UM ESTUDO SOBRE O CONCEITO DE CONHECIMENTO EM FINS DO SÉCULO XI E INÍCIO DO SÉCULO XII: UMA LEITURA DE SANTO ANSELMO E HUGO DE SAINT VICTOR

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Transcrição:

doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.03032 UM ESTUDO SOBRE O CONCEITO DE CONHECIMENTO EM FINS DO SÉCULO XI E INÍCIO DO SÉCULO XII: UMA LEITURA DE SANTO ANSELMO E HUGO DE SAINT VICTOR LIMA, Vilma Gomes de (UEM-GTSEAM) OLIVEIRA, Terezinha (DFE/PPE/UEM-GTSEAM) 1. Introdução Este trabalho contém nossas reflexões e discussões que se realizaram durante a pesquisa de Iniciação Científica intitulada: Um estudo sobre o conceito de conhecimento em fins do século XI e início do século XII: uma leitura de Santo Anselmo e Hugo de Saint Victor, orientada pela professora Drª Terezinha Oliveira, do Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Estadual de Maringá. Nosso objetivo foi estudar e analisar o que representava o conhecimento para os homens medievais dos séculos XI e XII, de modo a apresentar o pensamento medieval e suas características, a contribuição dos Escritos Sagrados para a Educação Medieval e a dedicação com a qual esses homens se entregavam ao saber, visando o bem coletivo. Para tanto, estudamos o pensamento de Santo Anselmo em sua obra Monológio e o pensamento de Hugo de Saint Victor em Didascálicon: Da arte de ler. Ambos foram intelectuais da Igreja e viveram em épocas bem próximas, além de afirmarem que tanto o conhecimento das coisas divinas quanto o da natureza permitem o homem chegar ao saber. Nesse sentido, nos valemos de obras de autores contemporâneos, que tratam dos períodos trabalhados, para desenvolvermos nossas considerações e entendermos o pensamento dos intelectuais acima mencionados. Santo Anselmo, primeiro autor de nossa pesquisa, na obra Monológio busca provar a existência de Deus pela razão, sem recorrer às Escrituras Sagradas e destaca em sua obra a importância de não naturalizarmos as coisas, pois, segundo esse autor, tudo tem um precedente, nada acontece ou se origina do nada. O segundo autor de nossa pesquisa é 1

Hugo de Saint Victor, que expõe no Didascálicon: Da arte de ler, a importância da leitura especialmente da Bíblia, para se obter o conhecimento e, finalmente, chegar a Deus. Esses autores fazem parte dos intelectuais que se destacam num período histórico em que muitos acontecimentos foram decisivos para o surgimento de uma nova forma de pensar do homem medieval, pois, o renascimento das cidades, do comércio, o crescimento demográfico, mudaram as relações sociais, de modo que o camponês, o filósofo, o artesão, o monge, enfim, as diversas categorias sociais, mostram que se trata de temos uma sociedade vivendo um processo de mudanças. Percebemos que esse novo cenário necessita cada vez mais de conhecimento. É preciso explicar as questões humanas, as atividades, os saberes e, para fazê-lo, é imprescindível a figura do intelectual que se comprometa com seu tempo, que questione que obtenha respostas para essa nova realidade, daí o fato de que a leitura das coisas sagradas e terrenas não pode ser vistas somente pela lente da fé. Nota-se uma inclinação para a questão da razão, para o intelecto. Em nossa análise, procuramos alicerçar nossas considerações na História Social, pois assim é possível entendermos as situações do presente recuando até o passado, como afirma Marc Bloch: compreender o presente pelo passado e, correlativamente, compreender o passado pelo presente (BLOCH, 2001, p.19). Desse modo, compreendemos como fundamental verificarmos o processo de construção e desconstrução das relações sociais na história da humanidade. 2. Desenvolvimento Com base no exposto acima, teceremos nossas considerações acerca dos autores já mencionados, bem como dos fatos ocorridos em fins do século XI e início do século XII. É importante destacarmos esses fatos, ainda que brevemente, por sua relevância histórica e sua influência na educação dos homens dessa época, pois em cada tempo histórico percebemos um tipo de homem a ser formado. O processo educativo está intimamente relacionado ao seu contexto histórico. Em fins do século XI notam-se acontecem transformações e crises no feudalismo1, 1 Sistema de organização econômica, política e social característica da Europa ocidental na Idade Média. 2

cessam as invasões bárbaras, surgem inovações tecnológicas na agricultura como o arado de ferro e de moinhos de vento, o que significa que a sociedade está em processo de mudança: A vida rural a partir do ano mil conhece, apesar das diferenças e das nuanças regionais, uma uniformidade bastante grande, e essa uniformidade é marcada por progressos técnicos importantes. Trata-se de sinais de uma eficácia maior do trabalho dos homens e, primeiro, da atividade de base, a preparação do solo. O arado arcaico é substituído pela charrua e, particularmente nas planícies da Europa Setentrional, a charrua munida de uma relha dissimétrica e de uma aiveca (a parte que sustenta a relha) e, sobretudo, o mais importante talvez seja a substituição da madeira pelo ferro. Essa agricultura da charrua beneficia-se também do progresso da tração. O asno e o burro no sul, o boi no norte, continuam a imporem-se como animais de tração, mas o cavalo, nas planícies do norte, faz o boi recuar e o sobrepujará no século XII nas explorações camponesas de Flandres (LE GOFF, 2007, p. 77). Cumpre observar que é no século XII que a sociedade tem um maior desenvolvimento, pois o ambiente citadino possibilita o surgimento do intelectual e de novas forças sociais, como: o senhor feudal, o mercador, o burguês, ordens militares. Também não podemos esquecer-nos de citar as Cruzadas, por meio das quais foi possível a expansão do cristianismo em direção ao Oriente e a retomada do comércio em larga escala no Mar Mediterrâneo. Contudo, uma indagação nos vem em mente: como se esboçavam as cidades antes deste período? Vejamos a explicação de Le Goff: Sem dúvidas sempre houve cidades no Ocidente, mas os cadáveres das cidades romanas do Baixo Império não continham em suas muralhas mais do que um punhado de habitantes, em torno de um chefe militar, administrativo ou religioso. Territórios episcopais, sobretudo, não contavam senão com um magro laicato em volta de um clero um pouco mais numeroso, sem outra vida econômica além de um pequeno mercado de serventia local destinado às necessidades cotidianas (Le Goff, 2006, p. 30). Esse excerto nos mostra claramente como eram as cidades antes de seu renascimento, de forma que temos um cenário que se caracteriza por uma vida eminentemente rural e limitada. O renascimento das cidades propiciou mudanças nas relações sociais. Segundo 3

Oliveira (2005), personagens como comerciante, usuário, mestre e prostituta passam a fazer parte da nova lista do trabalho. Nota-se também costumes mais polidos, disciplina do gesto, da palavra, da boa maneira à mesa, higiene [...] a cortesia, como sua etimologia indica, é definida pelas boas maneiras que se considerava que reinavam na corte dos reis e dos príncipes (Le Goff, 2007, p. 84). [...] não comer vários no mesmo prato, não cuspir, lavar as mãos antes e após as refeições, todo um conjunto de gestos nasceu na Idade Média (Le Goff, 2007, p. 85). São hábitos que conservamos até hoje. A Idade Média tem muito a nos ensinar, por isso é importante refletirmos acerca do processo histórico, não podemos naturalizar as relações, as construções e desconstruções que a sociedade estabelece ao longo do tempo. O renascimento das cidades transformou profundamente o medievo e o intelectual foi um grande aliado nesse processo, daí decorre o fato de que ele nasceu concomitante a elas: Um homem cujo ofício é escrever ou ensinar, e de preferência as duas coisas a um só tempo, um homem que, profissionalmente, tem uma atividade de professor e de erudito, em resumo, um intelectual esse homem só aparecerá com as cidades..(le Goff, 2006, p. 30). Com isso não queremos dizer que antes dessa época não havia sábios e produção de conhecimento, o que queremos explicitar é que as cidades abriram as portas para o intelectual, nas escolas citadinas e, posteriormente, no século XIII, nas Universidades2. Por isso, esse novo homem se utiliza de sua mente, de sua inteligência para pensar o mundo em que vive. A literatura dessa época também sofre mudanças, como ressalta Marc Bloch: Especialmente os romances e poemas líricos já não se limitam apenas em contar os factos; esforçam-se também, desajeitadamente, mas com afinco, por analisar os sentimentos. Até nos episódios guerreiros, a justa de dois lutadores toma o lugar dos grandes choques de exércitos, tão caros aos cantos antigos. De todas as maneiras, a nova literatura tendia para a reintegração individual e convidava os auditores a meditarem sobre o eu. (BLOCH, 1939, p. 124) Nesse sentido, percebemos a preocupação do homem citadino em entender as 2 Corporação de mestres e alunos. 4

questões que se colocam em sua nova realidade e buscar em outras leituras, além da Bíblia, respostas para seus conflitos. Debateremos agora, após nossa breve contextualização, os autores estudados e suas respectivas obras. Anselmo nasceu em 1033 em Aosta, na região do Piemonte, na Itália. Seu pai, Gondolfo, era um nobre lombardo, e sua mãe, Ermenbrega, pertencia a uma família de considerável fortuna em Aosta. Ele ingressou na abadia de Bec em 1060 e ali desenvolveu suas notáveis qualidades dialéticas. Em 1109, no dia 21 de abril, faleceu. A obra Monológio de Santo Anselmo foi escrita em 1076. O prior da Abadia de Bec compromete-se, ainda que a contragosto, a compor essa obra a partir de conversações com os monges, no intuito de provar a existência de Deus e de todos os aspectos acerca da essência divina utilizando apenas da razão, sem recorrer as Sagradas Escrituras. Lembremo-nos que estamos em pleno século XI, em que ocorrem acontecimentos relevantes, tais como a realidade das comunas e o renascimento das cidades e do comércio. Foi um desafio para Anselmo provar a existência de Deus sem recorrer em nenhum momento à Bíblia, no entanto, esse pensador característico da Escolástica concretizou sua bela obra com argumentos lógicos diversos. Por esse motivo, mais tarde Anselmo redige o Proslógio, a fim de encontrar um único argumento que prove a existência de Deus, entretanto debater essa obra nos afastaria de nosso objeto de estudo. Com efeito, podemos observar que a obra analisada pode ser classificada a partir de duas categorias de argumentos: o primeiro, de índole platônica, se expressa no olhar do homem para com o mundo, vendo as coisas como mais ou menos boas, considerando sua relatividade. E o segundo argumento está relacionado à ideia da causa, que explica com ênfase a razão da existência das coisas, isto é, que as coisas não existem a partir do nada, que existe sempre um precedente. Para Anselmo existe um ser absoluto que dá fundamento para os demais seres. O Ser supremo é concebido por esse autor como criador de todas as coisas e superior a elas: o único bem supremo só será, portanto, aquele que é soberanamente bom por si, porque somente aquilo que supera aos outros de tal maneira a não ter nem igual nem superior é supremo (ANSELMO, 1973, p. 9). Verificamos em nossa análise o comprometimento desses sábios com a sociedade e o momento histórico em que viveram. No século XI havia constantes conflitos, pois essa 5

sociedade vivia uma disputa entre o poder temporal e o poder espiritual e, consequentemente, a simonia (venda de objetos sagrados) e o nicolaísmo (desordem nos costumes) eram um sério problema político da época (ANSELMO, 1973, p. 11). O contexto em que Anselmo está situado é um período de efervescência social, em que o homem e a sua formação precisavam ser repensados. A sociedade queria obter independência em relação à Igreja, queria poder de decisão e a razão proporciona esse poder. Entretanto, Anselmo elabora seu raciocínio com o propósito de legitimar o poder da Igreja, assegurando sua supremacia e sua autoridade sobre os homens. Anselmo chama a atenção para o uso da razão, no sentido de questionar as coisas que acontecem em nossa volta, que simplesmente são, na maioria das vezes, naturalizadas, motivo pelo qual propõe o exercício de raciocinar, de pensar: Como todos aspiram fruir das coisas que julgam boas, nada mais provável que essa pessoa venha, um dia, a dirigir a sua mente para a busca do ser pelo qual são boas as coisas que ela deseja só porque assim as julga e, desta maneira, guiada pela razão e ajudada pelo ser que busca, consiga chegar, através do raciocínio, às coisas que irracionalmente ignoram (ANSELMO, 1973, p.13). Mais uma vez verificamos, com a passagem acima, o valor da razão, do intelecto para os homens dessa época. Fica evidente a consolidação do uso do raciocínio para a aquisição do saber religioso. O conhecimento torna os homens capazes de conviver socialmente, de melhorar suas relações cotidianas e de tomar decisões. Ora, segundo Anselmo, o homem possui uma essência suprema porque foi criado por Deus. O uso do intelecto o coloca acima das demais criaturas, pois lhe é permitido pensar, recordar, decidir qual caminho seguir, discernir o que é bom e o que não é, em fim, o homem que pensa compreende sua própria vida. Esse estudo nos possibilitou relacionarmos a obra com nossa prática enquanto educadores, uma vez que, se repensarmos os problemas educacionais que temos com mais afinco, possivelmente encontraremos caminhos que garantam melhor aprendizado e desenvolvimento de nossos alunos e, por conseguinte, de nossa sociedade. Isso só comprova o quanto podemos aprender com a educação da Idade Média, bem como refutarmos a ideia de que nesse período não houve construção de saber. A seguir, debateremos o segundo autor que compõe nossa análise: de Hugo de Saint Victor. 6

Hugo de Saint-Victor (1096-1141), cônego e filósofo, nasceu na Saxônia, no Sacro Império Romano Germânico. Ingressou no Mosteiro de Saint Victor, fundado por Guilherme de Champeaux. Chegou a Paris por volta de 1115, onde organizou sua própria escola, anexa a esse Mosteiro, chamada Escola Vitorina. O autor faleceu em 1141. Para Hugo, a sabedoria aproxima os homens de Deus, portanto, deve ser buscada por todos. Suas ideias, entretanto, muito têm a nos ensinar, pois elas tratam não apenas de religião, mas de questões humanas, filosóficas, morais e espirituais. A seguir, destacaremos alguns pontos importantes de sua obra Didascálicon, Da arte de ler. Como já afirmamos anteriormente, os sábios citadinos do Medievo concebem a razão diferentemente dos homens modernos. A sabedoria a que Hugo convida a conhecer é a de chegar a Deus e o caminho é trilhado pelo saber com a prática da leitura sistematizada. Ao fazermos esse recuo no passado, podemos entender um pouco de nossas origens, de nossa história e ocorreram mudanças ao longo do tempo na maneira de se adquirir conhecimento. Nesse período que é nosso objeto de estudo, Hugo de Saint Victor destaca a Sabedoria como fonte de conhecimento, que deve ser buscada por todos: De todas as coisas a serem buscadas, a primeira é a Sapiência, na qual reside a forma do bem perfeito (HUGO DE SAINT VICTOR, Livro I, cap. 1). Ora, a Sapiência que ele refere-se é o Logos, é Alguém, é a Mente de Deus. Para o autor, conhecendo-a, conheceremos a nós mesmos: Somos reerguidos pelo estudo, para que conheçamos a nossa natureza e aprendamos a não procurar fora de nós aquilo que podemos encontrar dentro de nós (HUGO DE SAINT VICTOR, Livro I, cap. 1). Compreendemos que isso nos possibilita viver melhor socialmente, pensar no coletivo e repensar nossa conduta enquanto seres atuantes na sociedade. Essa postura é muito pertinente ao professor, pois, para nossos alunos somos como espelhos e nossas atitudes refletem no modo de pensar deles sobre o mundo. É importante perguntarmos: afinal, o que pretendemos com nossa proposta pedagógica? Em que medida ela pode ser útil para nossos alunos? Hugo de Saint Victor ressalta a relevância da filosofia e das artes mecânicas, o que denota que o homem desse período queria aprender não só as coisas concernentes à Bíblia, mas também saborear outras leituras. Vejamos algumas definições de filosofia apontadas por ele: 7

A filosofia é o amor a Sapiência que, não carecendo de nada é mente viva e única razão primordial das coisas (HUGO DE SAINT-VICTOR, Livro II, cap. 1). [...] A filosofia é a disciplina que investiga com provas plausíveis as razões de todas as coisas divinas e humanas. E assim, a razão teórica de todas as atividades humanas é de competência da filosofia. Mas nem toda atividade pratica é filosófica, e por isso dizemos que a filosofia diz respeito a todas as coisas sob certo aspecto (HUGO DE SAINT- VICTOR, Livro II, cap. 2). [...] A filosofia se divide em teórica, prática, mecânica e lógica. Estas quatro abarcam todo o saber. A teórica é considerada especulativa. A prática é considerada ativa, e é chamada, com outro nome, ética, isto é, moral, porque a moralidade consiste na boa ação. A mecânica é chamada de adulterina, porque trata dos trabalhos humanos. A lógica é ciência do discurso porque trata das palavras. A teórica se divide em teologia, matemática e física. Boécio faz esta divisão com outras palavras, significando com intelectível a teologia, com inteligível a matemática, e com natural a física. [...] (HUGO DE SAIN-VICTOR, Livro II, cap.1). Para esse autor, a sabedoria e a filosofia estão relacionadas, não se separam, portanto há uma união entre o mundo material e espiritual indissolúvel. Essa relação é característica da Idade média. Para o autor existe uma significativa distinção entre saber teórico e saber prático das artes mecânicas. Aqueles que se dedicam ao saber teórico devem dispor de inteligência e de memória ao mesmo tempo, coisas que em qualquer estudo ou disciplina estão tão conexas que, se uma faltar, a outra não pode conduzir ninguém para a perfeição, da mesma forma que os lucros servem para nada se faltar o armazenamento e inutilmente constrói armazéns aquele que nada tem para guardar. O engenho descobre e a memória custodia a sabedoria (HUGO DE SAINT VICTOR, Livro III, cap. 7). Percebemos nas palavras do mestre Vitorino a importância de aliarmos inteligência e memória para bom andamento dos estudos. Inteligência para aprender e conhecer e memória para recordar e conservar tudo o que foi aprendido. Ou seja, significa ter um método. Em suas palavras: Deve-se saber em qualquer trabalho são necessárias duas coisas: a aplicação e o método da aplicação, e estas duas coisas são tão conexas entre si que uma sem a outra é inútil ou pouco eficiente. Com efeito, se diz que a prudência é melhor que a força porque às vezes levantamos com a habilidade os pesos que podemos mover com as forças físicas. O 8

mesmo se dá em qualquer estudo. Aquele que trabalha sem método, trabalho muito, sim, mas não avança e, como chicotear o ar, espalha as forças ao vento. Repare em duas pessoas atravessando o bosque, uma suando através de desvios, a outra escolhendo os atalhos de um traçado reto: fazem o percurso com mesmo ritmo, mas não chegam no mesmo tempo. E o que denominaria eu a Escritura senão a floresta, cujas frases colhemos na leitura como se fossem frutos dulcíssimos e as ruminamos na reflexão? Aquele, portanto, que em tão grande multidão de livros não mantém um método e uma ordem de leitura, este, como se vagueasse na densidade da floresta, perde o caminho do percurso certo sempre estudando como se diz nunca chegando ao saber. (HUGO DE SAINT-VICTOR, Livro V, cap. 5). Ora, Didascálicon, Da arte de ler, é um livro pedagógico que nos ensina passo a passo as regras concernentes a uma leitura profícua e sistematizada [...] primeiro, saber o que se deve ler; segundo, em que ordem se deve ler; terceiro, como se deve ler (HUGO DE SAINT VICTOR, 2001, p. 45). Vale ressaltar que para o autor a sistematização na leitura além de envolver um método, como já foi acima proposto, deve selecionar o que é essencial, pois, uma leitura de várias coisas ao mesmo tempo pode resultar numa confusão de ideias que nada acrescentará para o estudante: Por isso, aconselho a você, estudante, a não alegrar-se excessivamente por ler muitas coisas, mas por entender muitas coisas, e não somente entender, mas poder memorizar. Do contrário, não adianta ler muito nem entender muito (HUGO DE SAINT VICTOR, 2001, p.153). Com base no excerto acima, verificamos que muitas vezes a escola enche a cabeça dos estudantes de informações e depois de um breve tempo eles se esquecem, de modo que em nada ela terá contribuído para sua formação humana e social. 3. Considerações Finais Analisar o pensamento de Santo Anselmo e de Hugo de Saint Victor nos proporcionou aprendermos um pouco da Educação Medieval dos séculos XI e XII. Observarmos o comprometimento desses intelectuais com a sociedade, para responder as questões de seu tempo e como Filosofia e Teologia andavam juntas na produção do conhecimento. 9

Os dois autores chamam nossa atenção para a capacidade de usarmos o intelecto, pois, por meio dele conhecemos as coisas divinas e as coisas da natureza, para finalmente chegarmos ao saber. Como futuros educadores, pensamos ser de imprescindível relevância o estudo de obras que tanto cooperaram para a disseminação do conhecimento. Como dissemos no início de nosso relato, procuramos alicerçar nossas considerações na História Social, pois assim é possível entendermos as situações do presente recuando até o passado. Por fim, destacamos a importância de nosso estudo em nível de Iniciação Científica, para nossa formação em Pedagogia, pois, a exemplo de Santo Anselmo e Hugo de Saint Victor, temos um compromisso com a sociedade. REFERÊNCIAS ANSELMO. Monológio. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril cultural, 1973, v.viii. LE GOFF, J. As raízes medievais da Europa. Petrópolis: Vozes, 2007. LE GOFF, J. Os intelectuais na Idade Média. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. OLIVEIRA, T.; MENDES, C. (orgs.). Formação do Terceiro Estado: as comunas. Maringá: EDUEM, 2005. HUGO DE SAINT VICTOR: Didascálicon, Da arte de ler. Petrópolis: Vozes, 2001. 10