAINT VICTOR, Livro I, cap. 3). [...] podemos definir a filosofia assim: a filosofia é a disciplina que investiga exaustivamente as razões de todas as coisas humanas e divinas (HUGO DE SAINT VICTOR, Livro I, cap. 4) A filosofia é o amor a Sapiência [mente Divina], que, não carecendo de nada, é mente viva e única razão primordial das coisas (HUGO DE SAINT VICTOR, Livro II, cap. 1) A filosofia é a arte das artes e a disciplina das disciplinas, Isto é, aquela para a qual todas as artes e disciplinas olham (HUGO DE SAINT VICTOR, Livro II, cap. 1) A filosofia é a meditação da morte, coisa que convém sobretudo, aos cristãos, os quais, desprezada a ambição terrena, vivem num estilo de vida disciplinado, à semelhança da pátria futura (HUGO DE SAINT VICTOR, Livro II, cap. 2) A filosofia é a disciplina que investiga com provas plausíveis as razões de todas as coisas divinas e humanas. E assim, a razão teórica de todas as atividades humanas é de competência da filosofia (HUGO DE SAINT VICTOR, Livro II, cap. 2) Nessas diferentes definições que o mestre aponta para a Filosofia verificamos sempre a junção das coisas materiais com as questões espirituais. Nitidamente o mestre Vitorino não vê no homem e na sua capacidade de produzir conhecimento uma separação radical entre as atividades do espírito e as atividades práticas. Ao contrário, ambas são importantes e fazem parte da vida. Evidentemente, o conhecimento teórico aproxima o homem de Deus, mas o conhecimento prático é importante e auxilia esta aproximação. Se ele pode

considerar que a filosofia e a arte das artes, aquela que investiga as coisas plausíveis, a razão teórica de todas as atividades humanas é porque consegue visualizar de forma positiva uma diferença entre a teologia e a filosofia e isso merece uma explicação mais detidamente. Sabidamente Hugo de Saint Victor segue a escola Agostiniana, mas também segue e inclusive cita Varrón, Cícero, Boécio, ou seja, conhece os filósofos latinos e sofre influências de suas formulações. Aliás, ao ler Didascálicon temos a sensação de que estamos diante de um texto que sugestivamente aponta caminhos para os homens citadinos do século XII e estes caminhos passam todos pela leitura. Ao mesmo tempo que indica como se deve ler os textos sagrados para se chegar a sabedoria inclina-se para a filosofia e descreve a partir dela as atividades do espírito e, concomitantemente, as atividades práticas que decorrem de suas investigações. Um exemplo claro disso aparece na obra quando fala da agricultura. [...] a teoria racional da agricultura é coisa do filósofo, sua execução é coisa do camponês. Além disso, os trabalhos dos artífices, mesmo não sendo a natureza, todavia imitam a natureza, e expressam pela razão a forma do seu modelo, que é a natureza, através da qual imitam (HUGO DE SAINT VICTOR, Livro I, cap. 5). Esta citação explicita mais do que uma relação entre a filosofia e a prática dela decorrente no caso de ser o filosofo que pensa na teoria agrícola, e o trabalho do campo quem o realiza é o camponês. Ela revela uma mudança significativa na forma de ser da sociedade medieva: o nascimento de uma divisão do trabalho que não existia e que principia a existir em fins do século XI, mas que ganha vitalidade a partir do século XII. Essa divisão do trabalho é própria do novo cenário social que se desenha no Ocidente em virtude do amadurecimento do sistema feudal que traz junto consigo o renascimento das cidades e do comércio. É, pois em virtude deste novo cenário medievo e em resposta a ele que o mestre Vitorino apresenta seu programa de leitura e aponta para a necessidade cada vez mais candente do conhecimento. Em uma sociedade nas quais as relações se pautavam somente entre duas naturezas de homem: os da Igreja e os demais, não existia a exigência de explicar as questões humanas, as atividades, os saberes. Contudo, na medida em que vida citadina principia a ter forças próprias, que o poder da Igreja principia a ser objeto de discussão, que a urbis ganha escolas com mestres dialéticos como Pedro Abelardo, que o comércio passa a ser uma atividade natural, a leitura das coisas sagradas e terrenas não pode mais ter uma única lente: o da fé. O mundo medievo no Ocidente principia a ganhar contornos mais complexos. A sociedade não é mais composta apenas por dois segmentos, mas por três: a Igreja, a nobreza e o terceiro estado. O conhecimento, a filosofia, a Sabedoria precisa ser entendida a partir, também desta complexidade. E é isso que o mestre Vitorino nos mostra sobre a filosofia. Você já pode ver por qual motivo somos obrigados a alargar a filosofia para todos os atos dos homens, de modo que já é necessário haver tantas partes da filosofia, quantas são as

diversidades das coisas, às quais, como ficou claro, ela se refere (HUGO DE SAINT VICTOR, Livro I, cap. 5). A filosofia passa a ser aquela parte do conhecimento que cuida de tudo que resulte nas práticas humanas, sejam elas intelectuais, sejam mecânicas. Estas práticas humanas são realizadas pelos homens pela capacidade que os mesmos tem de usar a razão e criar as coisas das quais fazem usam. Não foi sem razão que, enquanto cada um dos seres animados possui por nascença as armas de sua própria natureza, somente o homem nasce sem armas e nu. Foi conveniente que a natureza provesse àqueles que não conseguem prover a si mesmos, enquanto ao homem foi reservada uma maior oportunidade de experimentar, ao ter que encontrar para si com a razão aquilo que aos outros é dado naturalmente. Muito mais brilha a razão do homem inventando estas mesmas coisas, de quanto teria resplandecido se já as tivesse. Não sem razão o provérbio reza que: A fome engenhosa forjou todas as artes (HUGO DE SAINT VICTOR, Livro I, cap. 9. Grifo nosso) Hugo de Saint Victor dá ao homem um poder de criação que o mesmo ainda não havia adquirido na Idade Média: transforma-o em criador. O homem, pelo conhecimento, pela filosofia, pela Sabedoria cria as coisas das quais tem necessidade. Aliás ele, em si, é o grande engenheiro de todas as artes. Evidentemente, o mestre Vitorino não está de modo algum rompendo com as autoridades sagradas, mas está elevando o homem ao um nível de poder fundamental no qual ele passa a ser o centro da criação para as coisas terrenas. Com isso abre espaço para que o mesmo tenha autonomia no espírito e isto é feito, de acordo com o mestre pelo caminho da leitura. O último aspecto que vamos analisar de Didascálicon diz respeito a uma das artes mecânicas tratadas por Hugo de Saint de Victor.Destacamos que o autor trata as diferentes atividades humanas como arte. A da navegação é a terceira delas. Destacamos esta porque ela revela o quanto o comércio está influenciando a vida dos homens no século XII e, exatamente por isso, não passou despercebida aos olhos do mestre. A navegação abrange todo o comércio de compra, venda e troca de mercadorias domésticas ou estrangeiras. Com justa razão a navegação é considerada uma retórica sui generis, uma vez que a eloqüência é absolutamente necessária a esta profissão. Por isto, aquele que preside à arte de falar, mercúrio, é considerado Kirrius, ou seja, senhor dos mercadores (HUGO DE SAINT VICTOR, Livro II, cap. 23) O mestre apresenta a navegação como algo que faz parte das atividades naturais dos homens, ou seja, uma arte que responde a determinadas exigências de uma determinada comunidade. Não vê o comércio como um mal, ao contrário é uma profissão necessária a determinados homens. A navegação penetra em regiões remotas, adentra litorais nunca vistos, percorre desertos horríficos, e estabelece relações humanas com povos bárbaros e com línguas desconhecidas. Este tipo de

dedicação reconcilia as nações, aplaca as guerras, consolida a paz, e transfere os bens privados para o uso comum de todos (HUGO DE SAINT VICTOR, Livro II, cap. 23) Na passagem acima Hugo de Saint Victor aponta o quanto esta atividade, a do comércio, realizado pela navegação produz o bem comum para a sociedade. Além de produzir o bem comum a todos, a navegação produz uma universalização nas vidas dos homens, em oposição ao isolamento vivido nos feudos. Em última instância, o que o mestre Vitorino nos explicita é que a navegação e o comércio produz uma circulação de produtos e de pessoas, uma atuação em regiões distantes que, indubitavelmente alterará para sempre o cenário do Ocidente medievo e o fundamental neste processo todo é que Hugo de Saint Victor manteve-se vinculado ao seu tempo e acompanhou a história apontando para os homens os caminhos que estes deveriam trilhar. Este trilhar passou sempre pelo conhecimento e pela prática da leitura. REFERÊNCIAS HUGO DE SAINT VICTOR, Didascáliconda arte de ler. Petrópolis: Vozes, 2001. ILLICH, I. Em el vinedo Del texto. Etologia de la lectura: um comentário al Didascálicon de Hugo de Sant Victor. México: FCE, 2002. ULLAMANN, R.A. A universidade medieval. Porto Alegre: Edipucrus, 2000.