ARQUIMEDES E A QUADRATURA DA PARÁBOLA VALOR PEDAGÓGICO DAS PROVAS ARQUIMEDEANAS

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Transcrição:

ARQUIMEDES E A QUADRATURA DA PARÁBOLA VALOR PEDAGÓGICO DAS PROVAS ARQUIMEDEANAS Regina de Cassia Manso de Almeida Universidade Federal Fluminense regimans@gmail.com RESUMO Sabemos que Arquimedes (200 a.c.) fez uso do princípio da exaustão de Eudoxo (408-355) para avaliar a equivalência entre as áreas de figuras geométricas. Também demonstrou teoremas seguindo dois métodos distintos de prova método mecânico e método geométrico. Neste artigo, eu discuto, em linhas gerais, que a obra de Arquimedes permite um procedimento pedagógico importante: a pesquisa em matemática escolar sob uma perspectiva social e epistemológica, com base em observações textuais. Palavras-chave: Arquimedes, demonstração, educação ABSTRACT As we already know, Archimedes (200 B.C.) has used the Eudoxus method of exhaustion to assess the equivalence among the areas of geometric figures. He has also demonstrated theorems following two different methods of proof - mechanical method and geometric method. In this article, I discuss in outline that the Archimedes work allows us a pedagogic procedure: the research on school Mathematics from an epistemological and a social point of view, based on textual observations. Key words: Archimedes, proof, education

1 Introdução Arquimedes viveu nos anos 200 a.c. e seu trabalho chegou até os dias atuais por meio de várias compilações. Ele descobriu resultados matemáticos novos dispondo do conhecimento reunido nos Elementos de Euclides (300 a.c.) e também inovando pelo modo como o conhecimento é usado em métodos de investigação e é aplicado em novas áreas. Tendo como base matemática o princípio da exaustão de Eudoxo (408-355), Arquimedes avalia a equivalência entre as áreas de figuras geométricas, operando com aproximações por falta ou por excesso. Como se sabe, esses argumentos vão fornecer a base sobre a qual se estabelecem as primeiras justificativas para o conceito de limite, no século XVIII. Os mestres do Renascimento repreenderam Arquimedes por não ter revelado os procedimentos que o levou a descobrir tantos resultados. E a resposta positiva a essa reclamação nos chegou em 1906, com o achado em um mosteiro de Jerusalém o manuscrito original contendo o método de descoberta, segundo o próprio Arquimedes método relativo aos teoremas mecânicos obra que ficou conhecida entre nós como O método. A literatura ressalta que nada é mais admirável do que Arquimedes fornecer seus procedimentos de investigação Heath (1953); Mugler (1971), uma vez que no trabalho dos geômetras gregos clássicos o fato mais característico ou atormentador é a ausência de indicação dos passos com que eles trilharam o caminho que os levou a descobrir seus resultados formidáveis (HEATH, idem, p. 6). (grifos do autor) Para estudo do conjunto da obra arquemedeana remeto a autores como Heath (1953), Clagett (1956, 1964), Mugler (1971), Dijksterhuis (1987). A quadratura da parábola, tratado sobre geometria plana reunindo vinte e quatro proposições apresenta o teorema, a área de um segmento parabólico é quatro terços da área do triângulo inscrito de mesma base e de vértice no ponto em que a tangente é paralela à base. Arquimedes prova o teorema utilizando o método mecânico e o método geométrico. Especificamente, no livro O método ele explica o seu método mecânico de descoberta. Explorar o fato, Arquimedes faz uso de dois métodos distintos na prova de um mesmo teorema, nos revela o processo de identificar uma variedade de fatores e de dimensões constituintes da própria história de Arquimedes e da sua época. Que conhecimentos matemáticos estavam disponíveis? Que concepções epistemológicas determinavam os conteúdos? E os padrões de rigor então aceitos? Qual o desafio didático de Arquimedes para mostrar a validade das inovações que empregou em suas pesquisas? Assim, a ação pedagógica importante é essa: problematizar o desenvolvimento dos conteúdos matemáticos em sua dimensão social, epistemológica, entre outras, visando construir o entendimento não linear e contextualizado desses conteúdos. A obra de Arquimedes é rica nesse sentido já pelas perguntas que suscita. Mediante tal perspectiva é que exploro neste artigo, em termos bem gerais, o texto de Arquimedes. 2 Procedimentos de prova distintos e as problemáticas de uma época É possível destacar no trabalho arquimedeano dois momentos da produção do conhecimento matemático em função de especificidades no registro textual - o da descoberta e 2

o da demonstração. O momento da descoberta está associado ao desenvolvimento mecânico das provas e o da demonstração, associa-se ao método geométrico de exposição demonstrativa. Dado este fato, minha investigação que parte do registro escrito da demonstração arquimedeana, instância local de análise, se defronta com a exigência necessária de uma análise comparativa e, consequentemente, mais global do tema. Assim, o conteúdo em foco é ponto de partida que se amplia e remete a outros livros e autores e assuntos. Processo que resulta em entender as provas de Arquimedes enquanto conhecimento matemático produzido sócio-culturalmente, ou seja, - conjunto de saberes validados academicamente numa dada época mas que, simultaneamente, uma vez que não é tido como acabado, convive com impasses, com questões ainda por resolver. Metodologicamente, o estudo comparativo de textos de matemática admite o registro do conteúdo como objeto a ser problematizado, pois não nos é dado de modo absoluto, em formato final. Ao contrário, o que se pode dizer de modo categórico é que o próprio registro textual dos conteúdos matemáticos nos livros, incluindo os livros escolares, nos desafia pelas modificações que revela. Como isso acontece? De que modo entender esse processo? Entender o registro textual arquimedeano implica considerar um quadro de conhecimentos disponíveis a sua época. Primeiramente, a matemática entre os gregos antigos se estruturava como uma ciência dedutiva que baseada no silogismo aristotélico prova os resultados matemáticos a partir dos primeiros princípios, ou seja, as definições, postulados e axiomas. Adotava também o texto demonstrativo em seis etapas: enunciado, exposição ou hipótese, explicação ou determinação, construção ou preparação, demonstração e conclusão, tendo como texto padrão os Elementos de Euclides (300 a.c.). E por último, o impasse da existência das grandezas incomensuráveis foi superado, na época, com a teoria das proporções de Eudoxo exposta no Livro V dos Elementos de Euclides, pois os procedimentos de cálculo eram limitados por não se dispor dos números reais. Em síntese, a igualdade entre duas grandezas era provada pelo que conhecemos hoje como método da exaustão que decorre da teoria das proporções de Eudoxo: para provar que A = B, é preciso mostrar que se não se tem A > B ou A < B, consequentemente resulta que A = B. Arquimedes aplica empiricamente resultados matemáticos vindos dos Elementos de Euclides em suas descobertas, quando realiza a pesagem de figuras geométricas. É importante esse aspecto da sua atuação. Principalmente, porque seu objetivo também é provar a validade de resultados matemáticos de um modo rigoroso. Mas admite que faz experimentações, que existem etapas de um trabalho investigativo até que chegue ao objetivo de demonstrar o teorema, e deixa registros desse processo. Assim, diverge do padrão textual dos Elementos de Euclides, da tradição euclidiana de apresentar apenas a demonstração final dos teoremas e problemas, aspecto que pedagogicamente foi alvo de críticas desde o renascimento como nos mostra a obra de Ramus (1515-1572) e mesmo as releituras e reedições medievais dos Elementos em seu longo processo de transmissão (Murdoch, 1961; Schubring, 2003; Almeida, 2008. 3

No livro, O método, em que Arquimedes apresenta provas matemáticas usando os dois métodos método mecânico e método geométrico ele destaca a diferença entre eles: o método mecânico serve para descobrir os teoremas e não para fornecer as respectivas provas. Já o uso do método geométrico permite apresentar as provas conforme o padrão de rigor aceito àquela época. Quanto ao método geométrico e seu desenvolvimento completo, remeto o leitor à bibliografia citada, uma vez que esse texto consta da literatura básica em Arquimedes como Heath (1981), A History of Greek Mathematics, v. I, (1ª. ed. de 1921), por exemplo, que é bem divulgado entre nós. O foco de interesse, aqui, é explorar o fato da existência das duas demonstrações distintas, sendo suficiente o que expomos de cada uma. Uma característica importante da obra de Arquimedes é que ele envia seus escritos a outros matemáticos de Alexandria e temos, assim, livros que contêm como abertura cartas com comentários do autor sobre sua própria produção, seguidas das exposições técnicas. Em O método ele continua uma troca de correspondência com Eratóstenes de Cirene (276-194 a.c.) e se refere ao modo como chegou a alguns resultados matemáticos publicados anteriormente. Vejamos o texto do próprio Arquimedes: Arquimedes a Eratóstenes, saudações! Eu já lhe enviei anteriormente alguns teoremas que descobri, limitando-me a redigir os enunciados e convidando a encontrar as demonstrações que ainda não tinha comunicado. (MUGLER, 1971, v. 3, p. 82) Há o destaque de que os procedimentos prévios são realmente um meio para descobrir e também para expor os resultados, O que nós vamos dizer não demonstra, sem dúvida, o que precede, mas dá até certo ponto a idéia de que a conclusão é justa. Isso, porque reconhecendo que a conclusão não está demonstrada, mas tendo a idéia de que ela está certa, nós daremos em seu lugar a demonstração geométrica do que nós achamos e já publicamos. (idem, p. 82) Para verificar suas intuições, antes de demonstrá-las pelo raciocínio dedutivo, Arquimedes interroga a realidade na escala do perceptível, pela observação e pela experiência. 2.1 O método mecânico de investigação O objetivo de Arquimedes é conseguir o equilíbrio dos corpos em uma balança, embora ele faça uso de dois procedimentos distintos de prova. Em uma explanação básica, segundo o método mecânico de investigação, é suficiente tomar o caso simples em que se equilibra na balança os corpos X e B, conforme ilustra a figura baixo. X B 4

Figura 1 As áreas ou volumes e posição do centro de gravidade dos corpos são conhecidos previamente. As figuras que os representam são colocadas em uma posição tal que elas tenham como diâmetro, ou eixo comum, um dos lados. Os elementos infinitesimais em que a figura X é dividida são pesados contra os elementos da outra figura B, sabendo-se que os respectivos centros de gravidade repousam em um ponto ou outro do eixo comum. Os elementos em correspondência são seções de X e de B, respectivamente determinadas por um plano perpendicular ao eixo que corta as duas figuras. Embora Arquimedes chame os elementos de linhas retas e áreas planas, respectivamente, eles são, no primeiro caso, tiras estreitas, áreas, e no segundo caso são lâminas planas finas, sólidos. Mas a largura ou espessura dx como chamamos hoje, não entra no cálculo porque esse diferencial é considerado o mesmo em cada um dos dois elementos correspondentes, que são separadamente divididos e pesados um contra o outro. O número de elementos em cada figura é infinito, mas Arquimedes não precisa dizer isso, ele simplesmente diz que X e B são formados de todos os elementos, isto é, das linhas, no caso das áreas planas e das placas, no caso dos sólidos. Arquimedes lida com os momentos dos corpos em um ponto de suspensão da balança. Trabalha com os respectivos produtos dos elementos de área ou volume pelas distâncias entre os pontos de suspensão da balança, e os centros de gravidade dos elementos (HEATH, 1953, p. 7-11). O desenvolvimento de Arquimedes para a Quadratura da parábola permite apresentar em etapas o modo como ele investigou, provou e demonstrou seus resultados. Bettinelli (1989) interpreta o método mecânico arquimedeano, como a seguir: O segmento de parábola a ser medido está inscrito em um triângulo que tem a mesma base que ele, um lado é uma tangente à parábola e o outro é paralelo ao seu eixo. Suponha o triângulo pendendo em uma barra imaginária de modo que o lado paralelo ao eixo esteja na vertical e caia, no prumo, do meio da barra e pelo ângulo oposto à extremidade da barra. Um contrapeso permite o equilíbrio. Figura 2 5

O triângulo é decomposto em n barras verticais de igual largura e o contrapeso decomposto em partes que equilibram cada uma das barras. Figura 3 Arquimedes mostra que o contrapeso correspondente a uma barra tem sempre uma área contida entre os dois trapézios que rodeia a porção da parábola que está abaixo da barra. Figura 4 E então, o contrapeso total tem uma área compreendida entre as das duas figuras dentadas inscritas e circunscritas ao segmento da parábola. 6

Figura 5 (BETTINELLI, 1989, p. 193-195) A partir desse ponto, Arquimedes usa o argumento da exaustão, ou seja, ao escolher um número grande de barras o contrapeso é igual ao segmento de parábola porque ele não é nem maior, nem menor. Essa é a base do procedimento de prova conhecido como método geométrico, característico do padrão euclidiano de prova e, como já mencionei, o que conhecemos também como método de exaustão de Eudoxo. Retomando a figura 2 e sabendo que o centro de gravidade de todo triângulo está a um terço das suas medianas, Arquimedes está seguro de que a área do segmento de parábola está a um terço da do triângulo pendurado na balança, o que completa essa exposição moderna do trabalho arquimedeano. 3. O valor pedagógico das provas Essa breve apresentação mostra o contexto em que Arquimedes atuou. Ao usar tanto o método mecânico quanto o método geométrico, ele expõe os resultados que investiga de forma sistematizada, mas escrevendo provas distintas. Basicamente, dois pontos de interesse se destacam a partir da obra arquimedeana - o padrão de rigor admitido academicamente e o processo de construção de uma prova - os quais se desdobram em muitas outras questões de valor pedagógico com respeito à tarefa de demonstrar. Principalmente, se consideramos a escola básica contemporânea em que se institucionalizou quase de modo geral aplicar as proposições matemáticas para resolver exercícios, sem propor justificativas matemáticas que mostrem como elas podem ser validadas. Quanto ao primeiro ponto, segundo Dijksterhuis (1987), Arquimedes não está preparado para reconhecer o teorema da quadratura da parábola como realmente provado, nos dois casos. Por um lado, a falta de rigor do método mecânico reside no caráter dos argumentos usados, ou seja, a aplicação dos indivisíveis. Quanto ao segundo ponto, Arquimedes mostra a existência de etapas para se estabelecer a demonstração de um teorema, até que se chegue à última etapa, a escrita do texto da demonstração. Estes são fatores ausentes nos Elementos de Euclides, livro muito criticado pedagogicamente, conforme já comentei, e que foi durante séculos o cânone da demonstração em matemática e também modelo de princípios para a prática científica. A obra de Arquimedes revela algo novo, revolucionário - a tomada de posição com respeito à atividade de demonstrar um teorema, tem suas particularidades - ou seja, é necessário problematizar o conteúdo quando se inquire - como podemos estabelecer a prova do teorema? O que pode nos trazer algumas pistas? Quais proposições usar? O que admitir como axioma? Observamos, aqui, a dimensão epistemológica dos conteúdos como elemento determinante na validação do conhecimento matemático. Primeiramente, porque à época de Arquimedes, o modelo euclidiano de exposição teórico-demonstrativa dava ao conhecimento matemático seu estatuto de cientificidade, tornando a matemática uma ciência. E nesse tempo, os processos infinitos eram tratados cientificamente, isto é, de modo rigoroso, com o uso da 7

dupla redução ao absurdo, o método de Eudoxo, e não com o uso dos indivisíveis. Por causa disso, no livro Quadratura da parábola, para satisfazer os padrões acadêmicos da época, Arquimedes expõe as provas das suas descobertas sem usar os indivisíveis. Nesse caso, usa a dupla redução ao absurdo, seguindo o modelo geométrico euclidiano. Em segundo lugar, ainda conforme Dijksterhuis (idem), no livro Sobre o equilíbrio dos planos, Arquimedes fundamenta a sua teoria do equilíbrio da balança em postulados, mesmo usando os indivisíveis, criando a impressão de que ele não via qualquer diferença essencial entre e o método mecânico e o geométrico (p. 315-319). Outro aspecto epistemológico importante é o desafio didático enfrentado por Arquimedes: mostrar que a exposição teórico-demonstrativa dos seus teoremas foi precedida por atividades matemáticas experimentais que inicialmente garantiram, não de modo axiomático, que ele alcançara um resultado verdadeiro. Segundo Dijksterhuis (1987), o padrão euclidiano de demonstração dos teoremas sacrifica o desejo do leitor de obter também uma visão do método pelo qual o resultado foi descoberto. É esse desejo, contudo, que Arquimedes satisfaz com seu Método: ele revelará como ele mesmo, muito antes de ter conhecido como provar seus teoremas tornou-se convencido de que eram verdadeiros. (p. 315) Ao enquadrar o trabalho demonstrativo, apesar do seu caráter teórico, associado a tentativas, a estratégias experimentais de exploração de como validar o resultado matemático em pauta, o modo como Arquimedes opera em suas atividades revela o lugar de etapa final ocupado pela exposição escrita do teorema, no longo processo de seleção de proposições e procedimentos de prova. Para verificar suas intuições, antes de demonstrá-las pelo raciocínio dedutivo, Arquimedes interroga a realidade na escala do perceptível, pela observação e pela experiência. 4 Concluindo Arquimedes questiona o padrão de rigor instituído em seu tempo, inovando e sendo eficiente. Se uma demonstração tem por base postulados admitidos previamente, não importa se eles se aplicam à descoberta de um novo resultado da geometria a partir de uma situação mecânica. É o próprio Arquimedes quem preconiza o reconhecimento da utilidade do procedimento mecânico ou método da descoberta, em épocas vindouras, Eu presumo que haverá, entre a presente bem como entre as futuras gerações, quem por meio do método aqui explanado estará apto para encontrar outros teoremas que ainda não compartilhamos (Dijksterhuis, idem, p. 315). mas nem por isso deixa de apresentar as demonstrações segundo o modelo vigente. O entendimento dos processos de prova arquimedeano mostra que a exposição teórica de um resultado matemático explicita um contexto sócio-cultural, ou seja, é uma produção que obedece a preceitos acadêmicos em vigor numa dada época e entre diferentes grupos. Além disso, Arquimedes mediante seu modo de atuação investigativa e de exposição textual com 8

respeito aos resultados matemáticos, incorpora o processo de interrogar a realidade pela observação, experimentalmente. Nesse sentido, sua obra, seu texto é inovador e é uma fonte rica para estudos. Em suma, ao observarmos o texto arquimedeano, temos oportunidade de inferir e de explorar como o saber matemático é uma produção humana histórica, complexa e sempre em desenvolvimento. Também constatamos que mediante a pesquisa comparativa com textos matemáticos, estabelecemos modos de entender a constituição dos conteúdos. Considerando, finalmente, que é de suma importância o conhecimento dos conteúdos quando o ponto de interesse é o ensino-aprendizagem da matemática, chega-se, então, ao valor pedagógico anunciado: o texto arquimedeano mostra que as questões de ordem epistemológica, social e cultural se efetivam como elementos explicativos para o entendimento dos processos de institucionalização dos conteúdos matemáticos, sejam eles acadêmicos ou escolares, quando o registro textual, nossa base de dados, for problematizado, for inquirido face às evidências que apresenta. No caso sob análise - duas demonstrações distintas, como explicar esse fato? Referências BETTINELLI, B. Intuition et démonstration chez Archimède In: La démonstration mathématique dans l Histoire. Besançon: Ed. IREM, p. 181-196, 1989. CLAGETT, M. Archimedes in the Middle Ages. Wisconsin: University of Wisconsin Press, 1964. v. 1.. Archimedes. In GILLISPIE, C. C. (Ed.). Dictionary of scientific biography. New York: Scribner, 1956. p. 213-231. v. 1. DIJKSTERHUIS, E. J. Archimedes. New Jersey: Princeton University Press, 1987. HEATH, T. L. The works of Archimedes. New York: Dover, 1953.. The thirteen books of Euclid s Elements. Nova York: Dover Publications, 1956.. A History of Greek Mathematics. New York: Dover Publications, 1981. LELOUARD, M.; MIRA, C.; NICOLLE, J.M. Differentes formes de démonstrations dans les mathématiques grecques In: La démonstration mathématique dans l Histoire. Besançon: Ed. IREM, p. 155-180, 1989. MANSO ALMEIDA, R. C. Demonstrações em geometria plana em livros-texto no Brasil a partir do século XIX. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2008. Tese de Doutorado. MUGLER, C. Archimède. Paris: Société d Édition Les belles letters, 1971. MURDOCH, J. E. The medieval language of proportions: Elements of the interaction with greek foundations and the development of new mathematical techniques. In: CROMBIE, A.C. (Ed). Scientific change. London: Heinemann, 1961. p. 237-271. SCHUBRING, G. Análise histórica de livros de matemática: notas de aula. Campinas: Editora Autores Associados, 2003. 9