Nove questões freqüentes sobre a investigação qualitativa

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Transcrição:

Nove questões freqüentes sobre a investigação qualitativa Bogdan, R. & Biklen, S.: Nove questões freqüentes sobre a investigação qualitativa in Investigação Qualitativa em Educação Um Introdução à Teoria e aos Métodos, Cap 4, PP 63-71, Porto Editora, 1994. O contacto inicial com a investigação qualitativa leva a que normalmente se coloquem algumas questões. Consideramos nove das questões mais freqüentes. 1. Será possível a utilização conjunta das abordagens qualitativa e quantitativa? Alguns autores utilizam-nas conjuntamente (Cronbach et al., 1980; Miles e Huberman, 1984; Reichardt e Cook, 1974). Por exemplo, tal é prática comum quando inicialmente se constroem questionários para entrevistas abertas. Pode utilizar-se a observação em profundidade para descobrir por que é que duas variáveis. estão estatisticamente relacionadas. Existem estudos que integram componentes qualitativos e quantitativos. Freqüentemente, a estatística descritiva e os resultados qualitativos têm sido apresentados conjuntamente (Mercúrio, 1979). Ainda que seja possível, e nalguns casos desejável, utilizar as duas abordagens conjuntamente (Fielding e Fielding, 1986), tentar conduzir um estudo quantitativo sofisticado ao mesmo tempo que um estudo qualitativo aprofundado pode causar grandes problemas. Particularmente os investigadores' inexperientes que:tentem combinar um bom plano experimental quantitativo com outro qualitativo deparam-se com sérios problemas. Ao invés de conseguirem um produto híbrído de características superiores acabam, normalmente, com algo que não preenche os requisitos de qualidade para nenhuma das abordagens (Locke, Spirduso e Silverman, 1987, p. 96). As duas abordagens baseiam-se em pressupostos diferentes (Smith e lleshusus, 1986). Ainda que seja conveniente verificar-se uma interacção entre dados competitivos, freqüentemente, tais estudos acabam por ser estudos mais sobre método do que sobre o tópico que o investigador queria originalmente estudar. 2. Será que a abordagem qualitativo é verdadeiramente cientifica? No passado, os investigadores educativos baseavam o seu trabalho nas investigações feitas pelos "colegas das ciências exactas". Alguns autores entendiam medida como sinônimo de ciência, e tudo o que saísse deste registo era considerado suspeito, A ironia reside no facto dos cientistas das ciências exactas (por exemplo, a física e a química) não definirem ciência de uma forma tão estreita como aqueles que tentam imitar o seu trabalho, O físico Nobel P. W. Bridgeman afirma o seguinte sobre o método científico: "O método científico não existe como tal. A característica mais importante dos procedimentos do cientista tem sido meramente o utilizar a sua mente da melhor forma possível, sem quaisquer restrições" (Dalton, 1967, p. 60). Dalton (1967) afirma que "muitos físicos, químicos e matemáticos eminentes questionam a existência de um método susceptível de replicação, que todos os investigadores possam ou devam adaptar. As suas investigações têm mostrado que utilizam formas muito diversas e, por vezes, de difícil explicação, de descoberta e resolução de problemas" (p. 60), Alguns autores podem utilizar definições muitos estritas de ciência, apenas considerando científica a investigação dedutiva e de teste de hipóteses. Contudo, parte significativa da atitude científica, como a entendemos, passa por uma mente aberta no respeitante ao método e às provas. A investigação científica implica um escrutínio empírico e sistemático que se baseia em dados. A investigação qualitativa preenche estes requisitos e, no presente livro, procedemos à descrição de algumas das convenções desta tradição científica, que explicitam aquilo que implica a investigação rigorosa e sistemática.

3. Em que é que a investigação qualitativa difere daquilo que pessoas como professores, jornalistas e artistas fazem? Consideremos primeiramente os professores. Muitas pessoas inteligentes e leigas são bons observadores do mundo que as rodeia, procedem a formas sistemáticas de questionação e chegam a conclusões. Os bons professores fazem-no de forma consistente. O que eles fazem é, de certo modo, investigação qualitativa, mas difere nalguns aspectos. Em primeiro lugar, o dever principal do observador é o de conduzir investigação; não tem de perder tempo a elaborar currículos, a dar aulas e a disciplinar os alunos. O investigador pode, pois, devotar-se à investigação de alma e coração. De igual modo, os investigadores procedem com rigor no que diz respeito ao registro detalhado daquilo que descobrem. Conservam os seus dados. Os professores também têm registos, mas estes são muito menos detalhados e de tipos diferentes. Além do, mais, os investigadores não têm tanto interesse pessoal nas observações que fazem e nos resultados que obtêm. A vida, carreira e autoconceito do professor estão sempre intimamente ligados ao modo particular como ele desempenha as suas tarefas. Isto não significa que os professores não possam ultrapassar estas questões, de modo a poderem conduzir investigação, ou que os investigadores não tenham qualquer interesse pessoal nos estudos que realizam. Contudo, para os investigadores o sucesso é definido por realizarem o que se caracteriza por boa investigação, e não por conteúdos ou resultados específicos. Outro aspecto em que o investigador e o professor diferem é que o investigador foi treinado no uso de um conjunto de procedimentos e técnicas, desenvolvidos ao longo dos anos, com o objectivo de recolher e analisar dados. Muitos destes procedimentos e técnicas encontram-se descritos ao longo do presente livro. Finalmente, o investigador baseia-se em teorias e resultados anteriores de investigação, que funcionam como um pano-de-fundo que fornece pistas para dirigir o estudo e permite contextualizar os novos resultados. E relativamente aos jornalistas? Alguns autores associam a investigação qualitativa ao jornalismo com objectivos depreciativos. Não é este o nosso caso. Como sugere a resenha histórica que apresentamos, algumas das tradições da investigação qualitativa estão associadas ao jornalismo. Os jornalistas partilham alguns dos objectivos e normas dos cientistas sociais, chegando mesmo, alguns deles, a efectuarem investigações de maior valor para a ciência social do que aqueles que exibem os seus certificados e títulos acadêmicos (Levine, 1980a). Mesmo assim, acreditamos que os investigadores acadêmicos, de uma forma geral, trabalham de modo diferente dos jornalistas (Grant, 1979). Os jornalistas tendem a interessarem-se mais por acontecimentos e questões particulares e a duvidarem das pessoas que fazem as notícias. Os jornalistas trabalham constrangidos por prazos. Ao invés de passarem anos a recolher e a analisar cuidadosamente os dados, escrevem, normalmente, com base num menor número de provas "a pressão da notícia". Escrevem também, geralmente, para uma audiência diferente, preocupando-se mais em contar do que em analisar uma história. Os jornalistas também não se baseiam numa teoria social. Sendo assim, não existe uma relação entre o que escrevem e as questões teóricas, É evidente que os jornalistas também estão interessados em vender jornais, o que coloca algumas restrições ao que escrevem e ao modo como escrevem. Contudo, por vezes, é muito difícil, se não impossível, traçar a linha entre a investigação em ciências sociais e o bom jornalismo de investigação (ver Douglas 1976; Levine, 1980a). E os artistas? Alguns novelistas e poetas são excelentes observadores do palco humano. Também eles podem não ser tão formais e rigorosos como os investigadores qualitativos no tocante às técnicas de recolha de dados, permitindo-se mais liberdade relativamente aos dados que recolhem. Contudo, muito do que dizem tem interesse para os cientistas sociais. Algumas pessoas encontram-se na interface da ciência social e da arte. Escrevem com um estilo muito envolvente, baseando-se, para escrever, na tradição da ciência social (Coles, 1964; Cottle, 1976a). Possivelmente, os cientistas sociais têm muito a aprender com os novelistas e os ensaístas. Fariam melhor se não os ignorassem e tentassem aprender com eles (ver Eisner, 1980). 4. Será que os resultados qualitativos são generalizáveis? Quando os investigadores utilizam o termo generalização estão normalmente a referir-se ao facto de os resultados de um estudo particular serem aplicáveis a locais e sujeitos diferentes. Por exemplo, se se estudar uma turma particular, é importante saber até que ponto as outras turmas são semelhantes à que foi

estudada. Nem todos os investigadores qualitativos se preocupam com as questões da generalização, tal como a definimos. Os que se preocupam, fazem questão em explicitá-lo. Por exemplo, caso conduzam um estudo de caso em determinada turma, isto não significa necessariamente que tenham intenção, ao relatarem os resultados do estudo, de sugerir que todas as turmas se lhe assemelham. Outros autores que se preocupam com a generalização, tal como a apresentámos até ao momento. podem basear-se noutros estudos para determinarem a representatividade do que encontraram, ou mesmo conduzir um maior número de estudos mais pequenos para mostrar o carácter não idiossincrático do seu trabalho. Por exemplo, num estudo de centros de dia, após ter realizado observações exaustivas num deles durante quatro meses, um investigador que conhecemos pessoalmente efectuou visitas a três outros centros, com o objcctivo de perceber as semelhanças e diferenças entre o centro estudado e os outros (Freedman, 1980). Alguns investigadores qualitativos não pensam na questão da generalização em termos convencionais. Estão mais interessados em estabelecer afirmações universais sobre processos sociais gerais do que considerações relativas aos pontos comuns de contextos semelhantes como turmas. Neste caso, a ideia é a de que o comportamento humano não é aleatório ou idiossincrático. Deste modo, a preocupação central não é a de se os resultados são susceptíveis de generalização, mas sim a de que outros contextos e sujeitos a eles podem ser generalizados. Num estudo que efectuámos numa unidade de cuidados intensivos de um hospital universitário, estudámos o modo como o pessoal e os pais comunicavam sobre a situação das crianças. À medida que o estudo prosseguia, fomos chegando à conclusão que o pessoal não só diagnosticava as crianças, como também classificava as famílias. Estas avaliações dos pais funcionavam como critério para os profissionais decidirem que informação lhes prestar e como a prestar. Ao reflectir sobre os encontros entre pais e professores em escolas públicas e outras situações em que os profissionais detêm informações sobre as crianças a que os pais podem desejar ter acesso, começámos a identificar paralelos. Resumindo, começámos a centrar-nos num processo social geral que surgia claramente num contexto particular. Uma das vias que nos encontramos presentemente a prosseguir é a possibilidade de generalização dos resultados da unidade de cuidados intensivos, não a outros locais semelhantes, mas a outros contextos, tais como as escolas, nos quais os profissionais interagem com os pais. A abordagem à generalização que acabámos de descrever é adoptada pelos investigadores que se interessam pelo desenvolvimento do que se designa por uma teoria fundamentada. Por sua vez, ainda outros investigadores qualitativos pensam sobre as questões da generalização, entendendo que o seu trabalho é o de documentar cuidadosamente um determinado contexto ou grupo de sujeitos e que é tarefa dos outros aperceber o modo como isto se articula com o quadro geral. Mesmo uma descrição de algo particular tem valor, porque as teorias necessitam de saber explicar todos os acontecimentos. Entendem o seu trabalho como tendo o potencial para criar anomalias que cabe aos outros investigadores explicar. Parte da explicação pode implicar a necessidade de alargar a noção que temos do fenómeno estudado. Antes dos gorilas terem sido estudados mediante uma observação detalhada, no seu ambiente natural, agindo como Ihes é próprio, eram considerados extremamente agressivos e perigosos para os humanos e outros animais. George Schaller foi estudar os gorilas no seu ambiente natural e descobriu que o modo como se comportavam não se assemelhava ao perfil estabelecido, com base nos gorilas em cativeiro. Constatou que eram tímidos e envergonhados, preferindo fugir ou evitar as pessoas em vez de as atacar. Contudo, erguer-se-iam e bateriam no peito de forma ritual quando desafiados. As questões relativas ao modo como os gorilas são e em que circunstâncias eles se comportam da forma descrita não podem ser respondidas por uma investigação de estudo de caso tão limitada, mas os gorilas de Schaller têm necessariamente de ser tomados em consideração em quaisquer discussões futuras sobre o comportamento desta espécie (Schaller, 1965; Waldorf e Reinannan, 1975).

5. E os efeitos nos dados das opiniões, preconceitos e outros enviesamentos do investigador? Os investigadores qualitativos, tanto no âmbito da sociologia como no da antropologia, têm sido acusados ao longo dos anos do facto de ser excessivamente fácil que os seus preconceitos e atitudes influenciem os dados. Particularmente quando os dados têm de ser "processados" pela mente do investigador antes de serem postos no papel, surgem as preocupações relativas a riscos de subjectividade. Será que o observador se limita a registar aquilo que pretende ver e não o que de facto se passa? Os investigadores qualitativos preocupam-se com os efeitos que a sua subjectividade possa ter nos dados que produzem (LeCompte, 1987). Contudo, aquilo que os investigadores qualitativos tentam fazer é estudar objectivamente os estados subjectivos dos seus sujeitos. Ainda que a ideia de que os investigadores sejam capazes de ultrapassar alguns dos seus enviesamentos possa, inicialmente, ser difícil de aceitar, os métodos que eles utilizam auxiliam neste processo. Por um lado, os estudos qualitativos não são ensaios impressionísticos elaborados após uma visita rápida a determinado local ou após algumas conversas com uns quantos sujeitos. O investigador passa uma quantidade de tempo considerável no mundo empírico recolhendo laboriosamente e revendo grandes quantidades de dados. Os dados carregam o peso de qualquer interpretação, deste modo, o investigador tem constantemente de confrontar as suas opiniões próprias e preconceitos com eles. Além do mais, muitas das opiniões e preconceitos são bastante superficiais. Os dados recolhidos proporcionam uma descrição muito mais detalhada dos acontecimentos do que mesmo a mente mais criativamente preconceituosa poderia ter construído, antes do estudo ser efectuado. Adicionalmente, o objectivo principal do investigador é o de construir conhecimento-e não o de dar opiniões sobre determinado contexto. A utilidade de determinado estudo é a capacidade que tem de gerar teoria, descrição ou compreensão. O facto de determinado estudo conduzir à acusação de alguém por determinado estado de coisas ou à rotulagem de uma determinada escola como "boa" ou "má", ou, ainda, a apresentação de uma análise prejudicial, pode levar a considerá-lo como superficial. Os investigadores qualitativos acreditam que as situações são complexas, e, deste modo, tentam descrever muitas dimensões e não restringir o campo de observação. Além do mais, como vamos discutir detalhadameruc no capítulo III, os investigadores qualitativos protegem-se dos seus enviesamentos registando notas de campo detalhadas que incluem reflexões sobre a sua própria subjectividade. Alguns investigadores qualitativos trabalham em equipa e sujeitam as suas notas de campo às críticas dos colegas como forma de se protegerem dos enviesamentos. Deve ser acentuado que nos estamos a referir ao limitar dos enviesamentos dos investigadores, não à sua total eliminação. Os investigadores qualitativos tentam identificar os seus estados subjectivos e o efeito destes nos dados, mas não acreditam que possam ser 100% bem sucedidos. Todos os investigadores são presa dos enviesamentos inerentes ao observador. Quaisquer questões ou questionários, por exemplo, reflectem os interesses daqueles que os constroem, o mesmo se passando nos estudos experimentais. Os investigadores qualitativos tentam reconhecer e tomar em consideração os seus enviesamentos, como forma de lidar com ele. 6. Será que a presença do investigador não vai modificar o comportamento das pessoas que pretende estudar? A resposta é afirmativa e tais modificações são designadas por efeito do observador". Praticamente todas as investigações são afligidas por este problema. Por exemplo, os inquéritos que pretendem obter a opinião das pessoas. O facto de pedir às pessoas que se sentem e que preencham um questionário modifica o seu comportamento. Será que perguntar às pessoas a sua opinião não pode levar à elaboração de uma opinião? Alguns estudos experimentais criam um mundo totalmente artificial (no laboratório) para observar o comportamento das pessoas. O facto das outras abordagens à investigação também padecerem do mesmo problema não significa que os investigadores qualitativos tomem o "efeito do observador" de ânimo leve. A história dos métodos qualitativos mostra-nos que os seus proponentes têm tomado o problema em consideração e desenvolvido procedimentos com o objectivo de o minimizar.

Os investigadores qualitativos tentam interagir com os seus sujeitos de forma natural, não intrusiva e não ameaçadora. Quanto mais controlada e intrusiva for a investigação, maior a probabilidade de se verificarem "efeitos do observador" (Douglas, 1976, p. 19). Se as pessoas forem tratadas como "sujeitos de investigação", comportar-se-ão como tal, o que é diferente do modo como normalmente se comportam. Como os investigadores qualitativos estão interessados no modo como as pessoas normalmente se comportam e pensam nos seus ambientes naturais, tentam agir de modo a que as actividades que ocorrem na sua presença não difiram significativamente daquilo que se passa na sua ausência, De modo semelhante, como os investigadores neste tipo de investigação se interessam pelo modo como as pessoas pensam sobre as suas vidas, experiências e situações particulares, as entrevistas que efectuam são mais semelhantes a conversas entre dois confidentes, do que a uma sessão formal de perguntas e respostas entre um investigador e um sujeito. "Esta é a única maneira de captar aquilo que é verdadeiramente importante do ponto de vista do sujeito. Nunca é possível ao investigador eliminar todos os efeitos que produz nos sujeitos ou obter uma correspondência perfeita entre aquilo que deseja estudar e - o "meio ambiente natural" - e o que de facto estuda - "um meio ambiente com a presença do investigador". Pode, contudo, compreender os efeitos que produz nos sujeitos, mediante um conhecimento aprofundado do contexto, utilizando-o para construir uma consciência mais ampla da natureza da vida social. Os investigadores aprendem a interpretar alguns dos seus dados em função do contexto (Deutscher, 1973). É freqüente que os sujeitos tentem manipular as impressões e actividades dos investigadores, particularmente nas fases iniciais do projecto (Douglas, 1976). Os professores, por exemplo, podem não gritar com os alunos na presença do investigador e, em geral, terem um comportamento mais reservado. É importante tomar em consideração o facto de que existe um observador exterior. Os directores podem agir do modo que pensam ser mais consentâneo com o seu papel, modificando as suas rotinas habituais. É, pois, muito conveniente saber aquilo que os directores consideram ser consentâneo com o seu papel (ver Morris e Hurwitz,1980). As pessoas revelam tanto de si próprias nas suas reacções aos que habitualmente as rodeia, como aos estranhos, desde que estejamos cientes das diferenças. 7. Será que dois investigadores que estudem independentemente o mesmo local ou os mesmos sujeitos chegarão as mesmas conclusões? Esta questão está associada com o conceito de garantia. Nalgumas abordagens de investigação existe a expectativa de que se verificará consistência entre os resultados de observações feitas por diferentes investigadores ou pelo mesmo investigador ao longo do tempo. Os investigadores qualitativos não partilham, totalmente esta expectativa (Agar, 1986, pp. 13-16; Heider, 1988). Os investigadores em educação são oriundos de uma diversidade de posições é tem interesses diversos. Alguns estudaram psicologia, outros sociologia, outros desenvolvimento infantil e ainda outros antropologia ou assistência social. O treino académico influencia as questões que o investigador coloca. Por exemplo, ao estudar determinada escola, os assistentes sociais podem estar interessados na origem social dos alunos, os sociólogos podem centrar a atenção na estrutura social da escola e os psicólogos desenvolvimentistas podem desejar estudar o autoconceito dos alunos mais jovens. Deste modo, assistentes sociais, sociólogos e psicólogos, em função dos seus interesses diferentes, podem passar períodos de tempo diferentes em diferentes locais da escola ou a falar com diferentes pessoas. Recolherão diferentes tipos de dados e chegarão a conclusões diferentes. De igual modo, as perspectivas teóricas que os orientarão implicarão que os modos de estruturar o respectivo trabalho serão diferentes. Nos estudos qualitativos os investigadores preocupam-se com o rigor e abrangência dos seus dados. A garantia é entendida mais como uma correspondência entre os dados que são registados e aquilo que de facto se passa no local de estudo do que como uma consistência literal entre diferentes observações. Como pode ser visto pela exposição feita, dois investigadores que estudem o mesmo local podem obter dados diversos e chegar a conclusões diferentes. Ambos os estudos podem ser consistentes. Só se poderiam levantar dúvidas sobre a sua consistência se os resultados fossem contraditórios ou incompatíveis.

8. Qual o objectivo da investigação quatitativa? Como sugerimos anteriormente, existe variedade no trabalho feito sob a designação de investigação qualitativa. Nem todos os investigadores qualitativos partilham o mesmo objectivo. Alguns entendem o seu trabalho corno uma tentativa para desenvolver "teorias fundamentadas" (groundcd theory). Outros acentuam a necessidade de construir conceitos heurísticos. A descrição é também outro dos objectivos. Se incluirmos a investigação qualitativa aplicada na discussão dos objectivos a diversidade destes será ainda maior. Ainda que existam diferenças óbvias nas diferentes abordagens à investigação qualitativa, verificase algum acordo entre os investigadores no tocante aos objectivos do seu trabalho. Em contraste com os investigadores quantitativos, os qualitativos não entendem o seu trabalho como consistindo na recolha de "factos" sobre o comportamento humano. os quais, após serem articulados, proporcionariam um modo de verificar e elaborar uma teoria que permitisse aos cientistas estabelecer relações de causalidade e predizer o comportamento humano. Os investigadores pensam que o comportamento humano é demasiadamente complexo para que tal seja possível, considerando a busca de causas e predições negativamente, no sentido de que esta dificulta a capacidade de apreender o carácter essencialmente interpretativo da natureza e experiência humanas. O objectivo dos investigadores qualitativos é o de melhor compreender o comportamento e experiência humanos. Tentam compreender o processo mediante o qual as pessoas constroem significados e descrever em que consistem estes mesmos significados. Recorrem à observação empírica por considerarem que é em função de instâncias concretas do comportamento humano que se pode reflectir com maior clareza e profundidade sobre a condição humana. Alguns investigadores qualitativos (incluindo investigadores feministas e de investigação-acção) que se dedicam ao estudo de pessoas marginalizadas têm, também, como objectivo, a intenção de contribuir para as condições de vida dos seus sujeitos (Roman e Apple, 1990; Lather, 1988). Estabelecem diálogos com os sujeitos relativamente ao modo como estes analisam e observam os diversos acontecimentos e actividades, encorajando-os a conseguirem maior controlo sobre as suas experiências. 9. Em que é que diferem a investigação qualitativa e quantitativa? Muitos autores se debruçaram sobre as diferenças teóricas, técnicas e estratégicas entre as abordagens qualitativa e quantitativa. É frequente a abordagem qualitativa ser apresentada como contrastando com a quantitativa (Bruyn, 1966: Rist, 1977). Ainda que um certo número de comparações seja inevitável, tentamos, no presente livro, concentrarmo-nos nas questões referentes à descrição e condução da abordagem qualitativa. Sugerimos-lhe outras fontes relativas à discussão das diferenças entre as duas abordagens (ver Campbell, 1978; Eisner, 1980; Guba e Lincoln, 1982; Lincoln e Guba, 1985; Smith e Heshusius, 1986). Ainda que não tenhamos sido exaustivos na discussão de tais diferenças, a figura 1.1 (pp. 72-74) sumaria as características de ambas as abordagens. A figura serve igualmente como um sumário útil das diferentes questões que fomos levantando ao longo do presente capítulo, muitas das quais vamos desenvolver nas páginas seguintes. Figura 1.1 Relação com sujeitos Instrumentos QUALITATIVO _empatia _ênfase na confiança _igualdade _contato intenso _ o sujeito como amigo _ser natural _ gravador _transcrição (freqüentemente a pessoa do investigador é o único instrumento.) QUANTITATIVO _circunscrita _curta duração _distante _sujeito-investigador _inventários _questionários _índices _computadores

Análise de dados Problemas com o uso das abordagens Objetivos Plano _contínua _modelos, temas, conceitos _indutivo _indução analítica _método comparativo constante _demorada _difícil a síntese de dados _ garantia _os procedimentos não são estandartizados _dificuldade em estudar populações de grandes dimensões _desenvolver conceitos sensíveis _descrever realidades múltiplas _teoria fundamentada _desenvolver a compreensão _progressivo, flexível, geral _intuição relativa ao modo de avançar _escalas _resultados de testes _dedutiva _verifica-se após a conclusão dos dados _estatística _controlo de outras variáveis _reificação _intrusão _validade _teste de teorias _encontrar factos _descrição estatística _encontrar relações entre variáveis _predição _estruturado, predeterminado, formal, específico _plano detalhado de trabalho Elaboração das propostas de investigação Dados Amostra Técnicas ou métodos _breves _especulativas _sugere áreas para as quais a investigação possa ser relevante _normalmente escritas após a recolha de alguns dados _parcas em revisão de literatura _descrição geral da abordagem _descritivos _documentos pessoais _notas de campo _fotografias _o discurso dos sujeitos _documentos oficiais e outros _pequena _não representativa _amostragem teórica _observação _estudo de documentos vários _observação participante _entrevista aberta Expressões/ _ etnográfico _experimental _extensas _detalhadas e específicas nos objetivos _detalhadas e específicas nos procedimentos _longa revisão da literatura _escrita antes da recolha de dados _especificações de hipóteses _quantitativos _codificação quantificável _contagens, medidas _variáveis operacionalizadas _estatística _ampla _estratificada _grupos de controlo _precisa _seleção aleatória _controlo de variáveis extrínsecas _experimentos _inquéritos _entrevista estruturada _quase experimentos _observação estruturada _conjunto de dados

Frases associadas com a abordagem Conceitoschaves associados com a abordagem Afiliação teórica Afiliação acadêmica _trabalho de campo _dados qualitativos _interacção simbólica _perspectiva interior _naturalista _etnometodológico _descritivo _observações participante _fenomenológico _Escola de Chicago _documentário _história de vida _estudo de caso _ecológico _émico _significado _compreensão do senso comum _pôr entre parênteses _compreensão _definição da situação _vida quotidiana _processo _ordem negociada _para todos os propósitos práticos _construção social _teoria fundamentada _interacção simbólica _etnometodologia _fenomenologia _cultura _idealismo _sociologia _história _antropologia _dados quantitativos _perspectiva exterior _empírica _positivista _factos sociais _estatística _ética _variável _operacionalização _garantia _hipóteses _validade _significância estatística _replicação _predição _funcionalismo estrutural _realismo, positivismo _comportamentalismo _empirismo lógico _teoria das sistemas _psicologia _economia _sociologia _ciência política Bogdan, R. & Biklen, S.: Nove questões freqüentes sobre a investigação qualitativa in Investigação Qualitativa em Educação Um Introdução à Teoria e aos Métodos, Cap 4, PP 63-71, Porto Editora, 1994.