O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE : EMPRESA



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UNIVERSIDADE DE MARÍLIA MARIÂNGELA CONCEIÇAO VICENTE BERGAMINI DE CASTRO O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE : EMPRESA MARÍLIA 2008

MARIÂNGELA CONCEIÇAO VICENTE BERGAMINI DE CASTRO O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE : EMPRESA Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito da Universidade de Marília como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Direito, sob a orientação da Profª. Drª. Jussara Suzi Assis Borges Nasser Ferreira. MARÍLIA 2008

Autora: MARIÂNGELA CONCEIÇAO VICENTE BERGAMINI DE CASTRO Título: O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE: EMPRESA Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito da Universidade de Marília, área de concentração Empreendimentos Econômicos, Desenvolvimento e Mudança Social, sob a orientação da Profª. Drª. Jussara Suzi Assis Borges Nasser Ferreira. Aprovado pela Banca Examinadora em 12/09/2008 Profª. Drª. Jussara Suzi Assis Borges Nasser Ferreira Orientadora Profª.Drª Miriam Fecchio Chueiri Profª. Drª.Maria de Fátima Ribeiro

Dedico este trabalho ao meu marido João Paulo, valioso e fiel companheiro, que solidariamente me acompanhou em todas as viagens no decorrer do curso, proporcionando apoio e incentivo em todos os momentos desta minha caminhada.

Agradeço primeiramente a Deus, pela saúde e pela oportunidade de poder realizar plenamente este desafio. Aos meus filhos Fernanda, João Vitor e João Pedro, pela compreensão nos momentos de ausência. Aos Professores do Curso de Mestrado, pelos ensinamentos. A minha orientadora, Profa. Dra. Jussara, pela valiosa compreensão e colaboração no decorrer deste trabalho. Ao meu marido João Paulo, pelo companheirismo e solidariedade.

O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE : EMPRESA Resumo: A presente pesquisa tem como objetivo analisar a função social da empresa. Com o advento do Estado Social e o reconhecimento da função social da propriedade alterou-se o regime fundamental da propriedade privada, proporcionando uma situação de equilíbrio entre o individual e coletivo. A função social da propriedade, prevista constitucionalmente, determina que o proprietário, além de um poder sobre a propriedade, tem um dever correspondente para com toda a sociedade de usar esta propriedade de forma a lhe dar a melhor destinação sob o ponto de vista dos interesses sociais. Esta pesquisa pretende demonstrar que a empresa, enquanto propriedade privada dos bens de produção, a par do lucro desejável para os sócios, exigência de sua subsistência empresarial, tem que atender aos interesses coletivos, determinados pela sua função social. Para tanto, após o desenvolvimento histórico da evolução do direito de propriedade, analisa-se o processo de funcionalização dos direitos subjetivos e da propriedade, destacando a transformação dos institutos do direito privado, por meio da função social que lhes foi atribuída, empreendendo-se uma análise critica da propriedade na pós-modernidade. Em seguida, enfoca-se a empresa, como propriedade dinâmica, atividade destinada à produção e circulação de bens e serviços. A esta propriedade dinâmica dos bens de produção, vincula-se uma função social. Estudada em seu contorno atual busca-se especificar o papel que a empresa pode desempenhar para promover os valores albergados pelo ordenamento jurídico. Procede-se ainda à investigação dos princípios constitucionais e sua força normativa, analisando-se o princípio da função social previsto no Art. 170 da Constituição Federal e sua aplicação à empresa e os bens de produção. O estudo permite concluir que a atividade empresarial não mais se restringe aos interesses particulares dos proprietários, mas representa o atendimento de interesses sociais potencializados pela funcionalidade que integra o exercício do direito de propriedade. Palavras-chave: Princípio da função social da propriedade. Empresa. Função social da empresa.

THE BEGINNING OF THE SOCIAL FUNCTION OF PROPERTY : COMPANY Abstract This paper aims at examining the social function of the company. With the advent of the welfare state and recognition of the social function of ownership,it has changed the fundamental system of private property, providing a balance between the individual and collective. The social function of property, constitutionally provided, states that the owner, as well as a power on the property, has a corresponding duty to the whole society to use this property in order to give the best destination from the standpoint of the interests social. The paper intends to demonstrate that the company, while private ownership of goods of production, alongside the profit desirable for the shareholders, a requirement for their livelihood enterprise, has to meet the collective interests, as determined by its social function, and critical analysis. For that, after the historic development of the evolution of ownership,it is analyzed the process of functionalization of subjective rights and property, highlighting the transformation of institutes of private law, through the social function which they were assigned. Then, the enterprise is focused as dynamic property, activity for the production and circulation of goods and services. To this dynamics property of goods of production,is bound a social function. Studied in its current contours, it seeks to specify the role business can play in promoting the values hosted by the legal system. It is also searched the constitutional principles and their normative force, examining the principle of social function provided for in Article 170 of the Federal Constitution and its application to business and assets of production. The study indicates that the business activity no longer is limited to particular interests of owners, but represents the interests of social care enhanced through the functionality that includes the right of ownership. Keywords- Begning of the social function of property. Company. Function of the company.

SUMÁRIO INTRODUÇÃO... 10 1 O INSTITUTO DA PROPRIEDADE... 13 1.1 A ORIGEM DA PROPRIEDADE PRIVADA... 13 1.1.1 Considerações sobre Origem e Fundamentos da Propriedade... 13 1.1.2 A Cultura Greco-romana: Origem e Conceito de Propriedade... 16 1.1.3 A Propriedade na Idade Média/Feudalismo... 20 1.1.4 A Propriedade segundo John Locke... 24 1.1.5 O Direito de Propriedade na Idade Moderna... 26 1.1.5.1 A revolução francesa e a propriedade... 29 1.1.6 Direito e Propriedade na Idade Contemporânea... 32 1.1.7 A Concepção Materialista sobre a Origem da Propriedade... 37 1.1.8 A Propriedade no Entendimento de Leon Duguit... 42 2 A PROPRIEDADE PRIVADA NO ESTADO SOCIAL... 47 2.1 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE PRIVADA... 47 2.2 O ESTADO SOCIAL E A FUNCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS SUBJETIVOS E DA PROPRIEDADE... 50 2.3 A PROPRIEDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO... 55 2.3.1 O Direito da Propriedade e seu Contexto na Geração de Direitos... 56 2.3.2 A Evolução do Direito de Propriedade nas Constituições Brasileiras... 59 2.3.3 A Propriedade como Direito Fundamental e Elemento da Ordem Econômica... 64 2.3.4 O Aspecto Funcional da Propriedade e da Empresa... 67 2.4 FUNÇÃO SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO DE 1988... 70 3 EMPRESA PRIVADA E BENS DE PRODUÇAO... 77 3.1 EVOLUÇÃO DO DIREITO COMERCIAL... 77 3.2 A EMPRESA... 80 3.2.1 Empresa e Função Social... 84

3.3 A EMPRESA E O DIREITO ECONÔMICO... 88 3.3.1 A Empresa como Sujeito do Direito Econômico... 89 3.4 BENS DE PRODUÇÃO E EMPRESA PRIVADA... 93 3.4.1 A Classificação da Empresa dentre as Espécies de Propriedade... 93 3.4.2 Propriedades Estáticas e Propriedades Dinâmicas... 96 3.4.3 Destinação dos Bens: Bens de Produção e Bens de Consumo... 99 3.4.4 A Propriedade e os Bens de Produção... 102 3.5 EMPRESA E LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL... 106 4 FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA... 116 4.1 ANÁLISE CRÍTICA DA PROPRIEDADE PRIVADA MA PÓS-MODERNIDADE... 116 4.1.1 Os Princípios Jurídicos... 116 4.1.2 Os Princípios Constitucionais... 119 4.1.3 Princípios, Normas e Valores... 122 4.1.4 Natureza e Características dos Princípios Constitucionais... 126 4.2 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA ORDEM ECONÔMICA... 129 4.3 O ARTIGO 170 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL... 132 4.3.1 O Princípio da Propriedade Privada... 134 4.3.2 Função Individual e Função Social da Propriedade... 138 4.4 O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E DA EMPRESA... 141 4.4.1 Origem e Definição da Função Social da Propriedade... 144 4.4.2 A Função Social da Empresa prevista no Art. 170, III da Constituição Federal... 146 4.4.3 A Plena Aplicabilidade do Princípio da Função Social à Atividade Empresarial... 148 4.5 O PRINCIPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA NA LEI 11.101/2005 PARA MANUTENÇÃO DA FONTE PRODUTORA... 153 CONCLUSÃO... 161 REFERÊNCIAS... 170

10 INTRODUÇÃO Como cláusula orientadora do exercício da propriedade privada e da atividade empresarial, a função social da propriedade vem despertando discussões e controvérsias. Tão logo o direito se apropriou do conceito de função social, no final do século XIX, verificou-se a complexidade de seus desdobramentos, estabelecendo-se uma polêmica existente até hoje, ante a dificuldade de administrar a tensão entre as dimensões funcional e individual da propriedade privada e o exercício dos direitos e liberdade de uma forma geral. O reconhecimento da função social acarreta uma mudança no cerne da própria estrutura da propriedade, que em decorrência da integração entre o individual e o social, passa a abrigar deveres e obrigações de fazer, deixando de ser apenas um complexo de privilégios. Além do poder sobre a propriedade, a função social determina que o proprietário tem o dever de usar esta propriedade de forma a lhe dar a melhor destinação sob o ponto de vista dos interesses sociais. Prevista constitucionalmente, a funcionalização da propriedade ainda conduz a outro aspecto. Como unidade produtiva, a propriedade é tida como bem de produção a serviço da sociedade, com especial relevância para a empresa, responsável pela produção de bens e serviços à comunidade, traduzidos em empregabilidade e recolhimento de impostos e contribuições sociais. A função social da empresa, dos bens de produção em dinamismo, determina que a exploração da atividade empresarial não interesse apenas ao seu titular. Ela implica um dever social que exige consonância entre interesse particular e o coletivo, sem é claro, desviar-se de sua finalidade lucrativa, inerente à instituição e sem a qual ficaria desnaturada. Estudar sobre a propriedade implica reconhecer que a instituição, em sua função social, constitui-se, à primeira vista, em uma aparente dissociação axiológica referente ao questionamento propriedade privada e função social. A análise a ser desenvolvida compreende uma nova interpretação dos institutos jurídicos, dentre os quais a

11 propriedade empresarial, marcados pelo cunho individualista, frente aos novos direitos de ordem social. Por ocupar papel relevante nas sociedades capitalistas, uma vez que toda a economia é fruto de processo produtivo de natureza empresarial, a empresa tem sua importância no contexto social. Busca-se nesta pesquisa o real sentido da empresa. A investigação destina-se a saber se a propriedade empresarial tem mesmo que atender a sua função social ou se pode ser exercida sem preocupação com os impactos que sua atividade pode causar ao meio social. Ao proceder ao exame da empresa privada, este estudo buscou indicar o tratamento dispensado pela Constituição Federal à propriedade privada dos bens de produção, identificar a possibilidade de caracterizar a empresa privada como elemento da propriedade privada e a análise da sujeição dos bens de produção e da empresa privada ao Princípio da Função Social previsto constitucionalmente. Para esta abordagem procura-se, inicialmente, no Capítulo I, através de reflexões de ordem histórica e evolutiva, determinar os principais aspectos da propriedade privada no período histórico estabelecido para este trabalho: desde a Bíblia até a contemporaneidade verificando as indicações defendidas pela doutrina, bem como a visão de autores clássicos e contemporâneos sobre o direito de propriedade. Busca-se demonstrar as transformações ocorridas na caracterização da propriedade como decorrência da própria evolução do Direito, enfatizando a transformação da idéia de propriedade individualista para noção de propriedade função social. O segundo capítulo trata do processo de constitucionalização do direito de propriedade no Estado Social de Direito e a conseqüente funcionalização dos direitos subjetivos. Após a análise da influência destes direitos sobre o direito de propriedade, será abordado o processo evolutivo no tratamento da propriedade pelas constituições, a partir do advento da Constituição Alemã em 1919 (Constituição de Weimar) até as Constituições Brasileiras. Complementando, pela análise das mudanças no pensamento político-economico se estudará a configuração da função social da propriedade na

12 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ancorada nos princípios da solidariedade e da dignidade humana. A partir da evolução histórica do direito comercial, até a implantação da teoria da empresa com o atual Código Civil, no terceiro capítulo, será desenvolvido o estudo da empresa privada, ente jurídico essencial à atividade econômica. Iniciando-se pela análise do Direito Econômico, segue-se estudo das propriedades estáticas e dinâmicas, bens de consumo e bens de produção, na busca de demonstrar a empresa como hoje é conhecida e sua função social. No estudo dos fundamentos constitucionais da função social da empresa, empreendido no ultimo capítulo, após uma análise da força normativa dos princípios, parte-se para o estudo dos princípios econômicos e da função social da propriedade prevista no Art. 170, III da Constituição Federal. Busca-se avaliar a concepção da função social da empresa no direito brasileiro, como principio constitucional a ser conciliado aos demais princípios colocados como norteadores da atividade econômica. Procura-se demonstrar a plena aplicabilidade do princípio da função social da propriedade à empresa, a funcionalidade da empresa na legislação constitucional e o principio da preservação da empresa na Lei 11.101/2005 (Lei de Recuperação Judicial), evitando, sempre que possível, que ocorra o desaparecimento de unidades produtivas no país. Busca-se avaliar, ainda, se o princípio constitucional da função social da empresa, a par de delimitar as atividades da empresa em razão do interesse social, pode garantir a manutenção das atividades econômicas desenvolvidas pela empresa, proporcionando tratamento jurídico diferenciado para a salvaguarda e a proteção dos bens de produção de empresa.

13 1 O INSTITUTO DA PROPRIEDADE 1.1 A ORIGEM DA PROPRIEDADE PRIVADA 1.1.1 Considerações sobre Origem e Fundamentos da Propriedade A propriedade sempre suscitou grande interesse dos teóricos e filósofos que buscaram determinar sua origem e seus fundamentos. Nesta busca, geraram-se controvérsias, principalmente entre as correntes que entendiam ser a propriedade um direito natural do homem, ou seja, um direito que nasce no estado de natureza, anterior à formação do Estado e não sujeita a limitações, e aquela nega o direito de propriedade como direito natural, entendendo a Propriedade como uma criação do Estado, estando sujeita às normas dele derivadas. Na evolução histórica da propriedade, a Igreja e o pensamento cristão foram responsáveis pela formação de alguns teóricos que viriam a construir os alicerces do Estado e do Direito contemporâneos. A defesa da propriedade seria uma reinterpretação do Evangelho, das Sagradas Escrituras e das palavras dos santos, em especial, São Tomás de Aquino. Em sua principal obra, a Suma Teológica 1 no século XIII, São Tomás aceitava a existência da propriedade, mas não a considerava um direito natural, ou seja, não a admitia como um direito que pudesse se opor ao bem comum ou à necessidade alheia. Para ele, o poder de dispor do proprietário estava na sua possibilidade de escolher como entregar aos necessitados o que lhe sobejava, ou seja, de transferir um bem que lhe pertencia. Somente depois que a teoria política e as leis passaram a tratar a propriedade como um direito natural, no século XVIII, quando já se pensava na constitucionalização 1 CHATELET, François. História da filosofia: de Platão a São Tomas de Aquino. Opus Biblioteca de Filosofia, 2ª ed., V.1., Lisboa: Publicações Don Quixote, 1995, p. 180-191.

14 do Estado e na construção da propriedade privada tal como é conhecida hoje, é que a Igreja Católica a reconheceu como direito natural, oponível a todos os outros direitos criados pela sociedade. Após São Tomás de Aquino, do século XIII ao século XIX, a Igreja silenciou sobre o tema, abrindo espaço para as idéias iluministas, a propriedade feudal e, mais tarde para a propriedade mercantil. Também John Locke, em 1690, baseia-se na origem divina do legado concedido a Adão como justificativa da propriedade individual. Procura explicar que a terra e todas as criaturas inferiores são comuns a todos, mas que aquilo que cada homem retira por meio de seu próprio trabalho, torna-se sua propriedade. Como o trabalho é propriedade exclusiva do homem, ao cultivar a terra, colher um fruto ou abater uma caça, adquire um direito privado sobre estas coisas. 2 Partindo do princípio de que Deus deu a terra para a subsistência de todos, o autor considerava que a propriedade privada se justificaria pelo trabalho e seria legítima somente enquanto o titular precisasse dela para utilizar e desfrutar. Tudo o que excedesse pertenceria aos outros homens. Desta forma, atribuíu fundamentos morais - trabalho e utilidade - para a aquisição e a utilização da propriedade privada. Para Locke, adepto da teoria da propriedade como direito natural, a propriedade é inerente ao homem no estado de natureza que, tomando certa porção de terra para si, adquire a propriedade através do trabalho que sobre ela executa, afirmando que a extensão de terra que um homem lavra, planta, melhora, cultiva, cujos produtos usa, constitui a sua propriedade. Pelo trabalho, por assim dizer, separa-a do comum. 3 Já a teoria de que o direito de propriedade nasce como conseqüência da constituição do Estado, tem seus expoentes em Thomas Hobbes e Jean Jacques Rousseau. 2 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Tradução Alex Marins. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2002, p. 37 a 39. 3 Idem, ibidem, p. 37 a 39.

15 Na concepção de Thomas Hobbes 4, é impossível a existência da Propriedade no estado de natureza, onde todos têm direito sobre todas as coisas. A propriedade é uma prerrogativa concedida pelo poder soberano, através de leis civis, a partir da instituição do Estado. Para o autor acima, os homens procuram viver sob a forma de Estado, visando à sua conservação, segurança e melhores condições de vida, procurando através de um pacto mantido por este poder controlador contornar as suas paixões naturais. Para ele, é a renúncia aos direitos e liberdades inerentes ao estado de natureza em nome de um poder soberano e a conseqüente instituição do Estado que dão origem à propriedade e às regras de Justiça. Para Jean Jacques Rousseau 5, a Propriedade só tem origem a partir da instituição do Estado. Inicialmente, as coisas são comuns e a posse advém da ocupação do que é necessário à subsistência. Mas esta situação está sujeita à intervenção de terceiros, estabelecendo-se a posse do primeiro ocupante, a partir do contrato social. Aí sim, adquire a feição de propriedade, instituída por ato positivo e garantida pelas leis civis, delimitando-se o que pertence a cada um. Como instituto jurídico dinâmico e flexível, a propriedade sofre alterações no curso da história em função das mudanças sociais, econômicas e políticas. Seus contornos são formados de acordo com os princípios e valores vigentes a cada época. Desde o início da vida na Terra, o homem usou de seu trabalho ou de escravos para obter alimentos para si e sua descendência. A Bíblia, no Gênesis, já descreve essa incumbência como condição da vida humana na terra e assim fizeram outros povos, como os hebreus e os egípcios. A historiografia romana é especialmente rica e com ela inicia-se o estudo da origem da propriedade privada. 4 HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Coleção Fundamentos do Direito. São Paulo: Ed. Ícone, 2000, p.86 5 ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social: discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 124.

16 1.1.2 A Cultura Greco-romana: Origem e Conceito de Propriedade Já é possível encontrar, em épocas bastante remotas, uma preocupação do Estado com o destino das propriedades. Muitos autores se referem ao Código de Hamurabi 6, elaborado em 1965 a.c, contendo disposições sobre o trabalho, o comércio, a propriedade, a organização industrial, salários e acidentes de trabalho. No século IV a.c, em A República, Platão revela as propostas de Sócrates para a cidade onde, ao lado da comunidade de mulheres e dos filhos, a ausência de propriedade seria uma das condições de felicidade para todos os cidadãos. Afirma que nenhum guardião possuirá bens próprios, a não ser coisas de primeira necessidade e nenhum terá habitação ou depósito, em que não possa entrar quem quiser. 7 Aristóteles, em A Política, refuta as teorias de Platão, examinando as diferentes formas de governo propostas em inúmeras constituições da antiguidade, bem como o regime adotado para as propriedades. Embora discordando da proposta contida na A República de Platão, Aristóteles, nesta comparação, oferece prova concreta de que praticamente todos os governos da antiguidade clássica tinham em suas constituições, dispositivos acerca do regime de propriedade. 8 Não se pode afirmar que se tratasse de uma intervenção sobre as propriedades, no sentido que hoje é atribuído à expressão, mas desde aquela época, os governos da antiguidade grega manifestavam, sob a égide das constituições, intenção de ordenar a maneira pela qual deveriam reger-se as propriedades. O direito de propriedade para os antigos baseou-se em princípios diferentes dos atuais, e disso resulta que as leis que o garantiam eram sensivelmente diversas das nossas. Nas populações primitivas da Itália e da Grécia, a propriedade privada era intimamente ligada à religião doméstica e à família. A idéia de propriedade estava 6 O Código de Hamurabi é um dos mais antigos conjuntos de leis já encontrados, e um dos exemplos mais bem preservados deste tipo de documento da antiga Mesopotâmia. In: Códigos Penais de Hamurabi. Disponível em: <http://www.historiadomundo.com.br/babilonia/codigos-penais-hamurabi>. Acesso em 24.06.2008 7 VAZ, Isabel. Direito Econômico das Propriedades. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 51. 8 Op. cit., p. 52.

17 implícita na própria religião. Cada família tinha seu lar e seus antepassados, aos quais apenas ela podia adorar e que só a ela protegiam. Sendo fixada à terra, a família ali se mantinha em nome de seus deuses, caracterizando assim um dever religioso de permanecer na propriedade ao longo das gerações. Analisando este aspecto, Fustel de Coulanges afirma que: Cada família possuía seus próprios deuses, suas sepulturas e seu culto, ao qual nenhum estranho podia sequer assistir. Surgiu assim a necessidade de estabelecer limites, através de muros, fossos ou cercado, posteriormente fixado por lei, em Roma, em dois pés e meio. Se alguém pretendesse apossar-se do campo de um vizinho, era preciso derrubar ou deslocar o marco. Mas este marco era equiparado pelos antigos ao deus Termo e tocá-lo constituía sacrilégio, a que a tradição e algumas leis atribuíam penas severas. 9 Com a profunda ligação entre a família e a terra, o culto dos mortos e deuses particulares, subtrai-se ao indivíduo o poder de dispor da propriedade, que não lhe pertence individualmente, mas sim a toda a família e aos antepassados mortos. Fabio Konder Comparato lembra: A idéia de propriedade privada, em Roma ou nas cidades gregas da Antiguidade, sempre foi intimamente ligada à religião, à adoração do deus-lar, que tomava posse de um solo e não podia ser, desde então, desalojado. A casa, o campo que a circundava e a sepultura nela localizada eram bens próprios de uma gens ou família, no sentido mais íntimo, ou seja, como algo ligado aos laços de sangue que unem um grupo humano. 10 Percebe-se que, embora não caracterizada plenamente como individual, a propriedade na sociedade greco-romana já possuía contornos de propriedade privada. Para este estudo é essencial a configuração da propriedade nas regras de Direito Romano, pois instituíram as principais categorias jurídicas e adquiriram caráter universal, influenciando grande parte dos sistemas jurídicos ocidentais. Aliás, em toda a evolução do direito privado ocidental, a propriedade configura um poder jurídico soberano e exclusivo de direito sobre uma coisa determinada. 9 COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Tradução Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 72-75. 10 COMPARATO, Fabio Konder. Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade. Disponível em: <http://www.dhnet.org.bre/direitos/militantes/comparato/comparatol.htm>. Acesso em: 11 out. 2007.

18 Em traços largos, o conceito de propriedade que veio a prevalecer entre os Romanos é o que modernamente se qualifica como individualista. No dizer de Orlando Gomes: [...] Cada coisa tem seu dono. Os poderes do proprietário são mais amplos. A formulação que emerge da investigação das fontes não encontra área imune à controvérsia. [...] No Direito Romano Clássico a expressão ius in re não coincide com o conceito jurídico hoje denominado direito real. Os romanos não elaboraram um conceito de direitos reais e não tiveram um nome para representar estes direitos. Esta noção só veio se formar muito mais tarde, a partir do século XVIII com Pothier, passando aos romanistas do século XIX e, também a uma parcela de autores modernos. 11 No Direito Romano arcaico, o poder do proprietário fazia parte das prerrogativas do pater familias sobre o conjunto dos escravos e bens que compunham o grupo familiar. Prerrogativas soberanas, porque absolutas e ilimitadas, imunes a qualquer encargo, público ou privado, e de origem sagrada, por força de sua vinculação com o deus lar. Por aí se percebe que seria absurdo falar no direito antigo de deveres do cidadão, enquanto proprietário, para com a comunidade. 12 Nesta linha, a noção de propriedade corresponde sempre a um vínculo jurídico a unir uma pessoa, titular do direito, ao objeto deste direito. Hely Lopes Meirelles resume que os romanos conceituavam o direito de propriedade como o poder de usar, gozar e abusar da coisa sob o seu domínio: jus utendi, fuendi et abutendi re sua. 13 Primeiramente, a propriedade romana é considerada como direito absoluto, por ser oponível erga omnes, mas não se configura como um direito ilimitado, pois sofria limitações referentes ao interesse público e ao interesse privado dos vizinhos. Jean Philippe Levy assegura que era um direito exclusivo, já que cada porção de terra poderia ter somente um proprietário e perpétuo, na medida em que eles não podiam conceber uma propriedade que só tivesse sido adquirida por um dado período de tempo a titulo provisório, ou condicionalmente. Destaca que os romanos não 11 GOMES, Orlando. Direitos Reais. 19ª ed. atualizada por Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 115. 12 COMPARATO, Fabio Konder. Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade. Disponível em: <http://www.dhnet.org.bre/direitos/militantes/comparato/comparatol.htm>. Acesso em: 11 out. 2007. 13 MEIRELLES, Hely Lopes. O direito de construir. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 17.

19 transformaram a sua concepção de propriedade em dogma paralisante: aceitavam, por exemplo, que se perdesse a propriedade em caso de abandono ou por confisco penal. 14 A propriedade no Direito Romano é freqüentemente apontada como direito absoluto, exclusivo e perpétuo, que permite ao proprietário utilizar a coisa como bem entender, inclusive destruí-la. Este posicionamento, entretanto, é questionado por parte da doutrina, ressaltando que os textos romanos não exprimem literalmente estes elementos. No Direito Romano, a concepção de propriedade não se conservou estática, ao contrário, modificou-se acompanhando a evolução política, cultural e social, refletindo sobre as normas jurídicas, dando-lhes um sentido mais social. Daí a lição de José Cretela Junior: A Propriedade Romana passa por uma evolução que vai da Propriedade caracterizada pela noção individualista até uma concepção marcada pelo caráter social. [...]O Direito de Propriedade sofreu inúmeras transformações no longo período em que vigorou o Direito romano, a partir da antiga concepção, poder ilimitado e soberano, profundamente individualista, até a concepção justinianéia, arejada por um novo e altruísta sentido social. 15 A propriedade vai sofrendo transformações, adquirindo uma conotação social, no sentido de que seu uso não atinja a propriedade e os direitos de outrem. Numa lenta e gradual evolução, a propriedade vai perdendo sua conformação absoluta para assumir um perfil mais brando, de um direito que acarreta obrigações e deveres morais, afastando o direito de abusar da propriedade. Após os dois primeiros séculos da Era Cristã, quando o Império Romano teve seu sistema econômico, social e político funcionando bem, iniciou-se uma crise no início do século III, ocasionada principalmente pela diminuição de produção de latifúndios em virtude da falta de escravos, levando à desintegração do sistema por volta do século V, rumando para o sistema de produção feudal. 14 LÉVY, Jean-Philippe apud CAVEDON, Fernanda de Sales. Função social e ambiental da propriedade. Florianópolis: Visualbooks, 2003, p. 12. 15 CRETELLA JUNIOR, José. Curso de direito romano. 22ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 153.

20 Do contato dos romanos e germânicos com outras civilizações, resultou no surgimento de algumas, até então desconhecidas, espécies de propriedade, conforme enumera Rogério Gesta Leal: [...] a comunal, sucessora da antiga mark germânica; a alodial, tida como livre; a beneficiária, surgida da concessão aos plebeus feita pelos reis, a censual, que implicava a fruição dos imóveis mediante pagamento e a servil, atribuída aos servos que possuíam a terra, porém, se mantinham vinculados a ela como seu acessório. 16 Os valores relativos ao direito de propriedade do Direito Romano foram então, sendo modificados. O traço individualista dos primeiros tempos vai sofrendo contínuas atenuações, cedendo espaço à entrada do elemento social. 1.1.3 A Propriedade na Idade Média/Feudalismo Na Idade Média, contrariando o modelo unitário de propriedade romana, abre-se espaço para a concorrência de proprietários. O poder descentralizado, a economia agrícola de subsistência e a mão-de-obra servil constituem a base desse sistema. Com as diversas invasões ocorridas na Europa durante a Idade Média, como a dos bárbaros, árabes, normandos, húngaros e eslavos, a vida só era possível junto a um castelo fortificado, onde as estruturas românicas e germânicas se integraram, dando origem ao sistema feudal. Assim, contrariando o modelo exclusivista da propriedade romana instituiu-se uma superposição de títulos dominiais, fundamentados na hierarquia dos feudos que, a seu turno, identificavam-se com a hierarquia de pessoas. 17 As condições sociais básicas da sociedade feudal eram senhor e servo. O servo tinha a posse útil da terra, devia obrigações e tinha o direito de ser protegido pelo senhor. No feudalismo, uma escala de valores jurídicos e de valores políticos estendia-se 16 LEAL, Rogério Gesta. A função social da propriedade e da cidade no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 43. 17 COSTA, Cássia Celina Paulo Moreira. A constitucionalização do direito de propriedade privada. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003, p.13.