SOBRE A ADOÇÃO DA ESCRAVIDÃO AFRICANA NO BRASIL

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Transcrição:

SOBRE A ADOÇÃO DA ESCRAVIDÃO AFRICANA NO BRASIL Wagner Luíz de Almeida¹ José Luis Oliveira de Paula² RESUMO Trataremos, no presente estudo, de algumas das explicações mais usuais para o fenômeno da adoção da escravidão africana no Brasil a partir da segunda metade do século XVI, enfatizando aquelas que privilegiam as discussões sobre as causas superestruturais deste processo. Posteriormente, faremos pequena referência a uma das formas alternativas de resistência ao cativeiro, amplamente usada pelos escravos africanos no Brasil, a negociação. Palavras-chave: História do Brasil, Escravidão Africana, Resistência. SUMMARY We will deal with in the present study to some the explanations most usual for the phenomenon of the adoption of the African slavery in Brazil from the second half of century XVI, emphasizing those that privilege the argue on the super structural aspects of this process. Later, we will make reference to small one reference of the alternative forms of resistance to the captivity, widely used for the African slaves in Brazil, the negotiation. Keywords: Brazil s History, African slaver, resistance INTRODUÇÃO É intuito deste trabalho desenvolver uma pequena discussão historiográfica acerca das justificativas produzidas ao longo dos tempos, de como e por que a escravidão africana foi introduzida no Brasil. Esperamos que esse estudo, venha nos possibilitar uma compreensão mais abrangente a respeito deste ¹Graduando o nono período de história ²Mestre em história. 251

252 fenômeno, de suma importância na formação de nosso povo. Faz-se necessário para tanto, indagarmos antes de nossa análise, sobre quais seriam os fatores que poderiam ter contribuído para que, no Brasil, a escravidão do nativo silvícola, fosse aos poucos, sendo substituída pela do africano. E até que ponto as dificuldades de se escravizar o indígena ou mesmo o posicionamento do clero teriam relação com este acontecimento? Procuraremos achar respostas para estas questões no decorrer de nosso texto. Nos parágrafos que antecederão as nossas ponderações finais, apresentaremos ainda ao leitor um exemplo clássico daquela que, na opinião de muitos autores de produção recente, foi uma das formas de resistência ao cativeiro mais utilizadas pelos cativos africanos no Brasil-colônia: a negociação. Todavia é mister observarmos previamente, que o processo de substituição da escravidão indígena pela escravidão africana em nosso país vem, ao longo dos tempos, sendo objeto de múltiplas interpretações, fundamentadas em divergentes metodologias e concepções do processo histórico, portanto, qualquer conclusão sobre este tema sempre necessitará ser relativizada futuramente. A partir da segunda metade do século XX, muitos pesquisadores brasileiros passaram a explicar a dinâmica colonial, tendo como base à ênfase ao estudo dos fenômenos relacionados ao tripé: plantation, monocultura e escravidão. Este tipo de análise tem suas raízes na idéia de que é o fator econômico o responsável principal por toda a organização social e política de um povo, explicação baseada na ortodoxia marxista. Interpretando a colonização lusitana no Brasil sobre esse prisma, tais autores acabaram, na opinião de João Fragoso (1992, p. 48) superestimando os interesses mercantilmetropolitanos ligados à exploração colonial e à interferência dos mesmos no cotidiano da América portuguesa. Daí, a questão da própria monocultura merecer da nossa parte mais prudência, ao ser estudada, pois, embora a produção e extração de gêneros revendidos no continente europeu a altos preços fossem priorizadas, havia as atividades CES Revista

economia brasileira durante toda a sua história colonial: a pecuária, o algodão, a produção de alimentos para o consumo interno, um complexo sistema de crédito e agiotagem. Tudo isto nos passaria despercebido se, de acordo com a escola do sentido da colonização, concebêssemos a monocultura assentada nas plantations como sendo o agente regulador da vida social e econômica no Brasil-colônia. Por fim, quando queremos ter em mente a escravidão, relação de trabalho que vigorou em nosso país por quase quatrocentos anos, estamos nos remetendo a um passado riquíssimo. Rico na concepção plena do termo, nas relações sociais, no sincretismo religioso e na fusão cultural, tão presente em nosso dia-a-dia. Ao escravismo coube o mérito de ter sido um dos elementos aglutinadores de três povos distintos (índios, portugueses e africanos) que dariam, mais tarde, à cultura brasileira traços singulares, como bem demonstra o livro de Giberto Freyre, Casa Grande e Senzala (1933). A leitura imprescindível desta obra nos atenta para o fato de que o período colonial da história brasileira dificilmente poderá ser compreendido satisfatoriamente sem se levar em conta os fatores culturais e ideológicos do Brasil daquela época. Ao priorizarmos somente as questões relacionadas à economia ou à luta de classes, como almejam alguns pesquisadores sociais alinhados à doutrina do materialismohistórico, teoria empírica sistematizada por Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), segundo a qual a matéria constitui propriamente o fundamento da realidade, corremos o risco de estarmos menosprezando uma parte significativa dessa história, uma vez que a vida na sociedade colonial brasileira foi sem sombra de dúvidas muito mais complexa do que teriam demonstrado muitos destes pesquisadores. Escravos e senhores não eram e nem podiam ser movidos apenas por interesses imediatos, de ordem material, como veremos mais adiante. Estudar e entender este passado riquíssimo, cremos, é tomar conhecimento de parte do que aconteceu com aqueles indivíduos: índios, portugueses e africanos; homens e mulheres, livres ou cativos, ao longo da nossa história. O que implica, inevitavelmente, em irmos mais além do contato com nomes e datas ou de esquemas generalizantes 253

onde portugueses, ìndios e africanos possuíam cada um, o seu padrão de comportamento já estabelecido e independente da realidade que os cercavam. A história "não pode ser compreendida corretamente se for tomada como simples narrativa sem conexão com a práxis e sem interligação com os grupos sociais que formam a dinâmica da história..." (MOURA, 1990, p.15-16). Só assim, conseguiremos ter maior consciência do que fomos um dia e o quanto isto interfere em nossa atualidade. PEQUENO HISTÓRICO SOBRE A ESCRAVIDÃO ANTIGA E MEDIEVAL 254 Na história da humanidade, seria impossível determinarmos quem foi o primeiro homem a ser escravizado e quando isso aconteceu. Já na Antigüidade, a escravidão atingia proporções expressivas, povos inteiros eram subjugados graças a derrotas militares, mas havia também sociedades onde um homem se tornava legalmente propriedade de outro devido à impossibilidade do pagamento de dívidas financeiras contraídas. Esta última era uma prática muito difundida entre as várias civilizações localizadas à margem do mar Mediterrâneo (hebreus, mesopotâmeos, fenícios). A escravidão sempre esteve profundamente enraizada na cultura dos povos antigos. Possuindo até mesmo um discurso ideológico que a justificasse. Em Atenas, na Grécia Antiga, por exemplo, Aristóteles considerava a condição de escravo uma prerrogativa imposta pela natureza que deveria ser desempenhada pelos homens nascidos para a servidão. Durante o Império Romano, o termo latino servus não mudara muito seu significado, designava a condição social de um indivíduo bárbaro que havia tido a vida poupada após sua derrota em combate, em troca de sua submissão e serviço ao vencedor. No período de apogeu militar do Império, o trabalho escravo foi fundamental para sustentar a expansão romana. Essa dependência econômica em relação a práticas servis contribuiu muito para que esta "modalidade" de trabalho fosse instituída nas diversas províncias que, um dia, pertenceriam aos romanos, inclusive a própria Península Ibérica. CES Revista

Em todo o período medieval, as disputas territoriais e religiosas entre cristãos e bárbaros, demonstraram ser um importante estímulo à manutenção das práticas escravistas herdadas da Antigüidade. Na Europa do século XII, Tomás de Aquino baseou-se nas idéias aristotélicas para formular uma doutrina filosófica que tentava conciliar a fé cristã à razão (Tomismo). O clero fundamentado nesta doutrina declarava a escravidão dos povos bárbaros e infiéis (muçulmanos, asiáticos, etc.) legítima. Segundo os preceitos católicos da época todos aqueles que se opusessem à fé cristã deveriam ser combatidos, subjugados e convertidos compulsoriamente. Assim, o ato de difusão da ideologia cristã era visto durante toda a Idade Média como um propósito divino, uma missão a ser cumprida pelos povos da Europa-ocidental (cristã) a qualquer custo. ESCRAVIDÃO NO NOVO MUNDO Mas, o que significava ser escravo no início da Idade Moderna? Tomemos o próprio exemplo brasileiro como modelo: O Dicionário Histórico Brasil: Colônia e Império (BOTELHO; REIS, 2002, p. 69), define o escravo como sendo: o mesmo que cativo, indivíduo que, por ser propriedade do senhor, deveria trabalhar para ele e se sujeitar às suas ordens". Aparentemente esta definição nada difere dos casos já citados até aqui, porém, na prática, o tipo de escravidão que se deu na América, posteriormente à sua descoberta, no início da era moderna (1492), por Cristóvão Colombo, tinha um caráter inédito em relação aos casos da Antiguidade e do período medieval, por dois fatores: 1- O atrelamento à política mercantilista que possibilitou a acumulação primitiva de capitais no continente europeu, tendo como pilares principais: o comércio exclusivo metrópole-colônia, o sistema tributário que recolhia impostos no Novo Mundo e os transferia para Europa e ainda a implantação de uma economia dependente na América; 2- O paradigma do domínio racial em função de um suposto atraso cultural-religioso de negros africanos e índios americanos em relação ao conquistador europeu. A visão etnocêntrica dos lusitanos em relação aos povos 255

da América e da África não diferia do consenso e era também baseada nos parâmetros cristãos da época. Acreditavam os portugueses, que os nativos americanos eram povos ignorantes apenas por desconhecerem a Bíblia, "ovelhas desgarradas" do rebanho daqueles que pertenciam à verdadeira e única fé (católica), mas que ainda podiam ser salvos através de conversão ao cristianismo. Quando aqui chegaram pela primeira vez os lusitanos, Pero Vaz de Caminha já escrevia em sua carta ao rei Dom Manuel sobre a conversão do nativo:... Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos... portanto Vossa Alteza, que tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar de sua salvação" ( PEREIRA, 2001, p.66). Já no caso dos africanos, além de muitos povos daquele continente, serem pagãos ou adoradores de outras divindades a exemplo dos autóctones americanos, ainda era muito difundida na época, a tese de que pertenciam a uma raça amaldiçoada por Deus e traziam na pele a marca dessa maldição, tanto que a sua escravidão tinha como uma de suas explicações, a interpretação de determinados textos bíblicos: 256 três interpretações diversas mas convergentes, eram apresentadas para explicar a origem da escravidão negra. A primeira delas afirma que a escravidão era conseqüência do pecado de Adão, e da maldição divina imposta ao homem de trabalhar a terra com o suor" do rosto... A segunda versão considerava os africanos como descendentes de Caim e, portanto, traziam ainda na carne a maldição divina, ao primeiro homicida da humanidade... Na tradição popular, os negros eram considerados como a raça maldita de Caim, sendo a negritude de sua pele o sinal imposto pelo próprio Deus. De acordo com a terceira interpretação, os africanos eram os descendentes de Cam, o filho de Noé, amaldiçoado pelo pai por ter zombado de sua nudez, quando jazia embriagado após provar o fruto da videira. (AZZI, 1987, p.80) CES Revista

Vejamos agora com mais detalhes como as nações ibéricas vieram implantar o sistema escravista em suas colônias do Atlântico. Logo após o período histórico comumente designado de Grandes Navegações, época dos grandes descobrimentos marítimos, era comum se dizer nas cortes européias que quem não colonizasse suas terras além-mar não seria dono das mesmas, por isso, lusitanos e castelhanos logo se apressaram em garantir a posse de suas colônias na América por meio do povoamento. Portugal e Espanha, donos de vastíssimos territórios recém encontrados, então se viram diante de um enorme problema: como ocupar suas terras? Para os espanhóis esta questão seria solucionada com muito mais rapidez graças ao numeroso contingente populacional de autóctones que habitavam seus territórios, as relações de produção já evoluídas existentes entre os mesmos e a descoberta precoce de metais preciosos que logo atraiu milhares de aventureiros para o Novo Mundo. Já a coroa lusitana, há tempos, vinha correndo sérios riscos de perder sua colônia americana para diversas nações inimigas, mais notadamente a França, que não se conformava com o Tratado de Tordesilhas e, por isso, seus navios visitavam freqüentemente nosso território para negociar pau-brasil e produtos nativos diretamente com as tribos indígenas do litoral. A coroa francesa alegou por muito tempo o princípio do uti possidetis que determinava que só a ocupação efetiva do lugar garantia o direito de propriedade. Portugal que sofria um enorme déficit populacional causado pela peste negra (século XIV) e pelas batalhas pela reconquista de parte de seus territórios na península Ibérica, durante muito tempo ocupados pelos mouros, não dispunha de um número suficiente de colonos para enviar ao Brasil-colônia. Além disso, havia o medo de que a abundância de terras aqui existentes funcionasse como um estímulo para que os homens livres vindos da Europa se tornassem pequenos proprietários autônomos, voltando os seus esforços exclusivamente para a constituição de lavouras de subsistência ou que visassem o comércio local, o que, fatalmente, impulsionaria a economia colonial rumo à auto-suficiência administrativa-econômica. 257

Portugal, então, esforçou-se para estabelecer aqui no Brasil atividades produtivas de gêneros primários altamente rentáveis quando comercializados no mercado europeu. Para o historiador Caio Prado Júnior este seria, desde o início, o sentido fundamental da nossa colonização. (PRADO JR., 1970) Nos primeiros trinta anos após o descobrimento do Brasil, a coroa lusitana arrendou a extração de pau-brasil, na época, aparentemente, nossa única riqueza, a particulares, porém, a atividade de extrativismo predatório desta madeira não possuía um caráter colonizador que viesse garantir a ocupação e a posse definitiva da terra aos portugueses. Seguindo esta lógica, compreendermos por que o sistema de capitanias hereditárias, ou donatárias (1532), já utilizado na ocupação das ilhas atlânticas (Ilha da Madeira e Açores), parecia então a melhor maneira de solucionar a questão pertinente de como dar início à empresa colonial, sem comprometer os cofres lusitanos. As capitanias permitiram no século XVI a formação dos primeiros povoados brasileiros e a constituição do que em breve seria a aristocracia colonial (ainda de origem lusitana), assentadas principalmente sobre cultivo da cana-de-açúcar, que aqui encontrou várias condições favoráveis: clima, solo fértil e terras abundantes; principalmente no nordeste brasileiro. De fato, a colonização por meio da agricultura tropical, como a inauguraram pioneiramente os portugueses, aparece como a solução através da qual se tornou possível valorizar economicamente as terras descobertas, e dessa forma garanti-lhes a posse (pelo povoamento). (NOVAIS, 1995, p.48) 258 A plantation convencionou-se definir como sendo as grandes lavouras monocultoras assentadas sobre imensos territórios (latifúndios) que serviam de base às unidades produtoras do nordeste açucareiro (engenhos). A afirmação de que estas gigantescas fazendas predominaram ao longo dos séculos XVI e XVII, leva-nos a ter a uma visão reducionista e equivocada da realidade brasileira da época e desprezarmos a existência da pequena propriedade familiar e de uma rica economia de mercado interno CES Revista

impulsionada por ela. O Brasil-colônia, em pouco tempo, se tornou o maior produtor mundial de açúcar, tendo sua produção como pano de fundo, toda uma gama de atividades ditas secundárias mas de vital importância para o próprio sucesso da lavoura canavieira, porém, como já dissemos antes, Portugal não dispunha de colonos na quantidade necessária e nem podia enviá-los a Deus-dará para matar a fome de braços trabalhadores da colônia. A saída mais cômoda e econômica encontrada foi então a adoção imediata de regimes que empregassem a mãode-obra dos nativos aqui encontrados através do trabalho compulsório ou semicompulsório. Portugal possuía vasta experiência na pratica do escravismo. Desde as suas origens, os lusitanos valiam-se do regime escravista para remediar a baixa densidade demográfica e a conseqüente falta de mão-de-obra causada por ela, principalmente na sua região setentrional. Os intermináveis combates travados durante a ocupação muçulmana da Península Ibérica propiciaram ótimas condições para que cristãos e maometanos se escravizassem mutuamente em nome da verdadeira fé e das necessidades de braços "servis. ( MAESTRI, 2001,p.54) A respeito da implantação do sistema servil em nosso país, Gilberto Freyre sugeriu, como já citamos, que, desde os seus primeiros tempos, a vida no interior da colônia foi ditada pela miscigenação racial de índios, portugueses e africanos, tendo como um de seus aspectos mais marcantes o convívio harmonioso entre essas três culturas. harmonia racial que na sua opinião, teve sua expressão mais visível na benevolência e no paternalismo por parte dos senhores de engenho para com seus escravos negros. Contra esta visão "paternalista" e o mito da "democracia racial brasileira", ganharam força no Brasil, nas décadas de 1960 e 1970, as interpretações sobre a escravidão brasileira fundamentadas na denúncia contundente dos interesses econômicos lusitanos e na violência que permeavam todo o sistema escravista em nosso país. 259

Para esta corrente de pensadores em geral, eram as relações econômicas de produção (infraestrutura) que determinavam a produção cultural e ideológica do Brasil-colonia (superestrutura), por isso, pregam em seus trabalhos ter sido a nossa economia colonial, assentada no escravismo e ditada pelos interesses metropolitanos, a causa principal de tudo o que acontecia no seio de nossa sociedade colonial durante os séculos XVI e XVII. Cremos que a principal falha deste modelo interpletativo, resida, no fato de que, quando este é levado ao pé-da-letra leva-nos a um tipo de determinismo, onde as estruturas econômicas são vistas como independentes das próprias sociedades que as produziam, ditando o modo de agir e de pensar dos indivíduos, como se estes, fossem seres desprovidos de qualquer capacidade de autodeterminação. Esta versão é até hoje em dia a mais difundida nos currículos escolares de nível básico e fundamental, portanto é também a mais conhecida. ESCRAVIZANDO O NATIVO 260 Em algumas áreas do Brasil-colônia como em diversas outras regiões do Novo Mundo, desde cedo e por muito tempo o indígena chegou a ser a mais importante mão-de-obra utilizada, constituindo o seu apresamento e exploração do seu trabalho a base fundamental dos primeiros esforços coloniais portugueses, entretanto, a escravidão nativa estava intimamente relacionada à oferta de grandes contingentes populacionais indígenas nas diferentes partes do continente. No caso específico da América espanhola, por exemplo, a densidade demográfica das comunidades nativas encontradas nas regiões dos antigos impérios ameríndios (Astecas, Incas e Maias) 2" era de aproximadamente " 50 hab./km (PEREGALLI, 1994, p.6), um número elevado em relação ao Brasilcolônia o que, explica em parte, por que ao contrário CES Revista

do que ocorrera na América Portuguesa, a escravidão indígena na parte castelhana do continente somente em poucos casos regionais foi superada pela escravidão africana. Até a pouco tempo, muitos historiadores sequer mencionavam a escravidão nativa em seus trabalhos. Outros alegavam que um dos motivos da substituição do escravo nativo pelo africano, no Brasil-colônia, por volta de 1550, teria sido uma conseqüência direta de uma suposta "indisposição natural" do índio brasileiro ao trabalho regular. Atualmente, este raciocínio é objeto de questionamentos. Tachar o nativo como um ser preguiçoso e inadaptável ao trabalho, mesmo sendo este compulsório, é julgá-lo de modo etnocêntrico, tendo como base os mesmos valores e concepções do colonizador europeu. Sheila de Castro Faria chega a citar que: "Em Sergipe do Conde, por exemplo, grande engenho da Bahia, mais de 90% dos escravos eram índios, em 1572." (FARIA, 1997, p.33) Quase um século depois, em 1637, o bandeirante Pedro Teixeira aprisionava milhares de índios na região do Amazonas para vendê-los nas prósperas lavouras de algodão maranhenses. Baseando-se nestes exemplos e em muitos outros, pode-se concluir que a substituição do escravo nativo pelo africano no Brasil-colônia não pode ser explicada, satisfatoriamente, por meio da tese já ultrapassada da inadaptação do índio ao trabalho, uma vez que os nativos brasileiros sempre foram escravizados ao longo de toda a nossa história colonial. Ciro Flamarion Santana Cardoso enumera vários obstáculos à escravidão indígena e que, para ele foram determinantes para a "preferência" do africano como escravo. As epidemias, a mortalidade ligada ao trabalho forçado e ruptura da economia de subsistência indígena tradicional, a fuga de tribos inteiras mais para o interior, acabaram por inviabilizar uma plantation açucareira baseada principalmente no trabalho dos índios, seja escravo, seja livre em teoria, mas na verdade sob compulsão na imensa maioria dos casos. Assim, as primeiras décadas do século XVII viram a transição ao predomínio da escravidão negra (CARDOSO, 1990, p.89). 261

Mesmo assim, apesar de todos esses empecilhos, por muito tempo índios e africanos ainda foram largamente utilizados em atividades paralelas, coabitando, inclusive, os mesmos espaços físicos. O CLERO E A ESCRAVIDÃO 262 A ação dos missionários jesuítas também era uma importante barreira à escravidão indígena. Embora, em muitas unidades produtoras de propriedade da Companhia de Jesus o trabalho do indígena fosse aproveitado, " não eram utilizados como escravos, mas exerciam tarefas simples como a da limpeza anual da levada, cuidar do sangradouro e cortar lenha". (FELINE, 1994, p.57) Quando chegaram ao Brasil-colônia, em 1549, comandados pelo padre Manuel da Nóbrega, os membros da Companhia tiveram um propósito já definido de propagação do catolicismo no Novo Mundo, inspirados pelos ideais da reforma católica. O projeto de conversão dos nativos brasileiros à fé cristã, através da catequese se tornaria impossível caso esses mesmos nativos continuassem a ser escravizados e, conseqüentemente, dizimados pelos colonos europeus. Este posicionamento dos religiosos deixava o rei português em uma situação delicada, já que o regime de padroado selava a forte aliança político-econômica entre a coroa e a igreja Católica, por isso, uma determinação régia, de 1570, já fixava que os nativos brasileiros só pudessem ser capturados e escravizados através de guerras justas, solucionando parcialmente o impasse entre religiosos catequistas e colonos apresadores de nativos. O mesmo clero que lutava pela erradicação da escravidão indígena, em relação ao negro africano, por muitas vezes, só se pronunciou contra as longas jornadas de trabalho e contra os castigos excessivos. Reforçando a idéia de que os africanos estariam salvando suas almas da " maldição divina" trazida em suas peles, através do sacramento do batismo que era realizado em massa nas praias africanas antes do embarque para o Brasil, e por meio do trabalho braçal, que os permitia expiarem seus pecados. CES Revista

Para os jesuítas, os africanos deveriam ser gratos aos lusitanos, por terem esses lhes dado aquela oportunidade de "purificarem" suas almas através do cristianismo. Observemos como esse raciocínio está claramente expresso no sermão décimo quarto do padre Antônio Vieira: Oh se a gente preta tirada das brenhas da sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhecera bem quanto deve a Deus, e a sua santíssima Mãe por este que pode parecer desterro, cativeiro, e desgraça, e não é senão milagre, e grande milagre!. (VIEIRA, 1907, p.47) Cientes também da necessidade de trabalhadores, sem os quais a colônia passaria caso a escravidão não fosse mantida, como já na época, advertia o jesuíta Antonil: Os escravos são as mãos e pés do senhor de engenho. Sem eles no Brasil é impossível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho. ( ANTONIL, 1955, p. 47), os membros da Companhia de Jesus logo se valeram de todo o aparato ideológico cristão-medieval para apoiarem a escravidão africana nas terras brasileiras. É possível termos a dimensão do quanto era importante essa opinião do clero. Basta lembrarmos que a Igreja Católica foi à detentora do monopólio educacional durante o período colonial brasileiro e que pensar diferente do clero era considerado uma heresia. Toda a vida na colônia era assim organizada e regida, tendo como parâmetros de referência os ensinamentos e dogmas daqueles religiosos que não se furtavam diante da necessidade de interferirem na realidade social e política da colônia sempre que julgavam ser preciso. Para que entendamos de forma clara e abrangente todos os aspectos que envolveram a transição da escravidão indígena para a escravidão africana no Brasil, é preciso que também notemos estes fatores ideológicos e religiosos tão fundamentais para aquele acontecimento. SOBRE O TRÁFICO NEGREIRO Devido à grande necessidade de mão-de-obra farta e barata exigida pelas lavouras canavieiras, confrontadas com as dificuldades de se escravizar o índio e a oposição dos jesuítas à escravidão nativa, a atividade do comércio de escravos africanos para o Brasil-colônia se desenvolveu e se intensificou em larga 263

escala por volta da segunda metade do século XVI. Traficar escravos para a América Portuguesa transformou-se, rapidamente, em uma das mais rentáveis fontes de riquezas da época tanto para os traficantes como para a coroa. Portugal lucrava muito com este comércio, tributando a "mercadoria" duplamente, tanto no momento do embarque na África, quanto no seu desembarque em terras brasileiras. Somente a partir deste momento a mão-de-obra utilizada no Brasil-colônia passou a ser, em maior parte, provenientes deste comércio de africanos, trazidos para trabalhar em nossas lavouras. Ao analisarmos este panorama brasileiro dos séculos XVI e XVII até aqui apresentado, deparamos com uma realidade histórica na qual o entendimento de que a introdução do africano como escravo no Brasil-colônia possa ser justificada apenas como sendo uma simples decorrência direta das exigências dos traficantes de escravos, ávidos por lucros, deve ser relativizado. Entendemos que a adoção da escravidão africana no Brasil-colônia foi o que determinou o início do tráfico negreiro para nosso país e não o contrário, como assinalam muitos pesquisadores. Vejamos o que disse um especialista no assunto, Celso Furtado, a respeito disto: As dificuldades maiores, encontradas na etapa inicial advieram da escassez de mão- de- obra. O aproveitamento do escravo indígena, em que aparentemente se baseavam todos os planos iniciais, resultou inviável na escala requerida pelas empresas agrícolas de grande envergadura que eram os engenhos... A mão-de-obra africana chegou para a expansão da empresa, que já estava instalada. É quando a rentabilidade do negócio está assegurada que entram em cena, na escala necessária, os escravos africanos. (FURTADO, 1991, p.41-42) 264 Atentemos ainda que, apesar de o fragmento acima transcrito se referir apenas à lavoura canavieira, a força de trabalho dos africanos foi empregada para suprir várias necessidades já existentes por aqui. Simplesmente faltava gente para trabalhar nas lavouras, na casa-grande, na mineração e até CES Revista

mesmo nos setores pecuários e de produção de alimentos destinados ao consumo interno da colônia. Ainda sobre o tráfico negreiro, uma outra afirmação muito presente nos livros didáticos brasileiros propõe que a escravidão indígena foi, aos poucos, sendo abandonada no Brasil, devido ao fato de o apresamento e escravização do nativo ser um negócio interno-colonial e que, portanto, não gerava lucros à burguesia portuguesa, ao passo que o comércio intercontinental de africanos possibilitava o enriquecimento daquela aristocracia residente na metrópole e ligada diretamente à atividade do tráfico negreiro. A pesquisa minuciosa de nossa economia colonial, feita pelo historiador João Fragoso (1992), baseada na análise de inventários pós-mortem compreendidos num período de cinqüenta anos (1770-1820) da história brasileira, como diversos outros estudos, confirma a fragilidade deste argumento, demonstrando o caráter endógeno-colonial do tráfico de escravos africanos para o Brasil-colônia. A RESISTÊNCIA AO SISTEMA Desde o início da expansão marítima lusitana pelo Atlântico, os tentáculos do império ultramarino português se fizeram presentes em diversas regiões africanas (Moçambique, Costa do Marfim, Congo, Angola, Guiné). Essas áreas foram as grandes fornecedoras dos trabalhadores que Portugal tanto carecia pra enviar à sua colônia americana. Em 1539, o donatário da capitania de Pernambuco, Duarte Coelho, já pedia ao rei de Portugal, D. João III, que lhe fosse concedida permissão para comprar alguns escravos-de- Guiné, como eram chamados os africanos na época. Em 1559, atendendo os apelos dos senhores de engenhos, a coroa finalmente editou o alvará que regulamentava a introdução de escravos africanos no Brasil. O medo das fugas e rebeliões dos africanos recém chegados era uma constante. Uma grande estrutura de controle, vigilância e repressão sobre a vida dos cativos foi criada e a própria administração colonial respaldava a prática de castigos severos, chegando até mesmo a aplicação da pena de morte para os escravos mais indisciplinados. 265

Quanto à resistência dos africanos a esse sistema opressor, é preciso que notemos que as formas de luta relacionadas unicamente a reações violentas por parte destes, tais como: as fugas em massa para os quilombos, suicídios, assassinatos de feitores e senhores, etc, não foram os únicos nem os mais utilizados meios de resistência adotados pelos africanos. Análises mais recentes indicam ter sido a negociação um dos recursos mais eficazes e, por isso mesmo, um dos mais utilizados pelos cativos. Através da negociação direta com seus senhores eram engendradas formas que pudessem amenizar as condições adversas do cativeiro por meio de um simples sistema de ganhos e de concessões de favores. Negociar, naquele contexto, era resistir. É elucidativo transcrevermos, neste instante, alguns trechos do "curioso" tratado proposto a Manuel da Silva Ferreira pelos seus escravos durante o tempo em que se conservaram levantados (1789): 266 Meu Senhor, nós queremos paz e não queremos guerra; se meu senhor também quiser nossa paz há de ser nessa conformidade, se quiser estar pelo que nós quisermos, a saber....não nos há de obrigar a fazer camboas, nem mariscar, e quando quiser fazer camboas e mariscar mandes os seus pretos Minas... Faça uma barca grande para quando formos para Bahia nós metermos as nossas cargas para não pagarmos fretes... Na planta da mandioca, os homens querem que só tenham tarefa de duas mãos e meia e as mulheres de duas mãos... Os atuais feitores não os queremos, faça eleição de outros com a nossa aprovação....poderemos plantar arroz onde quisermos, e em qualquer brejo, sem que para isso peçamos licença... A estar por todos artigos acima, e conceder-nos estar sempre de posse de ferramenta, estamos prontos para o servimos como dantes, porque não queremos seguir os maus costumes dos mais engenho. Poderemos brincar, folgar, e cantar em todos os tempos que quisermos sem que nos empeça e nem seja preciso CES Revista

pedir licença. ( REIS; SILVA, 1989, p.123-124) Os escravos do senhor Manuel da Silva Ferreira, como muitos outros no Brasil-colônia, diferiam do grupo daqueles cativos que tinham uma atitude passiva perante o cativeiro e foram reduzidos a meros instrumentos de trabalho de seus proprietários (coisificados), por tanto, não se enquadram na interpretação de Gorender que entende que, na sua condição de propriedade, o escravo é uma coisa, um bem objetivo". (GORENDER, 1978, p.49) Mas, também não se encaixavam naquele grupo de africanos que optaram pela resistência violenta, que quase sempre terminava de maneira desastrosa trazendo consigo muitos transtornos (as mais variadas formas de castigos, chegando até mesmo a pena de morte) para o cativo rebelde. A postura daqueles cativos atesta a tese de que, o escravo africano no Brasil, deve ser encarado como construtor de sua história de vida. Mesmo naquele ambiente social tenso onde concessões e adaptações ao sistema eram muitas vezes necessárias e até mesmo admitidas. o Zumbi, rebelde de tempo integral, herói da resistência e o Pai-João permanentemente resignado ao papel que lhe era reservado no interior do sistema escravista. São estereótipos falsos, criados a partir de concepções teóricas equivocadas. (DE PAULA, 2004, p.124) A ação dos referidos escravos do senhor Manuel da Silva Ferreira, durante o tempo em que se conservaram levantados, ajuda-nos ainda, a entendermos que em cada canto da colônia, a instituição escravocrata e suas diversas formas de resistência tiveram suas singularidades determinadas por vários fatores como, a lavoura predominante na região, a grande ou reduzida oferta da mão-de-obra nativa, a demanda interna da produção e a ação dos jesuítas. Basta observarmos atentamente esta nova realidade para concluirmos que escravos e senhores devem ser compreendidos como agentes de um processo histórico onde a diversidade (regional, econômica e cultural) foi à mola mestra das relações sociais do universo complexo em que aqueles ou 267

indivíduos estiveram inseridos. As atitudes e maneiras de pensar daqueles homens, livres ou cativos, de nossa era colonial, jamais se enquadraram perfeitamente neste ou naquele padrão de comportamento estabelecido, mesmo que estes padrões sejam tidos como regra geral por muitos estudiosos de hoje em dia. CONSIDERAÇÕES FINAIS 268 Durante as décadas de 1960 e 1970, estiveram em alta no Brasil as teorias vinculadas ao materialismo histórico, como instrumento de interpretação das relações sociais ocorridas durante o Brasil-colônia. Os autores ligados a essa escola, de modo geral, foram críticos ferrenhos da visão paternalista contida na obra: Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre,e procuraram retratar a escravidão africana no Brasil, priorizando apontar a incessante luta de classes entre escravos e senhores e o papel da colônia no contexto do antigo sistema colonial. Tarefa a qual cumpriram de forma muito rica e singular. Muitos representantes desta linha interpretativa, porém, apesar de possuírem o mérito de terem trazido à luz a brutalidade e os interesses financeiros tão próprios ao regime escravista em nosso país, não consideraram a complexidade da dinâmica interna colonial, tendo-a sempre como mero reflexo de interesses econômicos externos. Esta vertente do marxismo brasileiro, que criticou a tese de que a escravidão brasileira possuía algum traço de benevolência, paternalismo e até mesma doçura, ao denunciar tais mitos, acabou também criando novas visões limitadas. Destas, podemos destacar: 1- a idéia da inexistência de uma economia internocolonial capaz de ditar seus próprios rumos independentemente de Lisboa; 2- a definição dos escravos como sendo uma massa amorfa, despolitizada, portanto, historicamente passiva, coisificada, ou por outro lado considerar apenas as formas violentas de resistência à escravidão. Quisemos engrossar aqui o coro daqueles autores que sugerem que a substituição da escravidão indígena pela CES Revista

apenas de maneira parcial por muitos destes pesquisadores, por isso, foi nossa intenção neste artigo demonstrar que a vinda dos escravos africanos para o Brasilcolônia, a partir do século XVI, foi parte de um processo complexo e abrangente que não poderá ser analisado, satisfatoriamente, através de um único viés, seja ele o econômico (materialismo-histórico), o político ou ainda o cultural-religioso. Ao nosso ver, a necessidade de a coroa lusitana tomar posse efetiva da sua colônia na América através do povoamento, durante o século XVI, associada às dificuldades de se implantar um sistema produtivo rentável baseado unicamente na servidão indígena (população nativa pouco numerosa, resistência, epidemias e oposição jesuíta), já anteriormente discutidas, constituíram juntas um imperativo para que a falta dos trabalhadores exigidos pela lavoura, fosse suprida pela introdução da mão-de-obra escrava de origem africana no Brasil-colônia. Cremos por tanto na múltipla casualidade (política, demográfica, cultural-religiosa e econômica) deste fenômeno. Nossa conclusão teve como fundamento uma pesquisa bibliográfica, durante a qual foram consultados diversos trabalhos relacionados com o tema da escravidão indígena e africana no Brasil-colônia. Com mais destaque àqueles produzidos nas décadas de 1980 e 1990, que, apesar de representarem atualmente a palavra mais recente em relação ao tema, não são uma versão definitiva. Pois, Por mais que se creia Ter chegado a verdade absoluta, é necessário que se admita que essa verdade é sempre aproximativa e nunca total (DAU; DAU, 2001, p.15). Não podemos nem devemos, portanto, esperar esquemas generalizantes, frases feitas e nem verdades absolutas quando o assunto é o estudo do passado e da história de um povo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS ANTONIL, João. Cultura e opulência do Brasil: Salvador: Progresso, 1955. AZZI, Riolando. A cristandade colonial: mito e ideologia. Petrópolis: Vozes, 1987. 269

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