Influência da Idade Gestacional no Índice de Desempenho Miocárdico (Índice de Tei) do Ventrículo Esquerdo em Fetos com Coração Normal

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Transcrição:

artigo original Influência da Idade Gestacional no Índice de Desempenho Miocárdico (Índice de Tei) do Ventrículo Esquerdo em Fetos com Coração Normal ISSN 0103-3395 Influence of Gestational Age on the Left Ventricular Doppler Index of Myocardial Performance (Tei Index) in Fetuses with Normal Heart Marcia F. A. BARBERATO (1), Silvio H. BARBERATO (2), Cláudio C. GOMES (1), Sérgio L. COSTA (1) RESUMO Objetivo: Avaliar a influência da idade gestacional (IG) no índice de Tei do ventrículo esquerdo em fetos com coração normal. Métodos: 49 fetos normais divididos em 3 grupos de IG (média ± desvio padrão) foram avaliados por Doppler ecocardiografia, obtendo-se as velocidades do fluxo transvalvar mitral e os intervalos: tempo de relaxamento isovolumétrico (TRIV), tempo de contração isovolumétrico (TCIV), e tempo de ejeção aórtico (TEJ). O índice de Tei foi calculado pela fórmula: (TCIV + TRIV)/TE. Análise de variância foi usada para comparar os valores do índice e seus componentes entre os grupos. Regressão linear simples avaliou a relação entre a IG e o índice de Tei. Resultados: Houve aumento gradativo do índice de Tei com a IG (0,39 ± 0,02 versus 0,44 ± 0,02 versus 0,48 ± 0,02, p < 0,01), devido a uma progressiva diminuição do TEJ (189 ± 3 ms versus 185 ± 2 ms versus 172 ± 4 ms, p < 0,05). Não houve diferenças entre os grupos quanto ao TRIV, TCIV, E, A, E/A e freqüência cardíaca. O índice de Tei e o TEJ tiveram uma correlação linear com a IG (r=0,38, p < 0,01 e r=-0,24, p < 0,05, respectivamente), o que não aconteceu com o TRIV e TCIV (p=ns). Conclusão: A IG parece ter uma pequena, porém significante, influência na determinação do índice de Tei, que aumenta conforme a gestação se aproxima do termo. Descritores: Ecocardiografia Doppler; Função Ventricular Esquerda; Testes de Função Cardíaca. SUMMARY Objectives: To assess the influence of the gestational age (GA) on the left ventricular Tei index in fetuses with normal hearts. Methods: 49 fetuses were divided into 3 gestational ages and evaluated by Doppler echocardiography. The mitral inflow velocities, isovolumic relaxation time (IRT), isovolumic contraction time (ICT), and ejection time (ET) were recorded and the Tei index was calculated by the equation: (ICT+IRT)/ ET. Variance analysis was used to compare the values of Tei index and its individual components among the groups. Results: There was a graded relation between the Tei index and GA groups (0,39 ± 0,02 versus 0,44 ± 0,02 versus 0,48 ± 0,02, p < 0,01), caused by a progressive decrease in ET (189 ± 3 ms versus 185 ± 2 ms versus 172 ± 4 ms, p < 0,05). There were no differences in GA groups concerning to IRT, ICT, E mitral velocity, A mitral velocity, and E/A ratio. The Tei index and ET had a linear correlation with the GA (r=0,38, p < 0,01 andr=-0,24, p < 0,05, respectively), but not with IRT and ICT (p=ns). Conclusion: The GA seems to have a small, but significant influence on the determination of the Tei index, which increases with the advancing GA. Descriptors: Echocardiography, Doppler; Ventricular Function Left; Heart Function Tests. Instituição: CEMMEF- Centro de Medicina Materno - Fetal Curitiba - PR. Correspondência: Silvio Henrique Barberato Rua Saint Hilaire, 122 - apto. 203 Curitiba - PR CEP 80240-140 Fone/Fax: (41) 32423150 e-mail: jsilviohb@cardiol.br 1 - Médicos ecocardiografistas do CEMMEF 2 - Médico ecocardiografista do Hospital Universitário Cajuru; pós-graduando em Ciências da Saúde pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná Recebido em: 08/08/2005 - Aceito em: 24/10/2005 31

Introdução Nos últimos 20 anos, a Doppler ecocardiografia fetal estabeleceu-se como método de eleição para o diagnóstico de cardiopatias congênitas graves em vida intrauterina, acarretando mudanças nas taxas estatísticas previamente divulgadas e trazendo impacto na estratégia terapêutica em considerável parcela dos casos. Além de avaliar de forma não invasiva a anatomia cardíaca fetal, o método proporcionou também a pesquisa da função ventricular sistólica e diastólica através do modo M, bidimensional e Doppler pulsátil (1). Entretanto, a análise quantitativa da função sistólica do ventrículo esquerdo (VE) é baseada na forma geométrica da câmara, o que ocasiona importantes limitações no feto (2). O pequeno tamanho cardíaco, os diferentes planos da imagem cardíaca fetal e a presença de janela ultrassonográfica abdominal subótima geram dificuldades na aquisição de imagens ideais para a aplicação do modo M e cálculo da fração de ejeção. Alternativamente, o ecocardiografista pode estimar visualmente a função ventricular, todavia esta conduta introduz considerável subjetividade à avaliação, impedindo a obtenção de dados confiáveis para avaliação seriada evolutiva. Tei e colaboradores descreveram um índice Doppler ecocardiográfico que engloba intervalos de tempo relacionados à função sistólica e diastólica, refletindo o desempenho cardíaco global (3). O índice de Tei é definido pela soma do tempo de contração isovolumétrico (TCIV) com o tempo de relaxamento isovolumétrico (TRIV), dividida pelo tempo de ejeção (TEJ). Diversos estudos em adultos demonstraram seu valor clínico como sensível indicador da presença e gravidade da disfunção miocárdica (4-6). Este índice tem uma série de vantagens que poderiam ser bem aproveitadas na avaliação da função cardíaca fetal: é reprodutível, independente da geometria da cavidade ventricular (7), não influenciado pela freqüência cardíaca (4), e aparentemente menos suscetível às alterações da pré-carga do que os parâmetros derivados do Doppler pulsátil do fluxo mitral (8). Alguns autores advogaram sua aplicação na aferição rotineira da função do ventrículo esquerdo em vida intrauterina, tendo publicado valores de referência (9,10) e poder discriminatório em fetos com ou sem cardiopatia (11-13). Embora o índice de Tei possa ser um instrumento útil para avaliar a função miocárdica fetal, a influência da idade gestacional (IG) na determinação dos valores normais não está bem definida. Nosso objetivo é avaliar a influência da IG no índice de Tei e seus componentes em fetos com coração normal. Método População Incluímos no estudo fetos cujo Doppler ecocardiograma por via abdominal materna revelou ritmo sinusal e anatomia cardíaca normal. Fetos de mães diabéticas e portadores de más formações torácicas ou diafragmáticas foram excluídos. Fetos com extrassístoles atriais ocasionais não foram excluídos do estudo, porém os intervalos das contrações prematuras foram desprezados durante o exame. Os fetos foram divididos em 3 grupos de acordo com a IG média ± 1 desvio padrão da amostra. Ecocardiografia Um único examinador experiente (M.A.F.B.) realizou todos os ecocardiogramas, utilizando ecocardiógrafo comercialmente disponível (Volusom 730 Expert, GE Medical Systems, USA) equipado com transdutor convexo de 3-5mHz. Guiando-se pelas imagens ao bidimensional, as velocidades do fluxo transvalvar mitral foram registradas no corte apical de 4 câmaras com a amostra do Doppler pulsátil posicionada entre as extremidades das cúspides da válvula mitral. Foram medidas a velocidade diastólica mitral precoce (onda E), velocidade diastólica mitral tardia (onda A) e a relação E/A. Em seguida, o cursor do Doppler foi posicionado no ventrículo esquerdo em corte 5 câmaras, na junção do folheto anterior da valva mitral com a via de saída, de forma a analisar os fluxos sangüíneos de saída e entrada simultaneamente. Os intervalos de tempo foram então diretamente estimados (10). O TCIV foi medido como o intervalo de tempo entre o final da onda A e o início da ejeção aórtica, o TRIV foi medido como o intervalo de tempo entre o final da ejeção e o início da onda E, e o TEJ foi medido como o intervalo de tempo entre o inicio e o fim da ejeção aórtica ao traçado do Doppler pulsátil. A média de 3 ciclos cardíacos consecutivos foi calculada para cada intervalo e demais variáveis. O índice de Tei foi obtido pela fórmula:(triv+tciv)/tej (3). A freqüência cardíaca foi também anotada para cada feto. As imagens contendo os registros foram armazenadas em formato digital para posterior reavaliação. Estatística As variáveis contínuas foram testadas para a normalidade da amostra e expressas como média e desvio padrão. As comparações entre os grupos conforme a IG foi realizada através da análise de variância. Regressão linear simples e coeficiente de correlação de Pearson 32

avaliaram a relação entre a IG, o índice de Tei e seus componentes. Valor de p<0,05 foi considerado estatisticamente significante. Resultados Avaliamos 49 fetos sem cardiopatia, com IG variando entre 20 e 37 semanas (média de 29 ± 4). As indicações para o estudo ecocardiográfico foram: suspeita de arritmia cardíaca que não se manifestou durante o estudo (18 casos), translucência nucal alterada (12), suspeita de cardiopatia levantada pelo ultra-som obstétrico (10), história familiar de cardiopatia congênita (5), exposição a teratogênicos (2), e desejo da mãe de excluir cardiopatia (2). Os valores médios dos parâmetros estudados na população estão dispostos na Tabela 1. O grupo I (GI) foi composto por fetos com IG variando de 20 a 25 semanas (n=13); o grupo II (GII), com IG de 26 a 33 semanas (n=24); e o grupo III (GIII), com IG de 34 a 37 semanas (n=12). As médias do índice de Tei, seus componentes individuais e demais variáveis analisadas para cada grupo estão relacionadas na Tabela 2. Encontramos relação crescente e graduada entre a IG e o índice de Tei (GI=0,39 ± 0,02; GII=0,44 ± 0,02; GIII=0,48 ± 0,02, p < 0,01), devido a uma progressiva diminuição do TEJ (GI=189 ± 3 ms; GII=185 ± 2 ms; GII=172 ± 4 ms, p < 0,05). Não houve diferença entre os grupos ao avaliarmos TRIV, TCIV, E, A, E/A e freqüência cardíaca. O índice de Tei e o TEJ tiveram uma correlação linear com a IG (r=0,38, p < 0,01 e r=-0,24, p < 0,05, respectivamente), o que não aconteceu com o TRIV e TCIV (p=ns). Não houve correlação da freqüência cardíaca com a IG, índice de Tei e seus componentes. Discussão A correta estimativa da função cardíaca fetal pode ser tarefa de difícil realização na prática clínica cardiológica. O modo M e a ecocardiografia bidimensional podem sofrer limitações inerentes à qualidade da janela acústica e ao tamanho e orientação do coração do feto. Como o índice de Tei utiliza sinais do Doppler pulsátil facilmente obtidos ao ecocardiograma transabdominal realizado na gestante, torna-se o método ideal para suplantar tais dificuldades. Além disto, estudos em adultos demonstraram que este índice comporta-se de maneira independente da forma geométrica do ventrículo esquerdo (4), não sofre significativa influência da freqüência car-díaca (4) e proporciona informações referentes não só à função sistólica, mas também à função diastólica do miocárdio (3,7). Portanto, o índice é capaz de refletir o desempenho miocárdico global e tem sido utilizado na avaliação da função cardíaca em diversos cenários clínicos, incluindo o feto. Outros autores já mostraram que o próprio índice de Tei e os intervalos sistólicos podem variar com a idade, em adultos, adolescentes e crianças (14,15). O principal achado de nosso estudo foi a significativa variação do TEJ e do índice de Tei à medida que a gestação se aproxima do termo. Como o TRIV e o TCIV não apresentaram mudanças significativas, o aumento do índice de Tei foi guiado pelo encurtamento do TEJ. Duas hipóteses podem ser aventadas para tais fênomenos. Em primeiro lugar, a diminuição progressiva do TEJ poderia estar relacionada a um grada- Variáveis Média Idade materna (anos) 29 ± 7 IG (semanas) 29 ± 4 FC (batimentos/minuto) 141 ± 8 TRIV (ms) 47 ±10 TEJ (ms) 184 ± 15 TCIV (ms) 31 ± 9 Índice de Tei 0,43 ± 0,04 Onda E (cm/s) 31 ± 6 Onda A (cm/s) 46 ± 9 E/A 0,7 ± 0,1 Tabela 1. Valores médios e desvio padrão das variáveis clínicas e ecocardiográficas da população. IG- idade gestacional, FC- freqüência cardíaca, TRIV- tempo de relaxamento isovolumétrico, TEJ- tempo de ejeção, TCIV- tempo de contração isovolumétrico, E- velocidade diastólica mitral precoce, A- velocidade diastólica mitral tardia 33

Grupo I Grupo II Grupo III Valor de n= 13 n= 24 n= 12 p TRIV (ms) 44 ± 2 48 ± 2 50 ± 3 ns TEJ (ms) 189 ± 3 185 ± 3 172 ± 5 <0,05 TCIV (ms) 29 ± 2 32±2 32 ± 3 ns Índice de Tei 0,39 ± 0,02 0,44 ± 0,02 0,48 ± 0,02 <0,01 Onda E (cm/s) 30 ± 1 32 ± 1 32 ± 2 ns Onda A (cm/s) 46 ± 2 47 ± 2 46 ± 3 ns E/A 0,7 ± 0,02 0,71 ± 0,02 0,7 ± 0,03 ns FC (batim./minuto) 141 ± 2 143 ± 2 138 ± 2 ns Tabela 2. Distribuição dos parâmetros avaliados conforme a idade gestacional. TRIV- tempo de relaxamento isovolumétrico, TEJ- tempo de ejeção, TCIV- tempo de contração isovolumétrico, E- velocidade diastólica mitral precoce, A- velocidade diastólica mitral tardia, FC- freqüência cardíaca, ns- não significativo. 34 tivo aumento na resistência arterial periférica (pós-carga) decorrente do processo de calcificação e envelhecimento dos vasos placentários com o avanço da gestação. Sabese que a resistência arterial periférica dobra após o nascimento, e há relato de aumento transitório do índice de Tei em neonatos durando até 24 horas após o parto (12). Além disto, estudo experimental com animais demonstrou que o aumento da pós-carga pode diminuir o TEJ e aumentar o índice de Tei (16). Outra possibilidade alternativa seria a diminuição do enchimento ventricular decorrente do enrijecimento progressivo do miocárdio fetal. Embora a proporção do enchimento ventricular durante a contração atrial seja constante durante todo o segundo e terceiro trimestres da gestação (1,17), há um progressivo aumento da velocidade de enchimento ventricular passivo ao nos aproximarmos do termo (18), refletindo a diminuição da complacência miocárdica fetal. O encurtamento do TEJ poderia estar relacionado à diminuição do volume sangüíneo que chega ao ventrículo esquerdo a cada diástole, o que reduz o volume diastólico final e, conseqüentemente, o volume sistólico ejetado pela câmara. Alguns autores pesquisaram também o comportamento do índice de Tei durante a gravidez e seus valores normais de referência. Tsutsumi et al. (12) estudaram prospectivamente 50 fetos normais, 35 fetos com retardo de crescimento intra-uterino e 30 fetos de mães diabéticas, calculando o índice de Tei do ventrículo esquerdo e direito. O índice de Tei de ambos os ventrículos diminuiu com o avançar da gestação nos fetos normais. Espeficicamente para o ventrículo esquerdo, o valor médio de 0,62 ± 0,07, entre 18 e 26 semanas, declinou para 0,43 ± 0,03 quando analisado após 34 semanas. Os autores aventaram que a queda no valor do índice nos fetos normais representaria um processo intra-uterino fisiológico de maturação do desempenho miocárdico, uma vez que, a partir de 27 semanas de gestação, o índice foi significativamente maior nos fetos com retardo de crescimento e de mães diabéticas do que nos controles. Por outro lado, Eidem e colaboradores (9) avaliaram 125 fetos sem cardiopatia (20 a 40 semanas, IG média 28 semanas) e não encontraram diferenças após divisão da amostra em 5 diferentes grupos de IG. Entretanto, este estudo foi retrospectivo e selecionou os fetos de cada grupo de IG a partir de um banco de dados, criando potencial viés (fetos que não tinham todos os intervalos medidos foram excluídos da análise). Encontraram como valor normal para o índice de Tei do ventrículo esquerdo 0,36 ± 0,06, o qual, curiosamente, não diferiu estatisticamente de uma população de 125 crianças e adolescentes (idade média 9 anos, variando de 3 a 18 anos, índice 0,35 ± 0,03). Falkensammer e colaboradores (19) mediram o índice de Tei em 23 fetos normais (IG variando de 24 a 34 semanas) e obtiveram como valores normais 0,41 ± 0,05 para o ventrículo esquerdo e 0,38 ± 0,04 para o ventrículo direito. Por sua vez, Friedman e colaboradores (10) relataram como valor normal do índice 0,53 ± 0,13 para o ventrículo esquerdo após estudarem 74 fetos normais durante o segundo e início do terceiro trimestre. Como se pode inferir, os resultados são aparentemente conflitantes, tanto no que diz respeito aos valores normais quanto à influência da IG. No presente artigo, encontramos valor médio de 0,43 ± 0,04 para o índice de Tei. Adicionalmente, observamos progressivo aumento do índice com o avanço da IG, ao contrário do artigo de Tsutsumi e colaboradores (12), e diferentemente do relato de Eidem e colaboradores (9). Pode-se supor que as diver-

gências nos resultados devam-se a diferentes metodologias empregadas. Em primeiro lugar, a abrangência da IG avaliada não é uniforme entre os estudos. Isto pode ter gerado valores médios tão díspares ao se considerar apenas fetos normais (variação de 0,36 ± 0,06 até 0,62 ± 0,07). Em segundo lugar, diferentes maneiras de se obter o índice de Tei foram usadas, como a medida dos intervalos individuais (10) ou pela subtração do TEJ a partir do intervalo intermitral (12). Por último, a forma de abordagem, retrospectiva, longitudinal (com medidas seriadas feitas no mesmo indivíduo) (12) ou cross-sectional (comparando grupos de diferentes períodos da gestação) (10), diferiu entre os autores. Nenhuma das correlações encontradas no presente estudo foi muito forte e existe considerável sobreposição dos valores entre os grupos de IG. Todavia, nossos resultados sugerem que o valor do índice de Tei pode sofrer uma pequena, porém significativa variação no feto sem cardiopatia no decorrer da gestação. Além do já discutido, outras limitações de nosso relato são o pequeno número da amostra e o fato de não termos avaliado também o índice de Tei do ventrículo direito. Novos estudos com grande número de indivíduos, abrangendo desde 12 até 42 semanas de gestação (com a utilização combinada das vias transvaginal e abdominal), e com abordagem seriada, poderão confirmar os achados aqui reportados, além de elaborar tabelas com valores normalizados para a IG, semana a semana. Figura 1. Relação graduada entre o índice de Tei e a idade gestacional. 35

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