História da Matemática na formação inicial de professores 1

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Transcrição:

Introdução História da Matemática na formação inicial de professores 1 Fumikazu Saito PEPG em Educação Matemática/HEEMa/PUCSP PEPG em História da Ciência/CESIMA/PUCSP fsaito@pucsp.br Diferentes abordagens que buscam aproximar história da matemática e ensino de matemática têm sido propostas e discutidas há algum tempo. Tais propostas, além de fornecer subsídios para a compreensão do papel da história no ensino, pontuam diferentes vertentes pedagógicas e/ou didáticas, associando-as ao uso da história da matemática, a fim de propor novos caminhos de abordagem. Contudo, articular história e ensino não é tarefa simples, visto que tal articulação requer não só um estudo epistemológico, mas também didáticopedagógico (Saito & Dias, 2013; Saito, 2010; Saito, 2013a). Em linhas gerais, há um consenso entre historiadores da matemática e educadores a respeito do papel da história no ensino. Segundo eles, a história contribui no processo de formação de docentes em três aspectos: 1) propicia a compreensão de que a Matemática é resultado de uma atividade intelectual humana; 2) reorienta a visão do que vem a ser a Matemática na medida em que apresenta ao professor aspectos que aparentemente não são familiares; 3) alarga as fronteiras da disciplina matemática, estabelecendo uma relação dela com outros segmentos do conhecimento (Fauvel & van Maanen, 2000). A história da matemática pode ser um instrumento importante para a formação do professor porque promove uma visão mais crítica em relação à matemática e à construção do conhecimento matemático. Utilizando-se de fontes adequadas e atualizadas, a história da matemática prepararia o professor para lidar com as contingências não só relativas ao conteúdo matemático que deve dar conta, mas também a outros aspectos relativos ao processo de ensino e aprendizagem de matemática, visto que ela possibilita resignificar e levantar discussões sobre diferentes modelos de conhecimento, preparando o futuro docente para questões epistemológicas mais relevantes (Saito, 2013b). Nesse sentido, mais do que simplesmente narrar uma história da matemática, desde priscas eras até o presente, é necessário discutirmos sobre a forma como poderíamos lidar com a história da matemática na formação de professores. Assim, neste trabalho apresentamos alguns aspectos norteadores que podem nos auxiliar como mediadores de conhecimentos para o ensino de matemática. O objetivo principal aqui é apresentar, à guisa de introdução, alguns pontos importantes a serem considerados ao lidarmos com a história da matemática no ensino de matemática. 1 CNPq - Projeto Universal: Formação continuada de professores de matemática na interação entre história da matemática e teoria das situações didática (CNPq 484784/2013-7).

História da matemática A história da matemática não é um monólito. Existem diferentes histórias da matemática, escritas em diferentes contextos e épocas. Uma história da matemática escrita por matemáticos, por exemplo, será diferente daquela escrita por filósofos, por sociólogos e por historiadores. Isso porque é possível narrar uma história por diferentes perspectivas e grande parte do que é escrito em história depende de quem a escreve. Além disso, a história não é uma narrativa única e acabada. A história é sempre reescrita, pois as interpretações relativas a determinados aspectos e processos divergem, algumas vezes, daquilo que comumente foi considerado (Nobre, 2004). Isso ocorre em virtude do surgimento de novos documentos, novas abordagens metodológicas e, principalmente, da perspectiva historiográfica adotada pelo historiador. Histórias da matemática sempre foram escritas, entretanto, cada uma dessas histórias atenderam a diferentes contingências que, nem sempre, foram ou são matemáticas no sentido que entendemos hoje por esse termo. Além disso, não há continuidade entre uma narrativa de uma época e de outra, pois cada uma dessas narrativas está pautada em diferentes vertentes historiográficas (Bromberg & Saito, 2010); Goulding, 2010; Saito, 2013a). Cabe aqui observar que grande parte do material em história da matemática disponível aos professores brasileiros encontra-se defasada, visto que ainda está pautada em tendências historiográficas que remontam ao início do século XX (Roque, 2012). Essas são narrativas históricas que privilegiam os aspectos internos à própria área do conhecimento, encadeando linear e progressivamente as diversas descobertas matemáticas. Nesta apresentação, faremos referência a essa forma de escrever história como "tradicionais". Essa forma de escrita da história surgiu num momento histórico em que era necessário justificar a própria Matemática no seu processo de institucionalização como área de conhecimento. Como já dissemos, "histórias" da matemática sempre foram escritas, mas foi a partir do século XVIII que vemos surgir grandes compêndios, tal como Cronica de matematici: overo Epitoe dell'istoria delle vite loro, de Bernardino Baldi (1553-1617), publicada postumamente em 1707. Trata-se de uma obra que buscou recensear matemáticos desde a antiguidade até o século XVII, dedicando uma breve biografia a cada um deles. Outra obra importante de história da matemática foi Historia matheseos universae, publicado por Johann Christoph Heilbronner (1706-1745) em 1742. Nela o leitor encontra descrições sobre matemáticos importantes e seus feitos. Mas o grande modelo de história da matemática foi, provavelmente, Histoire des mathématiques de Jean-Étienne Montucla (1725-1799), cujos quatro volumes foram publicados entre os anos de 1799 e 1802. Note que esses compêndios que fazem um mapeamento da história da matemática, foram publicados a partir do século XVIII e início do XIX, pois foi justamente a partir do século XVIII que a matemática começou a tornar-se um conhecimento especializado. O que caracteriza essas três obras é a forma linear em que é escrita a história. Entretanto, essa maneira de escrever a história da matemática parece ter-se consolidado no início do século XX com a volumosa obra de história da matemática, intitulada Vorlesungen über Geschichte der

Mathematik, publicada em quatro volumes por Moritz Benedikt Cantor (1829-1920) entre 1880 e 1908. De fato, o mesmo estilo com algumas variações é encontrado, por exemplo, em outras obras de história da matemática bem conhecidas, tais como History of Mathematics de Florian Cajori (1859-1930), Introdução à história da matemática de Howard Eves, História da Matemática de Carl B. Boyer e History of Mathematics de David E. Smith. Embora sejam importantes, essas histórias da matemática, além de serem extremamente descritivas, procuraram valorizar a escrita linear e progressista da história, pois foram influenciadas e/ou estavam ancoradas numa concepção de ciência Setecentista. Por exemplo, a Historia matheseos universae (1742) de Heilbronner foi publicada em meados do século XVIII e a Histoire des mathématiques (1799 e 1802) de Jean-Étienne Montucla em finais de XVIII e início do XIX. Essas duas obras foram publicadas num período em que a matemática começava a especializar-se como área de conhecimento. Convém observar que, assim como não existiam "cientistas", também não existiam "matemáticos" antes do século XIX, tal como são reconhecidos hodiernamente pela comunidade acadêmica e, em geral. Mas, isso não significa que personagens, tais como René Descartes (1596-1650), Blaise Pascal (1623-1662), por exemplo, não possam ser reconhecidos como "matemáticos". Entretanto, é anacrônico fazer referências às áreas de conhecimento, anteriores ao século XVIII, como disciplinas específicas, visto que a especialização moderna viria a ocorrer ao longo do Setecentos, adquirindo no século seguinte, a forma das várias disciplinas e áreas de conhecimento que hoje são reconhecíveis. Antes do século XVIII a matemática não era ainda um campo de conhecimento unificado, nem uma área de conhecimento autônoma. Foi por volta do século XVI que a matemática começou a dar seus primeiros passos em direção à matemática moderna. Antes daquela época, não existia uma única matemática, mas "matemáticas" relacionadas a diferentes "práticas matemáticas". Desse modo, Pascal e Descartes, por exemplo, são matemáticos no sentido dado a esse termo na época em que eles viveram. Ou seja, eram matemáticos os estudiosos que lidavam com a astronomia, a geografia, a agrimensura, a navegação, a óptica, as artes mecânicas em geral, e com questões atinentes à filosofia natural. As histórias da matemática que começaram a ser escritas a partir do século XVI tinham por objetivo, assim, justificar essa nova área de conhecimento que estava em formação. Da mesma maneira que ocorreu com a ciência, a matemática precisou, no início, recorrer à história para justificar o pretenso edifício matemático que estava em construção. Entretanto, à medida em que se avançava o século XVII ao XIX, notamos que a história gradativamente foi perdendo seu papel. Isso porque no século XIX era nítida a sensação de que faltava pouco para o grande edifício da ciência moderna, assim como a da matemática, ficar pronto. Assim, diferentemente da obra de Montucla, por exemplo, o grande compêndio de história da matemática de Cantor (1880 e 1920), que foi publicada em finais do século XIX e início do XX, a história da matemática passaria a ter outro papel. Embora a obra apresentasse aspectos similares às histórias da matemática do século anterior, a história da matemática não buscaria mais justificar a Matemática, mas servir como um adorno que ilustrava o desenvolvimento da matemática desde suas origens até aquela época.

É a essa história da matemática que os professores geralmente fazem referência. Embora ela seja bastante útil, no sentido de que nos fornece uma linha cronológica das diferentes etapas (ou fases) do desenvolvimento do conhecimento matemático, esse tipo de história, entretanto, não promove a reflexão do professor. Por ser meramente narrativa, essa escrita de história não conduz o professor a refletir sobre o objeto matemático, visto que o processo da construção dos objetos matemáticos são omitidos. Uma história da matemática tradicional apenas apresenta os resultados matemáticos de uma época, mas não o processo de construção do conhecimento. História da Matemática e a formação do professor Alguns estudos em história da matemática voltados para o ensino têm insistido na necessidade de "reescrever" a história para educadores matemáticos. Dentre as diferentes iniciativas encontramos aquelas dedicadas à história da educação matemática. Muitos desses estudos, entretanto, têm dado ênfase ao uso de documentos originais para a formação do professor. Entretanto, a análise de um documento original é tarefa do historiador de matemática e não do educador. Aqui é preciso tomar o cuidado de não querer fazer do professor um historiador. O historiador da matemática deve por meio de um diálogo com o educador matemático construir uma interface entre a história da matemática e o ensino de matemática. Nessa interface, o documento original, que foi examinado e reconstituído à malha histórica pelo historiador, pode ser um mediador para propiciar esse diálogo. Não se trata, portanto, de utilizar um documento original para propiciar a articulação na formação do professor (muito menos utilizá-lo numa sala de aula), mas para promover um diálogo entre professor e historiador (Saito, 2010). Nesse movimento, que em essência é dialético, o professor, ao se apropriar do conhecimento histórico, resignifica os objetos matemáticos, pois o contato com o processo da construção deste mesmo objeto matemático na história proporciona ao professor um "deslocamento" cognitivo. O contato com o mesmo objeto matemático no passado conduz o professor a perceber os diferentes nexos conceituais que estão em torno do objeto matemático na sua formação. O processo histórico, dessa maneira, propicia ao professor a experiência daquilo não lhe é familiar. Esse deslocamento permitirá ao professor levantar diferentes questões epistemológicas relevantes para o ensino e aprendizagem de matemática (Saito & Dias, 2013). Cabe observar que os documentos históricos são ricos em algoritmos, procedimentos e métodos que permitem explorar operacionalmente diferentes conteúdos matemáticos. Entretanto, é preciso tomar o cuidado de não utilizar esses mesmos elementos transportandoos ao presente. Isso porque esses elementos estão ancorados numa concepção de conhecimento de uma época. Utilizar, por exemplo, as antigas definições de reta, ponto e segmento dos antigos para ensinar matemática nos dias de hoje não faz sentido, visto que o professor deve dar conta da matemática do século XXI e não ensinar uma matemática de 400 AEC. Desse modo, a história da matemática não pode ser vista meramente como um repositório fixo de informações onde o professor possa "pinçar" o que lhe é conveniente para

ser utilizado em sala de aula. Isso porque o que é mais importante na história não são os objetos em si, mas o processo da construção desses objetos. Portanto, deve-se ter muita cautela ao utilizar um documento original. Além disso, é importante também considerar, historicamente, o momento em que o ensino da matemática tornou-se necessário. A esse respeito, estudos atualizados em história da matemática e também da ciência têm observado que, embora existisse a preocupação de ensinar matemática na antiguidade, tais iniciativas atendiam a diferentes demandas. Em linhas gerais, podemos dizer que o ensino da matemática, no sentido que hoje lhe conferimos, tem sua origem nos séculos XV e XVI. Foi no momento em que as "matemáticas" ganharam impulso que o conhecimento matemático precisou ser disseminado e transmitido. Podemos dizer que havia pelo menos duas diferentes formas de matemáticas no século XV. De um lado, encontramos as matemáticas que fazem parte do currículo universitário que, desde o medievo, compõem um grupo de campos de conhecimento que, nos dias de hoje, não seriam consideradas matemática. Faziam parte desse grupo, conhecido como quadrivium, a aritmética, a geometria, a astronomia, a música, a óptica, a mecânica, a hidrostática, a pneumática além de outras. Algumas vezes quem lecionava geometria e aritmética naquela época eram médicos, teólogos ou juristas. Outras vezes eram os astrônomos, os músicos (estudiosos de música), os ópticos e assim por diante, visto que não existia ainda o "matemático" (pois não existia ainda a grande área de matemática). De outro lado, encontramos uma miríade de "praticantes de matemáticas", tais como os navegadores, agrimensores, pintores, arquitetos, escultores e toda sorte de artesãos que utilizavam uma geometria e uma aritmética práticas. Diferentemente do que ocorria nas universidades, em que o conhecimento matemático era essencialmente teórico, fora dela, principalmente nas escolas de ábaco, a matemática ali ensinada tinha um apelo mais empírico. Esse conhecimento mais prático, entretanto, não tinha relação direta com aquele teórico. Ou seja, conhecimento prático não era uma decorrência ou mera aplicação de um conhecimento teórico, como se fosse uma forma de "matemática aplicada". Na verdade, a concepção de "matemática aplicada" só viria a se configurar no século XIX quando então passaria a ser entendida como aplicações de uma "matemática pura". Nos séculos XV, XVI e XVII, esses conhecimentos matemáticos de natureza mais prática eram antigos saberes que eram transmitidos oralmente. Foi no século XV que se começou a publicar esses conhecimentos, principalmente em vernáculo. Assim, ao longo dos séculos XVI e XVII, seriam publicadas uma grande quantidade de tratados matemáticos de todos os gêneros. Esses conhecimentos mais práticos passariam, assim, a influenciar e a ser influenciados por outros conhecimentos de natureza teórica, encontrados nas universidades. Foi nessa tensão entre conhecimentos práticos e teóricos que a matemática encontrou seu caminho em direção à matemática moderna. Mas o ensino de matemática passou a ser importante e tornou-se centro de debate apenas no início do século XX. Embora encontremos na antiguidade discussões relativas ao papel da matemática na formação do cidadão, foi só em finais do século XIX que os debates relativos ao ensino de matemática tornaram-se centrais. Isso porque naquela época o edifício matemático já estava praticamente em pé. Concomitantemente, os matemáticos passaram a

discutir e a debater sobre os fundamentos dessa área de conhecimento para assentar a matemática em bases firmes e sólidas. O grande debate sobre os fundamentos também conduziu diferentes matemáticos a revisarem o ensino de matemática, pois era necessário também formar futuros matemáticos para completar o edifício da matemática. Foi nesse contexto em que a grande área passou a ganhar autonomia que surgiu a necessidade de se discutir sobre o perfil do professor de matemática. E é curioso que é num momento em que a formação do professor tornara-se centro dos debates que a história da matemática voltava a ser valorizada. Como discorremos anteriormente, quando o edifício matemático estava quase pronto, a história perdera o seu papel, pois surgia a partir daí um profissional especializado em matemática. A matemática, desse modo, passou a ser matéria de discussão dos filósofos da matemática e dos matemáticos. A história da matemática perdera sua função que agora era substituída pela filosofia e a epistemologia. As histórias da matemática foram, assim, relegadas a antiquários, como se fossem antigos conhecimentos que foram se acumulando até chegar na grande matemática do início do século XX, entendidos apenas como legados históricos. Todavia, a história da matemática viria, juntamente com a história da ciência, reconquistar o seu lugar. Quando as grandes áreas passaram a se especializar e novos desdobramentos do conhecimento começaram a mostrar novas formas de se construir conhecimento, a história retornaria renovando seus pressupostos historiográficos e metodológicos a partir da década de 1980. É nesse contexto que a história da matemática, assim como a da ciência, apresentaria suas potencialidades didática e/ou pedagógicas. Entretanto, diferentemente do que foi no passado, em que a história da matemática fez parte do processo da construção do conhecimento matemático, justificando cada etapa de sua elaboração e transmissão, hoje buscamos por uma profícua articulação entre história e ensino, considerando as possíveis interfaces entre a história da matemática numa perspectiva historiográfica atualizada e as teorias didático/pedagógicas da Educação Matemática. Referências bibliográficas Baldi, B. (1707). Cronica de matematici: overo Epitoe dell'istoria delle vite loro. Urbino: Angelo Antonio Monticelli. Boyer, C. B. (1996). História da Matemática. 2a. ed. São Paulo: Ed. Blucher. Bromberg, C. & Saito, F. (2010). A História da Matemática e a História da Ciência. In: Beltran, M. H. R., Saito, F. & Trindade, L. dos S. P. (Eds.). História da Ciência: tópicos atuais (47-71). São Paulo: Ed. Livraria da Física/CAPES. Cajori, F. (2007). História da Matemática. São Paulo: Ciência Moderna. Cantor, M. B. (1880-1908). Vorlesungen über Geschichte der Mathematik. Leipzig: Von B. G. Teubner. Eves, H. (2004). Introdução à história da matemática. Campinas: Ed. da UNICAMP.

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