Impactos Ambientais Urbanos Provocados pela Ocupação da Planície Fluvial e do Entorno do Rio das Mortes e seus Afluentes

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Transcrição:

Impactos Ambientais Urbanos Provocados pela Ocupação da Planície Fluvial e do Entorno do Rio das Mortes e seus Afluentes Vicente de Paula Leão Doutor em Geografia e Análise Ambiental pela UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais Professor e Coordenador do Curso de Geografia da UFSJ - Universidade Federal de São João del-rei. São João del-rei - MG leao@ufsj.edu.br Inêz Aparecida de Carvalho Leão Mestranda em Educação pela UFSJ - Universidade Federal de São João del- Rei. São João del-rei - MG Professora da Escola Estadual Dr. Garcia de Lima São João del-rei - MG iacl@bol.com.br Sessão Temática: 3(ST3) 1

Impactos Ambientais Urbanos Provocados pela Ocupação da Planície Fluvial e do Entorno do Rio das Mortes e seus Afluentes RESUMO O presente texto trata da dinâmica de funcionamento de uma bacia fluvial e sua relação com a organização do espaço urbano. Por falta de informação ou por omissão, o processo de ocupação do entorno do Rio das Mortes e do Córrego do Lenheiro, que atravessa a cidade de São João del-rei/mg, ocorreu sem o planejamento necessário e em desrespeito ao caminho das águas no meio urbano. Identificamos alguns aspectos que evidenciam a ocupação irregular do espaço urbano e sua influência no caminho percorrido pela água das chuvas nos diversos bairros de São João del-rei até o leito do Lenheiro e do Rio das Mortes. O texto trata dos impactos ambientais ocorridos em alguns pontos da bacia hidrográfica e como esses impactos contribuem para a ocorrência das enchentes. Consideramos fundamental o entendimento das relações de poder que definiram e definem a ocupação do espaço e como essas territorialidades se chocam com os limites da natureza. Palavras-Chave: Espaço Urbano, Impactos Ambientais, Enchentes, Águas Urbanas, Bacia Hidrográfica. INTRODUÇÃO O conhecimento da dinâmica de funcionamento de uma bacia fluvial e sua relação com o meio urbano é determinante na organização do espaço urbano. Por falta de informação ou por omissão, o processo de ocupação da planície fluvial e do entorno do Rio das Mortes e de seus afluentes, notadamente do Córrego do Lenheiro, que atravessa a cidade de São João del- Rei/MG, ocorreu sem o planejamento necessário. A planície de inundação do Rio das Mortes foi ocupada, inclusive com o incentivo do poder público, que promoveu a doação de lotes feita por vereadores aliados dos prefeitos. Bairros inteiros foram construídos ao longo do Rio das Mortes e seu afluente (Córrego do Lenheiro). Pretendemos, através deste texto, abordar o problema das enchentes em São João del-rei considerando os impactos ambientais ocorridos em alguns pontos da bacia hidrográfica e como esses impactos contribuem para a elevação do nível do Rio das Mortes e do Córrego do Lenheiro. Abordaremos as relações de poder que definem a ocupação do espaço e como essas territorialidades se chocam com os limites da natureza. 2

Entendemos que a visão parcial dos fenômenos impede uma ação mais eficaz do poder público e da sociedade. Através de imagens de satélite será possível apresentar alguns aspectos da geografia de São João del-rei/mg e entender de que forma aspectos humanos e físicos nos ajudam a entender o caminho percorrido pelas águas das chuvas e quais são as possibilidades de construção de uma nova territorialidade urbana. 1 - O CAMINHO DAS ÁGUAS: LIMITES E POSSIBILIDADES DE OCUPAÇÃO O espaço urbano se constrói a partir das relações de poder entre aqueles que habitam a cidade. Contudo, os mecanismos da globalização têm influenciado cada vez mais na produção desse espaço. As territorialidades urbanas são definidas por agentes que não vivem o cotidiano da cidade, mas que precisam dotar o espaço urbano com os aparelhos técnicos para a produção do capital. Conforme Benjamin (1991 p.32) os novos paradigmas estabelecidos pelo industrialismo, favorece o surgimento de uma nova relação entre espaço e tempo, substituindo as produções pautadas pelas relações sociais de contexto locais de interação. Para Giddens (1991, p.29), essas relações de interação local são substituídas por relações abstratas, dissociando produção, consumo e mercado, cada um passando a obedecer as suas próprias lógicas, seus próprios relacionamentos, como forma de deslocar os vínculos sociais, antes holísticos, para uma relação impessoal mediada pelas mercadorias. As paisagens urbanas assumem funções e revelam as estruturas de poder e os processos históricos que as originaram. Sua constituição, na maioria das vezes, se dá sem respeito aos limites da natureza e seu movimento contínuo. A incapacidade de a humanidade perceber e/ou aceitar esse movimento contribui para que o espaço seja ocupado de forma irregular. Em diferentes tempos e lugares, as paisagens revelam a interdependência dos elementos da natureza e sua inter-relação com as atividades humanas. Essa relação constitui um instrumento valioso para entender como os espaços se organizam. O espaço é, portanto, a sociedade espacializada. As formas criadas pelo homem resultam de processos históricos nos quais convivem, 3

dialeticamente, uma cultura homogeneizadora, construída a partir de parâmetros globais, e uma cultura local, resultante de valores e costumes remanescentes. É justamente essa territorialidade construída para a produção do capital que se choca com os limites da natureza. A omissão e/ou cumplicidade do poder público contribui para favorecer, ao longo desses anos, a ocupação irracional do espaço. Na maioria das cidades brasileiras a ocupação da planície de inundação provoca enchentes e destruição de bens materiais e atenta contra a vida. Nas palavras de Hissa (2002, p. 22), a planície é o rio. Ela não existe sem sua presença recortante, líquida e paciente. Em seu trabalho secular, o rio é veículo de transporte. Carrega partículas menores nas estações secas; abandona as maiores nas curvas mais lentas do conjunto de seus meandros (...) quando chega o verão chuvoso, o rio solidário acolhe a tempestade e transforma-se nela. Veja na Figura 1 o mapa da microbacia do Rio das Mortes e as cidades por ela drenadas. Figura 1 Cidades drenadas pela micro bacia do Rio das Mortes Fonte: Instituto Rio Limpo 4

O desrespeito ao caminho das águas na orientação do crescimento da área urbana, associado à especulação imobiliária decorrente do uso especulativo do solo leva, invariavelmente, à ocupação de áreas de risco; no caso deste estudo, a planície fluvial do Rio das Mortes. O processo de ocupação da cidade de São João del-rei - MG inicia-se em função da exploração do ouro. Com o fim dessa riqueza várias cidades coloniais passaram por um período de dificuldades econômicas. Vale lembrar que o belíssimo patrimônio arquitetônico construído nos períodos áureos não possuía nenhum valor econômico com o fim do ciclo do ouro, chegando a ser renegado com o advento da República, visto que as cidades coloniais representavam a lembrança material da presença do colonizador europeu. Tal fato contribui para a degradação de parte desse patrimônio. Só na segunda metade do século XX, com o desenvolvimento do turismo de massas, é que São João del-rei descobriria sua atual vocação. No período entre o fim do ciclo do ouro e o turismo de massas foi o Rio das Mortes e seus afluentes que garantiram a continuidade da ocupação dessa região, notadamente marcada pela atividade agropecuária. 2 - A GLOBALIZAÇÃO NA REDEFINIÇÃO DAS TERRITORIALIDADES URBANAS A construção da planície fluvial permitiu que a população, que até então se dedicava à extração mineral, pudesse se desenvolver. Além de sedimentar e fertilizar o solo, permitindo as atividades agrícolas, o barro do Rio das Mortes e seus afluentes permitiram o surgimento de atividades ligadas ao artesanato. Contudo, essa natureza pouco alterada sucumbiu ao avanço da tecnologia. Conforme Cunha e Guerra (2000, p 337) O final do século passado e início deste século, denominado como o novo período técnico-científico-informacional segundo Santos e Silveira (2001), é caracterizado por uma sociedade cada vez mais dependente de tecnologias e produtos que passa a impor um novo ritmo de vida, de exploração dos recursos naturais e, consequentemente, repercutindo nos processos geomorfológicos. Nesse sentido o homem passa a ser considerado como um importantíssimo agente geomorfológico que 5

cria/recria novos processos ou, em grande parte dos casos, intensifica os processos já existentes, levando a degradação ambiental. A globalização, assim, intensificou a interdependência dos lugares e as mudanças na paisagem passaram a ter estrita relação com a possibilidade de esta servir à produção e multiplicação do capital. Os lugares passaram a ser absorvidos por uma lógica externa. As novas exigências de um território pensado e construído para facilitar os fluxos de idéias, mercadorias e capitais mudaram as relações entre as diferentes localidades. Conforme Bauman (1999, p. 25), Com as distâncias não significando mais nada, as localidades, separadas por distâncias, também perdem seu significado. Isso, no entanto, augura para alguns a liberdade face à criação de significado, mas para outros pressagia a falta de significado. Alguns podem agora mover-se para fora da localidade qualquer localidade quando quiserem. Outros observam, impotentes, a única localidade que habitam movendo-se sob seus pés. Os movimentos dessas localidades acontecem por intermédio de novos arranjos territoriais. Conforme escreveu Brunet et al. (1992, p. 436), o território diz respeito à projeção sobre o espaço determinado de estruturas específicas de um grupo humano, que inclui a maneira de repartição, gestão e ordenamento desse espaço. Na imagem que segue é possível perceber que a definição política de usar o meio para a extração de minério resultou em impactos diretos na bacia do Rio das Mortes. Na figura 2, apresenta-se o exemplo do que se diz: 6

Figura 2 Assoreamento do Rio das Mortes provocado pela degradação do solo Fonte: Google Earth Conforme Castro (1995, p.120-121), A análise geográfica dos fenômenos requer objetivar os espaços na escala em que eles são percebidos. O entendimento das diferentes escalas geográficas constitui um valioso instrumento para entender os efeitos dos impactos ambientais urbanos. A demanda mundial por minério resultou na exploração e degradação do meio ambiente. O solo desprotegido permite o transporte de grande quantidade de sedimentos para o leito do rio, diminuindo sua calha e, consequentemente, aumentando os riscos de enchentes nas cidades que se encontram no seu entorno. Assim, as transformações na paisagem revelam as relações entre o local e o global e permitem situar a importância da escala geográfica na compreensão do espaço. A globalização intensificou a interdependência dos lugares. Estes adquirem uma nova territorialidade para atender às novas exigências neles estabelecidas. Para Santos (1996, p.199), 7

Os lugares se especializam, em função de suas virtualidades naturais, de sua realidade técnica, de suas vantagens de ordem social. Isso responde à exigência de maior segurança e rentabilidade para capitais obrigados a uma competitividade sempre crescente. [...] Na medida em que as possibilidades dos lugares são hoje mais facilmente conhecidas à escala do mundo, sua escolha para o exercício dessa ou daquela atividade torna-se mais precisa. Disso, aliás, depende o sucesso dos empresários. É desse modo que os lugares se tornam competitivos. O dogma da competitividade não se impõe apenas à economia, mas também à geografia. As novas exigências de um território pensado e construído para facilitar os fluxos de idéias, mercadorias e capitais mudaram as relações entre as diferentes localidades. O processo de produção do território ocorre em diferentes escalas. Para Rafestini (1993, p. 152-153), Do Estado ao indivíduo, passando por todas as organizações pequenas ou grandes, encontram-se atores que produzem o território. De fato, o Estado está sempre organizando o território nacional [...] O mesmo se passa com as empresas e outras organizações [...]. O mesmo acontece com o indivíduo que constrói uma casa [...]. Essa produção de território se inscreve perfeitamente no campo de poder de nossa problemática relacional. Todos nós elaboramos estratégias de produção, que se choca com outras estratégias em diversas relações de poder. Essas estratégias de organização do espaço são o produto da atividade humana sobre a superfície terrestre. É a partir do conflito de interesses entre a sociedade e o capital que a cidade se constrói. 3 - A CIDADE E O RIO: LIMITES E POSSIBILIDADES DE OCUPAÇÃO As imagens abaixo mostram a área urbana da cidade de São João del- Rei, que ocupa predominantemente a porção oeste da figura. 8

Figura 3 Área urbana de São João del-rei-mg e ocupação da planície do Rio das Mortes Fonte: Google Earth Figura 4 Ocupação da planície de inundação do Rio das Mortes Fonte: Google Earth Na porção nordeste da figura se encontra a pequena cidade de Santa Cruz de Minas/MG. Essas cidades desenvolveram-se às margens do Rio das Mortes desrespeitando seus limites e seu movimento natural. No entorno da área urbana é possível perceber que grande parte da vegetação natural foi retirada, o que aumenta sua circulação superficial. Na figura 5 é possível 9

observar a destruição da mata ciliar e a ocupação irracional da planície de inundação: Figura 05 - destruição da mata ciliar e a ocupação irracional da planície de inundação Fonte: Google Earth A preservação da mata ciliar, ao longo do rio, diminuiria a carga de sedimentos e aumentaria a calha do rio e, consequentemente, sua capacidade de reter água em seu leito regular. Na foto acima, é possível perceber que a parte côncava do rio faz com que este se aproxime da área urbana. Esse fenômeno é resultado da dinâmica natural do rio, que escava a parte côncava (retirando-lhe sedimentos) e os deposita na parte convexa. Assim, na medida em que o rio avança sobre essas residências, parte da população tenta proteger-se aterrando o rio, o que contribui para criar novos pontos de enchente na parte superior do rio. Esses impactos resultam da forma como o homem cria o seu ambiente. Nas palavras de Sobral (1996, p. 16): As cidades são as maiores propulsoras dos impactos que o homem causa à natureza e onde mais se alteram os recursos naturais: terra, água, ar e organismos. Através da urbanização, o homem criou novos ambientes nos quais há complexas interações entre os grupos 10

humanos, seus trabalhos e a natureza. Conforme aumenta o tamanho das cidades, aumenta essa complexidade. Observa-se que as construções de uma sociedade (...) estão também sujeitas aos processos físicos que operam na natureza, mas com uma dinâmica diferente. É importante que se compreenda melhor a dinâmica dessas relações nas áreas urbanizadas. Associado à destruição da mata ciliar, o relevo de mares de morros contribui para o escoamento superficial e para o assoreamento do rio, diminuindo sua capacidade de reter a água das chuvas. O resultado dessa ocupação irracional são as inundações que ocorrem com maior frequência nos bairros de menor altitude. A cidade de São João del-rei-mg é drenada pelo Córrego do Lenheiro. Esse córrego recebe, em dias de chuva, grande quantidade de água decorrente da ineficiência do sistema de drenagem subterrânea da água das chuvas, do acúmulo de lixo que entope as bocas-de-lobo dos bueiros e da impermeabilização do solo urbano pelo asfalto. Nas figuras 6 e 7 é possível ver a impermeabilização provocada pelo asfalto e a quantidade de lixo transportado pelo Córrego do Lenheiro até o Rio das Mortes: 11

Figura 6 Impermeabilização do solo pelo asfalto em São João del-rei-mg Figura 7: Lixo acumulado no leito do Rio das Mortes 12

Concomitantemente a esse processo de assoreamento, a água dos rios encontra-se cada vez mais pesada em função do esgoto doméstico e do lixo urbano. O esgoto não recebe nenhum tratamento, uma vez que saneamento básico não produz votos, porque os canos ficam debaixo da terra e ninguém os vê. O lixo é resultado do modelo de consumo que produz um número enorme de embalagens. Todos esses fatores descritos atuando em conjunto revelam um modelo de ocupação do entorno do Córrego do Lenheiro que não considerou o caminho natural das águas. O resultado dessa ocupação irracional é a incapacidade do Córrego do Lenheiro de reter e dar vazão à grande quantidade de água e sedimento transportados em período de chuva. Em poucas horas o córrego transborda, provocando as enchentes. Veja, nas figuras 8 e 9, a transformação do córrego depois de uma noite de chuva torrencial. Figura 8 - Córrego do Lenheiro antes da chuva Fotos dos autores 13

Figura 8 Córrego do Lenheiro depois da chuva Fonte: fotos dos autores As catástrofes que são atribuídas às chuvas ou trombas-d água são, na verdade, resultado da ocupação inadequada no espaço pelo homem. Em São João del-rei/mg, assim como nas principais cidades do país, as enchentes são resultado da falta de planejamento das cidades que não respeitam os limites na natureza e o caminho percorrido pelas águas. CONCLUSÃO O entendimento dos problemas ambientais humanos em São João del- Rei requer a análise de diferentes aspectos humanos e naturais ao longo da planície fluvial do Rio das Mortes. As tragédias provocadas pelas enchentes causam dor e indignação. O depoimento de um morador que teve seu bairro invadido pelas águas do rio é revelador da percepção reducionista sobre o fenômeno das enchentes. Veja nas palavras desse morador: Isso é coisa de Deus. As palavras desse cidadão refletem o sentimento de boa parte da população que culpa o rio e, por tabela, o seu Criador pela tragédia. Resignado, imaginava que Deus, por algum motivo, quisera castigar seus filhos enviando a enchente. Os responsáveis pela ocupação irracional do espaço são absorvidos visto que, diante da fúria de Deus, só nos resta a resignação. Para Leão (2005, p.13), O ato de conhecer exige múltiplos olhares, ver a mesma coisa de forma diferente e criar, assim, um espaço para se atribuir um 14

novo significado ao que chega aos nossos olhos. O caminho percorrido pelas águas urbanas, talvez seja o mais perfeito e conflituoso momento de encontro do meio técnico com a natureza, e, por consequência, exige o rompimento das fronteiras intradisciplinares entre a Geografia Física e a Geografia Humana. O espaço é o mediador dos conflitos de interesses que constroem as territorialidades. Cabe a nós assumirmos nossas responsabilidades e não sermos indiferentes ao que acontece na cidade. Como escreveu Antônio Gramsci: Odeio os indiferentes; viver significa tomar partido. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENJAMIN, W. Paris: capital do século XIX. In: Sociologia. São Paulo: Editora Ática, 1991. CANHOLI, Aloísio Prado. Drenagem urbana e controle de enchentes. São Paulo: Oficina de Textos, 2005 CARLOS, Ana Fani A., LEMOS, Amália Inês G. (orgs.). Dilemas urbanos. Novas abordagens sobre a cidade. São Paulo: Contexto, 2003. CASTRO, Iná Elias de. O problema da escala. In: CASTRO, Iná Elias de; GOMES, Paulo Cesar da. Costa; CORRA, Roberto Lobato (Orgs.). Geografia conceitos e temas. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p.117-140. COELHO, Andre. L. N. A Evolução e a Dinâmica Fluviomarinha Recente na Planície Costeira do rio Doce: Identificando e Discutindo as Principais Transformações. In: Anais do XI SBGFA, USP,Sao Paulo, SP, 2005, ISBN: 85-904082-9-9, pp. 5440-5459. CD-ROM. CUNHA, Sandra B.; GUERRA, Antonio J. T. Degradacao ambiental. In: CUNHA, S.B.; GUERRA, A.J.T. (orgs.). Geomorfologia e Meio Ambiente. 4a ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. DADIDOCICH, Fany. Considerações sobre a urbanização no Brasil in: BECKER Berta K. et ilii (orgs) Geografia e meio Ambiente no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1995 GIDDENS. Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991. GUERRA, J. A.T. Impactos Ambientais Urbanos no Brasil. São Paulo: Bertrand Brasil, 2000. 15

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