A valorização da dimensão sonora na música instrumental: uma tendência na música contemporânea brasileira

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Transcrição:

A valorização da dimensão sonora na música instrumental: uma tendência na música contemporânea brasileira Valéria Bonafé USP valmcb@uol.com.br Resumo: Este artigo apresenta algumas idéias que fundamentam meu projeto de pesquisa de doutorado iniciado em 2012 na ECA-USP, sob orientação do Prof. Dr. Marcos Branda Lacerda, com apoio FAPESP. O projeto aborda uma tendência na música brasileira de concerto dos séculos XX e XXI, reunindo compositores que apresentam estratégias composicionais dirigidas à valorização da dimensão sonora na música instrumental, tomando a idéia de som como um importante elemento estruturador do tempo e da forma musical. Palavras-chave: música contemporânea brasileira, análise musical, dimensão sonora, som. The valorization of the sonorous dimension in instrumental music: a tendency in contemporary Brazilian music Abstract: This article presents some ideas that bases my doctoral research project started in 2012 at ECA-USP, under the supervision of Prof. Dr. Marcos Branda Lacerda, with support from FAPESP. The project addresses a tendency in Brazilian concert music of the 20th and 21st Centuries, bringing together composers who present compositional strategies aimed at the valorization of the sonorous dimension in instrumental music, taking the idea of sound as an important structural element of time and musical form. Keywords: contemporary Brazilian music, musical analysis, sound dimenstion, sound. 1. Introdução Não há música que não seja escrita com sons. Porém, nem todas as músicas conferem à dimensão sonora 1 que se evita aqui chamar apenas de timbre já que um conceito derivado da idéia de som parece abarcar melhor a complexidade implicada na combinação de parâmetros diversos agenciados simultaneamente no tempo, como alturas, durações e intensidades, além de aspectos como articulação, densidade, superfície etc. um papel central na composição. No campo da música instrumental européia, etendência de uma música escrita com sons isto é, aquela onde a dimensão sonora não aparece apenas como um elemento de importância secundária, como resultante, mas sim como elemento estruturador, responsável pela construção e articulação do discurso musical poderia ter sua genealogia traçada a partir de Debussy (1862-1918), passando por compositores como Varèse (1883-1965), Messiaen (1909-1992), Scelsi (1905-1988), Xenakis (1922-2001) e Ligeti (1923-2006), e desembocando na música espectral com Grisey (1946-1998) e Murail (1942) 2. A hipótese deste trabalho é a de que esta tendência identificada na música de

concerto européia a partir do século XX permeou e ainda permeia a música brasileira de concerto, ainda que de maneira difusa e com características sonoras particulares. É possível pensar aqui em compositores de diferentes gerações, como Heitor Villa-Lobos (1887-1959), José Antônio Almeida Prado (1943-2010) e Silvio Ferraz (1959). 2. A valorização da dimensão sonora: Debussy Na introdução de seu livro Estética da Sonoridade (2011), Didier Guigue traça uma genealogia da idéia de som na música européia, identificando Claude Debussy como o primeiro compositor a trabalhar com o som de maneira estrutural dentro da composição. Reportando-se aos séculos anteriores, Guigue comenta alguns casos excepcionais de compositores que dedicaram à sonoridade 3 um papel mais relevante dentro de suas obras, como Rameau, Bach, Beethoven e Berlioz. Porém, além de não sistematizadas, essas manifestações aprofundavam a dimensão sonora das peças mas ainda não faziam dela um elemento estrutural, dinâmico. Para Guigue, é somente com Debussy que a sonoridade passa a ser tratada como material composicional, como componente dinâmico para delimitação do tempo e da forma musical. Minha meta é mostrar com que meios Debussy consegue integrar a sonoridade no processo de gestação da obra, e, nos casos em que ela se encontra sistematicamente associada à articulação de um pensamento formal, como alcança o primeiro plano hierárquico, podendo submeter à sua lógica dinâmica o restante do material, tanto no nível mais baixo, a organização das alturas, como no topo, a organização formal em grande escala (GUIGE, 2011:28). Ao privilegiar a utilização de materiais simétricos e não-direcionais, e ao recusar as tradicionais tendências de tensão e relaxamento próprias à forma orgânica, Debussy constrói peças onde a escuta da sonoridade passa ao primeiro plano. Adorno (2004:144-146) identifica em Debussy o início de uma nova estética que inaugura a valorização do espaço (em oposição à valorização do tempo) e que, consequentemente, opera por procedimentos mais ligados à idéia de montagem do que à idéia de organicidade (esta reservada à Segunda Escola de Viena). Esse tipo de configuração se manifesta com grande força nos dois cadernos de Preludes (1909-1913). No prelúdio La fille aux cheveux de lin, por exemplo, esse efeito é provocado por uma construção melódica que se desenrola sobre uma escala pentatônica, essencialmente estável por conta de sua configuração intervalar (ainda que, em certa medida, submetida a uma lógica tonal). Soma-se a isso o perfil da melodia que apresenta um movimento pendular e

a reiteração de uma mesma figura rítmica (colcheia e duas semicolcheias). Do ponto de vista formal, o efeito de estaticidade e não-direcionalidade é provocado por um processo de nãodesenvolvimento desses materiais rítmico-melódicos. Assim, não se trata de acompanhar o desenvolvimento de uma determinada melodia no decorrer da peça mas sim de observar com qual colorido ela se apresenta a cada vez. O tratamento harmônico dos blocos verticais também contribui para uma escuta mais focada em entidades sonoras do que em funções harmônicas já que os acordes se conectam, em geral, através de paralelismos. Como aponta Adorno (2004:144), o ouvido deve orientar-se de maneira diferente para compreender exatamente Debussy, para entendê-lo, não como um processo de tensões e resoluções, mas como uma justaposição de cores e superfícies, como a de um quadro. Exemplo 1: Debussy, La fille aux cheveux de lin (1909-10), c.1-6. A partir dessa perspectiva de uma nova estética fundada por Debussy, é possível indicar alguns compositores que também passariam a tomar o som como material composicional, porém não mais vinculados a um universo tonal. Ainda na tradição da música francesa, este seria o caso de Edgard Varèse que já nos anos 20 trabalharia de maneira sistematizada com idéias como a de massa sonora e com a incorporação do ruído dentro de conjuntos puramente instrumentais e de Olivier Messiaen que, em última instância, passaria a trabalhar a própria harmonia como timbre, lembrando aqui de noções como a de som-cor ou de acordes vitrais (accords tournants). O surgimento da chamada musique concrète no fim dos anos 40, com Pierre Schaeffer e Pierre Henri, completa este panorama esquemático da música francesa na primeira metade do século XX. Se Debussy apresenta uma valorização significativa da dimensão sonora ainda num contexto tonal, e Varèse e Messiaen, posteriormente, num contexto nãotonal, na música concreta francesa há uma superação do paradigma da nota e qualquer som torna-se passível de ser utilizado como material para a composição. Em Traité des Objets Musicaux, publicado em 1966, Pierre Schaeffer inaugura a idéia de objeto sonoro e ocupa-se, essencialmente, de pensar novas formas de escuta, propondo um solfejo que se concentre sobre aspectos concretos do som a partir de uma tipo-morfologia do objeto sonoro.

A linhagem da música francesa que passa por Berlioz, Debussy, Messiaen e Varèse e esteve preocupada com o alargamento da importância do material sonoro como elemento composicional vai dar suporte ao trabalho de Pierre Schaeffer e dos músicos concretos no sentido de privilegiar as características perceptuais do objeto sonoro na composição concreta (IAZZETTA, 1999: s/n). Afastando-se de uma influência mais direta de Debussy e saindo do ambiente musical francês, destaca-se também dentro desse panorama a obra de Iannis Xenakis e György Ligeti que também apresentam projetos composicionais voltados à valorização da dimensão espacial porém revisando sua articulação com a dimensão temporal através de estratégias processuais. As idéias de Xenakis e Ligeti estão diretamente relacionadas ao pensamento de Varèse, para quem a forma musical passaria a ser compreendida justamente como o resultado de um processo. Por volta dos anos 50, Xenakis inaugura a idéia de música estocástica, propondo o controle macroscópico de massas sonoras através de distribuições estatísticas e probabilísticas do material. Assim como em Xenakis, em Ligeti, há a idéia de construção de um continuum sonoro, em perpétua transformação. Porém, distante da idéia de música estocástica, Ligeti busca através da micropolifonia um controle detalhado de parâmetros mínimos com vistas à modelação de texturas mais ou menos permeáveis, que reajam de maneira particular a eventos contrastantes. Retornando à música francesa, este panorama inclui ainda a escola espectral, que teve início na década de 70, em especial os compositores Gérard Grisey e Tristan Murail. A música espectral busca levar ao extremo a idéia de que a forma musical nada mais é o do que o resultado de um processo de transformação sonora, isto é da passagem de um estado a outro. Como aponta Anderson (1993:321), esta noção processual herdada de Ligeti marca uma diferença essencial entre a música de Grisey e Murail, e a de compositores como Debussy e Messiaen. Enquanto os últimos lidam com a idéia de descontinuidade e justaposição de objetos sonoros (impulsionando a dimensão espacial), os primeiros buscam obsessivamente uma continuidade orgânica (retomando a força da dimensão temporal). Além da influência ligetiana, os espectralistas travaram diálogo com a música do compositor italiano Giacinto Scelsi, cuja produção, especialmente a partir dos anos 60, se concentra em um trabalho detalhado de variações internas do som. Após seu contato com a música indiana e com a concepção de som poder cósmico, como energia, Scelsi passará a tratar o som como um agregado de três dimensões, como uma entidade esférica, incorporando, além das tradicionais dimensões alturae duração, também a idéia de profundidade, reservada ao trabalho de exploração tímbrica. É evidente que, ainda que aqui agrupados dentro de uma mesma tendência, cada

um dos compositores mencionados neste panorama apresenta maneiras particulares de trabalhar com a dimensão sonora, partindo de estratégias composicionais próprias e delineando, assim, um abordagem específica dentro deste amplo campo estético. Em Debussy a dimensão sonora vem à tona através de idéias formais como as de estaticidade e montagem; em Varèse, a questão está mais vinculada a formações harmônicas ruidosas potencializadas por orquestrações sui generis; em Ligeti a dimensão sonora é enfatizada através do agenciamento textural de múltiplas camadas que se desenrolam num plano temporal contínuo; na música espectral, trata-se também de um processo contínuo de passagem de um estado a outro, porém, norteado por modelos acústicos; em Scelsi há um trabalho de microvariações internas ao som e de uma concepção de tempo espiral. Portanto, esta tendência que se buscou aqui mapear de maneira bastante esquematica possui múltiplas facetas complementares, norteadas por uma busca comum ligada à valorização da dimensão sonora. Reler a história da música desde o século passado significa, em parte, ler a história movimentada da emergência do som, uma história plural, pois que composta de várias evoluções paralelas, as quais, todas, levam de uma civilização do tom para uma civilização do som (SOLOMOS apud GUIGUE, 2011:19). 3. Ressonâncias na música brasileira: Villa-Lobos No contexto da música brasileira, Villa-Lobos pode ser considerado o primeiro compositor a trabalhar com a dimensão sonora de maneira estrutural, especialmente durante seu segundo período criativo (1918-1929), que inclui peças como Noneto (1923), Quatour (1928) e Rudepoema (1926), além das três séries de A prole do bebê (1918, 1921 e 1926) e dos ciclos Choros (1920-1929). Em seu artigo Aspectos harmônicos do Choros nº 4 de Villa- Lobos e a linguagem modernista (2012), Marcos Lacerda identifica ressonâncias da música de Debussy e de Stravinsky na obra de Villa-Lobos 4. A despeito das idiossincrasias dos três compositores, Lacerda demonstra equivalência não somente nos gêneros harmônicos 5 utilizados mas também na forma como são empregados por Villa-Lobos, por um lado, e por Debussy e Stravinsky, por outro. Como desdobramento a esta maneira de emprego dos gêneros harmônicos, surgiriam também paralelos no desenvolvimento formal das peças. Segundo Lacerda (2012:20), no Choros nº 4, a organização formal é marcantemente realizada por trechos em que se alternam os conteúdos harmônicos, e é semelhante àquela empregada por Debussy e Stravinsky. A partir desta análise, pode-se inferir que a utilização de gêneros justapostos ou sobrepostos está intimamente vinculada às idéias de fragmentação horizontal (montagem e corte) e estratificação vertical (textura heterogênea), respectivamente.

Aspectos relativos à idéia de montagem foram comentados anteriormente em contexto debussyniano. Um olhar sobre a peça O Passarinho de Pano, de Villa-Lobos, que integra o ciclo A prole do bebê nº 2 (1921), para piano, pode esclarecer estratégias de estratificação vertical que resultam na constituição de um tecido heterogêneo. Porém, aqui, não será observado o material harmônico empregado nas diferentes camadas mas sim a constituição de gestos próprios a cada uma delas. No início da peça, sobre uma camada em alta velocidade, caracterizada por trillos ininterruptos na região médio-aguda do piano, Villa- Lobos sobrepõe uma espécie de canto de pássaro num registro ainda mais agudo, com apoio melódico sobre uma nota la, com caráter vivo e com ritmo bem marcado. As duas camadas são entrecortadas por pequenos agrupamentos de apojaturas ou por fluxos melódicos direcionais em fusas, que atuam inicialmente como um elemento de ornamentação, dando maior mobilidade ao trecho e complexificando essa polifonia inicial entre camadas com diferentes características temporais. Assim, já no início da peça tem-se o choque entre um tempo mais liso (trillos) e outro estriado (canto de pássaro). Exemplo 2: Villa-Lobos, O passarinho de pano, do ciclo A prole do bebê nº 2 (1921), c.1-12. Mais adiante será apresentada uma textura ainda mais densa e complexa: além de uma camada formada pelos gesto de trillos e outra formada pelo gesto do canto de pássaro (ainda entrecortados pelos agrupamentos rápidos), será sobreposto também um ostinato harmônico em tempo lento.

Exemplo 3: Villa-Lobos, O passarinho de pano, do ciclo A prole do bebê nº 2 (1921), c.67-76. Além do fato de cada uma das camadas possuir uma forte identidade especialmente por condensarem um número restrito de alturas ou intervalos, uma posição fixa no registro, uma figuração rítmica própria e uma espessura (ponto, linha ou bloco) constante Villa-Lobos opera deslocamentos entre essas camadas evitando qualquer tipo de regularidade no jogo polifônico estabelecido entre elas. Através desses procedimentos de agenciamento entre camadas com temporalidades divergentes compostas por materiais fixos (gestos) cria-se uma espécie de textura heterofônica. Segundo Salles (2009:81), na Prole nº 2 Villa-Lobos atingiu um estágio de máxima autonomia entre as camadas texturais, já que os componentes dessas camadas preservam suas propriedades e se chocam livremente entre si [ ]. Villa-Lobos talvez tenha sido um caso isolado de um autor da música brasileira da primeira metade do século XX a ter experimentado estratégias de manipulação da dimensão sonora. É curioso que este seu experimentalismo não tenha reverberado na produção de seus contemporâneos e de gerações subseqüentes, ao contrário, que tenha sido até evitado sendo associado a uma suposta deficiência de formação acadêmica. Talvez porque os debates

musicais que cercaram a era modernista no país tenham sido centrados em questões mais ligadas à busca de uma identidade nacional. Segundo Salles (2009:97), no início da década de 30 que marca o início da sua terceira fase criativa o próprio Villa-Lobos abandonaria tais experimentalismos em favor de uma música mais acessível aos ouvidos brasileiros, atitude esta que estaria intimamente vinculada à sua integração no projeto populista de Estado Novo. A idéia de um trabalho composicional que considera a dimensão sonora como elemento agenciador do tempo e da forma musical volta a ganhar força na música brasileira mais recente. Haveria, assim, um hiato entre a produção dos anos 20 de Villa-Lobos e a retomada da idéia de uma música escrita com sons, especialmente a partir dos anos 70. 4. Considerações finais Neste artigo foram comentadas algumas estratégias composicionais de Debussy e Villa-Lobos dirigidas à valorização da dimensão sonora. A partir de um breve olhar sobre La fille aux cheveux de lin (1909-10) e O Passarinho de Pano (1921) foi possível verificar diferentes propostas para o agenciamento formal das peças: a idéia de montagem (eixo horizontal) em Debussy e a idéia de estratificação textural (eixo vertical), em Villa-Lobos. Nos dois casos, estes novos agenciamentos formais apontam para uma mudança de paradigma da nota para o som, como aponta Didier Guigue: Ao abandonar a nota pelo som, toda a sofisticada combinatória baseada numa organização hierárquica de elementos abstratos deixa de operar. Privada desse trunfo, a composição pelo som demanda, de imediato, meios originais para produzir energia cinética [ ]. A descontinuidade adjacente se torna um meio privilegiado de articulação de superfície. Ela vai gerar uma categoria de formas musicais totalmente nova, cujo emblema histórico é a Symphonie pour instruments à vents (Sinfonia para Instrumentos e Ventos) [sic] de Stravinsky, formas que serão baseadas, dessa vez, em processos aditivos (2011:74, grifo nosso). Debussy e Villa-Lobos aparecem, assim, como modelos iniciais para este projeto de pesquisa que tem por objeto central o repertório da música contemporânea brasileira, em especial aquele que manifesta conexões com esta tendência aqui esboçada.

Referências ADORNO, Theodor. Filosofia da nova música. São Paulo: Perspectiva, 2004. ANDERSON, Julian. In Harmony. The Musical Times, vol. 134, n. 1804, pp. 321-323, 1993. DEBUSSY, Claude. Preludes [La fille aux cheveux de lin]. Partitura. Paris: Durand & Cie, 1910. GUIGUE, Didier. Estética da sonoridade. São Paulo: Perspectiva, 2011. IAZZETTA, Fernando. Material, Forma e Processo na Música Eletroacústica. Anais do VI Simpósio Brasileiro de Computação e Música, Rio de Janeiro, 1999. Disponível em http://www.eca.usp.br/iazzetta/papers/sbcm99.htm. Acessado em 02/09/2011. LACERDA, Marcos. Aspectos harmônicos do Choros nº 4 de Villa-Lobos e a linguagem modernista. Revista Brasileira de Música, Rio de Janeiro, vol. 24, pp. 276-296, 2012. SALLES, Paulo de Tarso. Villa-Lobos: processos composicionais. Campinas: Editora da Unicamp, 2009. VILLA-LOBOS, Heitor. A prole do bebê nº 2 [O passarinho de pano]. Partitura. Paris: Max Eschig, 1927. 1 Considera-se uma música que valoriza a dimensão sonora aquela que favorece a escuta da movimentação de massas, objetos, ressonâncias, timbres, texturas etc, em lugar de figurações rítmico-melódico-harmônicas (que, apesar disso, podem estar implicadas). 2 Estas são apenas algumas referências iniciais que evocam o tema da sonoridade maneira mais direta. A tendência de uma música que valoriza a dimensão sonora como elemento estruturador parece ter se manifestado em maior ou menor grau em um grande número de compositores, se configurando talvez como uma tendência de época. Vale lembrar a conclusão de Makis Solomos em seu prefácio ao livro Estética da Sonoridade, de Didier Guigue: Mesmo sendo verdade que a singularidade é um dos traços maiores das obras de música contemporânea, a recentragem no som focada igualmente por outros universos sonoros atuais é o que elas têm em comum (GUIGUE, 2011:24). 3 Didier Guigue não utiliza o termo dimensão sonora mas sim sonoridade, e se refere a esta tendência como estética da sonoridade (termo apresentado já no título de seu livro). Porém, inicialmente, por não pretendermos uma identificação total com a proposta de Guigue, optamos por utilizar o termo dimensão sonora. 4 Em seu livro Villa-Lobos: processos composicionais (2009), Paulo de Tarso Salles destaca também a conexão do trabalho de Villa-Lobos com o de Varèse, especialmente no que se refere à incorporação do ruído e a um trabalho concentrado sobre a manipulação processual de massas sonoras. também aponta que algumas das peças escritas nesse segundo período criativo de Villa-Lobos antecipam a idéia de continuum sonoro, tão cara a Xenakis, Ligeti e aos compositores espectralistas após 1959 (2009:73). 5 Segundo Lacerda, em diálogo com Allen Forte, gênero harmônico é um conjunto de notas de amplo reconhecimento; uma escala vinculada a algum tipo de tradição: um elemento característico (2012:7).