Anais do VI Seminário Nacional Gênero e Práticas Culturais João Pessoa PB 22 a 24 de novembro 2017 ISSN

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Transcrição:

VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO SISTEMA PRISIONAL: a dupla punição das mulheres em privação de liberdade Camila Luana Teixeira Freire Bernadete de Lourdes Figueiredo de Almeida Universidade Federal da Paraíba 1 Introdução No Brasil, a criminalidade feminina tem aumentado de maneira significante em razão dos fatores sócio-políticos, econômicos e culturais da condição do ser mulher na sociedade, fortemente marcada pelo patriarcalismo e machismo. Em torno dessa constatação, torna-se importante trazer à discussão sobre as inúmeras violências sofridas pelas mulheres no interior das prisões, vítimas dessas expressões culturais que perpassam a sociedade. Nesse entendimento, o presente estudo1 investigativo se coloca no debate sobre gênero a partir da realidade do sistema penitenciário, enquanto política de controle social e de reprodução da violência institucionalizada, mais especificamente de gênero. O desenvolvimento do capitalismo traz consigo diversos mecanismos e instrumentos de ordenação e normatização da vida que tentam se apresentar como meios capazes de solucionar os conflitos sociais. É nesse cenário de contradições e relações antagônicas que cresce o número de pessoas encarceradas. A criminalização da classe trabalhadora e pauperizada tem sido a estratégia adotada pelo Estado para compensar à ausência de ações sociais que combatam de forma efetiva a violência estrutural que toma conta da sociedade contemporânea brasileira. Na perspectiva das políticas penitenciárias dirigidas a setores historicamente excluídos, objetiva-se analisar as dimensões particulares do processo que naturaliza a prática de encarceramento de segmentos empobrecidos da sociedade brasileira. Este estudo configura-se como uma análise crítica do sistema penitenciário como instrumento 1 O presente estudo é uma síntese da pesquisa realizada no Centro de Reeducação Feminino Maria Júlia Maranhão, João Pessoa/PB, entre os meses de Julho e Agosto de 2017, para compor o Trabalho de Conclusão de Curso de bacharelado em Serviço Social pela Universidade Federal da Paraíba.

fundamental à ordem capitalista, em uma sociedade classista, racista e sexista, cujos determinantes sociais tornam-se fatores de inserção das mulheres na criminalidade e dos altos índices de encarceramento feminino no Brasil. As prisões brasileiras são instituições detentoras e reprodutoras da exclusão social e são em sua imensa maioria, insalubres, superlotadas e negligenciadas por parte dos governantes, produto de um sistema social e econômico profundamente excludente, sendo sua principal clientela pessoas de classe social economicamente baixa, jovens, negras, semialfabetizadas, desempregadas, desqualificadas para as exigências do mercado de trabalho. Nesse sentido, a realidade da mulher presa é ainda mais precária devido às especificidades de gênero e a institucionalização da violência nas unidades prisionais, como será apresentada no presente estudo. 2 Breve análise do sistema prisional brasileiro como instrumento fundamental à ordem capitalista O sistema político e econômico capitalista desenvolve estratégias de preservação da ordem pública, revelando as desigualdades existentes entre as classes e, concomitantemente, produzindo mecanismos de controle social. É, portanto, a ideologia capitalista que legitima o sistema de controle social existente nos dias atuais, sistema este necessário para proporcionar à sociedade certa estabilidade ao mediar à violência social via repressão, racismo institucionalizado e violência de gênero. A prisão, instrumento fundamental na exploração e dominação de classe, se consolida na relação antagônica entre capital e trabalho. Diante dessa realidade, é válido afirmar que o modo de produção capitalista produz uma superpopulação relativa de trabalhadores que serão marginalizados e se tornarão os principais alvos do Estado penal. Liderada pela lógica neoliberal, a classe dominante empreendem três principais transformações no âmbito do Estado que estão intimamente ligadas à remoção do Estado econômico, à desconstrução do Estado Social e ao fortalecimento do Estado penal. Esses elementos combinados complementam-se e com isso, a prisão retoma a frente das instituições responsáveis pela manutenção da ordem (WACQUANT, 2001). Nessa percepção, o objetivo da punição no sistema penal vai além da questão do castigo, por se constituir uma forma de controle e pacificação das populações marginalizadas. 2

O capitalismo, por sua vez, obtém vantagens significativas desse sistema de contenção social porque tem a sua disposição uma inexaurível fonte de força de trabalho adequadamente adestrada e alienada aos papéis sociais de submissão à classe dominante. O sistema prisional, de fato, é o registro da marca da desigualdade social, uma vez que os indivíduos que são presos são aqueles que já sofrem o processo de exclusão social e, dessa maneira, as condições atuais do sistema prisional brasileiro não oferecem condições de dignidade humana àquele que recebeu o estigma social, acentuando a invisibilidade e a exclusão social das pessoas em privação de liberdade. As desigualdades sociais no país continuam se aprofundando, capitaneadas pelo modelo econômico neoliberal que produz e reproduz a exclusão social. O único setor do Estado que se expande e se intensifica é o setor repressivo penal que seleciona os excluídos como inimigos a serem perseguidos e invisibilizados via encarceramento. A precarização do trabalho e a redução do cidadão à condição de consumidor segue a mesma lógica repressiva e desumana, que transfere ao trabalhador a responsabilidade de suprir suas necessidades. É importante destacar o abismo social que o sistema prisional brasileiro representa, no qual o aumento de sua população deve-se mais a uma política de repressão e de criminalização da pobreza, do que a uma política capaz de diminuir as ocorrências criminais. Nessa acepção, se faz necessário trazer o debate sobre a criminalidade em um plano que considere questões sobre os determinantes sociais enquanto fator para compreensão desse fenômeno social. Contudo, não se deve tornar a situação de pobreza sinônimo da criminalidade. No Brasil, especificamente, o encarceramento é um instrumento bastante utilizado que visa conter e diminuir a criminalidade. A política carcerária esteve sempre em segundo plano, entrave que dificulta a implementação de políticas penais. Nesse sentido, as instituições penais constituem um espaço de produção e reprodução da violência e opressão, conforme Pedroso (1997, p. 1) afirma: A história do sistema penitenciário brasileiro foi marcada por episódios que revelam e apontam para o descaso com relação às políticas públicas na área penal, como também para a edificação de modelos que se tornaram inviável quando de sua aplicação. 3

Todo o aparato repressor do sistema não tem sido capaz de coibir o surgimento de grupos criminosos organizados no país, pelo contrário, é justamente no bojo do sistema prisional que nasce o crime organizado, como por exemplo, o Primeiro Comando da Capital (PCC) que surgiu no maior presídio da América Latina, o Carandiru, e foi o responsável pelos atentados nos anos 2000 no estado de São Paulo e, atualmente, tem representação na maioria dos presídios do país. Conforme o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen, 2014), o Brasil conta com o alarmante número de população carcerária excedente de 607.731 pessoas presas. Mas, para além do encarceramento em massa, a realidade carcerária possui histórico de casos de corrupção, maus-tratos, instalações físicas precárias, insegurança além da perversa morosidade do Judiciário. Soma-se a tudo isso, a polêmica opinião pública que aprova o tratamento dado às pessoas em privação de liberdade, como sendo uma correção justificada pelo crime cometido. Na atualidade, as prisões se transformaram em um mercado altamente lucrativo, tanto para as empresas fornecedoras de equipamentos de segurança, quanto para as empresas de serviços terceirizados, crescendo a ideia de privatização dos presídios, em que as pessoas presas se tornariam um negócio rentável. O encarceramento sob a perspectiva da penalização da miséria (WACQUANT, 2001) pertence, portanto, à liberalização da intervenção punitiva e intolerante do Estado frente ao recuo do seu papel de intervenção social, no que diz respeito à proteção e garantia de mínimos sociais para as classes trabalhadoras e pobres. O encarceramento, como meio de prevenção e/ou solução dos problemas da criminalidade, não pode ser a única alternativa de solução para a exclusão social. 3 A violência de gênero nas prisões A categoria gênero é compreendida como construção histórica e analítica e, refere-se à construção social do masculino e do feminino, entendida como uma relação de poder construída entre homens e mulheres (SAFFIOTI, 2004). Nesses termos, a violência de gênero está intimamente relacionada à violência contra mulher, enfatizando o contexto social, 4

cultural e econômico de desigualdade de poder entre os sexos. A violência de gênero é a forma de dominação masculina em relação às mulheres, que é basilar ao patriarcado. A problemática do encarceramento feminino é uma realidade latente em nosso país e ainda pouco debatido2. O índice crescente de mulheres presas nas instituições penitenciárias brasileiras traduz a materialidade de uma perversa expressão da questão social, permeada por múltiplas desigualdades de determinações históricas de uma sociedade capitalista, patriarcal e racista. Compreendendo o sistema prisional como um instrumento de segregação e adestramento social, pode-se afirmar que a mulher é duplamente punida, pois, ao cometer um crime, a mulher sofre não apenas com a punição legal, mas também por te descumprido seu papel social de boa mãe, filha e esposa. Conforme dados do Infopen Mulheres (2014), parte significativa das mulheres que estão no sistema prisional compõe-se de 37.380 jovens, negras e de classe socioeconômica baixa. Esses números leva a análise dos determinantes sociais como uma porta de entrada para se compreender a relação das mulheres com a criminalidade. Essas estatísticas refletem uma realidade de encarceramento feminino em massa. O significativo aumento do número de mulheres que cumprem pena em privação de liberdade no país sinaliza para o fenômeno da inserção da mulher na criminalidade. Evidencia-se que as mulheres são as que estão em posições mais baixas na criminalidade, consequentemente, são menos remuneradas. Elas são recrutadas para atividades mais expostas, pois são substituídas facilmente. Geralmente, a atuação das mulheres no crime assume uma posição de coadjuvante, são mulheres envolvidas com o tráfico de drogas e associação ao tráfico, crimes influenciados tanto pela situação socioeconômica vivenciada por essas mulheres, quanto por seus companheiros. Ao analisar a realidade dos cárceres femininos confirma-se o quanto o sistema está despreparado para lidar com as especificidades femininas. Aliado a essa realidade, no Brasil há 239 estabelecimentos prisionais mistos, conforme o Infopen (2014). Esse número revela que nessas unidades podem ter ambientes comuns a homens e mulheres, contrariando a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84) que prevê a separação de estabelecimentos penais segundo o gênero. 2 Nesse sentido, cabe destacar a insuficiência de dados e indicadores que versam sobre o perfil de mulheres em privação de liberdade nos bancos de dados oficiais do Estado brasileiro (em seus vários níveis), o que contribui para a invisibilidade das necessidades dessas pessoas. 5

O sistema prisional reproduz preconceitos e violações aos direitos humanos, em especial das mulheres, não primando pelas necessidades peculiares expressas pela sua natureza biológica em um espaço historicamente construído para homens. Outro agravante é a violência de gênero institucionalizada que nega a muitas mulheres o direito à visita íntima e condições mínimas de higiene pessoal, como por exemplo, o uso de absorventes no período menstrual. A falta de produtos de higiene pessoal torna-se moeda de troca dentro dos presídios e serve de salários para as detentas que não têm visita. Dada à realidade do sistema prisional brasileiro, o universo feminino dentro da prisão é ainda mais crítico, além das más condições sanitárias e da superlotação, acrescentam-se entre outras nuances de gênero. Nesse quesito, cabe destacar os relacionamentos familiares, como o vínculo afetivo entre mãe e filho, pois as mulheres em situação de privação de liberdade são em sua maioria mães ou se tornaram mães dentro do presídio. Políticas alheias às questões femininas nas prisões resultam em um tratamento uniforme para mulheres e homens, como consequência, as necessidades específicas das mulheres tendem a permanecer fora da agenda dos governos. As poucas políticas para mulheres em privação de liberdade existentes no Brasil limitam-se a proteção à maternidade e ao cuidado com os filhos pequenos. As milhares de brasileiras que lotam as prisões à espera de julgamento ou condenadas, não deveriam estar vivendo de forma subumana, distante de filhos, filhas e outros familiares. A vida das mulheres dentro do ambiente prisional é árdua. A convivência familiar é um fator importante para o fortalecimento dos vínculos e para amenizar a angústia de estar em situação de privação de liberdade e de dignidade. A relação familiar é rompida quando a mulher é presa, não há manutenção dessa relação de forma que os vínculos afetivos vão se desfazendo ao longo do cumprimento da pena, desestruturando a saúde mental dessas mulheres que já vivem no limite de um colapso devido às condições de sobrevivência. As Regras de Bangkok 3 vêm para reforçar a urgente necessidade de mudar o quadro de negligência, confinamento e abandono a que são submetidas as mulheres em privação de liberdade. A premissa básica das Regras de Bangkok é a emergente necessidade de considerar as distintas necessidades das mulheres em privação de liberdade. Nesse sentido, são 3 Trata-se de um documento que expressam as Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras, aprovada no Brasil pelo Conselho Nacional de Justiça em 2016. 6

estabelecidas regras voltadas para o ingresso, registro, alocação, saúde da mulher, cuidados especiais a gestantes e lactantes, estrangeiras, deficientes, indígenas e minorias, entre outras. 4 O perfil socioeconômico das mulheres que cumprem pena em regime fechado no centro de reeducação feminino Maria Julia Maranhão em João Pessoa/PB Os agravantes que caracterizam a problemática do sistema prisional nacional vêm se intensificando nas últimas décadas, expresso no encarceramento em massa, na violação de direitos humanos e da sua adequada conformação aos objetivos do sistema capitalista para a população mais vulnerabilizada e excluída. No que tange ao encarceramento feminino, há uma omissão dos poderes públicos que se manifesta na ausência de políticas públicas que considerem a mulher encarcerada como sujeito de direitos, bem como as suas especificidades advindas das questões de gênero, como discutido ao longo desta pesquisa. Assim como todo presídio do Brasil, seja feminino ou não, a realidade do Centro de Reeducação Feminino Maria Júlia Maranhão é de superlotação e péssimas condições estruturais. O Centro possui 26 celas, sendo 09 destinadas para presas que estão no regime semiaberto. Além de uma sala destinada às aulas e um espaço para confecção de bonecas. Há um espaço construído pelo Ministério Verbo da Vida, onde são ministrados cursos bíblicos. Uma das celas é reservada para mulheres grávidas e para mulheres que se tornaram mães dentro da prisão, conforme assegura a LEP. Também é garantido na legislação brasileira vigente4 que haja instalações apropriadas para gestantes, creche e berçário no ambiente carcerário, bem como, a destinação de recursos para essa finalidade. A realidade do Centro de Reeducação Feminino Maria Júlia Maranhão não é diferente das demais prisões do país, a seletividade do sistema penal é bastante evidente na unidade feminina quando analisado o perfil socioeconômico das mulheres que cumprem pena em regime fechado. A população carcerária da unidade, no período da realização da pesquisa entre julho a agosto de 2017, era de 4135 mulheres presas, distribuídas em: 19 no regime 4 5 Lei 153/15 que cria o Fundo Penitenciário Nacional FUNPEN Vale destacar que estes números se modificam diariamente devido ao grande fluxo do sistema prisional. 7

aberto, 39 no semiaberto, 91 em regime domiciliar, 125 em regime fechado e 142 mulheres aguardando julgamento. Em termos metodológicos, trata-se de uma pesquisa documental e bibliográfica em torno da realidade do Centro de Reeducação Feminino Maria Júlia Maranhão (CRFMJM), realizadas em julho e agosto de 2017. A delimitação da investigação girou em torno dos 125 prontuários das mulheres que cumprem pena em regime fechado. A partir desses prontuários, foram analisados os dados referentes ao perfil socioeconômico e aos crimes cometidos por essas mulheres, objetivando compreender o processo que naturaliza a prática do encarceramento de segmentos empobrecidos da sociedade, mais especificamente, das mulheres e os determinantes sociais da prisão. Conforme elucidado, o sistema penitenciário brasileiro apresenta deficiências estruturais, que reforçam a cultura da violência institucional, seletiva e de gênero, fomentando práticas e abordagens discriminatórias e violentas. Essas práticas também ocorrem no encarceramento feminino, tornando-se mais expressiva quando se realiza um recorte de cor/etnia. Observa-se que as mulheres que estão no CRFMJM são em maioria negras 6 em cerca de 88%. Cabe destacar o número de mulheres brancas, em sua minoria 9%, o que reforça a afirmativa que o sistema prisional é constituído por pessoas negras. Dos prontuários analisados, 3% não tinham informações sobre a cor/etnia das mulheres presas. O nível de escolaridade é baixo, pois 68% delas possuem o Ensino Fundamental incompleto; 3% delas possuem o Ensino Fundamental completo; 7% possuem o Ensino Médio completo e apenas 1% teve acesso ao Ensino Superior; 9% nunca foram alfabetizadas; e apenas 21% são alfabetizadas, ou seja, sabem no mínimo assinar o nome. 5% dos prontuários não tinham esse registro. Devido à crise da força de trabalho assalariada e do aumento do exército industrial de reserva, evidenciam-se os altos índices de trabalhos precarizados e temporários que se configuram como alternativas à ausência de renda e estão inseridos no campo da informalidade. São jovens e mulheres que ingressam no mercado de trabalho pela primeira vez e encontram dificuldades para se integrar ao trabalho formal, assalariado, devido à baixa qualificação e falta de oportunidades de emprego. 6 Para fins de comparação, instituímos mulheres negras e pardas em uma mesma categoria. 8

Levando em consideração os dados sobre a baixa escolaridade das mulheres em privação de liberdade do CRFMJM, pode-se asseverar que há um reflexo nas atividades desenvolvidas e, consequentemente, na sua remuneração, como será mostrado nos dados sobre a profissão que as mulheres exerciam antes de serem presas. Apesar do alto número de prontuários sem esse registro, cerca de 38%, os dados apontam em quase sua totalidade que as mulheres estão submetidas a trabalhos precarizados e informais. Mesmo para aquelas com escolaridade um pouco mais elevada, que conseguiram concluir o Ensino Médio, não houve melhoria na condição de trabalho. Cerca de 20% delas exerciam atividades voltadas para o lar; 13% trabalhavam como doméstica; 6% estavam desempregadas; 5% eram agricultoras. Cabe destacar a categoria outros com 21%, e nessa categoria estão inseridas mulheres, em menor número, que exerciam funções tais como: flanelinha, catadora, borracheira, professora, servidora pública, cabeleireira e manicure. No que se refere à profissão, ao coletar os dados dos prontuários, nota-se que 6% das mulheres presas que cumprem pena em regime fechado no CRFMJM declaram que são estudantes. É um índice preocupante, visto que a maioria é composta de mulheres jovens com idades de frequentar o ensino regular formal e/ou o ensino superior e a maioria, como se observa nos dados sobre escolaridade, não tem o Ensino Fundamental completo. Nessa variável, não foi possível identificar em que série escolar essas mulheres estavam matriculadas antes da prisão. A inserção precoce na criminalidade tem culminado na alta concentração da juventude no sistema prisional. Os jovens são alvos fáceis de recrutamento do crime, bem como um alvo fácil do processo de criminalização e seletividade do sistema prisional. Essa realidade é reflexo da ausência de políticas públicas voltadas para a juventude que constantemente sofre com a falta de oportunidade e com o estigma social. Conforme análise dos dados pode-se afirmar que a população do CRFMJM é constituída por jovens, são mulheres entre 18 a 24 anos com 16% da população carcerária, seguido por 23% entre 25 a 29 anos; 22% entre 30 e 34 anos; 26% entre 35 e 45 anos; 3% entre 46 e 65 anos; e 10% sem registro nos prontuários. No que se refere ao estado civil das mulheres presas, observa-se a alta concentração de mulheres solteiras, são 88%, o que pode ser explicado pela inserção precoce de jovens no sistema prisional. Cerca de 7% são casadas; 2% tem uma união estável, relacionamento que geralmente surge dentro da prisão com companheiras de cela. Muitas mulheres chegam às 9

unidades penais solteiras, mas antes da prisão tinham um relacionamento afetivo. Registra-se que 3% dos prontuários não dispunham dessa informação. Ao contrário da realidade observada nos presídios masculinos, as mulheres sofrem com o abandono de seus companheiros, bem como, da negação do direito de visita íntima pela instituição penal. Esse abandono por parte do companheiro explica-se pela questão de gênero, pois a mulher é vista como merecedora de punição pela prática delituosa. Outros dois motivos pertinentes para discussão são que: poucos homens se submetem às inspeções ao visitar sua companheira; e há companheiros que também se encontram privados de liberdade em instituições penais. Com relação aos crimes cometidos pelas mulheres que cumprem pena em regime fechado no CRFMJM os crimes de tráfico de drogas e associação ao tráfico são responsáveis por 66% das condenações. Considerando que atualmente o tráfico de drogas é o crime mais cometido por mulheres em privação de liberdade, como indicam os dados divulgados pelo Infopen (2014), pode-se compreender que a problemática das drogas se configura como um fenômeno que envolve a produção, comércio e consumo de substâncias ilegais. O segundo maior índice de crime cometido é o roubo, com 17%, seguido do furto e homicídio com 5% cada; crimes contra crianças e adolescentes com 3%; porte ilegal de armas com 2%; estupro e formação de quadrilha com 1% cada. Considerações finais A sociabilidade do capital origina-se de um processo que requer a manutenção de uma ordem marcada pela exploração do homem pelo homem e que demanda instrumentos de disciplinamento que geram práticas voltadas para o controle social via encarceramento. Na atual conjuntura, a criminalização da pobreza promove a despolitização e a naturalização da questão social pautada na sustentação da ideologia das classes dominantes em que as classes menos favorecidas são estigmatizadas e alvo de repressões. As relações patriarcais de gênero se configuram como uma relação antagônica entre os sexos, nas quais as mulheres se encontram historicamente em desvantagem diante dos homens. A categoria gênero permite a compreensão dessas desigualdades a partir de uma construção social, em que as relações de gênero se estabelecem como relações de poder. 10

Nesse sentido, o sistema prisional brasileiro é um espaço que potencializa as desigualdades e a violência de gênero. As diversas formas de violências a que são submetidas às mulheres no interior dos cárceres, que foi pensado por homens e para os homens, revela um cenário de descaso do Estado com a mulher em situação de privação de liberdade, a qual não recebe as assistências previstas na LEP. Ao longo deste trabalho, foi possível constatar os números alarmantes de mulheres presas no Brasil. E a análise do perfil socioeconômico das mulheres presas em regime fechado do CRFMJM permitiu identificar que essas mulheres estão inseridas em um contexto de vulnerabilidade social. Observa-se que a maioria das mulheres presas apresenta uma relação com o tráfico de drogas e/ou associação ao tráfico, inserção precoce na criminalidade, associado com baixa escolaridade e qualificação profissional de menor status econômico. Os resultados demonstram o racismo institucionalizado, em que a maior parte da população prisional do CRFMJM é negra, trazendo à tona as diversas violações sofridas por essas mulheres. Destarte, tanto os resultados de pesquisas realizadas em nível nacional como local comprovam que as mulheres em situação de privação de liberdade nos presídios femininos, vivem uma realidade de negação de direitos, expostas a todos os tipos de violência. Concluise que a realidade carcerária brasileira é a expressão da violência institucionalizada e seletiva, visto que atinge grupos específicos da sociedade e que nas últimas décadas vem aumentando o número de mulheres presas e, consequentemente, da violência de gênero. Referências BRASIL. Ministério da Justiça. Levantamento Nacional de Informações Penitenciarias, INFOPEN Mulheres 2014. Disponível em https://www.justica.gov.br/noticias/estudotraca- perfil-da- populacao-penitenciaria-feminina- no-brasil/relatorio- infopen-mulheres.pd; (Acesso em 25 de Agosto de 2017).. Ministério da Justiça. Lei de Execução Penal. N 7.210, de 11 de Julho de 1984. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210compilado.htm. (Acesso em 15 de Outubro de 2017).. Conselho Nacional de Justiça. Regras de Bangkok. Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras. Disponível em http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/03/a8 58777191 da58180724ad5caafa6086.pdf (Acesso em 15 de Outubro de 2017). 11

PEDROSO, Regina Célia. Utopias penitenciárias, os projetos jurídicos e realidade carcerária no Brasil. In: Revista de História 136, FFLCH-USP, 1 Semestre, 1997, p. 121-137. SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, Patriarcado, Violência. São Paulo: Perseu Abramo, 2004. WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahah, 2001. 12