volume 8 / número 15/ julho 2009 ISSN 1677-4973 FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADO Rua Alagoas, 903 - Higienópolis São Paulo, SP - Brasil



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volume 8 / número 15/ julho 2009 ISSN 1677-4973 FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADO Rua Alagoas, 903 - Higienópolis São Paulo, SP - Brasil

Revista de Economia e Relações Internacionais / Faculdade de Economia da Fundação Armando Alvares Penteado. - Vol. 8, n. 15 (2009) - São Paulo: FEC-FAAP, 2007 Semestral 1. Economia / Relações Internacionais - Periódicos. I. Fundação Armando Alvares Penteado. Faculdade de Economia. ISSN 1677-4973 CDU - 33 + 327

volume 8 / número 15 / julho 2009 Sumário John Locke e os escolásticos da Escola de Salamanca André Azevedo Alves e José Manuel Moreira Exigências ambientais externas como barreiras comerciais ao Brasil Stela Luiza de Mattos Ansanelli Quem avalia o risco? perspectiva histórica e análise interdisciplinar de decisões sobre risco Vera Rita de Mello Ferreira e Thiago Lisoni Brazil India: A roadmap to follow Marcus Vinícius Freitas and Juliana Baeza Burali A relação dólar-petróleo, a nova configuração do comércio mundial de petróleo, os desequilíbrios americanos e os efeitos sobre os ciclos financeiros Bouzid Izerrougene Impacto de la crisis financiera global en América Latina Luis Alberto Moreno A contribuição da Psicologia Analítica para a compreensão do comportamento econômico Anna Mathilde Pacheco e Chaves, Rose Mary Almeida Lopes e Sonia Marques O mercado de capitais como fonte do financiamento: comparação do mercado brasileiro com o chinês (2003-2008) Lucy Sousa 5 20 36 61 75 93 105 118

Resumos de Monografia Atuação das corporações transnacionais nos países em desenvolvimento Rafaella Cordeiro Antoniazzi Uma análise da economia russa na era Putin (1999-2008) Daniela Alvarenga Cunha 136 159 Resenhas Ignacy Sachs: natureza e sociedade como eixos do pensamento econômico Ricardo Abramovay A análise do patrimonialismo através da literatura latino-americana: o Estado gerido como bem familiar Luiz Alberto Machado Desvendando a mente do investidor o domínio da mente sobre o dinheiro Manuel Nunes Redefinindo estratégia global Tharcisio Bierrenbach de Souza Santos e Fernanda Magnotta 190 193 198 202 Orientação para colaboradores 207

John Locke e os escolásticos da Escola de Salamanca André Azevedo Alves e José Manuel Moreira* Resumo: Depois de uma breve introdução à importância de Locke no contexto da tradição liberal, o texto faz um enquadramento histórico e teórico da Escola de Salamanca de modo a possibilitar uma fundamentada aproximação de Locke ao rico e fecundo pensamento da escolástica católica tardia. Tal aproximação visa mostrar como em vários domínios do econômico e político ao moral e religioso as teorias assumidas por Locke têm antecedentes entre os grandes autores de uma escola que não só terá sido a primeira a defender, dois séculos antes de Adam Smith, o liberalismo econômico, como terá constituído crucial fonte nutrícia do liberalismo político, cem anos antes de Locke. Palavras-chave: Locke, Escola de Salamanca, liberalismo, direito natural, religião. [T]he greater part of the political ideas of Milton, Locke, and Rousseau, may be found in the ponderous Latin of Jesuits who were subjects of the Spanish Crown, of Lessius, Molina, Mariana, and Suarez Lord Acton, Selected Writings of Lord Acton, Vol. I: Essays in the History of Liberty, p. 71. 1. Introdução: importância de Locke no contexto da tradição liberal A importância de Locke no contexto da tradição liberal é sobejamente conhecida e quase unanimemente reconhecida. Desde a admiração de Voltaire por le Sage Locke até a profunda influência de Locke nos pensadores contemporâneos, o seu papel central no pensamento liberal é indisputável. Hayek, por exemplo, recorre frequentemente a Locke para abordar questões como a de * André Azevedo Alves é Licenciado em Economia pela Faculdade de Economia do Porto (2003). Mestre em Ciência Política, variante de Teoria Política, no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa (2005). Doutorando em Ciência Política na London School of Economics. Tem colaborado com a Universidade de Aveiro, o Instituto Nacional de Administração, a Escola de Gestão do Porto e o Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa. E-mail: <A.Alves@lse.ac.uk>. José Manuel Moreira é Licenciado e doutorado em Economia e em Filosofia, é Professor Catedrático da Universidade de Aveiro (SACSJP). Contribuiu para a redescoberta e divulgação em Portugal de quatro grandes temáticas: ética econômica e empresarial, tradição austríaca da economia, análise econômica da política e governança e políticas públicas. Tem colaborado com entidades tais como o Instituto de Estudos Políticos (da UCP), o Instituto Nacional de Administração, a Escola de Gestão Empresarial e a Ordem dos Engenheiros. É também Membro da Direção da Associação Portuguesa de Ciência Política. E-mail: <jmoreira@ua.pt>. Texto com base na comunicação apresentada ao Simpósio comemorativo dos 300 anos da morte de John Locke (Lisboa, março de 2006). Uma primeira versão (mais reduzida) foi publicada em MORUJÃO, C.; MOIA, L. (orgs.) John Locke nos 300 anos da sua morte. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2009, p. 165-179. John Locke e os escolásticos da Escola de Salamanca, André Azevedo Alves e José Manuel Moreira, p. 5-19 5

saber qual a função própria das assembleias legislativas ou qual a concepção de justiça que deve ser aplicada na avaliação dos processos de competição. Nozick, por sua vez, baseia parte importante da sua influente teoria da justiça num refinamento da teoria da aquisição de Locke. Noutra linha, Strauss vê, pelo menos até certo ponto, Locke como o autor que melhor conseguiu estabelecer uma ligação entre as concepções tradicionais e as doutrinas modernas do direito natural. Os contributos de Locke continuam a ocupar uma posição de destaque na generalidade das discussões sobre o liberalismo, constituindo, nalguns casos, o ponto de partida para o desenvolvimento de novas perspectivas nessa área. Vejase, a título de exemplo, o caso de Huyler (1997), que encontrou em Locke a chave para definir um enquadramento conceitual que permite combinar o republicanismo com o liberalismo. Para este autor, a resolução das tensões entre republicanismo e liberalismo passa por uma reavaliação da própria teoria liberal clássica de Locke, em que a ênfase na participação cívica e na natureza social do homem acompanha de perto a defesa da propriedade e dos direitos naturais. Para a extraordinária riqueza e pluralidade das leituras e construções teóricas baseadas na obra de Locke muito terão contribuído, para além de fatores históricos 1, a diversidade dos seus interesses. De fato, contrariamente ao elevado grau de especialização que caracteriza uma boa parte da filosofia política contemporânea 2, Locke, como era característico dos mais destacados autores do seu tempo, dedicou-se a campos tão aparentemente díspares como a teologia, a filosofia, a economia, a medicina ou a educação. Por sua vez, mesmo no âmbito da filosofia, é verdadeiramente notável a abrangência dos contributos de Locke, que vão desde a metafísica e a lógica à epistemologia e à ética. A obra de Locke é assim, compreensivelmente, um ponto de partida obrigatório e repetidamente referenciado no tratamento dos mais diversos temas para uma grande parte dos autores que dão continuidade à tradição liberal clássica. Infelizmente, a (justificada) atenção dedicada a Locke raramente tem sido acompanhada por uma reflexão sobre o pensamento da escolástica católica ibérica que o precedeu e em alguns importantes aspectos antecipou 3. Procuraremos neste âmbito chamar a atenção para os pontos de ligação entre as teorias de Locke e as contribuições dos autores da chamada Escola de Salamanca. Ainda que correndo o risco de levantar interrogações mais do que dar respostas, dedicaremos particular atenção a alguns aspectos em que as contribuições da Escola de Salamanca assumem maior relevância para a compreensão e 1 Entre os quais se destaca a influência que os seus escritos viriam a ter no germinar da Revolução Americana e da Revolução Francesa. 2 Uma especialização que, em cada vez mais circunstâncias, assume um caráter de tal forma excessivo que o debate e a compreensão entre algumas das subdisciplinas da filosofia política contemporânea se tornam praticamente impossíveis. 3 Uma omissão a que Lord Acton alude, porventura hiperbolicamente, nos termos da citação com que abrimos este texto, chamando a atenção para o fato de muitas das mais importantes ideias políticas de Milton, Rousseau e Locke terem sido antecipadas por autores jesuítas ligados à tradição escolástica católica. 6 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009

enquadramento do pensamento de Locke e de todos os autores que seguiram na sua tradição. Procuramos dessa forma suscitar o interesse por várias possíveis linhas de investigação futura relativamente a esta relação. 2. Escola de Salamanca: enquadramento histórico e teórico O papel germinador do pensamento católico ibérico nos séculos XVI e XVII a que não é alheia a influência árabe e principalmente a reintrodução de Aristóteles, a partir da conquista de Toledo em 1085 foi muito significativo. A Escola de Salamanca (que não se reduz a Salamanca, já que da mesma Escola faziam parte Coimbra e Évora, por exemplo) não só foi a primeira a defender, dois séculos antes de Adam Smith, o liberalismo econômico nomeadamente através das importantes contribuições do português Luis de Molina como foi também a fonte que alimentou o liberalismo político, 80 anos antes de Locke. Que, depois, as coisas tenham mudado só prova que a subsequente prostração e atraso econômico da Península Ibérica acompanhou o esgotamento do pensamento liberal. Mas a falta de continuidade ibérica que afetou o pensamento dos escolásticos de Salamanca é um outro tema, que em nada afeta a sua relevância no âmbito da história do pensamento político e econômico 4. Terá sido esta história de descontinuidade no seu local de origem que nos impediu de reparar no potencial de valor da sementeira de uma Escola tão notável que outros se encarregaram, felizmente, de disseminar e cuidar para que desse fruto. Disseminação que não anula o nome de Escola de Salamanca 5 como o mais adequado para denominar um movimento que ultrapassou o mundo ibérico e que Marjorie Grice-Hutchison consagrou e deu a conhecer a todo o mundo científico (em especial ao europeu) com a sua obra The School of Salamanca (1952) 6. De fato, a Universidade de Salamanca (de onde deriva o nome da Escola) esteve na gênese de uma importante tradição intelectual, resultante do trabalho de um conjunto de professores de moral e teologia, majoritariamente jesuítas e dominicanos, que contribuíram para os mais variados domínios do saber humano. O trabalho destes autores é particularmente interessante porque aplica uma abordagem escolástica em larga medida tradicional e com firmes raízes católicas 4 Para uma mais completa abordagem desta problemática, cf. MOREIRA (1992) e ALVES (2005). 5 Escola hispânica espelharia melhor a ideia de que a escola não se limitou a Salamanca (não se pode esquecer a Complutense, em Alcalá de Henares), mas ao mesmo tempo também dá a entender uma excessiva identificação com a Espanha quando é sabida a importância de autores portugueses como Rebelo e Manuel Rodrigues; isto para além de distintos espanhóis que lecionaram em Portugal (Coimbra) como é o caso de Suárez e Martín de Azpilcueta, sem falar em Luis de Molina, que fez não só o noviciado como quase toda a carreira acadêmica em Portugal. Neste sentido, Coimbra e Évora devem ser vistas pelo menos a par de Alcalá de Henares. Para um breve apanhado da vida acadêmica ( estudos e magistério ) de Molina, cf. CAMACHO (1990, p. XVII-XXXI). Sobre a notória e marcante influência das obras de Molina, que não só chegaram às mais importantes universidades europeias (incluindo as da Áustria e da Alemanha) como dividiram professores e estudantes em grupos a favor e contra as ideias de Molina, ver ROMANO (1982, p. 261-287). 6 Mais tarde, a mesma autora publicou um outro artigo com a mesma denominação: La escuela de Salamanca, na Revista del Instituto de Estudios Economicos, 2, 1980, p. 45-52. John Locke e os escolásticos da Escola de Salamanca, André Azevedo Alves e José Manuel Moreira, p. 5-19 7

a campos que adquiriram uma importância renovada no seu tempo, com a descoberta do Novo Mundo 7. Muitos dos problemas teóricos com que os doutores de Salamanca se confrontaram encontram, até certo ponto, paralelo nas preocupações de Locke e essa poderá ser (sem desprimor para a genealogia das ideias) uma das razões pelas quais a obra deste último acaba em vários pontos por ter importantes semelhanças com a escolástica ibérica tardia. 3. Teologia, Estado e tolerância Uma abordagem muito comum é a de identificar Locke com uma ruptura no modo de reflexão filosófica e política prevalecente, afastando-o dos métodos supostamente antiquados da filosofia tradicional e abrindo as portas da modernidade. Insere-se nesta linha, por exemplo, a análise de Aarsleff quando refere que o principal legado de Locke foi libertar-nos do fardo da tradição e da autoridade, através do seu apelo ao empiricismo e da sua crença nas faculdades inatas da razão humana 8. Esta visão de Locke, hoje tão difundida, não deixa de ser curiosa se tivermos em conta que toda a sua filosofia assenta, tal como a dos escolásticos católicos que o antecederam, em fundamentos profundamente religiosos 9. Importa aqui recordar a forma como o próprio Locke concebia a teologia, o papel da autoridade divina e o objetivo último do conhecimento: Existe uma ciência... incomparavelmente superior a tudo o resto... refirome à teologia, a qual, contendo o conhecimento de Deus e das suas criaturas, dos nossos deveres para com Ele e para com as criaturas nossas semelhantes e uma visão do nosso estado presente e futuro, consiste na compreensão de todo o restante conhecimento dirigido ao seu verdadeiro fim, i.e., a honra e a veneração do Criador e a felicidade da humanidade. Este é um estudo nobre que é dever de todos os homens e que todo aquele que possa ser chamado uma criatura racional é capaz de realizar. 10 A este propósito vale a pena salientar as posições tanto da Escola de Salamanca como de Locke a respeito da tolerância. É verdade que os autores da 7 Para além das múltiplas questões morais e jurídicas suscitadas pelo contato com o Novo Mundo (que motivaram o aprofundamento da reflexão sobre muitos temas de direito natural), o grande incremento do comércio e dos fluxos monetários impulsionou importantes inovações no âmbito da teoria econômica. Para uma análise das contribuições dos escolásticos da Escola de Salamanca para a ciência econômica cf., GRICE-HUTCHISON (1952 e 1978), CHAFUEN (2003) e HUERTA DE SOTO (2005, p. 95-108). 8 Cf. AARSLEFF (1994, p. 252). 9 A generalidade dos estudos sobre Locke reconhece, como não poderia deixar de ser, as bases cristãs do pensamento do autor. Mas o que se trata aqui, no que diz respeito ao papel desempenhado pela religião, é de avaliar se Locke terá efetivamente entrado em ruptura com os métodos empregados na escolástica tardia. Embora não seja possível responder cabalmente a essa questão, é nosso entendimento que a proximidade da obra de Locke com as de escolásticos como Molina, Mariana e Suárez faz com que a tese da ruptura seja de muito difícil sustentação. 10 The Works of John Locke (12 ed.), 9 vols. (1824), Vol. II, p. 360. Citado em ASCHCRAFT (1990). Igualmente revelador é o fato de Locke possuir na sua biblioteca mais livros de teologia (870) do que de qualquer outra matéria; cf. ASHCRAFT (1990, p. 227). 8 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009

chamada escolástica tardia, fiéis à tradição católica, enfatizavam a importância da unidade religiosa, salientando a relação entre a religião e as virtudes cívicas 11. Esta posição pode parecer estranha por padrões contemporâneos, mas convém recordar que mesmo mais tarde, no fim do século XVII, o próprio Locke, na sua Letter Concerning Toleration, negava explicitamente a extensão da tolerância aos ateus e à Igreja Católica com os seguintes fundamentos: Essa Igreja não pode ter direito a ser tolerada pelo governante, já que todos os que nela ingressam se colocam, ipso facto, sob proteção e ao serviço de outro príncipe. Se tal acontecesse, o governante estaria a possibilitar o estabelecimento de uma jurisdição externa no seu próprio país e a permitir que os seus próprios súditos se alistassem, por assim dizer, como soldados contra o seu próprio governo. Nem a distinção frívola e falaciosa entre a corte e a Igreja remedeia esta inconveniência; especialmente quando tanto uma como a outra estão igualmente sujeitas à autoridade absoluta da mesma pessoa, que não só tem poder para persuadir os membros da sua Igreja de tudo o que decida, seja em termos puramente religiosos ou orientados pela religião, como pode também impor-se invocando a ameaça do fogo eterno. ( ) Por último, não poderão ser tolerados de forma alguma aqueles que negam a existência de Deus. As promessas, pactos e juramentos, que são os laços que unem a sociedade humana, não significam nada para um ateu. O afastamento de Deus, ainda que apenas em pensamento, tudo dissolve. Além disso, aqueles que através do seu ateísmo minam e destroem toda a religião não podem ter fundamentação religiosa alguma para reclamar o privilégio da tolerância. 12 Em suma, é certo que Locke revela confiança nas potencialidades da razão humana como instrumento para a prossecução do fim último da existência humana (um fim que é inquestionavelmente marcado pela autoridade divina). Mas a valorização da reta razão está longe de ser uma inovação, tendo desde sempre sido uma característica predominante da filosofia tomista, a ponto de ter assumido um lugar de destaque no pensamento da Escola de Salamanca. A ideia de Locke como libertador da filosofia das correntes da tradição e da autoridade abrindo-a às Luzes da modernidade parece, por isso, de difícil sustentação 13. É possível que muito da análise contemporânea de Locke esteja a imputar ao autor um secularismo que, na realidade, existe apenas na mente dos historiadores contemporâneos. 11 Sobre este tema, veja-se ALVES e MOREIRA (2009, no prelo). 12 LOCKE (1990, p. 63-64). Sobre a tolerância religiosa em Locke, veja-se também HENRIQUES (2009, p. 123-125). 13 Parece-nos a este respeito bem mais sustentável a posição de WALDRON (2002) com a sua preocupação de articular as posições de Locke quanto aos direitos e dignidade dos indíviduos com as bases cristãs do seu pensamento. Ainda que o igualitarismo atribuído por Waldron a Locke seja no mínimo contestável, o método empregue na exposição desse argumento parece-nos mais correto do que o dos autores contemporâneos que sucumbem à tentação de descobrir um Locke secularizado, por vezes quase pósmoderno, ignorando a forma como Locke efetivamente apresentou e fundamentou as suas posições. John Locke e os escolásticos da Escola de Salamanca, André Azevedo Alves e José Manuel Moreira, p. 5-19 9

4. Molina, Lugo e Grócio: para uma aproximação de Locke ao pensamento da Escola de Salamanca Sendo certo que não há uma presença direta e imediata da escolástica católica tardia na obra de Locke, é ainda assim possível estabelecer uma ligação indireta muito significativa. Se deixarmos de lado as origens gregas (Aristóteles) e o seu renascimento escolástico (primeiro com Tomás de Aquino e depois com o desenvolvimento da Escola de Salamanca), deparamo-nos com um conjunto de formulações pré-racionalistas dos filósofos centro-europeus do direito natural, em especial Grócio 14. Conviria aqui recordar a problemática religiosa e política que agitava a Europa para compreender o porquê das omissões e ausência de referências escolásticas nas fontes dos autores protestantes do século XVII. Neste âmbito, a opinião hoje aceita é que Grócio não só desempenhou um papel de transmissão indireta (pertencia à corrente reformadora do arminianismo 15, que o tornava aceitável para anglicanos, calvinistas e luteranos) como conhecia os textos da maior parte dos teólogos escolásticos, ainda que, por compreensíveis razões de oportunidade, os citasse pouco. Mesmo assim, na sua obra, aparecem nomes como Vitoria, Covarrubias, Azpilcueta e outros membros da Escola de Salamanca. A este respeito, o que nos interessa mais é assinalar as influências de toda esta doutrina jusnaturalista no posterior pensamento econômico e político de Locke, e precisamente por meio dos escritos de Grócio e outros filósofos do direito. Nesta linha, que interliga as ideias greco-romanas sobre a ordem natural e o Direito das Gentes escolástico, Pribram (1983, p. 60) sustenta que se chegou a um novo corpus de pensamento que cristaliza em Grócio: Estas perspectivas foram elaboradas em 1625 pelo autor holandês Hugo Grócio (1583-1645), que ensinou na sua obra De iure belli ac pacis que o sancionamento divino das regras do direito natural foram dadas a conhecer à humanidade pelos imperativos da reta razão [recta ratio]. A mente humana, tomando parte na razão universal, foi considerada capaz de compreender as leis que a natureza ensinava. Esta concepção da relação entre razão e direito natural gozou de uma aceitação abrangente. Ela forneceu também a coluna dorsal para uma amplamente lida obra sobre direito natural e direito internacional (1672) da autoria do professor alemão Samuel von Pufendorf. Trata-se assim de uma versão secular da Lei Natural que arranca com Grócio 16 e que define os direitos naturais que a razão demonstra como 14 Grócio, que parece ter sido um autor particularmente relevante para Locke se atendermos não só ao número de obras do primeiro de que Locke dispunha na sua biblioteca pessoal, mas também às abundantes anotações e citações de Grócio presentes nos manuscritos não publicados de Locke. Cf. ASHCRAFT (1990, p. 237) 15 Doutrina dos seguidores do teólogo holandês J. Harmensen (1560-1609), mais conhecido por Armínio, que defendia a teoria da predestinação absoluta. 16 A este propósito veja-se também León GÓMEZ RIVAS (2005). 10 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009

pertencentes aos indivíduos em virtude da sua humanidade, e que correspondem à posterior formulação de Locke como o direito à vida, à liberdade e à propriedade. A este propósito, Hayek constituiu uma exceção entre os lockeanos, não deixando de salientar as raízes gregas e romanas da tradição não-racionalista do direito natural, mas insistindo em que se deve aos escolásticos ibéricos do século XVI o impulso maior que conduziu à descoberta e explicação da ordem autogerante nos assuntos sociais. Uma ordem baseada no reforço das normas gerais de conduta justa que protegem um domínio privado reconhecível dos indivíduos. Ora, foi a descoberta desta ordem espontânea de atividades humanas de muito maior complexidade do que alguma vez podia ser produzida por arranjo deliberado 17 devida aos últimos escolásticos, aos jesuítas espanhóis e aos portugueses do século XVI que acabou por conduzir a um debate que levou a um questionamento sistemático sobre a forma como se teriam ordenado as coisas se não tivessem sido dispostas pelos esforços deliberados do governo; desta forma eles produziram o que eu denominaria as primeiras teorias modernas da sociedade se o seu ensinamento não tivesse sido submergido pela maré racionalista do século posterior 18. Em nota a esta passagem, Hayek considera Luis de Molina, deste ponto de vista, como o mais importante dos jesuítas do século XVI 19. Para Hayek, como por certo para Molina, tanto a palavra razão como a expressão lei natural não podem ser assimiladas à lei da razão 20, e por isso critica todos aqueles cujo racionalismo construtivista os levou a pensar que não só todas as instituições culturais eram produto de uma construção deliberada, mas também que tudo o que fosse concebido a partir desta era necessariamente superior a toda a mera evolução 21. Só a partir desta posição de Hayek é possível perceber porque insiste ele, por um lado, em que a razão inclui, como para Locke, a capacidade do espírito para distinguir entre o bem e o mal, isto é, entre o que estava ou não estava de acordo com as normas estabelecidas; e, por outro, nega à razão a capacidade de construir tais normas por dedução de premissas explícitas. De igual modo se justifica que, para Molina, a determinação do preço justo suponha a livre atuação de múltiplos homens que atuam de acordo com regras a que se submetem, independentemente dos seus objetivos e da influência de inúmeras circunstâncias exteriores particulares que na sua totalidade ninguém 17 Cf. HAYEK (1967, p. 162). 18 HAYEK (1985, p. 255). 19 Ibidem. Recorde-se que a obra de Molina esteve na origem da corrente filosófica e teológica designada por molinismo, a qual foi amplamente difundida e comentada nos séculos XVII e XVIII. 20 HAYEK (1998, Vol. I, p. 21). 21 No que diz respeito às consequências desta assimilação, Hayek acrescenta que: Sob esta influência, a concepção tradicional da lei natural transformou-se, a partir da ideia de que algo se tinha formado pela adaptação gradual à natureza das coisas, em algo que a razão, com que no princípio o homem tinha sido dotado, lhe permitiria projetar. Cf. HAYEK (1985, p. 255-256). John Locke e os escolásticos da Escola de Salamanca, André Azevedo Alves e José Manuel Moreira, p. 5-19 11

pode conhecer 22. O que levou mesmo Hayek, apoiando-se no cardeal Johannes de Lugo, a salientar que o preço matemático exato a que uma mercadoria podia ser justamente vendida só Deus o podia conhecer, dado que ele depende de muitas mais circunstâncias do que qualquer homem podia conhecer, e, por conseguinte, a determinação do preço justo deve ser deixada ao mercado 23. Isto conduzirá Hayek a, apoiando-se de novo em Molina e Höffner, entre outros, defender que, depois de muitas disputas, os últimos escolásticos acabaram por reconhecer que os preços se determinavam pela conduta justa dos participantes no mercado, isto é, que o que a justiça requeria era que os preços competitivos fossem alcançados sem fraude, monopólio e violência 24. Foi desta tradição que, segundo Hayek, John Locke e os seus contemporâneos fizeram derivar a concepção liberal clássica que reconhece que, no que se refere à economia de mercado, só se pode falar verdadeiramente de justiça quanto ao comportamento dos participantes no jogo, não quanto ao seu resultado 25. A interpretação de Locke no que diz respeito a estas temáticas é matéria controversa (e provavelmente sempre o será). No entanto, como explica Rothbard (1995, p. 313-134), muitas das dicotomias habitualmente estabelecidas podem ser vistas como artificiais: A discussão historiográfica sobre o grande teórico político liberal John Locke (1632-1704) que decorreu a seguir à Guerra Civil, e em especial durante a década de 1680, tem estado imersa num turbilhão de interpretações em conflito. Terá sido Locke um pensador político radicalmente individualista ou um escolástico protestante conservador? Individualista ou defensor das maiorias? Filósofo puro ou intriguista revolucionário? Arauto radical da modernidade ou alguém que olhava para o passado, para a virtude medieval ou clássica? Curiosamente, a maioria das interpretações não são realmente contraditórias. Atualmente, temos obrigação de compreender que os escolásticos, além de terem dominado as tradições medievais e pós-medievais, também foram pioneiros e responsáveis pela elaboração do direito natural e dos direitos naturais. O choque entre tradição e modernidade é uma antítese em boa medida artificial. Modernos, como Locke, e talvez mesmo Hobbes podem ter sido individualistas e pensadores de direita, mas também estavam imbuídos de escolasticismo e de 22 Cf. HAYEK (1985, p. 10). A ênfase na livre atuação dos sujeitos (que expressa o reconhecimento de uma limitação radical no conhecimento humano da lei natural e a sua aplicação à realidade e também a dimensão temporal e expectativas implicadas na livre decisão num dado momento do tempo ) e no peso das múltiplas circunstâncias concretas que definem a natureza dos casos (a natura rei ) é também notada por Camacho. Segundo Camacho, a recusa por parte de Molina de uma aplicação tanto mecanicista como arbitrária da lei natural está na raiz filosófica do seu probabilismo e implica a valorização do juízo prático da reta razão. Cf. CAMACHO (1989, em especial, p. XVII-XVIII). 23 LUGO, J. Disputatio de iustitia et iure tomus secundus (Lyon, 1642), disp. 26, sec. 4, nº 40: incertitudo ergo nostra circa pretium iustum Mathematicum... provenit ex Deo, quod non sciamus determinare ; ver HÖFFNER, J. Wirtshaftsethik und Monopole im fünfzehnten und sehzehnten Jahrhundert (Jena, 1941), p. 114-115. Citado em HAYEK (1998, Vol. I, p. 21 e 151 [nota 24] ). 24 HAYEK (1998, Vol. 2, p. 73). 25 Ibid., p. 73-74. 12 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009

direito natural. Locke pode ter sido, e certamente foi, um empenhado protestante, mas também foi um escolástico (protestante) fortemente influenciado pelo fundador da escolástica protestante, o holandês Hugo Grócio. Tendo em conta que estão presentes em Grócio fortes influências da escolástica católica tardia, Rothbard argumenta que, embora Locke tenha desenvolvido a teoria dos direitos naturais de forma mais completa do que os seus predecessores, a sua abordagem se encontra, em larga medida, na continuidade da tradição escolástica do direito natural 26. Ainda sobre este ponto, vale a pena ter em conta a chamada de atenção feita por Zaratiegui, num texto sobre a propriedade em alguns autores da Escola de Salamanca, sobre a assombrosa similitude entre Lugo e Locke. Uma afirmação que se apoia na posição de Lugo em relação ao estado de natureza em que todas a coisas eram comuns, mas com duas ressalvas importantes: a população era reduzida e, sobretudo, havia uma grande abundância de bens à disposição desses poucos. A ponto de que cada um tinha tudo o que necessitava para a vida sem necessidade de esforço, mas entendendo a apropriação como atividade natural do homem: a pacífica e necessária ocupação de algo que, de outro modo, ficaria estéril e vazio. Tal similitude é ainda mais clara se atendermos à relação que Lugo estabelece entre propriedade e trabalho e que leva Zaratiegui a defender que Locke, ainda que pertencendo a um mundo muito diferente, conheceria os escritos de Lugo. Uma relação em que Lugo, ao contrário da maioria dos escolásticos e corrigindo Vitoria, diz não ser preciso ninguém decretar por lei quem é proprietário de algo, basta apropriar-se: ocorre que como as árvores que, sendo comuns antes de cortadas, uma vez cortadas passam a ser próprias de quem as corta, e já não do domínio da comunidade, dado que só eram comuns até serem de alguém por meio do corte (Lugo). O que significa a admissão da propriedade privada no estado de natureza original. Locke, como Lugo, apontariam assim para um entendimento da riqueza como unida à ideia de eficácia, no sentido de que, mais que uma questão moral, o problema da riqueza seria, no limite, um problema técnico. Daí que, em vez de insistirem nas virtudes da redistribuição, os dois autores tendam a realçar o trabalho (até como fonte de melhoria pessoal): a abundância de bens materiais, própria do estado de natureza, transforma-se assim numa situação a da sociedade civil em que grande parte desses bens são escassos (econômicos) a ponto de ser necessário o esforço diligente para que sejam suficientes em ordem a atender às necessidades humanas 27. 26 Cf. ROTHBARD (1995, p. 314). Uma posição que leva a que ROTHBARD (1995, p. 339) seja, como seria de esperar, fortemente crítico da forma como STRAUSS (1953) concebe uma hipotética quebra de Locke (até certo ponto seguindo Hobbes) com a tradição do direito natural. 27 O que significa inclusive dar entrada a conceitos básicos de economia como escassez e eficiência. A este propósito Zaratiegui admite até que Locke possa ter tomado de Lugo a ideia de enriquecimento, a produtividade ilimitada dos bens. Para um mais completo desenvolvimento sobre todos estes pontos, veja-se, ZARATIEGUI, J.M. La propiedad en algunos autores de la Escuela de Salamanca. Cuadernos de CC.EE y EE, 2000, p. 87-93. John Locke e os escolásticos da Escola de Salamanca, André Azevedo Alves e José Manuel Moreira, p. 5-19 13

5. Suárez, Mariana e os escolásticos de Salamanca como precursores de Locke Hayek, que se assumiu muitas vezes como um velho Whig, defende que, apesar da clara contribuição de alguns pensadores da Antiguidade Clássica, a primeira tentativa sistemática de explicitação dessa ordem espontânea foi levada a cabo pelos escolásticos, a partir dos fundamentos derivados de Aristóteles por Santo Tomás de Aquino 28. Um esforço que os últimos escolásticos ibéricos souberam aproveitar para criar os alicerces de um sistema de política liberal, especialmente no campo econômico, em que anteciparam muito do que só foi restaurado depois pelos filósofos escoceses do século XVIII e, em alguns aspectos, por Locke 29. Assim, por exemplo, como demonstra Tully (1994, p. 168-172), a abordagem de Locke ao estado de natureza e ao direito da guerra, apesar de algumas diferenças relativamente aos seus antecessores, é essencialmente uma reafirmação das teorias de Pufendorf, Grócio e Suárez, sendo que, por sua vez, estes autores adaptaram os anteriores contributos de escolásticos como Francisco de Vitoria (fundador da Escola de Salamanca), Alonso de la Vera Cruz e Bartolomé de las Casas. Entre os autores que rejeitam a ideia de ruptura e observam na obra de Locke a continuidade da tradição escolástica do direito natural, inclui-se também Simmons (1992, p. 96), que dificilmente poderia ser mais claro quando afirma: Foi até recentemente quase obrigatório começar as discussões sobre a teoria dos direitos naturais com a observação de que o conceito de direito natural é essencialmente um conceito moderno. (...) Sabemos agora, claro, que as teorias dos direitos naturais (pelo menos numa forma rudimentar) foram desenvolvidas bastante mais cedo do que a sabedoria convencional sugeria. (...) Essas primeiras teorias dos direitos foram largamente ignoradas durante a Renascença mas foram reanimadas na década de 1580, desenvolvendo-se finalmente através das obras de Molina, Suárez e Grócio até originarem a forma de teoria dos direitos naturais que mais diretamente influenciou Locke. Mas o caráter precursor da Escola de Salamanca ter-se-á estendido também ao campo da ação política, com uma contribuição decisiva para a aventura do maior empreendimento do novo mundo: os EUA. É aqui de grande ajuda o professor Joris Steverlynck, da Universidade Católica de Buenos Aires, quando sustenta a tese 30 de que a primeira constituição do povo norte-americano, a chamada Fundamental Orders do Estado de Connecticut, promulgada em 1639, 28 Daí que Maritain, subscrevendo a opinião de Lord Acton, diga: Não foi o diabo, foi Santo Tomás de Aquino o primeiro Whig ; cf. MARITAIN (1960, p. 55). 29 Cf. HAYEK (1985, p. 123). Para uma perspectiva divergente, que considera as divergências de Locke relativamente a Hooker como um afastamento implícito da abordagem jusnaturalista tomista, cf. SCHNEEWIND (1994, p. 208-212). 30 Cf. STEVERLYNCK (1986). 14 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009

não pode ser devida ao pensamento de John Locke (1632-1704), considerado como o primeiro inspirador da democracia americana moderna, já que Locke, que efetivamente teve grande relação na década de 1670 com os 13 Estados Coloniais, só publicou as suas primeiras obras em 1687 e 1690. Muito provavelmente foi o contrário que aconteceu. O pai da democracia política, Locke, recebeu as suas ideias do pensamento liberal que imperava nas longínquas colônias americanas. Mas de onde surgiu a genial inspiração que levou a uns quantos colonos, afastados dos centros de pensamento da velha Europa, a desenvolver uma teoria política tão em contraste com a que imperava na sua época? Steverlynck aponta uma hipótese segundo a qual a fonte seria a Escola de Salamanca e que as coisas poderão ter acontecido da seguinte forma: Francisco Suárez (1548-1617), eminente doutor da dita Escola, publicou em 1613 a sua famosa Defensio fidei catholicae, que, pelas suas ideias políticas, não religiosas, foi mandada queimar tanto pelo rei anglicano inglês (Jaime I) como pelo cristianíssimo rei francês (Luís XIII), mas foi acolhida favoravelmente na Península Ibérica, apesar da insistência do inglês sobre o monarca reinante Filipe III, já que na altura o absolutismo não imperava plenamente na Espanha, ainda que fosse a doutrina oficial na Inglaterra e na França. Ora, a Defensio fidei terá sido conhecida por Thomas Hooker, clérigo puritano que estudava em Cambridge desde 1611. Hooker, por oposição às teorias absolutistas de Jaime I, teve de fugir para a Holanda e daí, em 1633, emigrou para Massachusetts, donde atuou como um dos líderes dos dissidentes que fundaram Connecticut em 1638, e cuja constituição verteu ideias de tal natureza que a única fonte doutrinária de onde poderão ter sido extraídas foi de Francisco Suárez 31 (1548-1617), o destacado jesuíta espanhol, que ensinou teologia na Espanha, em Roma e em Portugal (1597) exímio professor da Universidade de Coimbra, onde permaneceu até a sua sepultura na igreja de São Roque. Por sua vez, Rothbard (1995, p. 117-118) realça a importância de Juan de Mariana (1536-1624) como precursor de Locke, argumentando que a sua importância deve ser considerada superior até à de Suárez: [É] Mariana, e não Suárez, quem deve ser considerado o precursor da teoria, exposta por Locke, do consentimento popular e da permanente superioridade do povo sobe o governo. Mais ainda: Mariana também se antecipou a Locke ao sustentar que os homens deixam o estado de natureza para formar governos com o fim de preservar os seus direitos de propriedade. Mariana foi também muito mais além do que Suárez ao postular um estado de natureza, uma sociedade, prévia à instituição do governo. 31 A importância de Suárez para a América Latina está aliás bem patente no livro (veja-se entre nós a recensão de António PAIM, em Nova Cidadania, 7, 2001, p. 68-70) de Ricardo Vélez RODRIGUEZ, Estado, Cultura y Sociedade en la América Latina (2000). Texto em que o autor, a partir da obra de Silvestre Pinheiro e dos gaúchos Assis Brasil e Silveira Martins, chama a atenção para a influência da tradição liberal peninsular e, em especial, de Francisco Suárez, afirmando que tendo presente o contexto da doutrina suareziana sobre o Estado, podemos entender que não era necessário pensar num influxo de ideias revolucionárias francesas ou americanas sobre os neogranadinos para explicar as reivindicações políticas durante a Colônia e na geração anterior à independência (p. 189). John Locke e os escolásticos da Escola de Salamanca, André Azevedo Alves e José Manuel Moreira, p. 5-19 15

(...) Mariana também acrescentou em frases que antecipam o direito à rebelião formulado por Locke e contido na Declaração de Independência que não temos de nos preocupar excessivamente em termos de ordem pública pelo fato de poder haver um número excessivo de pessoas dispostas a praticar o tiranicídio. Trata-se, segundo Mariana, de uma iniciativa perigosa, que muito poucos estarão dispostos a cometer com risco da própria vida. A experiência demonstra que são muitos os tiranos que não conheceram a morte violenta, e também que os tiranicidas quase sempre foram proclamados como heróis pela população. Em vez de colocar objeções comuns ao tiranicídio seria saudável que os governantes temessem o povo e compreendessem que cair na tirania poderia levar o povo a chamá-los a prestar contas pelos seus crimes. Cremos que a partir dos exemplos apresentados é possível ter uma ideia, não só da riqueza e fecundidade das contribuições dos escolásticos de Salamanca, como também da multiplicidade de questões que se colocam quanto à relação da obra de Locke com as teorias e problemas já considerados pela escolástica católica tardia. 6. Conclusão Está ainda por fazer um inventário sobre os reais prejuízos materiais e humanos que pagamos, ao longo da nossa história, por uma equívoca relação entre liberalismo e catolicismo. Um equívoco que quase eliminou o papel germinal do pensamento econômico ibérico dos séculos XVI e XVII, tanto ao nível do liberalismo econômico como do liberalismo político. Não está em causa o muito que devemos à tradição do pensamento econômico e político anglosaxônico, mas tal não se deve fazer com o esquecimento do que aconteceu antes de autores tão notáveis como Adam Smith e John Locke. A denúncia fundamentada da abusiva ligação feita por Weber entre protestantismo e desenvolvimento (versus catolicismo e subdesenvolvimento) passa também pela recuperação dos ensinamentos dos pensadores da Escola de Salamanca. Uma recuperação pode ajudar-nos a compreender melhor as razões por que fomos tão longe e por que tão cedo acabamos por perder a dianteira. Ao procurar evidenciar pontes entre a obra de Locke e as contribuições dos escolásticos da Escola de Salamanca, este texto pode ser visto como uma oportunidade para resgatar um saber a que não soubemos dar continuidade. Um saber que encerra em si as contradições que acompanharam a aventura das descobertas, mas que, aprofundado, pode constituir-se como impulso para uma nova visão das coisas humanas, ajudando assim a esboçar um novo caminho do meio entre as sociedades de pobreza e as sociedades de consumo. Acresce que a familiaridade com o papel seminal do pensamento católico ibérico é hoje fulcral também para descobrir que a tradição liberal clássica possui na realidade raízes cuja profundidade vai muito para além da filosofia política moderna. Daí que o estudo das contribuições dos escolásticos de Salamanca e a 16 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009

análise da sua relação com os filósofos liberais que se lhes seguiram possa ser tanto um valioso exercício de história do pensamento político como também em tempos de crise fonte para uma abordagem política mais integralmente humana e, por isso, mais genuinamente personalista. Na verdade, como se procurou evidenciar, a Escola de Salamanca não só terá sido a primeira a defender, dois séculos antes de Adam Smith, o liberalismo econômico, como terá constituído uma importante fonte nutrícia do liberalismo político, cem anos antes do justamente celebrado Locke. Referências bibliográficas AARSLEFF, H. Locke s Influence. In: CHAPPEL, V. (ed.) The Cambridge Companion to Locke. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. ACTON, J.E.E.D. Selected Writings of Lord Acton, Vol. I: Essays in the History of Liberty. Indianapolis: Liberty Fund, 1985. ALVES, A.A. Estudo introdutório. In: HUERTA DE SOTO, J. Escola Austríaca: Mercado e criatividade empresarial. Lisboa: Espírito das Leis, 2005. ALVES, A.A.; MOREIRA, J.M. The Salamanca School. Continuum. Obra inserida na coleção Major Conservative and Libertarian Thinkers, editada por John Meadowcroft (2009, no prelo). ASHCRAFT, R. John Locke s library: portrait of an intellectual. In: YOLTON, J.S. (ed.). A Locke Miscellany: Locke Biography and Criticism for All. Bristol: Thoemmes, 1990, p. 226-245.. (ed.). John Locke: Critical Assessments. Vol. II. London: Routledge, 1991. CAMACHO, F.G. Introducción. In: MOLINA, L. Tratado sobre los prestamos y la usura. Madrid: Instituto de Estudios Fiscales, 1989, p. XI-XLI.. (1990), Introducción. In: MOLINA, L. Tratado sobre los cambios. Madrid: Instituto de Estudios Fiscales, 1990, p. XI-XCI. CHAFUEN, A.A. Faith and Liberty. The Economic Thought of the Late Scholastics. 2 ed. New York: Lexington Books, 2003. Existe tradução para o espanhol publicada em 1991 com o título Economia y Ética (Madrid: Ediciones RIALP). GÓMEZ RIVAS, L. Economía Y Guerra, el pensamiento económico y jurídico desde vitória a Grocio (y después). Stvdia Historica (História Moderna), Ed. Universidad Salamanca, vol 27, 2005, p. 135-159. GRICE-HUTCHISON, M. The School of Salamanca: Readings in Spanish Monetary Theory, 1544-1605. Oxford: The Clarendon Press, 1952.. Early Economic Thought in Spain, 1177-1740. Londres: George Allen & Unwin, 1978. John Locke e os escolásticos da Escola de Salamanca, André Azevedo Alves e José Manuel Moreira, p. 5-19 17

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Exigências ambientais externas como barreiras comerciais ao Brasil Stela Luiza de Mattos Ansanelli * Resumo: O objetivo deste artigo é verificar os casos nos quais o rigor excessivo das exigências ambientais dos países desenvolvidos constituiu barreiras técnicas e sanitárias às exportações brasileiras, bem como os desafios impostos e as possibilidades de superação. É permitido o protecionismo no âmbito dos acordos multilaterais de comércio para a proteção da saúde animal, vegetal, humana e do meio ambiente. Mas os mercados dos Estados Unidos, União Europeia e Japão impõem algumas exigências excessivas sobre produtos agropecuários e, recentemente, sobre certos manufaturados. Esse quadro representa um desafio à competitividade do Brasil, visto que os produtos tradicionalmente superavitários da pauta brasileira são os mais afetados por essas medidas. A superação desses obstáculos passa pela montagem de um sistema de informações, de capacitação institucional, técnica e financeira e da articulação entre as principais organizações de comércio dentro e fora do país. Palavras-chave: barreiras comerciais, exigências ambientais 1. Introdução A preocupação ambiental vem tomando espaço crescente na agenda política dos governos nacionais desde os anos 60 e, a partir de então, os instrumentos de política ambiental têm sido utilizados com maior frequência e de forma cada vez mais variada. Inicialmente as medidas de política ambiental foram estabelecidas pelos países avançados por meio da implementação de multas e proibições da produção, seguida pela adoção progressiva de instrumentos econômicos como taxas e de instrumentos de comunicação como selos ambientais. As questões ambientais têm uma interface com o comércio internacional na medida em que o país que estabelece regras sobre a produção e a importação de produtos de modo ambientalmente adequado pode afetar a produção e a comercialização do país exportador. Essas relações, embora inseridas na ordem dos acordos de comércio multilateral da Organização Mundial do Comércio (OMC), tornam-se nebulosas diante da dificuldade de identificar a real intenção * Stela Luiza de Mattos Ansanelli é Doutora em Economia Aplicada pela Unicamp e professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). E-mail: <stelansa@hotmail.com>. 20 Revista de Economia & Relações Internacionais, vol.8(15), 2009

do país importador na implementação de uma medida ambiental sobre certos produtos. Em muitos casos as medidas restritivas estabelecidas pelo país importador sobre determinados produtos visam garantir objetivos legítimos de proteção ambiental, mas em outros, tais exigências podem ser medidas protecionistas revestidas de pretextos ambientais. Ainda há discussões quanto a essa questão, mas as evidências indicam que, com a redução das barreiras tarifárias ao comércio resultante do avanço das negociações multilaterais desde o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt- 1947), tem sido crescente a quantidade de barreiras não-tarifárias estabelecidas pelos países, com destaque para as barreiras técnicas, sanitárias e fitossanitárias. Essas barreiras associam-se à segurança nacional, alimentar e à proteção ambiental (FONTAGÉ, VON KIRCHBACH, MIMOUNI, 2001). Alguns estudos concluíram que países em desenvolvimento enfrentam maiores dificuldades no cumprimento das exigências ambientais externas, pois são exportadores de produtos primários e possuem deficiências em termos de recursos técnicos, financeiros e institucionais (HOFFMAN, ROTHERHAN, 2006; VERBRUGGEN et al, 1998) O objetivo deste artigo é verificar em quais casos a proteção ambiental excessivamente rigorosa colocada por países desenvolvidos tem se tornado obstáculo comercial para o Brasil, e avaliar as implicações decorrentes. Neste trabalho será discutido o significado das exigências ambientais para a dinâmica do comércio internacional. Serão apresentadas as principais barreiras comerciais (técnicas, sanitárias e fitossanitárias) de caráter ambiental colocadas sobre as exportações brasileiras pelos mercados desenvolvidos e a caracterização de seus marcos regulatórios. Por fim, discutem-se os desafios colocados por essas barreiras, bem como os possíveis caminhos de superação. 2. As exigências ambientais na dinâmica do comércio internacional Ao longo do processo de liberalização comercial iniciado com o Gatt em 1947 e sucedido por uma série de rodadas de negociação, vem sendo buscada a eliminação gradativa de barreiras tarifárias ao comércio internacional. A fim de evitar que outras medidas não-tarifárias configurassem obstáculos ao comércio, durante a Rodada Tóquio (1973-1979) foi negociado o Standard Code, formalizado como o Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio (TBT) na Rodada Uruguai (1986-1993), na qual também foi estabelecido o Acordo sobre Medidas Sanitárias e Fitossanitárias (SPS) no âmbito da OMC. Esses acordos estabeleceram regras quanto às características dos produtos comercializados e permitem a restrição de produtos que ameaçam a vida humana, vegetal, animal e o meio ambiente. Mas em alguns casos essas medidas podem ter propósitos estritamente protecionistas e se tornar barreiras comerciais. As exigências técnicas estabelecidas pelos países se constituem de normas, regulamentos e procedimentos de avaliação da conformidade. Tanto as normas quanto os regulamentos referem-se às características do produto e podem incluir prescrições, símbolos e embalagens, entre outros, mas normas são medidas Exigências ambientais externas como barreiras comerciais ao Brasil, Stela Luiza de Mattos Ansanelli, p. 20-35 21