Ensino superior em Portugal, : um ensino de/para elites?

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Transcrição:

Luisa Cerdeira Instituto de Educação, Universidade de Lisboa luisa.cerdeira@ie.ulisboa.pt Belmiro Gil Cabrito Instituto de Educação, Universidade de Lisboa b.cabrito@ie.ulisboa.pt José Tomás Patrocínio Instituto de Educação, Universidade de Lisboa tpatrocinio@ie.ulisboa.pt Maria de Lourdes Machado CIPES, Universidade do Porto lmachado@cipes.up.pt Rui Brites Instituto Superior de Economia e Gestão, Universidade de Lisboa rui.brites@outlook.com Ana Paula Curado Instituto de Educação, Universidade de Lisboa curadoap@gmail.com Resumo Ensino superior em Portugal, 1995-2015: um ensino de/para elites? Intervir para melhorar será, quanto a nós, o objectivo de qualquer medida de política. Dificilmente se melhora uma situação se dela não se conhecer, o mais possível, os seus contornos. Neste quadro, e no caso específico da educação, dificilmente uma medida de política é eficaz se o legislador desconhecer o problema que pretende resolver ou minimizar. Se se der atenção ao ensino superior em Portugal, e à necessidade de contribuir para a sua democratização, não é expectável que este objectivo seja alcançado sem o conhecimento de inúmeras variáveis de entre as quais salientamos a origem social e económica da população estudantil. Em razão da importância indiscutível do conhecimento dessa variável para a definição de políticas públicas de educação e perante o desinteresse das entidades oficiais, os autores têm vindo a investigar esta

realidade desde meados da década de 1990, através da aplicação de um questionário a uma amostra representativa dos estudantes do ensino superior, público e privado. Neste artigo apresentam-se os resultados preliminares do estudo levado a cabo pelos autores em 2015/2016 intitulado Custos dos Estudantes do Ensino Superior - CESTES 2, financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, nomeadamente acerca da capacidade económica dos estudantes do ensino superior, em Portugal e comparam-se os dados colectados com dados homólogos de estudos anteriores levados a cabo pelos autores (em 1995, 2005 e 2010), com o objectivo de compreender melhor a dimensão do processo de democratização do ensino superior em Portugal. Palavras-chave: Ensino Superior; Origem Socioeconómica dos Estudantes do Ensino Superior; Elites.

Ensino superior em Portugal, 1995-2015: um ensino de/para elites? Introdução O ensino superior em Portugal registou um desenvolvimento muito considerável nas últimas décadas. A necessidade de responder, por um lado, aos problemas com que se debate uma economia que se confronta com a concorrência global e, por outro, de garantir a todos os portugueses o direito à educação e de tornar efectiva a possibilidade de ascensão social e de maiores ganhos monetários que a educação potencia como a investigação vem provando (Boudon, 1973; Bourdieu & Passeron, 1964, 1970; Becker, 1964; Schultz, 1961), são razões que têm fundado as medidas de política educativa que sucessivos governos têm tomado no sentido da democratização e universalização da educação, nomeadamente em Portugal (Grácio, 1986; Cabrito, 2002). Nestas circunstâncias se percebe a exigência e a racionalidade de medidas educativas públicas que têm sido tomadas em Portugal, decorrentes da Revolução Democrática de 1974 que pôs fim a décadas de ditadura, como o estabelecimento de uma escolaridade obrigatória (progressivamente de 6, 9 e os actuais 12 anos de escolaridade), o intenso processo de formação docente ocorrido, o incremento e a diversificação da oferta do ensino superior, a expansão e consolidação da rede de ensino superior, a definição de condições de acesso ao ensino o superior, o aumento do número de vagas nas universidades e nos institutos superiores politécnicos, o estabelecimento de um estatuto da carreira docente do ensino superior, sucessivas leis de financiamento do ensino superior público, a abertura do ensino superior à iniciativa privada, a mais recente legislação sobre o regime jurídico das instituições públicas de ensino superior, a diminuição da participação do estado no orçamento das instituições públicas ou a exigência, aos estudantes, do pagamento de uma taxa de frequência do ensino superior público. Naturalmente, nem todas as medidas acima enunciadas, e outras ainda que foram tomadas, apresentam a mesma dimensão ou aceitação sendo muito debatidas e questionadas situações como a diminuição da participação do estado no orçamento das instituições de ensino superior e a exigência de pagamento de propinas aos estudantes, factos que induzem um forte processo de privatização do ensino superior público, em Portugal. De facto, estas medidas de política educativa, pelas dificuldades que colocam

aos estudantes, parecem vir a contrariar as intenções de alargamento da base social de recrutamento dos estudantes do ensino superior e de democratização deste segmento educativo. O mesmo é sugerido pelo novo regime jurídico das instituições públicas de ensino superior que institui um Conselho Geral, o qual é o órgão a quem cabe definir a missão das instituições e que é composto por elementos internos e externos à instituição, e que substituiu cargos electivos por cargos de nomeação induzindo para um défice progressivo de democraticidade nos órgãos de governação das instituições públicas de ensino superior. Independentemente da (não)consensualidade de parte das medidas de política educativa tomadas nas últimas décadas, é indesmentível o crescimento que o ensino superior tem vindo a conhecer em Portugal. Este esforço de crescimento é bem visível quando se observam, por exemplo, a evolução do número de matrículas ou do número de diplomados deste nível de ensino, nas últimas décadas. Basta atender ao facto de que o número de matriculados no ensino superior cresceu de menos de 30000 estudantes no início da década de 1970 para números próximos dos 400000, na actualidade. Todavia, se o crescimento do sistema é uma realidade mensurável todos os anos e, portanto, uma realidade objectivável e transparente, o mesmo não se pode afirmar acerca do processo de democratização deste nível de ensino. Ter-se-á, a universidade, realmente, democratizado e universalizado no sentido de tal forma que o número e/ou a percentagem dos estudantes oriundos de estratos sociais mais fragilizados a frequentar este segmento educativo, aumentou nos últimos anos? Partindo da premissa de que uma universidade democrática é uma universidade para todos, o sucesso de um processo de democratização poderá medir-se pela origem cultural, social e económica dos seus estudantes. E, o conhecimento desse processo é indispensável para a tomada de decisão política que fomente, e potencie, realmente, aquela democratização. Todavia, apesar da pertinência desse conhecimento, em Portugal, os estudos acerca da origem cultural, social e económica dos estudantes do ensino superior são praticamente inexistentes. Essa a razão por que um grupo de investigadores tem vindo, desde os anos da década de 1990, a realizar estudos de âmbito nacional, através da aplicação de um questionário a uma amostra representativa dos estudantes do ensino superior português, público e privado, universitário e politécnico.

1. Antecedentes da investigação do projecto CESTES 2 Em 1995, Belmiro Cabrito aplicou um questionário a uma amostra representativa dos estudantes do ensino superior universitário, público e privado, cujos dados foram analisados utilizando um programa estatístico, o SPSS. Este questionário visava, entre outros, os seguintes objectivos: - determinar a origem social dos estudantes do ensino superior universitário, público e privado; - perceber o nível de equidade do sistema universitário português; - determinar os custos de educação e de vida dos estudantes decorrentes da sua frequência do ensino superior, geral e para todas as áreas científicas e estabelecimentos de ensino; - determinar o custo de um estudante, para o Estado, por área científica e estabelecimento e compará-lo com as despesas realizadas pelos estudantes/famílias; - problematizar alternativas para o financiamento da universidade pública em Portugal. De entre as conclusões a que este investigador chegou (Cabrito, 2002), destacam-se, nomeadamente: - o fraco nível de equidade e a natureza elitista deste subsistema de ensino; - a necessidade de medidas de política para o alargamento da base social de recrutamento dos estudantes; - o importante papel dos estudantes/famílias no financiamento do subsistema; - a necessidade de o estado continuar a financiar fortemente este subsistema de ensino. Em 2005, Luisa Cerdeira, levou a cabo a aplicação de um questionário a uma amostra representativa dos estudantes do ensino superior universitário e politécnico, público e privado e cujos resultados foram analisados, também, com o programa estatístico SPSS. O questionário aplicado por Cerdeira (2009), tinha proveniência no questionário que o

ICHEFAP 1 International Comparative Higher Education Finance and Accessibility Project (ICHEFAP, 2005) utilizava incluindo, no entanto, alguns blocos semelhantes aos do questionário aplicado por Cabrito em 1995. Com este questionário pretendia-se, entre outros objectivos: - identificar e recolher dados sobre os custos de educação e de vida suportados pelos alunos do ensino superior, geral e para todas as áreas científicas e estabelecimentos de ensino; - recolher e analisar dados dos orçamentos das instituições de ensino superior, público e privado; - conhecer e discutir a exequibilidade dos programas de empréstimos estudantis no contexto da realidade do ensino superior português; - discutir as condições de acessibilidade dos estudantes ao ensino superior. Do estudo de Cerdeira pôde concluir-se (Cerdeira, 2009), nomeadamente, que: - o ensino superior em Portugal mantinha a sua natureza elitista; - a partilha de custos no financiamento do ensino superior é inevitável; - são indispensáveis medidas de política social que permitam elevar os níveis de acessibilidade. Na sequência destas investigações, um grupo de investigadores projectou e levou a cabo o projecto CESTES-Custos dos Estudantes do Ensino Superior em 2011, projecto financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, cujos resultados foram publicados em 2014 (Cerdeira & Cabrito, orgs.). À semelhança das investigações anteriores, foram definidos como principais objectivos: - caracterizar a condição socioeconómica dos estudantes do ensino superior; - recolher dados sobre os custos de educação e de vida que os estudantes enfrentam durante a frequência do ensino superior; 1 The International Comparative Higher Education Finance and Accessibility Project (ICHEFAP) is a program of research, information, dissemination and networking looking at the worldwide shift of the burden of higher education costs from governments and taxpayers to parents and students. (vide http://gse.buffalo.edu/org/inthigheredfinance/).

- discutir a influência e o impacto do tipo de instituição, curso, área científica e região no valor dos custos. Em termos metodológicos, o projecto CESTES teve como referência a metodologia seguida nas investigações anteriores, tendo sido aplicado um questionário que segue as orientações dos anteriores, a uma amostra representativa dos estudantes do ensino superior público e privado, universitário e politécnico e cujos dados foram analisados pelo mesmo programa estatístico. A análise dos dados do projecto CESTES mostra que, entre outras situações, ao longo do período 1995-2011: - se acentuou a natureza elitista do ensino superior, em Portugal; - se mantiveram problemas estruturais do país, nomeadamente no que respeita ao baixo nível de habilitações académicas dos portugueses, constatado através do nível de habilitações dos progenitores dos inquiridos; - os estudantes e respectivas famílias realizam enormes esforços para manter os seus filhos a estudar; - os estudantes portugueses do ensino superior mostram uma enorme vulnerabilidade quando comparados com os seus colegas de outros países da União Europeia; - a necessidade de políticas públicas activas que reforcem a capacidade de acesso e de permanência do ensino superior aos jovens que o procuram e frequentam que se traduzem pelo reforço da democratização deste nível de ensino. Cinco anos passados sobre o projecto CESTES, a mesma equipa de investigadores, conscientes da pertinência de estudos sobre o ensino superior que permitam conhecer a sua evolução e discutir as mudanças estruturais por que passaram e, assim, verificar se o ensino superior está a contribuir para a criação de uma nova ordem social mais justa e equitativa ou se, pelo contrário, está a contribuir para a reprodução das desigualdades sociais conforme autores como Bourdieu e Passeron (1964, 1970) ou Boudon (1973) demonstraram, ainda que essa função social reprodutora possa ter-se deslocado do ensino primário e secundário para o ensino superior, como afirma Alain Prost (1992) sobre o caso francês, e como foi verificado pelos autores nas investigações já citadas,

para Portugal, decidiram levar a cabo nova investigação (2015/2016), o projecto CESTES 2, também com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, do qual se apresenta, de seguida, a metodologia utilizada e alguns resultados preliminares. 2. O projecto CESTES 2 Tomando como referência a metodologia de anteriores investigações (1994/95; 2004/2005; 2010/2011) aplicou-se um questionário no ano lectivo 2015/2016, abrangendo uma amostra representativa do universo do ensino superior a nível nacional. O questionário usado no projecto CESTES 2 resulta da adaptação dos questionários utilizados nas investigações. O universo estudado foi constituído por estudantes com pelo menos uma segunda matrícula no ensino superior, universitário e politécnico, público e privado, em Portugal Continental e nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira. Tal como nas investigações anteriores, a existência de pelo menos uma segunda matrícula justifica-se para que os estudantes entrevistados pudessem já ter tido uma vivência no ensino superior. A amostra considerada é representativa do universo em estudo, com uma distribuição proporcional, de acordo com as variáveis sexo, ano de nascimento, tipo de ensino (universitário ou politécnico) e tipo de escola (pública ou privada). Em cada um dos estabelecimentos de ensino foram também definidas quotas por curso. A amostra é constituída por 1087 entrevistas válidas. A margem de erro máxima é de +/- 3%, para um intervalo de confiança de 95%. O processo de recolha de informação implicou a autorização explícita de cada uma das instituições que faziam parte da amostra, agendamento e coordenação da recolha de informação. Em cada unidade amostral (estabelecimento de ensino), a seleção do elemento amostral foi realizada de acordo com quotas pré-definidas, sendo a seleção do inquirido(a) efetuada, sempre que possível, de forma aleatória. Sempre que possível a recolha de informação foi obtida nas salas de aulas. Noutras situações, quando não foi conseguida essa autorização, a informação foi recolhida em zonas comuns do

estabelecimento de ensino, nomeadamente, salas de estudo, bares, bibliotecas, etc. A recolha foi efetuada nos meses de Abril a Julho de 2016. A recolha de informação foi efetuada por estudantes bolseiros do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, formados especificamente para este estudo pela equipa de investigadores do projecto CESTES 2. 3. CESTES 2 - Resultados preliminares: o nível de rendimentos dos estudantes/famílias Em consequência de a aplicação dos questionários ter terminado muito recentemente, a análise dos dados está, ainda, numa fase muito embrionária. Por essa razão, para este artigo se seleccionou, apenas, informação relativa a um indicador: o nível de rendimento do agregado familiar dos estudantes. À semelhança do que foi realizado nas investigações anteriores, questionaram-se os inquiridos acerca da sua perceção sobre o rendimento mensal do agregado familiar. E, tal como nas investigações anteriormente realizadas, os dados foram distribuídos por três intervalos de rendimento que, de algum modo poderiam representar, na nomenclatura anglo-saxónica, classes alta, média e baixa, respetivamente : - rendimento alto/médio alto, rendimento superior a 1500 ; - rendimento médio, rendimento compreendido entre 870 e 1500 ; - rendimento baixo, rendimento inferior a 870. O quadro 1 revela as respostas obtidas. Quadro 1 Perceção dos estudantes do ensino superior sobre o rendimento do agregado familiar (2015/2016) (%) Rendimento 2015/2016 Alto/Médio Alto (1501-3000 ) 36,7 Médio (870-1500 ) 46,7 Baixo (< 870 ) 16,6 Fonte: Questionário aplicado pelos autores

A análise dos valores do quadro mostra bem que o ensino superior, em Portugal, é frequentado maioritariamente por uma população com capacidade financeira para tal. Menos de 17% da população estudantil pertencerá aos estrados economicamente mais frágeis do país. Os dados permitem questionar o grau de democratização e de equidade deste nível de ensino cuja população, em geral, pertence a classe média/média alta/alta. Todavia, para se poder analisar o processo de democratização e de universalização do ensino superior, em Portugal, é indispensável comparar estes dados com dados homólogos anteriores. 4. Democratização ou elitização do ensino superior? A fim de melhor se compreender a natureza elitista do ensino superior, em Portugal, que os valores do Quadro 1 evidenciam, torna-se importante comparar esses dados com os dados obtidos nas investigações anteriormente realizadas pelos autores. O Gráfico 1 compara, exactamente, a perceção que os estudantes têm do nível de rendimentos dos seus agregados familiares nos quatro estudos realizados e que permitem analisar o processo de democratização/elitização do ensino superior, em Portugal, nas últimas 3 décadas.. Gráfico 1 - Perceção dos estudantes do ensino superior sobre o rendimento do agregado familiar, por nível de rendimento (%)

Fonte: Inquéritos aplicados pelos autores A análise dos valores do quadro evidencia bem que o ensino superior em Portugal é, indubitavelmente, um ensino superior para elites e que esse processo de elitização se tem vindo a agravar. É notório o crescimento do estrato de maiores rendimentos no conjunto da população estudantil, muito especialmente a partir da década de 2010. Simultaneamente, e a partir da mesma data, assiste-se a um fortíssimo esmagamento da classe média que recuperou, muito superficialmente, de 2010/2011 para 2105/2106. Esta é uma das consequências mais notórias da crise económica e financeira que o país vivenciou nos últimos anos e de que resultaram políticas de extrema austeridade impostas externamente pelo Fundo Monetário Internacional, União Europeia e Banco Central Europeu, decorrente de um pedido de resgate do país a essas organizações internacionais, e internamente por um governo de cariz ultraliberal que governou o país até finais de 2015. De facto, decorrente das políticas de austeridade impostas, assistiu-se a uma quebra brutal dos rendimentos do trabalho em geral, que afetou directamente a classe média, ao mesmo tempo que reforçou o fosso entre os mais ricos e os mais pobres do país. Simultaneamente, assiste-se ao longo de todo o período, desde 1995, a um reforço dos estudantes originários dos estratos mais pobres na população estudantil, sendo que esse reforço foi pouco significativo entre 1995 e 2005, crescendo fortemente a partir de 2010 como consequência, fundamental, da passagem de uma boa parte das famílias da classe média para a classe baixa.

Registe-se, ainda, as alterações registadas entre os dois últimos inquéritos, registando-se uma ligeira melhoria dos estratos de rendimentos médios em detrimento dos estratos de rendimentos baixos e altos/médio altos que poderá ser consequência das novas políticas de recuperação do poder de compra dos portugueses decorrente do abandono das políticas de austeridade e de uma série de medidas de políticas sociais que o governo que tomou posse em finais de 2015 tem vindo a tomar com o apoio dos setores/partidos políticos mais progressistas do país. Considerações finais Como se referiu acima, neste artigo apresentam-se dados referentes, apenas, ao nível de rendimento dos agregados familiares dos estudantes do ensino superior, universitário e politécnico, público e privado, do país, em virtude de os autores se encontrarem, de momento, em pleno processo de análise de dados. Todavia, apesar de se apresentarem dados relativos a, apenas, um indicador, os resultados obtidos demonstram a natureza bastante elitista do ensino superior, em Portugal. Para além disso, estes dados, quando comparados com valores homólogos de estudos anteriores, evidenciam um real processo de elitização do ensino superior português, num movimento em tudo contrário ao expectável num sistema que se quer democrático e universal e que permite afirmar que a democratização deste nível de ensino, no país, não passa, ainda, de uma promessa por cumprir. Referências Becker, G. (1964). Human Capital A Theoretical and Empirical Analysis, with Special Reference to Education. New York: Columbia University Press. Boudon, R. (1973). L inégalité des chances. Paris : Pluriel. Bourdieu, P. & Passeron, J.-C. (1964). Les Héritiers. Paris : Les Éditions Minuit. Bourdieu, P. & Passeron, J.-C. (1970). La reproduction. Paris : Les Éditions Minuit. Cabrito, B. (2002). Financiamento do Ensino Superior: Condição Social e Despesas de Educação dos Estudantes Universitários em Portugal, Lisboa: Educa.

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