IGESPAR, I. P. Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico MINISTÉRIO DACULTURA SANTA CLARA-A-VELHA: O QUOTIDIANO PARA ALÉM DA RUÍNA A ESTACARIA DO REFEITÓRIO PAULA FERNANDA QUEIROZ JOSÉ EDUARDO MATEUS Resumo O presente trabalho reporta os resultados da identificação botânica de um conjunto de 23 estacas recolhidas na zona Norte do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha. A estacaria estudada revelou-se ser constituída integralmente por madeira de pinheiro-bravo. Trabalhos do CIPA nº. 114 Lisboa, 2007 Foto da capa: Madeira da estaca nº7 pinheiro-bravo, secção transversal (foto: P.F.Queiroz) Este relatório contém dados inéditos cuja utilização e divulgação necessitará da autorização dos autores
SANTA CLARA-A-VELHA: O QUOTIDIANO PARA ALÉM DA RUÍNA A ESTACARIA DO REFEITÓRIO PAULA FERNANDA QUEIROZ JOSÉ EDUARDO MATEUS Núcleo de Arqueobotânica IGESPAR Av. da Índia, 136, 1300-300 Lisboa pqueiroz@ipa.min-cultura.pt jmateus@ipa.min-cultura.pt O presente trabalho consiste na identificação botânica de um conjunto de estacas de madeira existente na zona Norte do cercado do Mosteiro, em frente à cabeceira da Igreja e na zona do Refeitório. As estacas de madeira encontravam-se enterradas nos lodos e sedimentos que cobriam o pavimento. Na sua maioria foram recolhidas durante os trabalhos de escavação arqueológica, tendo-se mantido algumas na sua localização original, ainda parcialmente enterradas. De cada estaca foi recolhida uma amostra correspondente a uma fatia cortada em secção transversal, integrando a totalidade dos anéis de crescimento ainda preservados. No laboratório foi retirada uma pequena subamostra de cada estaca a fim de ser determinada a espécie vegetal correspondente. Os pequenos fragmentos de madeira foram fervidos em água durante várias horas a fim de assegurar a completa hidratação do tecido celular. Foram realizados cortes histológicos à mão, com bisturi, segundo as três secções de diagnóstico transversal, radial e tangencial. Os cortes foram montados em preparação microscópica com geleia de glicerina e foram observados e diagnosticados sob observação ao microscópio óptico de luz transmitida, a baixa e média ampliação (até 40x). A identificação botânica das estruturas xilomórficas foi auxiliada pela colecção de referência de madeiras em montagem no laboratório de arqueobotânica. RESULTADOS Foi analisado um conjunto de 23 estacas. Todas as estacas foram construídas com a mesma espécie de madeira pinho bravo
Espécie lenhosa identificada: PINACEAE Pinus pinaster Aiton (pinheiro bravo) Breve descrição das características morfológicas do tipo xilomórfico identificado PINACEAE Pinus pinaster (Estampa I) Corte transversal: Madeira sem vasos. Anéis de crescimento distintos, com uma transição mais ou menos abrupta do lenho de Primavera para o lenho de Verão. Canais resiníferos presentes, mais concentrados na zona de transição entre o lenho de Primavera e o lenho de Verão. Corte tangencial: Raios unisseriados relativamente curtos, com um máximo de 10 células de altura. Raios com canais resiníferos presentes. Corte radial: Campo de cruzamento radiovascular com cerca de 3 a 4 pontuações pequenas, mais ou menos circulares, simples, de tipo pinóide. Mais raramente pontuações radiovasculares ligeiramente areoladas de tipo taxodióide. Traqueídos com grandes pontuações areoladas circulares unisseriadas. Raios heterocelulares com células de formas diferentes. Células marginais dos raios com paredes espessas, fortemente denteadas, formando entre (1) 2 a 5 fiadas. Comentários Conforme referido todas as estacas estudadas da estacaria da zona da cabeceira da Igreja e do refeitório, presumivelmente construída para suportar qualquer estrutura habitacional ou de apoio, porventura associada ao próprio refeitório (varanda, telheiro,?), foram construídas a partir de troncos de pinheiro-bravo. Esta uniformidade de tipo de madeira provavelmente está relacionada com a selecção desta madeira para a produção de estacarias, porventura proveniente de plantações específicas para esse fim. Se a partir do séc. XIX se generaliza a existência de plantações de pinheiro um pouco por todo o lado, já em períodos mais recuados a situação será distinta. Segundo os próprios dados preliminares da palinologia de Santa Clara-a-Velha (Queiroz et al, 2006), nos finais do séc. XVII o pinheiro será ainda raro na região envolvente de Coimbra, dado o seu insignificante reflexo polínico nos depósitos lodosos que se acumularam após o abandono do Mosteiro. Durante o período de ocupação plena do Mosteiro, altura em que se terá construído a estacaria em causa, as plantações de pinheiro para produção de madeira seriam certamente abundantes no litoral Centro Oeste, inclusive na região de Leiria, donde provavelmente seria fornecida madeira para todo o País. Sobre a ocorrência de plantações mais próximo de Santa Clara-a-Velha, na região de Coimbra, não temos
ainda informação paleoecológica conclusiva, embora a documentação histórica nos aponte que a reflorestação da região, nomeadamente com pinho, fosse uma preocupação dos governantes e tema de legislação durante o século XVI (Gil, 1965) No presente trabalho apenas se considerou a identificação botânica da madeira das estacas. Fica para o futuro a concretização de um estudo de natureza dendrocronológica, com o reconhecimento de séries específicas de anéis de crescimento em cada estaca amostrada, embora apenas de cronologia relativa. Este estudo poderia eventualmente trazer alguma luz sobre o modo de maneio da produção de madeira para estacaria, indicando porventura padrões de especialização, nomeadamente no que respeita ao corte sistemático de populações etariamente homogéneas, plantadas para esse fim, ou pelo contrário, cortes diferenciados no tempo, das árvores mais pequenas de plantações multifuncionais, etariamente heterogéneas. O estado acentuado de degradação dos tecidos lenhosos em muitas das estacas, no entanto, reduziria este trabalho apenas a uma fracção pouco significativa do conjunto de estacas disponível, pelo que será de esperar por mais amostras do mesmo contexto. Legenda da figura ESTAMPA I Pinus pinaster Aiton 1. Secção transversal. Separação entre dois anéis de crescimento. 2. Secção transversal, detalhe. Canal de resina no lenho de Verão. 3. Secção transversal, detalhe. Final do anel de crescimento, com lenho tardio de fibras muito espessas. 4. Secção tangencial. Raios unisseriados. 5. Secção tangencial, detalhe. Raios unisseriados. 6. Secção tangencial, detalhe. Raio com canas de resina. 7. Secção radial. Traqueídos e raios. 8. Secção radial, detalhe. Campo de cruzamento radio-vascular, Raio heterocelular com as células marginais de paredes muito espessas e fortemente denteadas. 9. Secção radial, detalhe, Paredes denteadas das células marginais dos raios. REFERÊNCIAS GIL, M.O.R. (1965) Arroteias no Vale do Mondego durante o século XVI. Ensaio de História Agrária. Instituto de Alta Cultura, Centro de Estudos Históricos, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. QUEIROZ, P.F.; MATEUS, J.; PEREIRA, T.; MENDES, P. (2006) Santa Clara-a-Velha. O Quotidiano para além da Ruína. Primeiros Resultados da Investigação Paleoecológica e Arqueobotânica. Trabalhos do CIPA. Lisboa: CIPA IPA. 97.
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