A Mitologia de um Antropólogo

Documentos relacionados
Comandos de Eletropneumática Exercícios Comentados para Elaboração, Montagem e Ensaios

01/09/2009. Entrevista do Presidente da República

24/06/2010. Presidência da República Secretaria de Imprensa Discurso do Presidente da República

Presidência da República Casa Civil Secretaria de Administração Diretoria de Gestão de Pessoas Coordenação Geral de Documentação e Informação

Vamos dar uma olhada nos Processos de Produção Musical mas, antes, começaremos com alguns Conceitos Básicos.

UM JOGO BINOMIAL 1. INTRODUÇÃO

CEDERJ MÉTODOS DETERMINÍSTICOS 1 - EP4. Prezado Aluno,

Um novo olhar sobre formação de equipes

BALANÇO PATRIMONIAL AMBIENTAL - EXERCÍCIO COMENTADO Prof Alan

Probabilidade. Luiz Carlos Terra

Magistério profético na construção da Igreja do Porto

Maria Luiza Braga (UFRJ)

ANEXO III. Roteiro para Apresentação de Projetos do Tipo C R$ ,00 a R$ ,00

EDUCADOR, MEDIADOR DE CONHECIMENTOS E VALORES

OPERAÇÕES COM FRAÇÕES

Preparo de aula - Professor. Andrew Graham

Exemplo COMO FAZER UM TRABALHO ESCOLAR O QUE DEVE CONSTAR EM UM TRABALHO ESCOLAR? Um Trabalho Escolar que se preze, de nível fundamental, deve conter:

Os 7 Melhores Modelos de COACHING em GRUPO

M U L H E R E S D O B R A S I L. Setembro2015

Usando potências de 10

I CONGRESSO BRASILEIRO DE ENFERMAGEM NEONATAL Bioética e Biodireito na Atenção Neonatal FILIAÇÃO UNISSEXUAL. Profª Drª Luciana Moas

Análise Qualitativa no Gerenciamento de Riscos de Projetos

Tratamento e Análise de Dados e Informações (TADI)

AULA 07 Distribuições Discretas de Probabilidade

Aula 8 21/09/ Microeconomia. Demanda Individual e Demanda de Mercado. Bibliografia: PINDYCK (2007) Capítulo 4

Caderno de Anotações

Inteligência Emocional + Coaching = Alta Performance Pessoal e Profissional

ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO. O aluno com deficiência intelectual

Corpo e técnica em dança: como podemos discuti-los?

TESTES SOCIOMÉTRICOS

PEQUENAS EMPRESAS E PRÁTICAS SUSTENTÁVEIS TENDÊNCIAS E PRÁTICAS ADOTADAS PELAS EMPRESAS BRASILEIRAS

Comportamento ético do Contador - Conciliando Interesses, Administrando pessoas, informações e recursos.

A Orientação Educacional no novo milênio

PLANEJANDO UMA VIAGEM DE SUCESSO SABRINA MAHLER

COMO DEVO PROSPECTAR CLIENTES NO VAREJO?

Gestão da Qualidade. Aula 5. Prof. Pablo

Aula 5. Uma partícula evolui na reta. A trajetória é uma função que dá a sua posição em função do tempo:

A utopia platônica. Perspectiva política da alegoria da caverna: a sofocracia. Educação e política: as três classes

Visita à Odebrecht 16 de Abril de 2015

Presidência da República Casa Civil Secretaria de Administração Diretoria de Gestão de Pessoas Coordenação Geral de Documentação e Informação

Pólos de Educação Permanente em Saúde: a participação na Roda de Gestão

#PESQUISA CONEXÃO ABAP/RS E O MERCADO PUBLICITÁRIO GAÚCHO NOVEMBRO DE 2015

Treinamento sobre Progress Report.

1 Produto: Podcast Formato: Áudio Canal: Minicast Tema: Os Inovadores., o livro. ebookcast (este ebook)

André Urani

Mercados emergentes precisam fazer mais para continuar a ser os motores do crescimento global

PESQUISA OPERACIONAL -PROGRAMAÇÃO LINEAR. Prof. Angelo Augusto Frozza, M.Sc.

Painel: Como as escolas e as universidades podem atender as expectativas dos jovens e a nova demanda do mercado com relação ao empreendedorismo?

Parabéns por você ter chegado até aqui isso mostra o seu real interesse em aprender como se ganhar dinheiro na internet logo abaixo te darei algumas

IGREJA DE CRISTO INTERNACIONAL DE BRASÍLIA ESCOLA BÍBLICA. MÓDULO I - O NOVO TESTAMENTO Aula XV AS CARTAS DE TIAGO E GÁLATAS

Auditoria de Meio Ambiente da SAE/DS sobre CCSA

Identidade e trabalho do coordenador pedagógico no cotidiano escolar

Dureza Rockwell. No início do século XX houve muitos progressos. Nossa aula. Em que consiste o ensaio Rockwell. no campo da determinação da dureza.

Contratar um plano de saúde é uma decisão que vai além da pesquisa de preços. Antes de

É HORA DE INVESTIR EM VOCÊ

COMBINADOS O ANO DA ENTREGA.

1. Primeiras reflexões: a base, o ponto de partida 15

Manual Geral de Aplicação Universal Entrada 2008

BLUMENAU: SITUAÇÃO FINANCEIRA A economia dos municípios depende do cenário nacional

A CONTAGEM DE ESTRELAS COMO TEMA TRANSVERSAL EM ASTRONOMIA

DIMENSÕES DE PESQUISA EM ENGENHARIA DE SOFTWARE

Guia Sudoe - Para a elaboração e gestão de projetos Versão Portuguesa Ficha 7.0 Auxílio estatal

I ENCONTRO DE PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NOS CURSOS DE LICENCIATURA LICENCIATURA EM PEDAGOGIA: EM BUSCA DA IDENTIDADE PROFISSIONAL DO PEDAGOGO

DESAFIOS E PERSPECTIVAS PARA A PESQUISA E USO DE LEGUMINOSAS EM PASTAGENS TROPICAIS: UMA REFLEXÃO. Sila Carneiro da Silva 1

Por Maximiliano Carlomagno

Disciplina: Trabalho de Conclusão de Curso

EAA Editora ARARA AZUL Ltda Revista Virtual de Cultura Surda ENTREVISTA. Carilissa Dall Alba

Unidade II Sociedade, natureza e espaço II. Aula 4.1 Conteúdo:

EMPREENDEDORISMO E MERCADO DE TRABALHO

Prefácio. 2. As lições são programadas para pessoas que cumpram os seguintes requisitos:

ABORDAGEM METODOLÓGICA EM GEOGRAFIA: A PESQUISA DE CAMPO*

O Papel do Gerente/Administrador Financeiro das Empresas

Eixo Temático ET Desenvolvimento de Estratégias Didáticas

Lógica de Programação. Profas. Simone Campos Camargo e Janete Ferreira Biazotto

Organização da Disciplina. Técnicas de Negociação e Mediação. Aula 1. Contextualização. O Conflito. Instrumentalização

As 10 Maneiras mais GARANTIDAS De Se Conseguir uma Entrevista de EMPREGO

CIBERESPAÇO E O ENSINO: ANÁLISE DAS REDES SOCIAIS NO ENSINO FUNDAMENTAL II NA ESCOLA ESTADUAL PROFESSOR VIANA

SEO sem Limites - 3 Passos Básicos de SEO

ActivALEA. ative e atualize a sua literacia

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

AGRUPAMENTO DE ESCOLAS DE PÓVOA DE LANHOSO

Minuta Circular Normativa

Não importa o que você decida

Meninos e Meninas Brincando

Agradeço a atenção e espero a aprovação desta petição e a criação do DIA NACIONAL DOS SONHOS.

Caderno de atividades

BARÓMETRO DE OPINIÃO PÚBLICA: Atitudes dos portugueses perante Leitura e o Plano Nacional de Leitura

LEI MARIA DA PENHA E A CRIMINALIZAÇÃO DO MASCULINO. Alexandre Magno Fernandes Moreira Aguiar

APOSTILA DE CIÊNCIAS NATURAIS

Goste do que faz. Quanto mais as pessoas gostam de seu trabalho, mais energia dedicam a ele. - Mary Kay Ash

Comissão avalia o impacto do financiamento para as regiões e lança um debate sobre a próxima ronda da política de coesão

QUESTÕES PARA A 3ª SÉRIE ENSINO MÉDIO MATEMÁTICA 2º BIMESTE SUGESTÕES DE RESOLUÇÕES

Fundamentos de Teste de Software

ÍNDICE. 1.1 Apresentação do Centro Direitos Deveres Organização...3

Vou votar em Marina Silva porque uso creme anti-rugas

Koinonia, descobrindo a alegria de pertencer.

Aula de Exercícios - Teorema de Bayes

Transcrição:

A Mitologia de um Antropólogo Entrevista de Victor Aiello Tsu com Clifford Geertz originalmente publicado na Folha de São Paulo de 18 de fevereiro de 2001 O aumento na quantidade de comunicações e a maior integração entre os seres humanos não necessariamente tornou a vida mais fácil. Para o antropólogo norte-americano Clifford Geertz, 74, um dos principais deveres dos antropólogos (e do cientista social de maneira geral) neste início de século é tentar fazer com que as diversas sociedades (que são cada vez mais complexas e envolvem cada vez mais pessoas) sejam capazes de atingir algum entendimento entre si. Essa é uma das mais relevantes lições do autor de "Nova Luz sobre a Antropologia", livro que está sendo lançado no Brasil nesta semana pela editora Jorge Zahar e reúne desde ensaios críticos à antropologia contemporânea até reflexões autobiográficas (leia trecho na pág. 9). Com 18 livros publicados, Clifford Geertz é, depois de Claude Lévi-Strauss, provavelmente o antropólogo cujas idéias causaram maior impacto após a segunda metade do século 20, não apenas para a própria teoria e prática antropológicas, mas também fora de sua área, em disciplinas como a psicologia, a história e a teoria literária. Ele é considerado o fundador de uma das vertentes da antropologia contemporânea _a chamada antropologia hermenêutica ou interpretativa. Para o autor (que se graduou em filosofia e inglês antes de decidir ser antropólogo) este volume é uma oportunidade de, no fim de sua carreira, "montar sua própria lenda antes que outros o façam". Clifford Geertz obteve seu PhD em antropologia em 1956 e desde então conduziu extensas pesquisas de campo que deram origem a livros escritos essencialmente sob a forma de ensaio. Suas pesquisas ocorreram na Indonésia e no Marrocos. Foi o descontentamento com a metodologia antropológica disponível à época de seu estudo, que lhe parecia excessivamente abstrata e de certa forma distanciada da realidade que encontrou em campo, que o levou a elaborar um método novo de análise das informações obtidas entre as sociedades que estudava. Seu primeiro estudo tinha por objetivo entender a religião em Java. No final, foi incapaz de se restringir a apenas um aspecto daquela sociedade _que ele achava que não poderia ser extirpado e analisado separadamente do resto, desconsiderando, entre outras coisas, a própria passagem do tempo. Foi assim que ele chegou ao que depois foi apelidado de antropologia hermenêutica. www.pucsp.br/rever/rv3_2001/p_geertz.pdf 126

Essa vertente, crucial para o desenvolvimento da contemporânea _e às vezes chamada pósmoderna_ antropologia de matriz norte-americana, é um estudo que pretende entender "quem as pessoas de determinada formação cultural acham que são, o que elas fazem e por que razões elas crêem que fazem o que fazem". Uma das metáforas preferidas para definir o que faz a antropologia interpretativa é a da leitura das sociedades como textos ou como análogas a textos. A interpretação se dá em todos os momentos do estudo, da leitura do "texto" cheio de significados que é a sociedade à escritura do texto/ensaio do antropólogo, interpretado por sua vez por aqueles que não passaram pelas experiências do autor do texto escrito. Na entrevista a seguir, Geertz fala do panorama da antropologia atual, daquilo que ele vê como o dever do antropólogo tanto hoje quanto no futuro, dos limites da interpretação e de como a onda de globalização estaria afetando as diversas culturas. O que o sr. acha que o futuro reserva aos antropólogos? Na introdução de seu livro, o sr. diz que está cada vez mais difícil sobreviver à base de antropologia, as coisas não são mais como eram. Qual é o campo de trabalho da antropologia? Bem, não é bem que não dá para sobreviver com a antropologia, acho que os antropólogos estão sobrevivendo bem, mas está ficando mais difícil porque tudo está ficando mais complicado. Nós lidamos com uma gama maior de sociedades, não apenas as chamadas sociedades simples. Lidamos com sociedades grandes, como a Índia, o Brasil, o que torna as coisas mais complexas do que quando nós ficávamos restritos a apenas povos tribais. Em segundo lugar, o mundo é agora muito mais integrado e desenvolvido, logo tudo é conectado a tudo o mais de forma bastante complicada. Além disso, há muito mais pessoas trabalhando nessas áreas, em que antes costumávamos trabalhar sozinhos. Ninguém mais estava muito interessado nos povos que estudávamos, mas hoje todos estão. Isso faz com que a antropologia seja muito mais do que a soma das coisas, em um sentido, mas muito mais difícil de buscar realizar, em outro. Mas qual seria o dever dos antropólogos? Não creio que possamos fazer muito mais do que seguir do jeito que estamos e continuar a pensar no que estamos fazendo e qual a nossa contribuição particular _o tipo de www.pucsp.br/rever/rv3_2001/p_geertz.pdf 127

contribuição que a antropologia pode de fato dar eficazmente. A antropologia não pode mais ser uma ciência completamente geral, que estuda tudo, que diz estudar o "Homem". Ela tem que perceber qual é, em um lugar como a Índia, ou a Indonésia, ou o Marrocos, ou o Brasil, o seu papel particular em interpretar o que ocorre _isso ao lado de outras disciplinas, como economia, política, história, literatura. Tudo isso deve ser levado em consideração, e a antropologia deve encontrar seu lugar e sua contribuição em meio a esses outros campos. Como o sr. se envolveu com a antropologia? Eu fiz faculdade depois da guerra, depois da Segunda Guerra Mundial, e estudei inglês e filosofia por uns tempos. E então, quando decidi fazer a pós-graduação, um de meus professores sugeriu que eu poderia me interessar por antropologia, em particular a que estava então sendo ensinada em Harvard, porque em Harvard estava sendo ensinada como parte de um departamento multidisciplinar, chamado relações sociais. Nesse departamento, estavam reunidas as disciplinas de antropologia, sociologia, psicologia social e psicologia. Então eu fiz isso e foi assim que entrei para a antropologia. O sr. acredita que a antropologia cultural, a chamada antropologia hermenêutica, pode ser considerada uma ciência? Claude Lévi-Strauss diria que o tipo de antropologia praticada pelo sr. não é antropologia, e sim etnografia. Devo dizer que não sou da mesma categoria que Claude, mas não acho essa questão particularmente importante. Não me importa se ele a chama de ciência ou não, eu mesmo acredito que seja, mas isso depende do que significa "ciência". Lévi-Strauss certamente está certo ao dizer que a antropologia cultural não segue o mesmo modelo que as ciências naturais, mas eu acredito que seja empírica, sistemática, tente desenvolver argumentos que possam ser ao menos confrontados com provas. Ela vai atrás de um objetivo mais ou menos específico... Por isso não vejo motivo para não chamá-la de ciência, mas concordo que não como a física ou a química etc. Porém não vejo por que compará-la à física. Eu mesmo não acho que a questão de como chamá-la seja tão importante. Então, para ela ser vista como ciência, não é necessário que a chamemos de ciência. Suponho que não. É, não precisa. Eu costumo fazê-lo, bem, por questões políticas. www.pucsp.br/rever/rv3_2001/p_geertz.pdf 128

Parafraseando Max Weber, a antropologia, tanto em campo quanto na academia, é uma vocação? Com certeza é uma vocação para mim, tem sido assim nos últimos 50 anos. Espero que continue a ser, sim, é um compromisso, é mais do que um simples trabalho ou um lugar para se receber um salário. Eu tento, suponho, melhorar as comunicações entre as pessoas, a compreensão entre as pessoas. Portanto acredito que seja uma vocação. Nem todos na antropologia estão comprometidos com ela como se fosse uma vocação, mas os melhores estão. Quais são os limites da interpretação? Se a cultura é um texto _ou análoga a um texto_, e o antropólogo escreve um texto, e o leitor lê o texto e o interpreta também e isso vai em frente... Quais são os limites? Bem, não sei, acho que você pára de interpretar quando não tem mais o que dizer. Por exemplo, eu vou e escrevo sobre Bali ou Java, talvez você leia, pense sobre o que significa no contexto daquilo que você está fazendo. E, após um tempo, não há muito mais a ser dito, quer dizer, nada muito mais interessante aparece, você pega o que pode e então segue em frente. Acho que a corrente de texto depois de um tempo se entrega, porque tudo o que sabemos de importante ou interessante já foi dito, ao menos naquela linha em particular, não como um todo, mas nessa linha, sim. Então as coisas são abordadas de modo diferente, e vai-se em frente com isso. Não creio que haja um ponto final óbvio que diga exatamente onde é o fim da interpretação, mas, depois de um tempo, depois de 4.000 discussões acerca da briga de galos, quem sabe baste. Mas é interessante, porque um estudante de antropologia brasileiro, lendo o ensaio sobre a briga de galos balinesa, terá uma visão completamente diferente da de um estudante de antropologia balinês, que terá uma visão diferente da do sr. quando escreveu o ensaio. Cada um está fazendo a sua própria interpretação. Bem, mas a decisão é pessoal. Uma coisa interessante a fazer seria confrontar as leituras balinesas do texto com as brasileiras. Poderia nos ser útil, na verdade não faço idéia, depende do que sairia disso. Mas costumo adotar uma visão a posteriori das coisas. Deve-se tentar primeiro e depois ver se vale a pena. Não podemos prever o que será útil e o que não o será. www.pucsp.br/rever/rv3_2001/p_geertz.pdf 129

Como se pode escapar do niilismo na interpretação? Eu não vejo qual é o papel do niilismo. Se você fosse niilista, nem começaria a interpretar. Não tentaria ao menos começar a entender os outros. Acho que há uma diferença entre o niilismo e uma simples ausência de certeza. É verdade que quase todas as interpretações antropológicas tenham por fim um resíduo de incerteza, de vagueza, indeterminação, contingência. Mas isso não é niilismo, isso é o modo como o mundo é. Se você for realmente um niilista, não se importará com nada, não tentará buscar compreender nada, não interpretará nada. Não escreveria _ao menos eu não vejo razão para que escrevesse_ um longo livro sobre coisa nenhuma. Seu novo livro tem um capítulo intitulado "Anti Anti-Relativismo". Diante das duas atitudes dominantes na antropologia _defesa de um relativismo quase absoluto e defesa de uma moral ou "natureza humana anterior a qualquer análise antropológica", onde exatamente o sr. se situa? Como eu disse, sou um anti anti-relativista, mas acredito que essa posição seja mais comum aqui nos Estados Unidos do que imagino que seja no Brasil, embora eu não tenha certeza. Aqui nos EUA faz parte do movimento neoconservador puxar a carta do relativismo contra, bem, essencialmente contra a esquerda, contra liberais etc. O que dizem é que, a menos que você se agarre a certas verdades absolutas, de certo tipo, você não pode acreditar em nada, não pode fazer nada, agir etc., e eu obviamente me oponho a essa visão. Acho que é possível agir sob a incerteza, é possível agir sob o indeterminável, porque este é o modo como todos nós vivemos. Qual é a sua perspectiva quanto aos rumos atuais da globalização, essa moda de globalização que está tomando conta do mundo? Como isso afeta as culturas? Nos últimos capítulos do meu livro eu falo sobre o que é o padrão, ao menos o que acredito que seja um padrão. Ao mesmo tempo em que há muita comunicação e integração em nível mundial e uma ordem neoliberal geral, simultaneamente ocorre uma reação contra isso, que busca aumentar auto-expressões culturais. Acho que devemos usar esse paradoxo para entender exatamente o que acontece. Não me parece que nem a idéia de o mundo inteiro estar meio que subsumido em uma única hegemonia nem a noção de "cada um é seu www.pucsp.br/rever/rv3_2001/p_geertz.pdf 130

próprio eu" se imporão. Não sei bem o que dizer sobre a globalização como processo, a globalização é um fato, está ocorrendo, o gado atravessa o mundo, há muita comunicação etc., mas não acho que isso ocorra sem paralelos, sem outros movimentos em direções opostas. Então o sr. não concorda que a globalização seja um movimento avassalador de culturas "menores"? Não, na verdade, não concordo. Bem, não sei como tudo isso terminará quem é que sabe isso? Mas o que eu sinto é que essas culturas são realmente fortes e, em certo grau, são estimuladas pela própria globalização a se tornarem ainda mais fortes. Não creio que elas serão esmagadas, embora muita gente ache que sim. O sr. tem uma visão otimista do futuro... Não diria que é uma visão otimista, mas que ao menos esse tipo de pessimismo não é o meu. Tenho meu próprio tipo de pessimismo, que não é esse. E qual é o seu tipo de pessimismo? Eu não tenho, estava brincando. Eu não acho que o mundo esteja prestes a se tornar, por completo, um tipo de hegemonia neoliberal baseada nos Estados Unidos. Há certamente pessoas que querem isso e alguns cientistas em alguns lugares que dizem que isso acontecerá, mas creio que há vários motivos para questionar isso. Não acredito que o neoliberalismo vá subjugar todo o mundo. Bem, temos que ver, temos que esperar a história e ver. Existe algum episódio de seu trabalho de campo que o sr. recorde como particularmente interessante? Fiz muito trabalho de campo e sempre me diverti muito com ele. O primeiro de todos, ir por dois anos e meio a Java, foi bem excitante. Depois fui para Bali por um ano e depois para o Marrocos por vários anos. E então estive de volta a Java, a Bali, ao Marrocos... O trabalho de campo foi seguramente um dos pontos altos da minha vida. www.pucsp.br/rever/rv3_2001/p_geertz.pdf 131

Gostaria que o sr. contasse um caso específico, uma história anedótica... Escrevi sobre praticamente todos os eventos anedóticos que me aconteceram, é difícil me lembrar de algum específico agora. O trabalho, depois de feito, quando olhamos para ele, é semi-autobiográfico, ao menos em parte. E no meu trabalho eu já contei uma série de histórias, coisas que me aconteceram: ter sido surpreendido em plena guerra civil na Sumatra, ter-me envolvido com certas pessoas no Marrocos... Até que ponto a sociedade a que se pertence e aquela na qual se faz o trabalho de campo influem no trabalho dos antropólogos? Não há dúvida quanto a isso, todos nós somos, como se diz hoje, "observadores situados". A única coisa que se pode fazer a respeito é ter a maior consciência possível desse fato e pensar nisso, não assumir que o modo como vemos as coisas é o modo como as coisas simplesmente são, mas entender. Sim, obviamente, um antropólogo norte-americano ou um brasileiro ou um francês verão as coisas de uma maneira algo diferente, e uma das razões é o contexto cultural do qual eles vêm, do qual extraem suas percepções e seus princípios. Não há nada de errado nisso, é inevitável, o erro ocorre quando as pessoas não se conscientizam disso e simplesmente assumem que qualquer sensação que têm não precisa ser confrontada com a realidade. Claro, não há nada semelhante a um observador totalmente neutro e abstrato. Isso não é tão fatal quanto pode soar, só significa que é preciso pensar sobre de onde as pessoas vêm, onde elas estão trabalhando etc. E o que o sr. pensa a respeito do atual movimento chamado "pós-moderno" na antropologia? Freqüentemente não se sabe bem de que se trata quando se fala em pós-moderno. Não me considero um pós-moderno no sentido estrito, mas acredito que os pós-modernos estão apresentando questões interessantes que precisam ser confrontadas até por aqueles de nós que possivelmente não estão muito enamorados das respostas dadas por eles quanto poderiam estar. Mas as questões que eles trazem e as preocupações que eles têm são todas bem reais, e essas questões e preocupações exigem algum tipo de resposta. Se a resposta que é usualmente associada ao pós-modernismo, que é uma visão descentrada e altamente relativa das coisas, é a resposta ideal, eu não tenho certeza, mas acho que os pós-modernos devem ser tomados como positivos para a construção da teoria antropológica. www.pucsp.br/rever/rv3_2001/p_geertz.pdf 132

Eles contribuíram muito, criticamente, fizeram com que algumas posições e argumentos se mostrassem simples demais para serem mantidos e também trouxeram o tipo de pergunta que você fez momentos atrás sobre a influência da sociedade de alguém na percepção desse alguém etc. Foi esse tipo de coisa, entre outras, que nos foi trazido pelos pósmodernos. Um monte de outros problemas com relação à escrita, com relação à retórica, com relação à questão da prova etc., como nas ciências naturais, tudo isso vem à tona, ao menos em parte, devido à crítica pós-moderna. Então, como crítica, acredito que tenha tido um valor significativo, mas, como força positiva e construtiva, sou um pouco mais cético. Quais são os seus planos para o futuro? O sr. pensa em escrever mais um livro? Não sei, não estou escrevendo um agora, tenho que escrever alguns ensaios e tenho que dar algumas palestras, mas tenho 74 anos, então... Você sabe, nesta altura a gente pensa no futuro de um modo diferente. Não sei, talvez escreva algo, mas no momento não estou trabalhando em um livro, estou trabalhando _bem, escrevo resenhas, tenho que falar com algumas pessoas no mês que vem e coisas do gênero. Tenho que tentar cumprir algumas promessas que fiz antes e não pude cumprir enquanto estava escrevendo livros. Mas eu posso eventualmente voltar a escrever. Veremos. Quando se toca de ouvido, quem sabe? www.pucsp.br/rever/rv3_2001/p_geertz.pdf 133