Os hieróglifos antes de Champollion. Luísa Barbosa Faria 1. 1 Metodologia



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Transcrição:

Os hieróglifos antes de Champollion Luísa Barbosa Faria 1 1 Metodologia Este artigo é dividido entre as mais importantes interpretações sobre a língua egípcia pesquisadas. Este não é um modelo retirado do trabalho de algum autor. A própria autora do presente artigo identificou em diferentes bibliografias essas hipóteses e escolheu seguir essa linha de pensamento. Dessa maneira ficará mais fácil entender as principais etapas que o estudo da língua egípcia passou durante os séculos de interesse pelo assunto. Ao final, serão exemplificadas algumas importantes descobertas que levaram à tradução da língua egípcia por Champollion no século XIX. 2 Introdução A escrita hieroglífica egípcia representou, durante muito tempo, para os primeiros linguistas a tentar estudá-la um grande mistério a ser solucionado. Muitas foram as hipóteses utilizadas para este fim e grande parte delas estavam muito longe da realidade. Os esforços culminaram com Champollion (1790-1832) que, com a ajuda da Pedra de Rosetta (texto escrito em três línguas diferentes: o egípcio, o grego e o demótico) consegui chegar à chave da tradução dos hieróglifos. Até o século XIX, nem todos os linguistas acreditavam que o egípcio seria, realmente, um sistema linguístico. Um pouco antes de Champollion, já após o achado da Pedra de Rosetta, Sylvestre de Sacy tentou traduzir algumas palavras acreditando que os hieróglifos representavam ideias, mas não era uma língua. O caráter pictográfico também existiu, os hieróglifos eram apenas desenhos representando fatos, como nas pinturas rupestres. A 1 Graduanda de licenciatura em história pela UFRuralRJ. Bolsista de iniciação científica pelo CNPq. 1

interpretação naturalista 2 esteve presente no século XVI e XVII e na antiguidade, com Platão, que não falou necessariamente sobre o egípcio, mas suas ideias de língua natural influenciaram autores posteriores. No século XVIII, surgiu, com de Guines, a comparação da língua egípcia com a chinesa, ambas sendo consideradas ideográficas. No fim do século XVIII e no início do século XIX, as mais decisivas contribuições foram dadas principalmente por J.J. Barthélemy, Sylvestre de Sacy, Johan Äkerblad, Thomas Young e Jean-François Champollion. Todas as tentativas e estudos sobre a língua egípcia foram importantes para a final tradução, como sustenta Don Cameron Allen 3. Champollion foi quem fez as principais descobertas, mas provavelmente, não teria conseguido sem as tentativas anteriores. 3 Interpretações As interpretações mais remotas estão ligadas à ideia naturalista da língua; nelas, cada hieróglifo possuía um significado completo e em si, ligado à figura que representava. Esse tipo de interpretação esteve presente principalmente no século XVII. Platão, através de Sócrates, em seu diálogo, Cratylus (séc. IV) fala sobre os nomes originais. Sócrates explica que cada coisa ou pessoa possui o seu próprio nome e que apenas pessoas especiais poderiam dizer, como exemplifica o seguinte trecho: Mas se ambos estão errados, e coisas não são relativos a indivíduos, e todas as coisas não pertencem igualmente a tudo ao mesmo momento e sempre, eles devem ter sua própria e permanente essência: elas não são relacionadas a nós, ou influenciadas por nós, flutuando de acordo coma nossa interpretação, mas elas são independentes, e mantém com sua própria essência a relação prescrita pela natureza 4. Trata-se da ideia é de uma língua natural e original, na qual os nomes e coisas não seriam diferenciados. Os neoplatonistas seguiram tal pensamento. Frances Mercury van 2 O hieróglifo significando aquilo que representa, não sendo diferenciado o nome do objeto. 3 Cf. ALLEN, Don Cameron. The predecessors of Champollion. In: Proceedings of the American Philosophical Society. Philadelphia, nº 5, Vol.104, pp. 527-547, Oct. 1960. 4 PLATÃO. Cratylus. 360 a.c. Traduzido para o inglês por Benjamin Jowett. Disponível em: <http://classics.mit.edu/plato/cratylus.html. Acesso em: 13 de agosto de 2010. Sem paginação. 2

Helmont 5, um alquimista e estudioso da cabala judaica, que viveu no século XVII, usou essa teoria no livro Alphabet of nature (Alfabeto da Natureza), juntado ciência e religião, em que afirma que havia uma língua primordial e divina e essa língua seria o hebraico, a língua superior às outras por sua praticidade e grandiosidade, na qual as palavras representam a real natureza das coisas, além de possuírem poder utilizado pelos homens que foi dado por Deus, assim como Ele criou todas as coisas com Sua palavra. As letras são naturais e vivas e, cada uma, tem seu significado próprio. Ele dá o exemplo de Adão que, a partir do momento em que pensou no nome do cavalo, passou a existir. Graças a essas características, van Helmont afirmou que essa língua poderia ser ensinada para surdos, e era esse ensinamento que passou em seu livro. No Corpus Hermeticus 6, o egípcio é colocado como superior ao grego, pois é uma representação da realidade e, assim, oferece percepções da verdade divina. Horapollo, que viveu no século V, escreveu um dicionário egípcio com o significado de cada hieróglifo e a explicação para essa relação. A explicação vem diretamente da característica desse hieróglifo, por exemplo, um coelho significa abertura porque o coelho sempre mantém os olhos abertos. Alguns dos significados de Horapollo mostram-se certos ou perto da realidade, como, por exemplo, o abutre que significa mãe ou o ganso que significa filho, que é, na verdade, um pato. Esses acertos podem indicar que havia algum conhecimento do significado de alguns hieróglifos, mas não se sabia o porquê disso, a relação era feita de acordo com a interpretação do estudioso. Athanasius Kircher (1602-1680), também segue essa linha, mas sua contribuição foi muito maior com o Cóptico do que com o egípcio. Suas interpretações eram, muitas vezes, absurdas, com, por exemplo, a do cartucho do faraó Apris encontrado em um obelisco romano: os favores do divino Osíris devem ser propiciados por meio de cerimônias sagradas e da cadeia dos Gêmeos, a fim de que se possam obter os benefícios do Nilo 7. Ele também 5 Cf. Van HELMONT, F.M. The Alphabet of Nature. Tradução, introdução, anotações: Alison O. Coudert e Taylor Corse. Brill. Boston: Leiden, 2007. 6 Corpus Hermeticum. Conjunto de textos atribuídos à divindade Hermes Trismegisto produzidos em Alexandria nos primeiros séculos da era cristã, que combina filosofia e teologia, astronomia e astrologia, matemática e alquimia, ciências naturais e magia. 7 Apud DAVIS, W.V. Os hieróglifos Egípcios In: Hooker, J. T. (introdução) : Lendo o passado. Do cuneiforme ao alfabeto: A história da escrita antiga. Introdução J.T. Hooker.São Paulo: Melhoramentos, 1996. 3

relacionou a forma de alguns animais com as letras do alfabeto grego, formando um alfabeto egípcio. Kircher escreveu sobre a China e acreditava que este país havia sido colonizado pelo Egito, mas não havia nenhuma relação entre as duas línguas. A teoria de que os hieróglifos eram ideogramas também foi adotada pelos humanistas e permaneceu durante o século XVI e parte do XVII. A interpretação ideográfica da língua foi adotada por muitos estudiosos, destacando-se Joseph de Guignes (1727-1795) que comparou a língua egípcia com a chinesa. Ele acreditava que a língua egípcia estava preservada na China e a ponte entre as duas línguas seria o alfabeto fenício. De Guignes acreditava que ambos egípcio e chinês eram linguagens simbólicas com elementos comuns como o uso de metáforas e alegorias além do uso de símbolos ligados à natureza e aos costumes locais. Ele também fez comparações entre a história dos dois países através da escrita dos nomes dos primeiros imperadores da China que poderiam ser lidos como os nomes de faraós egípcios. De Guines conclui, com seu trabalho, que a língua egípcia melhor preservou a língua mãe que deu origem a todas as línguas orientais. Após os estudos de Guignes, J. Turbeville Needham (1713-1781) retomou a hipótese com um novo argumento. Contrário a de Guignes, não acreditava na colonização egípcia da China, a única relação que conseguia fazer entre os dois países, além da língua, era a veneração aos mortos. Needham relacionou as duas línguas através da analise de um busto que estava no museu de Turin. Ele o identificou como sendo o de Isis, deusa egípcia, e as inscrições em sua base como egípcio, mas que o lembrava da língua chinesa. A tradução foi feita por um chinês através de um dicionário de chinês-latim o que fez Needham acreditar que o conhecimento de chinês era necessário para a tradução do egípcio. Seu livro causou um grande alvoroço no mundo entre os estudiosos que acabou resultando em duras críticas e na tentativa de fazer Needham desistir dessa perspectiva. Outra hipótese sobre a língua foi o seu caráter pictográfico. Acreditava-se que os símbolos egípcios significavam exatamente aquilo o que estava desenhado assim como os desenhos de homens primitivos. Se fosse encontrada uma sequência com os símbolos de um homem, um olho, um boi e um rio, isso seria traduzido como o homem viu o boi no rio. Mesmo com a descoberta da Pedra de Rosetta, no final do sec. XVII, essa teoria manteve-se (e ainda se mantém até hoje com alguns estudiosos). No século XV, com o estudo de manuscritos romanos, humanistas italianos concluíram que as inscrições em obeliscos trazidos de Roma, que eram hieróglifos, podiam ser lidas. 4

4 A Pedra de Rosetta A Pedra de Rosetta foi descoberta na expedição que Napoleão fez ao Egito levando um grupo de estudiosos de todas as especialidades para estudar o local. O objetivo era o de incentivar a disseminação do esclarecimento e do conhecimento no Egito 8. Foi através dessa expedição que uma séria de novos estudos sobre o Oriente começou e as descobertas feitas, mais tarde, por Champolliom provaram que a escrita e a civilização eram mais antigas do que se acreditava. A crença católica dizia que a origem da civilização era adâmica (de Adão) e uma das características da Revolução Francesa era o desejo de separação total da Igreja católica. Os motivos e objetivos de Napoleão no Egito eram geopolíticos, o de colonização do Norte da África, e seus especialistas ocupados com a língua egípcia não se preocuparam, imediatamente, em aprender sobre a cultura e religião egípcia enquanto tentavam traduzir a língua o que pode ter contribuído para seu fracasso. Apenas um pouco mais tarde, no sec. XIX, com Champollion, que esse estudo foi levado em consideração produzindo, assim, a primeira tradução que é a base das gramáticas egípcias de hoje. 5 A decifração da língua egípcia A escrita egípcia não expressa o conceito pretendido por meio de sílabas juntas umas as outras, mas por meio de significação dos objetos que foram copiados, e por seu sentido figurativo que a prática havia impresso na memória 9 (FAZER REFERÊNCIA). Essa definição sobre a língua egípcia foi escrita, no século 1a.C. por Diodoro Sículo, historiador que visitou o Egito. A noção figurativa da língua egípcia permaneceu, durante muitos séculos, e influenciou linguistas de todas as épocas. Como já foi comentado, Horapollo foi um dos famosos estudiosos de sua época que escreveu um tratado chamado Hieroglyphica,sua escrita fazia parte de um gênero literário que tratava apenas dos hieróglifos. Horapollo fazia 8 Cf. BURLEIGH, Nina. Miragem: os cientistas de Napoleão e suas descobertas no Egito. São Paulo:Landscape, 2008. 9 DAVIS, W.V. Os hieróglifos Egípcios In: Hooker, J. T. (introdução) : Lendo o passado. Do cuneiforme ao alfabeto: A história da escrita antiga. Introdução J.T. Hooker.São Paulo: Melhoramentos, 1996, pg.151 5

comparações como a do ganso, que significava filho porque o animal tinha um grande zelo por sua prole 10. Athanasius Kircher, assim como outros, seguiu essa linha de raciocínio. As suas maiores contribuições para a língua foi seu tratado sobre o Copta 11, que foi o primeiro de outros livros sobre essa língua, além de ser de grande ajuda para a decifração dos hieróglifos. Ele concluiu que o copta era originado do demótico egípcio. O Copta foi a língua usada no Egito após o desaparecimento de suas línguas nativas no período cristão. Essa língua é bastante afastada das anteriores, o egípcio, o hierático e demótico. Apesar das contribuições para o Copta, suas teorias sobre o egípcio não foram boas, sua leitura e interpretação eram conjeturais. No século XVII, após a morte de Kircher, outras interpretações surgiram, mas poucas pertinentes. O francês J. de Guines, ao falar sobre o egípcio e o chinês, partia do princípio que a China fora outrora uma colônia egípcia. A maior contribuição, antes do achado da Pedra de Rosetta, foi a de outro francês J.J. Barthélemy (1721-1800). Para ele, os nomes escritos nos cartuchos eram nomes reais. Após o seu achado, a Pedra foi enviada para a França e diversas cópias de seu conteúdo foram feitas e distribuídas pela Europa. Em 1801, foi cedida aos ingleses e no ano seguinte transportada para a Inglaterra. Após a distribuição dessas cópias, uma grande quantidade de estudiosos começou uma corrida para decifrar os escritos. Diferentes publicações e conferências foram feitas para apresentar as soluções até então encontradas. Na época da transferência da pedra de França para Inglaterra, Sylvestre de Sacy (1758-1832) e seu discípulo Johan Äkeblard (1763-18190) destacaram-se no seu estudo. Assim, como foi mencionado anteriormente, o estudo dos hieróglifos foi uma sucessão de erros e pequenos acertos; tal foi a contribuição dos dois. Sacy sustentava que o hieroglífico não fazia parte de uma língua, pois representava ideias e não sons, por isso, concentrou-se no demótico e no grego. Ele decidiu procurar os equivalentes em demótico dos nomes gregos e então isolar as letras. A tarefa não era fácil e, por essa razão, conseguiu chegar apenas aos equivalentes de Alexandre e Ptolomeu, mas não isolou os equivalentes das letras demóticas. 10 Idem. Pg. 152. 11 Prodromus Coptus sive Aegyptiacus 6

Seu discípulo conseguiu um avanço maior, seguindo a mesma forma de análise. Isolou nomes próprios como Arsínoe, Berenice e Aelos e através de seus sons conseguiu encontrar outras palavras: grego, egípcio, templo, amor, ele e seu. Infelizmente, uma de suas conclusões o impediu de obter maiores sucessos, acreditava que a escrita demótica era totalmente alfabética. Entre os estudos citados anteriormente e o sucesso de Champollion, passaram-se vinte anos. Sacy e Äkeblard concluíram seus estudos em 1802, a próxima importante contribuição aconteceu, em 1814, com Thomas Young e, em 1822, Champollion escreveu, finalmente, seu primeiro tratado sobre seus estudos da língua egípcia. Thomas Young teve acesso não só a Pedra de Rosetta, mas a outros papiros que muito o ajudaram na decifração. A primeira observação feita por em seu estudo, foi em relação às conclusões de Äkeblard. Young, percebeu que não seria possível explicar o demótico como sendo uma língua alfabética: no entanto, pouquíssimas há que consiga ler alfabeticamente, excetuando os nomes próprios que Äkeblard havia lido 12. Ademais, percebeu que havia uma ligação entre o demótico e o egípcio e, em 1816, recebeu um papiro com passagens do Livro dos Mortos que estava escrito em hieroglífico e hierático e, a partir de então, pôde encontrar a equivalência de ambas as línguas. Com esses estudos, chegou a uma importante conclusão: ambos hierático e hieroglífico possuíam grande quantidade de elementos fonéticos. Ele também confirmou a suspeita anterior de que os escritos em cartuchos pertenciam a reis e rainhas. Young conseguiu identificar um dos símbolos, comumente apresentado em nomes pessoais, como sendo o indicador de feminino. Pela primeira vez, conseguiu estabelecer relações entre o demótico e o hieroglífico através dos nomes incluídos nos cartuchos como o do rei Ptolomeu que aparece seis vezes no texto. Young fez a correlação dos valores desta forma: Ptolemaios 12 DAVIS, W.V. Os hieróglifos op. cit., p.156. 7

Hieróglifo i ou y s Valor de Young p t Não necessário em essência lo ou olé ma ou apenas m i osh ou os Valor correto p t o l m 8

A decifração desse e de outros nomes ajudou a futura conclusão de que a língua egípcia era fundamentalmente fonética, mas infelizmente a conclusão não foi obtida pelo próprio Young. A sua crença de que a língua era simbólica e que a parte fonética era apenas uma exceção encontrada apenas em nomes estrangeiro o impediu de fazer maiores avanços na área. Os maiores avanços e a decifração da língua seriam atingidos apenas pelo francês Jean-François Champollion. Assim como Young, obteve fontes além da Pedra de Rosetta, mas em maior número que seu contemporâneo. A primeira palavra que conseguiu traduzir foi Ptolomeu, ele a encontrou mais tarde, em 1819, em um obelisco com um pedestal que estava em posse de um viajante inglês. Na base do obelisco, havia duas inscrições em grego: Ptolomeu e Cleópatra e no obelisco havia um texto hieroglífico com dois únicos cartuchos diferentes. Um deles também estava presente na Pedra de Rosetta, identificado como Ptolomeu. Fazendo a equivalência, e com a ajuda do nome em grego, chegou ao nome de Cleópatra. Alguns hieróglifos com o mesmo som não correspondiam e Champollion concluiu que eram sinais homófonos. Usando os sinais já conhecidos, decifrou outros nomes da Pedra. A essa altura, Champollion ainda acreditava, assim como Young, que o caráter fonético estava presente apenas nos nomes estrangeiros, mas, em 1822, em sua Lettre a M. Dacier, anunciou que o sistema fonético não se resumia apenas aos nomes, mas era muito mais amplo. O conhecimento de outras línguas e, assim, de um pouco da cultura egípcia ajudou Champollion a fazer outras traduções, como a do nome Ramsés. O seu cartucho foi encontrado repetidamente em cópias de inscrições de templos egípcio que havia recebido. Esse cartucho era. Graças aos seus estudos anteriores, sabia que os dois últimos sinais tinham o valor fonético de /s/ e, fazendo uma comparação com o copta, o primeiro sinal equivaleria a /re/. Assim surgiu a combinação Re+?+s+s o que, logo, identificou como Ramsés, atribuindo o valor de /m/ ao símbolo que faltava. Para comprovar, encontrou um outro cartucho que possuía o sinal que faltava traduzir no nome de Ramsés. O primeiro símbolo foi reconhecido como a ave íbis que era o símbolo de rei Tot e, assim, o nome só poderia ser Tutmés faraó da XVIII dinastia de Maneto. Assim, com a contribuição de todas as fontes a disposição e as conclusões 9

que já havia chegado, Champollion conseguiu decifrar muitas outras palavras da Pedra de Rosetta que não eram apenas nomes de reis. Ele publicou suas descobertas e outras foram publicadas, mais tarde, pelo seu irmão, Champollion-Figeac. Assim, foi demonstrada a relação entre os símbolos e os sons sendo possível fazer uma análise gramatical, traduzir frases e orações. Havia erros, mas o essencial era firme. Ainda restam dúvidas e traduções por fazer, mas tudo o que existe hoje só foi possível graças a contribuição de Champollion. 6 Conclusão As conclusões que podem ser obtidas com este artigo são: quais os pontos fundamentais para a decifração da língua egípcia e que contribuições foram necessárias para se chegar a eles. Primeiramente, o interesse mostrado, desde a antiguidade até o século XIX, foi fundamental para o grande número de hipóteses, certas ou erradas, sobre a língua, assim como o interesse pelo Egito que aumentou a quantidade de fontes necessárias para o estudo da língua. As hipóteses e conclusões que se revelaram corretas foram mantidas e as erradas descartadas (na sequência que levou à decifração, algumas foram seguidas por muito tempo). O conhecimento da cultura egípcia e de línguas ligadas ao Egito foi essencial para o estudo. Champollion contribuiu, principalmente, com a descoberta de que a língua possuía uma sintaxe, que tinha uma gramática que lhe conferia sentido. Antes disso, descartou que a língua fosse alfabética ou ideográfica e concluiu que era totalmente sonora. Cada hieróglifo representava um som e não uma letra ou ideia. Essa foi a forma, que através dos séculos a língua egípcia foi sendo estudada, desvendada e decifrada, e é até hoje, pois não está totalmente traduzida. 10