A liberdade e a legislação republicana

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Transcrição:

A liberdade e a legislação republicana Renato Fagundes de Oliveira 1 Nos diz o filósofo de Genebra na oitava das Cartas escritas da montanha: É inútil querer confundir a independência e a liberdade. Essas duas coisas são tão diferentes que até mesmo se excluem. Quando cada um faz o que bem quer, faz-se frequentemente o que desagrada aos outros e isso não se chama um Estado livre. A liberdade consiste menos em fazer sua vontade do que em não ser submetido à vontade de outro; ela consiste ainda em não submeter a vontade de outro à nossa. (...) Não conheço vontade verdadeiramente livre que não seja aquela à qual ninguém tem o direito de opor resistência; na liberdade comum, ninguém tem o direito de fazer aquilo que a liberdade de um outro o proíbe de fazer, e a verdadeira liberdade nunca é destrutiva em relação a si mesma. Assim, a liberdade sem a justiça é uma verdadeira contradição, pois, não importa o que se pense, tudo constrange na execução de uma vontade desordenada. 2 Partindo do suposto que a liberdade caracteriza a condição propriamente humana, Rousseau afirma que a forma republicana de Estado, ou seja, um Estado regido por leis advindas da vontade geral, é a única forma capaz de manter o homem na sua natural condição de liberdade. Importa observar que a legitimidade das leis é fator constituinte da liberdade. Não é qualquer lei a lei republicana. Nos dos diz Rousseau: Chamo pois de república todo o Estado regido por leis, sob qualquer forma de administração que possa conhecer, pois só nesse caso governa o interesse público e a coisa pública passa a ser qualquer coisa. Todo o governo legítimo é republicano. 3 1 Renato Fagundes de Oliveira cursa o mestrado em Filosofia no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Goiás (UFG), orientado pela Profa. Dra. Helena Esser dos Reis. E-mail: soberaniaecidadania@hotmail.com. Fones: (62) 3256-2215 e (62) 8588-5334. 2 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Unesp, 2006. 3. Do Contrato Social. (Col. Os pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1973.

A citação é imprecisa, pois a legislação pode fundamentar tanto a liberdade quanto a tirania. Após um olhar mais atento, compreendemos que a república do Contrato Social não é simplesmente um Estado legalista, mas um Estado regido por leis de qualidade superior, por leis legítimas. Um Estado regido por leis ilegítimas é meramente um Estado ilegítimo, mas nunca um Estado republicano. Em Rousseau, a liberdade é inerente à condição humana. Ela não é dada e nem pode ser negada pelo Estado, assim como outros atributos da personalidade humana, como a dignidade do homem. Contudo, pode ser tolhida, desrespeitada, o ser humano pode ser reduzido a ferros. A legislação de um corpo social tem caráter de instrumento da liberdade, não é a sua simples existência e observação que torna o Estado legítimo e republicano, mas sua natureza baseada na vontade geral. Se a natureza da legislação não for embasada na vontade geral, ela se torna instrumento da tirania, autorizando a escravidão do corpo social. Portanto, a legislação legítima é a base da república e é na república que o homem vive sua natureza de liberdade num Estado civil. A esse respeito, nos ensina o professor Renato Moscateli: Considerando tudo isso, não seria mais correto afirmar que no estado de natureza vê-se somente independência, enquanto que apenas no estado social manifesta-se ou pode manifestar-se a liberdade. É o que o próprio Rousseau parece sugerir no Contrato Social (livro II, capítulo IV), ao defender que a realização do pacto fundador da sociedade leva a uma troca vantajosa da independência natural pela liberdade. Esse argumento em prol dos benefícios da associação civil retoma, com novos termos, o primeiro balanço feito pelo autor (livro I, capítulo VIII) da notável mudança que se opera no homem quando da passagem para o estado social. Rousseau diz que tal mudança conduziria à aquisição de uma nova existência, não mais puramente natural, mas civil e moral. Graças a ela, a justiça substituiria o instinto, a voz do dever tomaria o lugar do impulso físico, e o direito, o lugar do apetite. Ocorreria uma verdadeira transformação intelectual e ética, na qual a razão e os sentimentos se desenvolveriam de maneira considerável, fazendo de um animal estúpido e limitado um ser inteligente e um homem. Nesse novo modo de vida, em que a conquista da liberdade moral torna o homem verdadeiramente senhor de si mesmo e o autor da regra que guia suas ações, é de crucial importância impedir a subordinação de um ou de muitos ao arbítrio de uma vontade particular no tocante a um ponto básico, isto é, a auto conservação. Quando Rousseau assevera que o contrato social deve gerar uma forma de associação que permita a seus membros permanecer tão livres quanto antes de entrar nela, isto significa que eles se manterão protegidos de toda dependência pessoal enquanto obedecerem à vontade geral, que é a vontade deles mesmos. É assim,

conclui Robert Derathé, que o homem encontrará, sob a forma da liberdade civil, o equivalente de sua independência natural. 4 Quando o homem obedece a uma lei que prescreve para si mesmo, ele afirma sua liberdade, pois se obedece. Com o pacto social o corpo coletivo confere existência e vida ao organismo político; trata-se agora de dar-lhe, com a legislação, vontade e movimento, pois o ato primitivo pelo qual esse organismo se forma e se une nada determina ainda sobre o que deve fazer para a sua conservação. Entendemos que a lei é o instrumento de ação do soberano, a saber, da coletividade, do povo. É nela que ele expressa sua vontade prescrevendo como devem ser as relações entre os indivíduos, e entre estes e a coletividade. A lei é o veículo por meio do qual o soberano impõe deveres e atribui direitos aos súditos do Estado. Esses direitos e deveres podem ser comissivos ou omissivos, podendo a coletividade vir a ser compelida a se portar de determinado modo ou a abster-se de certas condutas. Portanto, a lei como veículo da vontade do soberano é apenas um instrumento dessa vontade. E por possuir essa característica, a sua simples existência e observação não garante a legitimidade e a liberdade do corpo social. A vontade que se expressa na lei é que é garantidora da liberdade ou da opressão do corpo social. A lei garantia da liberdade é aquela elaborada em conformidade com a vontade geral. Ela deve ser, necessariamente, a expressão da vontade do corpo social, que é o soberano verdadeiro, outro que exerça a soberania será, quando muito, o tirano usurpador. O conteúdo da norma não precisa ser o mais sábio, o mais técnico, a melhor escolha. Segundo Rousseau, a coletividade pode se enganar nas suas escolhas, por não possuir um reto discernimento. É necessário que as leis sejam elaboradas pela vontade geral para que os direitos se associem aos deveres, fazendo assim com que a justiça seja alcançada. A lei é um ato público e solene da vontade geral, pelo pacto fundamental todos estão sujeitos a essa vontade, e é tão somente dela que todas as leis retiram a sua força legitimadora e libertária. Não há, pois, liberdade sem leis, nem onde alguém esteja acima das leis: pois até mesmo no estado de natureza o homem só é livre de acordo com a 4 MOSCATELI, Renato. A liberdade como conceito metafísico e jurídico em Rousseau. Revista Princípios. Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008, p. 59-79.

lei natural que comanda a todos. Um povo livre obedece, mas não serve. Simplesmente porque obedece a si mesmo, mesmo que esteja enganado na sua escolha. Se a lei legítima é a elaborada pela vontade geral, faz-se necessário precisar essa vontade. Entendemos a vontade geral como aquela que dá voz aos interesses que cada pessoa tem em comum com todas as demais, de maneira que ao ser atendido um interesse seu, também estarão sendo atendidos os interesses de todos os membros do corpo social. Ela é aquela que traduz o que há de comum em todas as vontades individuais, que constitui o substrato coletivo das consciências. Ela representa o fator unificador da multiplicidade dos contratantes. Toda a estrutura do Estado, toda a máquina administrativa depende do princípio da vontade geral, pois é ela quem fundamenta todas as leis. Não haveria direito propriamente dito, se não houvesse uma relação de liberdade, igualdade e reciprocidade no sistema gerado pela tese contratual. É porque cada indivíduo se põe diante dos outros membros da comunidade política enquanto pessoa moral, dotada de razão e liberdade, responsável pelas decisões públicas, vinculada à vontade geral, que se torna possível a vida em comunidade baseada na ideia do direito. DA VONTADE GERAL COMO FONTE DA LEI Até aqui, concluímos com o filósofo de Genebra, que a lei legítima é o instrumento que veicula a vontade geral, e que a vontade geral é a base Estado livre, a saber, a República Rousseauísta. Mas ainda nos perguntamos, qual seria a verdadeira constituição da lei, em que exatamente consiste essa lei que garante a liberdade do corpo social, e torna o Estado em uma República? Entendemos que o próprio Rousseau responde a essa questão, quando diz:... somente a vontade geral tem possibilidade de dirigir as forças do Estado, segundo o fim de sua instituição, isto é, o bem comum; pois, se a oposição dos interesses particulares tomou necessário o estabelecimento das sociedades, foi a conciliação desses mesmos interesses que a tornou possível. Eis o que há de comum nesses diferentes interesses

fornecedores do laço social; e, se não houvesse algum ponto em torno do qual todos os interesses se harmonizam, sociedade nenhuma poderia existir. Ora, é unicamente à base desse interesse comum que a sociedade deve ser governada. Então, o objeto da lei deve ser sempre o bem comum, ele deve ser geral, assim como a vontade que o dita. É esta dupla universalidade, da vontade e do bem comum, que define o verdadeiro caráter da lei que fundamenta a república. DA VONTADE PARTICULAR A vontade particular, ao contrário, mesmo que seja a da maioria da coletividade, não é capaz de garantir a liberdade, nem o Estado Republicano. Porque se um objeto em particular tem diferentes relações com vários indivíduos, cada um deles dotado de vontade própria, deixa de haver uma vontade geral perfeitamente unificada sobre o objeto em questão, e passa a ser uma relação particular estranha à noção de vontade geral. Se considerada a generalidade da vontade e da lei, é aquela ponderada mediante abstração, ou o que convém a todo particular de que se trata, que só é todo com relação aos seus componentes. Só existe vontade geral em relação aos membros das coletividades particulares, nunca em relação sujeitos estranhos a determinado grupo coletivo. A vontade geral de uma coletividade é particular em relação a outras coletividades. Isso pode ser visto de modo muito claro nas relações internacionais, onde a vontade, que é geral em um país, é, ao mesmo tempo particular em relação ao resto do mundo. No instante em que um povo considera um objeto particular, que seja um dos seus membros, forma-se entre o todo e a parte uma relação que faz com que existam dois seres distintos, um deles a parte, e o outro, que é o todo menos essa parte; contudo, diminuído de uma parte, o todo não é em absoluto a totalidade e, enquanto subsistir essa relação, não haverá mais o todo, mas apenas duas partes desiguais, estamos diante de atos particulares. Atos particulares são atos de governo, de gestão, não são atos do soberano, são atos vinculados da vontade do soberano concretizada na lei. Todas as funções relativas a objetos individuais estão fora do poder legislativo. Esta é uma das razões porque

a lei não deve ter efeito retroativo no entendimento de Rousseau, se ela o tiver estaria tratando de um fato particular, em vez de regular de modo geral uma espécie de ação que, não se referindo ainda a ninguém, nada têm de individual, a não ser depois da sua publicação e pela vontade daqueles que são afetados. Nós entendemos ponto como tormentoso, pois a retroatividade da lei que beneficia os membros da coletividade, a nosso ver, não perde seu caráter geral, se apenas indicar a classe de cidadãos ou a situação de sua aplicabilidade, sem apontar beneficiários concretos. Quando afirmamos que o objeto das leis é sempre geral, dizemos que a lei considera os sujeitos em conjunto, e as ações por seu gênero ou espécie, nunca um homem em particular ou uma ação considerada como única e individual. Assim, a lei pode estabelecer privilégios, mas não pode concedê-los nominalmente a ninguém. Pode criar várias categorias de cidadãos, e indicar as qualidades que caracterizarão cada uma das classes, mas não pode especificar as pessoas que devem ser assim qualificadas. Pode criar um governo monárquico e uma sucessão hereditária, mas não pode nomear um monarca ou uma família real. CONCLUSÃO Com relação a outros aspectos da legislação, entendemos, com o autor genebrino, que o autor das leis é o povo soberano que se exprime pela vontade geral. E que o governo está submetido às leis, e que ele é membro do Estado, e apenas realiza atos particulares. Entendemos, ainda, que a lei republicana não pode ser injusta, pois ninguém é injusto quando se trata de si mesmo. E que se pode ser livre e estar ao mesmo tempo sujeito às leis, pois estas não passam de registros da própria vontade do súdito do Estado. Compreende-se, a partir dessas qualidades da lei republicana, que a lei reúne a universalidade do objeto e da vontade. O que o soberano ordena, sobre um objeto em particular, não é uma lei, mas um decreto, não um ato de soberania mas de governo. A lei fundamental, para a qual existe a república, garantia da liberdade, é o maior bem de todos.

No Contrato Social a legislação é expressão da soberania do Estado, desde que elaborada em conformidade com a vontade geral. É na sua generalidade e abstração que se encontra a vontade do corpo social. A lei assim produzida nada mais é do que a própria vontade do cidadão traduzida em lei. A liberdade é plena, pois todos obedecem a si mesmos, obedecendo à lei para a qual se auto-obrigou. Concluímos que a república Rousseauísta, pensada no Contrato Social, não é simplesmente um Estado que possui um corpo de leis, pois dificilmente um Estado não possuirá um sistema legal. Ela é, antes de tudo, um Estado com um corpo de leis de qualidade superior, porque elaboradas segundo uma vontade, que não é a vontade de um grupo ou da maioria, nem mesmo é a vontade de todos os cidadãos. É a vontade geral, que é a vontade da coletividade, trata-se aqui não de algo externo, mas da vontade de cada um e do todo expressas na lei. E quem obedece a si mesmo é livre, e não pode ser injusto, pois não se pode ser injusto consigo mesmo. Bibliografia MOSCATELI, Renato. A liberdade como conceito metafísico e jurídico em Rousseau. Revista Princípios. Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008, p. 59-79. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Cartas escritas da montanha. São Paulo: Unesp, 2006.. Do Contrato Social. (Col. Os pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1973.