por Rodolfo Petrônio (UNIRIO).

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Transcrição:

A LÓGICA DE RAIMUNDO LÚLIO! por Rodolfo Petrônio (UNIRIO). Dr. Guilherme Wyllie Guilherme Wyllie doutorou-se em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Até o presente momento, já publicou dezenas de trabalhos sobre diversos aspectos da história da lógica na Idade Média. Em 2006, ingressou na Universitat Autònoma de Barcelona onde não só atuou como professor visitante, mas também realizou uma pesquisa de pós-doutorado sobre a lógica de Raimundo Lúlio. Atualmente, é professor adjunto do departamento de filosofia da Universidade Federal Fluminense. A Aquinate agradece ao Professor Dr. Guilherme Wyllie pela entrevista e valiosa contribuição com as pesquisas e publicações na área de História da Lógica na Idade Média no Brasil. Da mesma forma, ao Professor Dr. Rodolfo Petrônio pela colaboração. 1. Quem foi Raimundo Lúlio? Raimundo Lúlio foi um dos mais admiráveis eruditos cristãos da Idade Média. Sua extensa produção literária, cerca de 250 obras escritas em latim, catalão ou árabe, está repleta de doutrinas originais sobre diversos temas que influenciaram grandes pensadores como Nicolau de Cusa, Giordano Bruno e Leibniz. Nascido em Maiorca por volta de 1232, Lúlio leva uma vida dissoluta até completar trinta anos e converter-se ao cristianismo. Em 1274, após uma década de estudos em busca de um novo modo de apresentação da fé cristã, Lúlio concebe, mediante a iluminação divina, o esboço de um livro contra os equívocos dos infiéis e estabelece a primeira versão de sua célebre Arte. Impulsionado pelo ideal missionário, o Doctor illuminatus luta pela fundação de uma escola de idiomas em Maiorca e obtém a permissão do Papa João XXI para instituir o Mosteiro de Miramar, que abrigaria um colégio missionário onde treze frades franciscanos estudariam a Arte e a língua árabe a partir de 1276. Subseqüentemente, ele ainda percorre o Sul da Europa e intensifica a sua atividade literária, incrementando a Arte e redigindo várias obras. Em 1288, Lúlio leciona na Universidade de Paris, mas não consegue esclarecer a Arte aos estudantes, que a consideram demasiadamente complexa. Por tal razão, ele começa a simplificá-la ao longo dos anos até chegar a uma versão definitiva em 1308. Durante a sua última visita a Paris, Lúlio escreve AQUINATE, n. 12, (2010), 152-158 152

cerca de trinta livros contra o averroísmo e só em 1311 alcança o reconhecimento acadêmico quando Francisco de Nápoles, o chanceler da Sorbonne, aprova a sua Arte com base no parecer favorável de quarenta mestres e bacharéis em artes e medicina. Nos anos seguintes, ele participa do Concílio de Vienne e ainda segue para Túnis, onde falece aos 84 anos. 2. Em que consiste e qual é a finalidade da Arte de Raimundo Lúlio? De modo geral, a Arte foi criada com o propósito missionário de converter infiéis, persuadindo-os da superioridade do cristianismo. Em princípio, Lúlio a concebeu como um sistema semimecânico formado por uma notação simbólica e diagramas combinatórios capazes de mostrar que somente os aspectos distintivos da doutrina cristã decorreriam de noções igualmente aceitas pelas grandes religiões do livro. Mas a universalidade dos seus elementos estruturais e operatórios também permitiu que ela servisse de fundamento para todas as ciências, subordinando o conhecimento humano à verdade divina. Na forma definitiva, a Arte encerra quatro figuras e um alfabeto limitado às letras B, C, D, E, F, G, H, I e K, que designam cada uma das nove dignidades divinas, princípios relativos, questões, sujeitos, virtudes e vícios. PRIMEIRA FIGURA SEGUNDA FIGURA TERCEIRA FIGURA QUARTA FIGURA AQUINATE, n. 12, (2010), 152-158 153

A primeira figura representa Deus (A) e suas dignidades ou atributos básicos, a saber, bondade (B), grandeza (C), eternidade ou duração (D), poder (E), sabedoria (F), vontade (G), virtude (H), verdade (I) e glória (K). De acordo com Lúlio, tais dignidades são princípios constitutivos da realidade, que se convertem mutuamente em Deus. Por tal razão, elas estão dispostas num círculo, onde várias linhas estabelecem suas interconexões. A segunda figura é constituída de três triângulos inscritos num círculo, que representam as seguintes tríades de princípios relacionais: diferença (B), concordância (C) e contrariedade (D); início (E), meio (F) e fim (G); maioridade (H), igualdade (I) e menoridade (K). Neste contexto, cada princípio exerce uma função regulativa que possibilita a comparação das dignidades em relação a Deus e às criaturas. Além disso, as arestas dos triângulos indicam os nomes das espécies vinculadas aos respectivos princípios, isto é, os sentidos segundo os quais cada princípio pode ser considerado. Assim, a primeira tríade é responsável pela comparação dos objetos sensíveis com os objetos inteligíveis, ao passo que a segunda tríade envolve certas relações entre ser, valor e pensamento e a terceira tríade compara as substâncias e os acidentes. De modo geral, a terceira figura expõe as relações combinatórias entre os princípios constitutivos e os princípios regulativos das figuras anteriores. Na realidade, ela inclui 36 compartimentos ocupados por combinações binárias das letras do alfabeto luliano, que permitem a representação de proposições. Virtualmente, porém, o número de compartimentos é duplicado, pois as letras podem exercer tanto a função de sujeito, quanto a função de predicado nas respectivas proposições. Para discriminar os significados de cada combinação, apela-se para operação de esvaziamento, que se resume em selecionar uma combinação tal como BC, por exemplo, e apresentar todas as proposições concebíveis a partir dela, ou seja, a bondade é grande, a diferença é grande, a bondade é diferente, a diferença é boa, a bondade é concordante, a diferença é concordante, a grandeza é boa, a concordância é boa, a grandeza é diferente, a concordância é diferente, a grandeza é concordante e a concordância é grande. Quando todas as proposições forem expressas, cumpre então submetê-las às questões designadas pelo alfabeto luliano a fim de assegurar a verdade de cada uma delas. Enfim, a quarta figura é a mais notável, pois visa ao estabelecimento de argumentos que garantam a verdade de suas conclusões. Ela abrange três círculos movéis, concêntricos e dimensionalmente distintos, em cuja extremidade estão dispostas as letras B, C, D, E, F, G, H, I e K. Deste modo, torna-se possível girar os círculos, emparelhar tais letras e obter 252 AQUINATE, n. 12, (2010), 152-158 154

combinações ternárias, onde a letra central corresponde ao termo médio e as restantes exercem a função de termos extremos de um silogismo. Todavia, como a polissemia do alfabeto luliano eleva o número de combinações para 1680, recorre-se à operação de multiplicação, que é análoga ao esvaziamento da terceira figura e permite avaliar todas as combinações envolvidas a fim de identificar os termos médios responsáveis pela determinação dos silogismos desejados. 3. Raimundo Lúlio desenvolveu outras doutrinas logicamente relevantes além de sua Arte? Sim e não são desprezíveis. Após a sua conversão, Lúlio redigiu muitas obras exclusivamente dedicadas aos mais variados e originais temas da lógica medieval. Entre as inovações presentes em tais textos, cumpre destacar uma teoria da inferência capaz de lidar com diversos tipos de argumentos informais, cuja validade está sujeita a uma ontologia efetivamente neoplatônica, e dois novos métodos de prova, a saber, a demonstração por equiparação, que legitima o uso de argumentos no discurso teológico ao garantir a verdade das conclusões envolvidas com base na igualdade dos atributos divinos, e a demonstração por hipótese, que consiste em contrapor duas suposições contraditórias e evidenciar as conseqüências impossíveis implicadas por uma delas a fim de assegurar a verdade da outra. Enfim, cabe ainda mencionar a falácia da contradição, que ocupa um lugar privilegiado na lógica de Lúlio, pois permite, por exemplo, a verificação da validade dos argumentos, a unificação da teoria das falácias e a transformação dos argumentos dialéticos em demonstrativos. 4. Qual é o papel da teoria das falácias na lógica de Raimundo Lúlio? O estudo das falácias orienta a concepção luliana de lógica na medida em que fornece os instrumentos capazes de identificar e retificar os equívocos cometidos por infiéis e filósofos heterodoxos. Com efeito, ao presumir que a finalidade da lógica envolve o estabelecimento de critérios e procedimentos para construção, análise, interpretação e avaliação de argumentos informais, Lúlio submete o restante de suas doutrinas lógicas à investigação sistemática das falácias e permite que a referida disciplina seja basicamente caracterizada como uma teoria da argumentação. Não obstante tais observações destacarem o papel da teoria das falácias na lógica luliana, a existência de vários textos de Lúlio sobre o assunto também reforça seu interesse especial pelo estudo dos argumentos falaciosos. AQUINATE, n. 12, (2010), 152-158 155

Realmente, no Compendium logicae Algazelis de 1274, já é possível verificar alguma preocupação com a teoria das falácias, visto que Lúlio fornece uma apresentação sistemática das falácias descritas nas Refutações sofísticas por não se contentar em parafrasear a doutrina demasiadamente sintética de Al-Ghazzali. Em 1303, Lúlio devota a última seção da quinta distinção da Logica nova ao tratamento das falácias. Neste texto, ele estabelece a noção geral de falácia e expõe as falácias aristotélicas para, em seguida, oferecer a primeira versão da teoria da falácia da contradição, que ocupará um lugar de destaque em sua lógica. Posteriormente, Lúlio reserva um capítulo da sétima parte da Ars generalis ultima ao exame das falácias e mostra como a sua Arte pode ser empregada para identificar os erros característicos de cada uma delas. No final de 1308, ele escreve o Liber de novis fallaciis, que constitui a investigação mais detalhada acerca de sua falácia da contradição. De início, Lúlio esclarece como a referida falácia decorre das dez questões e dos nove sujeitos da Arte. Em seguida, os sofismas aristotélicos e os modos silogísticos válidos são respectivamente assimilados e analisados pela nova falácia. Por fim, Lúlio organiza várias questões nem sempre relacionadas diretamente com a falácia da contradição, mas antes ele revela a maneira segundo a qual a falácia em questão pode ser utilizada não só para desqualificar certos silogismos equivocados, como também para avaliar tanto os silogismos que envolvem os princípios da Arte, quanto determinadas hipóteses oriundas da fé. Enfim, por volta de 1310, Lúlio redige o De fallaciis, quas non credunt facere aliqui, qui credunt esse philosophantes, contra purissimum actum Dei verissimum et perfectissimum, que constitui sua última obra sistemática acerca das falácias. Nesta época, ele se encontra em Paris a fim de combater o averroísmo e, por tal razão, alguns temas relacionados à referida doutrina proliferam nos exemplos utilizados ao longo da obra em questão. 5. O que caracteriza a falácia da contradição? Em princípio, a falácia da contradição caracteriza-se por concluir uma suposta contradição, que depende da ambigüidade de uma das suas premissas. Não obstante Lúlio afirmar que tal falácia se distingue das demais, verifica-se que ela segue o padrão tradicional segundo o qual uma falácia é um x que parece y, mas não é realmente y. Neste caso, para obter uma descrição efetiva da presente falácia em conformidade com tal padrão, cumpre efetuar a análise pormenorizada dos três aspectos fundamentais que a definem, ou seja, o ontológico, o psicológico e o lógico. O aspecto ontológico de uma falácia indica o que ela realmente é. AQUINATE, n. 12, (2010), 152-158 156

De certa forma, as falácias são tomadas como argumentos, embora nem todas sejam consideradas desse modo, caso os argumentos identifiquem-se com seqüências de proposições em que uma delas é a conclusão e as outras são as premissas. Segundo Lúlio, porém, a falácia da contradição não só é um argumento, como também deve ser qualificado de dedutivo, já que existe a pretensão de que a verdade de suas premissas garanta a verdade da conclusão. Em sua forma definitiva, o argumento que constitui tal falácia é originalmente composto por um par de premissas contraditórias, na medida em que ambas são proposições categóricas detentoras do mesmo sujeito e predicado e a primeira exprime que tudo aquilo que é sujeito não tem nada em comum com aquilo que é predicado, ao passo que a última expressa que há algo compartilhado por aquilo que é sujeito e aquilo que é predicado. Igualmente, a respectiva conclusão também encerra o sujeito e o predicado das premissas, embora simultaneamente anuncie que algo é e não é predicado do mesmo sujeito. Deste modo, o argumento em questão poderia ser esquematicamente representado como Nenhum S é um P. Algum S é um P; logo, algum S é um P e não é um P, cuja forma proposicional corresponderia a α, não-α; logo, β. O aspecto psicológico das falácias é responsável pela capacidade delas simularem que são o que efetivamente não são. No que diz respeito à falácia da contradição, observa-se que essa aptidão é conferida por uma ambigüidade presente na premissa inicial, cuja análise revelaria que a respectiva conclusão não seria contraditória e que tal fato procederia da ausência de uma contradição genuína entre as premissas. Realmente, uma falácia da contradição tal como Nenhum cão é um ladrador. Algum cão é um ladrador; logo, algum cão é um ladrador e não é um ladrador decorreria da aparente contradição provocada pela ambigüidade de Nenhum cão é um ladrador e seria esclarecida através de uma identificação prévia da causa dessa ambigüidade que, neste caso, residiria na equivocação de cão, cujo significado compreenderia tanto um animal, quanto uma constelação, e da subseqüente escolha de uma das alternativas a fim de afastar a contradição presente na conclusão. Portanto, é lícito afirmar que a eliminação da ambigüidade presente na primeira premissa de um argumento acometido pela nova falácia de Lúlio, cuja forma aparente é α, não-α; logo, β, suprime a contradição não só das premissas, como também da conclusão, e revela um argumento livre de tal falácia, cuja forma é simplesmente α, β; logo α & β. O aspecto lógico de uma falácia permite a avaliação da sua validade. Embora as falácias sejam tradicionalmente descritas como argumentos inválidos, Lúlio garante que a falácia da contradição é um argumento válido, AQUINATE, n. 12, (2010), 152-158 157

que parece inválido. De acordo com ele, as outras falácias indicam ser válido, aquilo que é inválido, ao passo que essa falácia indica ser inválido, aquilo que é válido. Por conseguinte, evidencia-se que Lúlio não só atesta a validade de α, β; logo α & β, que exprime a forma obtida através da supressão da ambigüidade presente no argumento originalmente afetado pela falácia da contradição, como também sustenta a invalidade da forma aparente desse argumento, de sorte que não é o caso que α, não-α; logo β. Em resumo, caberia então dizer que tal falácia é caracterizada por Lúlio como um argumento que parece inválido, na medida em que aparenta encerrar a forma inválida α, α; logo β, não obstante ser efetivamente válido, por envolver a forma válida α, β; logo α & β. Neste contexto, é particularmente relevante observar que ao dizer que a falácia da contradição é assim chamada, porque parece concluir uma contradição, mas não conclui e corroborar que β não decorre de α, não-α, Lúlio indica que a relação de conseqüência lógica em pauta não é explosiva, pois ela não satisfaz o princípio ex contradictione quodlibet, segundo o qual, qualquer que seja φ e ψ, ψ se segue de φ, não-φ, e revela que a teoria da falácia da contradição é paraconsistente, já que a paraconsistência de uma teoria é evidenciada quando a respectiva lógica é paraconsistente e a lógica subjacente à teoria em questão é paraconsistente, na medida em que a relação de conseqüência que a define não é explosiva. AQUINATE, n. 12, (2010), 152-158 158