UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL IV SEAD - SEMINÁRIO DE ESTUDOS EM ANÁLISE DO DISCURSO 1969-2009: Memória e história na/da Análise do Discurso Porto Alegre, de 10 a 13 de novembro de 2009 FORMAÇÃO IDEOLÓGICA: O CONCEITO BASILAR E O AVANÇO DA TEORIA Caciane Souza de Medeiros cacismedeiros@yahoo.com.br Doutoranda Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) A partir da premissa de que os embates discursivos em sua movência são parte constitutiva de sentidos na sociedade, localizamos nossa reflexão, para este simpósio, no bojo teórico constituído a partir da obra de Michel Pêcheux. Mais especificamente, refletimos sobre o conceito de formação ideológica, atentando para o rigor teórico que Pêcheux traz à baila ao considerar a ideologia como interpelação do indivíduo em sujeito, portanto, como conceito determinante na formação do discurso e do sujeito. Embaraçados à idéia de que a língua serve para comunicar e para não-comunicar (Pêcheux, 1990, p.21) e à premissa de que os embates discursivos em sua movência são parte constitutiva de sentidos na sociedade, traçamos, como parte de nosso trabalho de tese, o desafio de tratar a imagem como discurso nas capas de revista que se constituem como nosso objeto de estudo. Esta leitura da imagem como constituinte do discurso embasada em Michel Pêcheux nos orienta a compreender que a palavra fala da imagem, a descreve e traduz, mas não considera a sua matéria visual, tampouco esmiúça sua condição de efeito constituído historicamente. Neste ínterim, nos afastamos da convicção do senso comum de que uma imagem vale por mil palavras. Fundamentados em um dispositivo teórico discursivo, de acordo com Eni Orlandi, entendemos que a AD permite trabalhar não exclusivamente com o verbal (o lingüístico), pois restitui ao fato da linguagem sua complexidade e sua multiplicidade, isto é, aceita a existência de diferentes linguagens o que não ocorre com a Lingüística, que, além de reduzir fato (de
linguagem) à disciplina (que trata da linguagem), reduz também a significação ao lingüístico. O importante para a AD não é só as formas abstratas, mas as formas materiais de linguagem (Orlandi, 1995, p.34). Se, em suas formas heterogêneas, a linguagem é lugar de significação, um dos componentes teóricos cruciais para que a interpretação da imagem tenha sustentação na teoria discursiva de Pêcheux, é a noção de simbólico. Segundo o autor, não há sentido sem articulação do simbólico ao político, no sentido de que o simbólico não é uma etiqueta que representa um determinado objeto cuja ordenação, categorização, interpretação preexiste à significação e político no sentido de que é um embate por poder. Dessa forma, para a constituição do sentido há um investimento no material simbólico através do qual esse sentido que se manifesta e vai atestar a forma de relação do sujeito com a língua e a imagem, como sendo constitutiva do que se veicula nos meios de comunicação. Pontualmente, no corpus de mídia impressa informativa com o qual trabalhamos, a recorrência com que a escrita é articulada à imagem, especialmente a imagem fotográfica e digital, sinaliza para o que interpretamos como uma articulação construída, mobilizada pela força que o discurso pode ganhar ao se investir em diferentes materialidades. A imagem na forma como recortamos nosso objeto a capa - está inserida, na mídia, na forma dos produtos de informação produzidas e veiculadas nos meios de comunicação, e funciona como dispositivo, como marca enquanto operador da memória social. Esta memória está imersa e compõem um universo formador das chamadas evidências de sentidos. Neste ponto teórico temos o mote de nossa reflexão, o conceito que se materializa como complexo e vigoroso dispositivo de análise: o de formação ideológica. As formações ideológicas são um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem individuais nem universais mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classe em conflito umas com as outras. Pêcheux e Fuchs ([1975] 1997) explicam que, para o materialismo histórico região constituinte da fundação da teoria de Pêcheux, os AIE são lugares onde se dá a luta de classes e destacam que as posições políticas e ideológicas em confronto nesse embate organizam-se em formações denominadas formações ideológicas, as quais mantêm entre si relações de antagonismo, de aliança ou de dominação (p. 166). Através da noção de formação ideológica, a tese althusseriana de que a ideologia interpela os indivíduos em sujeitos também adquire mais minúcia, pois para Pêcheux e Fuchs ([1975] 1993), essa lei constitutiva da Ideologia nunca se realiza em geral, mas sempre através de um conjunto complexo determinado de formações ideológicas (p. 167) [grifos dos autores]. As formações ideológicas caracterizam-se por serem elementos capazes de intervir como uma força em confronto com outras na conjuntura ideológica de uma determinada formação social. Essas formações (FIs) são compostas pelas formações discursivas (FDs). As FDs definem-se como aquilo que, numa formação ideológica dada, [...] determina o que pode e deve ser dito (articulado sob
a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.) (PÊCHEUX, [1975] 1995, p. 160 grifos do autor). Para Pêcheux, mais que analisar as formações ideológicas por sua relação de classes é preciso considerar seu caráter regionalizado, já que: É porque as formações ideológicas têm um caráter regional que elas se referem às mesmas coisas de modo diferente (Liberdade, Deus, a Justiça, etc.), e é porque as formações ideológicas têm um caráter de classe que elas se referem simultaneamente às mesmas coisas. (Pêcheux, 1990, p.259) PÊCHEUX (1995) vai tratar, portanto, esta noção de formação discursiva incluindo um aspecto determinante: o da ideologia; mais que isso o que temos funcionando no discurso é: conjunto complexo de atitudes e representações que não são nem individuais, nem universais, mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas com as outras. (PÊCHEUX; FUCHS, 1993, p. 166) O aspecto teórico em Pêcheux que nos toca diretamente é o que explicita que a ideologia está engajada ao excesso e não à falta. O excedente é uma marca discursiva da ação políticoideológica no discurso. Se a imagem, em sua materialidade e rede interdiscursiva, instaura sentidos, não os instaura de forma isolada, desconectada; ela, antes de ser analisada como peça única, fora do jogo da história, deve ser concebida de forma mais ampla. Na garimpagem das buscas por processos de significação, ela deve ser observada como pertencente a uma formação ideológica. O que não quer dizer que esta imagem possa ter tantas interpretações quantos leitores nela se debruçarem. As condições de produção dessas imagens, calcadas na história, limitam os laços que podem unir imagem e sentido, pois nada pode se dar fora dessa macroestrutura e de seus inumeráveis conflitos. Ao propormos um trabalho de análise da imagem, encontraremos um embate inconsciente que se configura num jogo enunciativo entre o que se revela na tessitura visual da imagem, e o que se recolhe numa luta silenciosa na busca de alcançar a superfície discursiva da imagem instância do esquecimento número dois articulado com as sequências parafrásticas de retomadas de elementos visuais, constitutivas do efeito de sentido esquecimento número um. É justo nesse jogo, entre os elementos que habitam a superfície da imagem e os que a permeiam, esquecidos, na densidade da história, que devem ser instauradas as interpretações. Queremos dizer que o sentido deve vir em seguida à análise. Este só deve ser teorizado e interpretado a partir da correlação entre os elementos visíveis na imagem e aqueles que estão espalhados, dissipados nos conflitos históricos, e que não se encontram explicitados na imagem, mas
que se deixam entrever como um inquietante retorno de elementos que possibilitam a existência de outros sentidos. A compreensão da produção e do modo de interpretação dos produtos de mídia, como é o caso de nosso objeto, refere que há um processo em diferentes temporalidades históricas que são marcas para além da sua materialidade. O quadro sócio-histórico e ideológico do discurso midiático só pode ser compreendido em seus mecanismos de funcionamento; este funcionamento é ideológico. A compreensão da produção e do modo de interpretação dos produtos de mídia, por exemplo, refere que há um processo em diferentes temporalidades históricas que são marcas para além da sua materialidade. Com uma sequência de imagens históricas em nossas mãos (as capas de algumas edições das revistas Veja, Época e Superinteressante), devemos atentar ao que Pêcheux apontou como uma espécie de dominância do sentido, em que o não-afirmado precede e domina o afirmado (Pêcheux, 1993, p. 178). Tudo o que se encontra na imagem, todos os elementos que a compõem devem valer também pelos que nela não se encontram, todas as outras possibilidades históricas que não puderam vir à luz do sol. Queremos dizer que a ideologia tanto pode se materializar em imagens no momento da produção das mesmas (quando da seleção e recorte do mundo que irá priorizar certos elementos, em detrimento de outros), quanto do momento da leitura dessas imagens por sujeitos-leitores, que por mecanismos inconscientes que não dominam pelo menos em sua totalidade instauram sentidos cristalizados por ideologias que, apesar de parecerem antigas e defasadas, se vinculam e determinam discursos que sustentam a máxima de que a imagem seria um tranquilo reflexo do real. Entendemos a nulidade desta possibilidade, já que as relações do sujeito com seu entorno são bem mais complexas do que aparentam, e quando fazemos leituras de imagens de tempos em tempos, sejam eles quais forem, calamos, mentimos e desdizemos sentidos. BIBLIOGRAFIA ORLANDI, Eni. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 4 ed. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1997. PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 2 ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 1995.. O Discurso. Estrutura ou Acontecimento. 3 ed. Campinas: Ed. Pontes, 2002.. Análise Automática do Discurso. In: F. Gadet e T. Hak (orgs). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Unicamp, 1993. 319p. p. 61-162.. Ler o arquivo hoje. In: Gestos de Leitura. Da História no Discurso. Eni Orlandi (org.) Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1994.
. Delimitações inversões, deslocamentos. In: Cadernos de Estudos lingüísticos, 19. Campinas, IEL, Unicamp, 1990.