PROTAGONISMO, EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO LOCAL



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Transcrição:

PROTAGONISMO, EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO LOCAL Leonardo Villela de Castro 1 Rosangela Ramos Silva 2 RESUMO O presente artigo busca analisar o conceito de desenvolvimento local, com base na idéia de Protagonismo da sociedade civil. Neste contexto, torna-se fundamental que os sujeitos envolvidos tomem para si as rédeas do processo de busca de soluções para a melhoria de sua qualidade de vida, utilizando-se para isso do potencial e das peculiaridades da comunidade a qual pertencem. O artigo busca também valorizar o papel do sistema escolar nesse processo, de forma a propiciar ações como: despertar, desenvolver e consolidar essa consciência nesses sujeitos, referenciando-se principalmente no pensamento de Paulo Freire. INTRODUÇÃO A educação é a alavanca do desenvolvimento. Essa afirmação, que parece óbvia, tem sido negada na prática das políticas públicas brasileiras desde tempos imemoriais. Otaíza Romanelli (1978) já demonstrou que os diferentes modelos de crescimento adotados ao longo de nossa história consideraram o setor educacional de forma secundária, fazendo-o crescer sempre a partir da demanda passada e não planejando seu crescimento de forma a atender a demanda futura. Nos períodos de crescimento econômico mais significativo o equívoco de tais políticas se torna mais agudo e são retomados com ênfase os discursos sobre o fracasso escolar, a formação deficitária dos professores e a defasagem, em termos de recursos tecnológicos, das escolas públicas. Não pretendemos retomar essa discussão, nem refletir sobre a validade da mesma, mas apenas tomar esse quadro que a professora tão bem descreve, e que ainda é atual (embora o índice de alunos entre 7 e 14 anos, matriculados na rede escolar, tenha subido consideravelmente após a edição do FUNDEF) para discutir a possibilidade de transformação do mesmo a partir de projetos de Desenvolvimento Local. 1 Mestre em Educação, Professor e Desenhista Didático da UNISUAM e Professor do INS/ISERJ 2 Licenciada em Pedagogia pela UNISUAM e Professora do Município do Rio de Janeiro. 1

A análise de uma possibilidade de mudança na cultura escolar e a articulação desta com um projeto mais consistente de melhoria da qualidade de vida em regiões determinadas é o objetivo do artigo. Nesse sentido, discutiremos nosso entendimento sobre o conceito de Desenvolvimento Local e as contribuições que o sistema escolar tem a dar nessa perspectiva. Esta última parte do artigo tem como base o relato de um caso de transformação de um aspecto da cultura escolar que consideramos fundamental, que é o processo de aprendizagem da leitura e da escrita. Concluiremos o artigo aproximando a idéia central da conclusão da professora do conceito de Desenvolvimento Local (a partir de agora denominado pela sigla DL) para verificarmos a complementaridade entre ambos, estabelecendo assim um campo de ação e investigação a quem busca implementar iniciativas de intervenção que partam dessa perspectiva. DESENVOLVIMENTO LOCAL O crescimento econômico tem sido tema central de debates políticos recentes no Brasil. Seja por estratégias diferentes ou por oportunidades conjunturais, ainda é tímido, nesse campo, o discurso de defesa de um projeto mais amplo de desenvolvimento, que tenha como meta a melhoria efetiva da qualidade de vida da população. Há sim a defesa do fortalecimento da educação básica e da saúde pública, sem a necessária conexão destas a um plano de efetivas mudanças nas condições de vida de significativas parcelas a quem este discurso se dirige. O prosseguimento de discursos que não se transformam em políticas públicas efetivas tem causado, inclusive, um perigoso distanciamento da sociedade civil da sociedade política, ou seja, é crescente o não reconhecimento do aparelho de estado como canalizador efetivo das contradições e necessidades da sociedade. A explosão da violência urbana talvez seja a face mais cruel desse distanciamento. Um caminho possível para a quebra deste ciclo pernicioso pode estar nas ações da própria sociedade civil, na elaboração e execução de propostas que, mantendo o foco nas questões mais gerais do conjunto da sociedade, articulem as potencialidades e possibilidades de determinada região em busca da melhoria das condições de vida e trabalho nela presentes. Esse é um primeiro componente do conceito de DL. Sobre o mesmo nos fala Ricardo Ferreira de Mello, quando afirma que: 2

A sociedade civil é o lócus privilegiado para as transformações sociais, em processos que contemplem o fortalecimento dos trabalhadores e das organizações sociais, no que respeita a sua autonomia e capacidade de participação social protagonista (MELLO: 2007, 4). Aqui fica claro o papel da sociedade civil como protagonista do processo de transformação social, ou seja, independente, mas não descolada, do Estado. Isto acontece através das organizações próprias de cada sociedade e de cada localidade, sejam sindicatos de trabalhadores, associações de moradores, ou outra forma reconhecida pela população local. Resguardar e fortalecer a autonomia própria das organizações com as quais se constroem projetos de DL é condição necessária para o sucesso dos mesmos. Vemos portanto como componente deste conceito a idéia de ação autônoma da sociedade civil e, mais do que autonomia, a idéia de ser protagonista das ações, ou seja, atuar no sentido daquilo que se deseja, coletivamente, atingir. Paulo Freire corrobora essa idéia: Entretanto, através da educação, podemos de saída compreender o que é o poder na sociedade, iluminando as relações de poder que a classe dominante torna obscuras. Também podemos nos preparar e participar de programas para mudar a sociedade (FREIRE: 1992, 44). Outra idéia a fazer parte do conceito de DL é o da regionalidade, ou seja, do espaço delimitado para a ação que se planeja. E como se chega a esse limite? Os diversos sujeitos envolvidos fazem desse um tema inicial, como parte da necessidade de terem claro até onde podem alcançar. A necessidade desta delimitação da forma mais precisa possível vem justamente da idéia de mudança local com perspectiva global. À medida em que se estruturam e desenvolvem ações que possam alterar para melhor a qualidade de vida de determinada comunidade, essas ações serão também geradoras de conflitos e contradições, as quais poderão se transformar em novos objetos de conhecimento e provocar crescimento e/ou amadurecimento da ação inicialmente planejada. Agrega-se ainda à necessidade de delimitação, os aspectos culturais locais e as condições que se desejam efetivamente ver alteradas. À medida em que se diversificam as condições num mesmo projeto, o nível de tensão cresce e as possibilidades de sucesso diminuem. Para sintetizar esse conceito, utilizando as idéias descritas acima, temos a definição de Vicente Fidélis de Ávila: O DL se configura justamente como processo que considera, respeita e aproveita as peculiaridades (ou modos de ser e agir), a realidade (enquanto complexidade dos contextos social, cultural e meio- 3

ambiental) e as potencialidades (das pessoas e do meio) de cada comunidade-localidade, entendendo-se inclusive que em relação a esses aspectos nunca uma comunidade-localidade é igual a outra (ÁVILA: 2007, 18). Esse conceito implica também, obrigatoriamente, em mudanças de aspectos culturais da comunidade onde se desenvolvem projetos dessa natureza. Cabe, portanto, discutir brevemente essa questão que será elemento importante no campo da educação. MUDANÇA CULTURAL: UM CASO NA EDUCAÇÃO O conceito de DL tem agregado a idéia de mudança cultural, ou seja, de alguma maneira as decisões e projetos que serão desenvolvidos nas comunidades provocarão alterações nas dinâmicas dessas comunidades. A experiência relatada por Milani, do município de Pintadas, na Bahia, é um exemplo contundente de possibilidades de mudança. A questão levantada anteriormente, acerca do protagonismo dos sujeitos em projetos dessa natureza, já é provocadora, por si só, de alterações na cultura local, podendo inclusive ser geradora de conflitos no interior da mesma. Seguindo os passos do Prof. Laraia: Podemos agora afirmar que existem dois tipos de mudança cultural: uma que é interna, resultante da dinâmica do próprio sistema cultural, e uma segunda que é o resultado do contato de um sistema cultural com um outro (LARAIA: 2006, 96). Uma das instituições que pode contribuir no sentido de efetivar uma mudança cultural importante, que é o protagonismo, e fazer com que os sujeitos tenham gradativa consciência dos seus conhecimentos e possibilidades, é a escola. Isto, no entanto, não é algo dado a priori, muito pelo contrário. Uma das marcas do sistema escolar brasileiro tem sido justamente o de não desenvolver a autonomia intelectual e de ação dos sujeitos alunos. Relatamos a seguir um caso onde a alteração desse quadro mostrou-se possível, e que demandou também a transformação da professora em protagonista do processo de transformação. A professora começa descrevendo a sua maneira de trabalhar e os resultados que colhia: Durante muitos anos trabalhei pautada em uma prática pedagógica tradicionalista. É certo que, ao término do ano letivo, muitas crianças já 4

sabiam ler e escrever, mas a leitura era muito mecanizada, isto é, sabiam ler mas não sabiam interpretar, sabiam escrever palavras soltas mas ao lhes pedir que escrevessem um texto tinham dificuldades, à época as crianças eram transferidas automaticamente da classe de alfabetização para a primeira série, mas após a primeira série ainda havia a reprovação e muitas destas crianças ficavam retidas. Ao mudar de local de trabalho, esta professora deparou-se com algo que chamou sua atenção e ela decidiu aprofundar-se no entendimento do que se passava: No ano de 2002, fui trabalhar em uma escola de Educação Infantil, onde o trabalho é desenvolvido com base em uma proposta construtivista, e constatei que muitas crianças saíam da escola indo para a classe de alfabetização praticamente sabendo ler, escrever e, principalmente, entendendo o que liam e escreviam. Então resolvi me dedicar ao estudo do que é o construtivismo para poder auxiliar meus alunos na aquisição de habilidades importantes para a vida social, que são a leitura e a escrita. A partir daí abre-se um período de intensas modificações na sua prática profissional e todo o conhecimento acumulado sobre o processo de alfabetização começa a ser questionado. Continuei meu trabalho da maneira como eu havia feito durante tantos anos e procurava introduzir algumas práticas aprendidas no pouco tempo que estivera naquela escola, mas na realidade o trabalho acabava sendo mesmo tradicionalista, pois não tem como ser tradicionalista e construtivista ao mesmo tempo. Com o intuito de aprofundar seus conhecimentos e verificar resultados possíveis desse novo processo, a professora resolveu realizar o estudo de caso de uma aluna da turma de uma colega. A aluna a ser observada era oriunda de uma comunidade carente, morava só com a mãe analfabeta e tinha, por isso, um ambiente pouco propenso ao desenvolvimento da sua curiosidade a cerca do mundo letrado. Paralelamente a esse acompanhamento da aluna, a professora foi aprofundando seus estudos e chegando a conclusões importantes a respeito do seu próprio papel: O professor construtivista é um mediador entre o que o aluno já sabe e a busca de novos saberes, proporcionando ao aluno possibilidades de buscas maiores. A sala de aula deve ser um ambiente alfabetizador, onde a criança terá contato com materiais de leitura e escrita dentro de contextos significativos, para que esta se sinta motivada dentro e fora da 5

escola na evolução da leitura e escrita etc. fazendo com que avancem em suas hipóteses de leitura e escrita e partindo dos textos que circulam na comunidade e na escola tornar a língua um instrumento de inclusão na cultura escrita. É importante que o professor reconheça a função social da escrita, a relação entre a oralidade e escrita e que a escrita é um sistema de representação. Esta mudança de sua perspectiva em relação ao próprio trabalho caracteriza uma transformação significativa, que altera inclusive a sua relação com o cotidiano da sala de aula e da própria escola. Além disso, um trabalho desenvolvido sob esta ótica, muitas vezes contraria as expectativas de pais e mães e a demanda, o que pode ser gerador de conflitos. Felizmente não foi o caso da professora nem da aluna. No início das observações da aluna escolhida já houve a preocupação em entender como Juliana entendia a leitura e a escrita e, dessa maneira, propor desafios que a fizessem avançar nesse universo. Ao chegar na escola a aluna encontrava-se na fase pré-silábica, isto é, seu grafismo não passava de rabiscos, não identificava seu nome apesar de reconhecer algumas marcas de produtos veiculados em seu entorno social, como nomes de sabão em pó, pasta de dentes, iogurtes, etc. A professora realizava todos os dias a chamadinha, esta atividade tem a finalidade de fazer com que as crianças reconheçam seus nomes. O nome da criança é o início da compreensão do sistema de escrita, sendo o ponto de referência para as outras escritas. Através do seu nome, a criança aprende convenções (escrita da esquerda para a direita), o nome das letras e a seqüência das letras na escrita. Ela segue descrevendo todo o trabalho realizado com a turma, e com a aluna em particular, registrando seus avanços na aquisição da leitura. Diferenciando as letras (que servem para escrever) do desenho. As primeiras tentativas de representar os sons com as letras já conhecidas, a escrita do nome e as primeiras tentativas de sílabas semelhantes, as primeiras combinações sem o auxílio da professora, a escrita do primeiro texto e a evolução constante da aluna. Neste processo merece destaque o incentivo constante da professora e seu entendimento dos desafios necessários para que as crianças avancem nas suas hipóteses sobre a leitura e a escrita. Nesta fase, a professora começou a desafiar as crianças a pensarem sobre a escrita dando atividades que auxiliassem nestas descobertas, como: contagem das letras das palavras, escrita das letras iniciais das palavras, bingo de palavras, quebra-cabeças, escrever palavras, dadas as primeiras letras, ligar os nomes das crianças às suas letras iniciais, 6

nesta atividade ocorreu algo interessante, eles questionaram o fato dos nomes de Fernanda e Felipe, Daniel e Davi serem começados com as letras F e D respectivamente, mas só havia uma letra F e uma letra D. Davi não aceitou ligar seu nome ao D, pois esta era a letra do Daniel que vinha antes na listagem, o mesmo aconteceu com Felipe. A turma ficou sem saber o que fazer quando um aluno sugeriu que se colocasse duas letras D e duas letras F, pois a mesma letra serve para mais de um nome, com isto as crianças iam levantando suas hipóteses, assimilando e integrando conceitos novos aos já registrados. Ao final de dois anos na Educação Infantil, chegou a hora da ingressar na primeira série do Ensino Fundamental. A aluna observada já escrevia e lia com certa desenvoltura, embora ainda cometesse alguns erros de ortografia, mas já tinha consciência dessa conquista. A professora, por seu turno, também já havia adquirido uma outra visão do processo de alfabetização e do seu papel na vida das crianças: A aluna não só escrevia e lia, como sabia o que fazia, entendia e sabia fazer uso da escrita, sua leitura e escrita não eram mecânicas, meras cópias, ditados, transcrições de textos indicados pela professora, mas ela criava seus próprios textos, entendi que a menina estava alfabetizada ou letrada? Os dois, ela conhecia os códigos, sabia codificar e decodificá-los, e também fazia uso adequado destes, ela escrevia com prazer e tinha segurança para fazê-lo. Entendi o que é um ambiente alfabetizador e o que é ser um professor mediador. Hoje procuro um comprometimento maior com os alunos e acredito na capacidade de todos na apreensão da leitura e escrita. Não utilizando mais trabalhos decorados e cópias, mas dando oportunidades a que todos expressem seus pensamentos, exercitem sua oralidade e criatividade na busca de novos conhecimentos. Quando vejo um aluno cometendo um erro, isto não me preocupa, pois sei que este erro é um degrau que ele está subindo na busca de outros conhecimentos e, pelo contrário, fico alegre ao ver os avanços conseguidos por ele. Constatamos que houve uma transformação na perspectiva de trabalho da professora e que esta mudança interfere em todo a cultura escolar em torno dela, já que o trabalho desenvolvido dessa maneira coloca a criança, desde cedo, no papel de protagonista da aquisição e construção de seu conhecimento. Na conclusão que se segue comentaremos mais detidamente as implicações que podem redundar de mudanças semelhantes. 7

CONCLUSÃO No conceito de DL que discutimos na primeira parte do texto, uma das idéias presentes é a de Protagonismo da sociedade civil. É fundamental que os sujeitos envolvidos tomem para si as rédeas do processo de busca de soluções para a melhoria de sua qualidade de vida, utilizando-se para isso do potencial e das peculiaridades da comunidade a qual pertencem. O sistema escolar pode desempenhar um papel relevante no despertar, desenvolver e consolidar essa consciência nesses sujeitos, promovendo de forma endógena à comunidade, mudanças culturais significativas nesse sentido. O exemplo da professora, que permitiu à aluna uma consciência plena do processo de aquisição da escrita, pode servir de base para outras transformações que atuem na mesma direção. Acreditamos, por exemplo, que esta turma descrita no texto poderá dar continuidade ao seu processo de construção do conhecimento sendo protagonista do processo. Da mesma forma, adultos que estejam em sistemas educacionais regulares podem ser levados a situações semelhantes, como afirma Paulo Freire: O educando se reconhece conhecendo os objetos, descobrindo que é capaz de conhecer, assistindo à imersão dos significados em cujo processo se vai tornando também significado crítico (FREIRE: 2000, 47). Nesse sentido, entendemos que a construção e o desenvolvimento de projetos de DL passam pela escola, entendendo-a como a instituição que pode acelerar e consolidar o processo de autonomia e protagonismo dos sujeitos dessa comunidade. O que se evidencia também é que esta tarefa não é exclusiva das escolas, e que estas estão longe de serem unânimes em aceitar as colocações feitas pela professora citada no texto. Isso também será ponto gerador de conflitos. Acreditamos, no entanto, que todos esses aspectos podem ser abertamente discutidos pelos sujeitos envolvidos, de maneira a ir se forjando no processo a unidade de ação necessária ao sucesso do mesmo. 8

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ÁVILA, Vicente Fidélis de. Cultura, Desenvolvimento Local, Solidariedade e Educação. Disponível em: www.desenvolvimentolocal.ucdb.br. Acesso em: 20/02/2007. AZENHA, M.G. Construtivismo: de Piaget à Emilia Ferreiro. São Paulo: Ática, 2003. FERREIRO, E. Alfabetização em Processo. São Paulo: Cortez, 2005. FERREIRO, E. & TEBEROSKY, A. A Psicogênese da Língua Escrita. Porto Alegre: Artmed, 1999. FREIRE, P. & SHOR, I. Medo e Ousadia: O cotidiano do Professor. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. FREIRE, P. Pedagogia da Esperança, um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. 7. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. LARAIA, R. de B. Cultura: Um Conceito Antropológico 19. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. LUDKE, M. & ANDRÉ, M.E.D.A. Pesquisa em Educação: Abordagens Qualitativas. São Paulo: E.P.U., 1986. MELLO, Ricardo Ferreira de. Desenvolvimento Local Enquanto Ferramenta para o fortalecimento dos Trabalhadores e das Organizações Sociais. Disponível em: www.rededlis.org.br/. Acesso em: 19/02/2007. MILANI, C. Teorias do Capital Social e Desenvolvimento Local: lições a partir da experiência de Pintadas (Bahia, Brasil). Disponível em: http://www.adm.ufba.br/capitalsocial/documentos%20para%20download/istr%202003 %20Capital%20Social%20e%20Desenvolvimento%20Local.pdf. Acesso em: 18/02/2007. ROMANELLI, O.R. História da Educação no Brasil. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1978. SOARES, M. Letramento: Um Tema em Três Gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. SOUZA, L. Quando a Criança não Aprende a Ler e Escrever. São Paulo: Sobradinho 107, 2003. 9